A lei dos Estados Unidos da América (EUA) em
face do
regionalismo e do multilateralismo*
Durval de Noronha Goyos Jr.
RESUMO
Desenvolve uma série de argumentos para demonstrar que
a celebração de tratados internacionais com os Estados Unidos,
sobretudo aqueles de natureza comercial, não oferece
segurança jurídica, porque esse país, no entender
do autor, exerce
arbitrariamente suas próprias regras no plano internacional,
não reconhecendo a primazia do Direito Internacional. Como
argumentos, o autor faz uma análise do Direito
interno norte-americano no que diz respeito à tipificação
dos tratados
internacionais e de seu posicionamento na hierarquia
das normas internas, observando que naquele país uma lei federal
conflitante com um tratado internacional prevalece sobre
este último. Comenta a implementação dos tratados
no Direito
norte-americano, criticando a postura desse país,
segundo a qual um tratado somente poderá ser aplicado se não
for
incompatível com qualquer lei interna. Critica, ainda,
a não-ratificação, pelos EUA, da Convenção
de Viena sobre a Lei dos
Tratados; a seção 301 do Ato sobre
Tarifas e Comércio dos EUA, que autoriza o governo norte-americano
a aplicar
sanções comerciais contra países que tomem
medidas comerciais contrárias aos seus interesses; a postura desse
país com
relação ao Gatt, caracterizada como intransigente
na aceitação de regras multilaterais; e a utilização
abusiva da legislação
anti-dumping norte-americana.
ABSTRACT
It is beyond argument that the celebrations of international
treaties with United States do not offer juridical safety,
because this country, according to the author, exercises with
despotism his rules in international plan. United States
does not recognize the international Law’s superiority.
The writer considers the internal north American Law paying
attention to international treaty and his position in
hierarchy of internal rules. He mentions a conflicting situation
between federal laws and international treaty, both in
the same level in that country.
A treaty will only be applied if it is not in conflict with another
internal Law in this country. The author also criticizes
that United States do not ratify Vienna’s Convention about treaty
laws; 301 section of rate and commerce’s act of
United States; this country’s position in relation to the Trade
Negotiations Committee and the abusive utilisation of
antidumping legislation in United States.
The 301 Section authorizes north American government to apply
commerce
sanctions against countries that take commerce measures against their interests.
1 INTRODUÇÃO
O Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), assinado originalmente
em 1947 por vinte e três países, entre os quais o Brasil,
estabeleceu entre os seus princípios básicos, no art.
1º, o da Cláusula da Nação Mais Favorecida (MFN),
que nada mais é do
que a automaticidade da generalização a todos parceiros
comerciais de uma concessão feita a um deles. A cláusula
MFN é
incompatível com o conceito da reciprocidade nas relações
comerciais internacionais, mas ao menos teve o mérito de
estabelecer o patamar mínimo sobre o qual se podem assentar
os alicerces da construção do grande edifício da juridicidade
no
comércio mundial. Durante a Rodada Uruguai do Gatt, encerrada
em 1994, e que resultou na criação da Organização
Mundial
do Comércio (OMC) em 1995, uma das maiores reinvindicações
dos países em desenvolvimento, entre os quais o Brasil, foi o
aperfeiçoamento da estrutura jurídica das relações
comerciais internacionais, de tal forma a se limitar o arbítrio
e o exercício
das próprias razões.
O Gatt, em seu art. 24, permite exceções ao princípio
da cláusula MFN no tocante a zonas de livre comércio e mercados
comuns, desde que tais exceções representem não
um obstáculo à liberalização comercial, mas
uma fase intermediária nesse
propósito. Para os Estados em geral, todavia, a cláusula
MFN e o sistema multilateral representam uma âncora e uma garantia
de tratamento dentro do ordenamento jurídico internacional.
Iniciativas regionais, se não fundadas na ordem jurídica
equitativa,
podem subverter as relações e resultar na subordinação
de um Estado a outro. Desses conceitos básicos decorre a
importância fundamental do Direito do comércio internacional
nos dias de hoje para o diagnóstico de situações presentes
concretas; para informar decisões específicas; bem como
para orientar na busca da equidade nas relações comerciais
entre
Estados soberanos.
De todos os parceiros comerciais, os EUA têm sido, desde a fundação
do Gatt, o qual inspiraram nas virtudes e nos defeitos,
não somente o país mais litigioso em questões
comerciais, mas aquele que sistematicamente tem mais violado o Direito
do
comércio internacional, das mais diversas formas, inclusive
pela postura unilateral no tocante às desavenças comerciais
e pela
inconsistência de parte importante de seu ordenamento jurídico
interno em face do Direito Internacional.
O estudo do Direito comparado é sempre muito importante nas questões
de comércio internacional, por proporcionar a base
para um diagnóstico de questões atinentes às práticas
desleais de comércio, acesso a mercados e, de um modo geral, da
conformidade com o ordenamento jurídico multilateral e com o
Direito Internacional. No momento, todavia, diante da iniciativa
para a formação da Área de Livre Comércio
das Américas (Alca), seu exame se reveste de significado estratégico
para que se
possa avaliar o alicerce jurídico sobre o qual os EUA assentariam
sua participação na projetada zona de livre comércio.
2 TIPOS DE TRATADOS INTERNACIONAIS NO DIREITO DOS EUA
No Direito interno dos EUA, há que se fazer uma distinção
entre tratados e acordos executivos, ao passo que, no âmbito do
Direito Internacional, ambas as modalidades são consideradas
tratados. O Direito Constitucional dos EUA classifica os
acordos internacionais como: tratados, acordos executivos congressuais
e acordos executivos presidenciais.
Tratados: devem
ser obtidos através de aconselhamento e consentimento do Senado.
Acordos Executivos
Congressuais: são divididos em duas categorias, previamente ou subseqüentemente
autorizados.
Acordos Executivos
Presidenciais: são os celebrados pelo Poder Executivo com base em
uma autorização
constitucional
específica, como pela cláusula de "comandante-em-chefe" das
forças armadas.
A Constituição dos EUA determina que o presidente do país
possui o poder para, através do aconselhamento e
consentimento do Senado, assinar tratados, desde que dois terços
dos senadores presentes concordem1.
O poder para celebrar tratados é, portanto, dividido entre o
Executivo e o Legislativo do governo dos EUA. A função do
Senado é aconselhar e consentir sobre a assinatura de um tratado;
as funções do presidente são celebrar, ratificar ou
concordar com a assinatura de um tratado. O Senado pode incluir uma
ou mais condições para o seu consentimento,
requerendo que o tratado seja emendado pelo presidente, ou que o presidente
imponha certas reservas. O presidente somente
poderá ratificar o aceder ao tratado com as alterações
propostas pelo Senado2.
Essa sistemática bipolarizada do poder de celebrar tratados teve
o condão de tirar a credibilidade dos negociadores
internacionais dos EUA, diante da constatação de que
o respectivo tratado resultante poderia muito bem ser retalhado pelo
Senado daquele país. Evidentemente, os tratados comerciais,
por sua vasta complexidade e por cobrirem ampla gama de
interesses, são os mais vulneráveis a generalizadas modificações.
Tendo em conta tal realidade, o Ato sobre Acordos Comerciais de 19743
estabeleceu um mecanismo que permitiria, ao
mesmo tempo, dar credibilidade para os negociadores americanos encarregados
das tratativas internacionais, visando a um
acordo comercial, e manter a plena autoridade constitucional do Senado
dos EUA. Tal mecanismo dispõe que o resultado
dessa negociação deveria ser adotado ou recusado em bloco4
pelo Senado dos EUA, dentro de um determinado período,
geralmente de 90 dias, desde que os negociadores tivessem se pautado
dentro de diretrizes previamente autorizadas pelo
Senado. A esse processo convencionou-se chamar de "via rápida"5.
No tocante à hierarquia das normas, nos EUA, as leis federais
e os tratados são tecnicamente considerados como se
estivessem no mesmo patamar. Por conseguinte, na ocorrência de
um conflito entre uma lei federal e um tratado internacional,
os tribunais interpretarão aquele que tiver sido constituído
em último lugar como sendo a lei aplicável para a solução
de uma
situação litigiosa específica. Por outro lado,
os tratados, na hierarquia das normas, situam-se acima das leis estaduais6.
3 A FORMAÇÃO E A IMPLEMENTAÇÃO DOS TRATADOS NO DIREITO DOS EUA
A Constituição dos EUA7 determina que todos os tratados
celebrados pelo país passam a ser a lei local e reza que os casos
derivados de sua aplicação são de competência
do Poder Judiciário municipal, ou seja, doméstico8. O primeiro
dos
dispositivos supramencionados foi inserto pelos constituintes, motivado
pelo receio que se tinha do cumprimento das
obrigações internacionais dos EUA pelos estados federados,
em função das especificidades momentâneas na época
da
independência.
Todavia, a prática constitucional americana evoluiu no sentido
de que, apesar de a Constituição ordenar que os tratados
devem ser interpretados como leis, nem sempre os acordos internacionais
podem ser invocados por qualquer pessoa, a
qualquer tempo. Esta situação se apresentou como resultado
da evolução jurisprudencial que distinguiu o acordo
auto-executável do acordo não auto-executável,
no caso Foster versus Neilson, decidido em 18299. Mais ainda, em Foster,
a
Suprema Corte decidiu que há uma presunção no
sentido de que os tratados não são auto-executáveis,
desde que carecem de
autorização legislativa e que, por conseguinte, podem
ser alterados.
Posteriormente, a jurisprudência dos EUA aprofundou os requisitos
para que um tratado internacional venha a ser considerado
com auto-executável. Dessa forma, o fecho tradicional Todos
os países-partes desta convenção comprometem-se a
aprovar, de acordo com sua Constituição, as medidas necessárias
para assegurar a aplicação da presente convenção,
foi interpretado pelo Judiciário americano como evidenciando
o caráter não auto-executável do tratado em questão10.
Essa particularidade é agravada pela prática legislativa
de aprovação dos tratados internacionais pelo Senado do EUA,
segundo a qual a validade do acordo internacional é subordinada
à inexistência de conflitos com a legislação
federal interna, um
feito extraordinariamente raro em questões comerciais. Um exemplo
dessa situação é a legislação interna
dos EUA no que diz
respeito à implementação dos acordos da Rodada
Uruguai, que estabelece na seção 102 (a) que nenhum dispositivo
de
qualquer dos tratados da Rodada Uruguai, nem a aplicação
de qualquer dispositivo com relação a qualquer pessoa ou
circunstância, que seja incompatível com algum preceito
legal dos EUA, deverá ter eficácia11.
Da mesma forma, com relação ao Tratado de Livre Comércio
da América do Norte (Nafta)12, a lei dos EUA que aprovou
sua vigência naquele país, na seção 102
(a) 1 determina que nenhum dispositivo do acordo, nem a aplicação
de qualquer
dispositivo a uma pessoa ou circunstância, que seja incompatível
com qualquer lei dos EUA, deverá ter eficácia13.
Tais especificidades advém da relutância profundamente
enraizada nos EUA, tanto no Legislativo, como também no Judiciário,
de fazer prevalecer a lei interna sobre o Direito Internacional. A
conseqüência direta de tais circunstâncias é que,
em toda
probabilidade, um Estado que assine um tratado comercial com os EUA
assumirá o ônus de compromissos com os EUA que
os EUA não necessariamente terão como seus, do que resulta
uma situação bizarra, incompatível com o Direito Internacional.
Dessa situação advém potencialmente conseqüências
adversas graves para o setor empresarial dos países parceiros comerciais
dos EUA, nos tratados regionais de integração comercial,
de vez que há uma forte tendência de se permitir o direito
privado
de ação nestes casos. Isso é hoje permitido no
âmbito da União Européia, bem como no do Nafta e também
do Mercado
Comum do Sul (Mercosul). Em tese, é possível que uma
parte privada dos EUA exerça um direito conferido pelo Nafta, por
exemplo, contra uma parte mexicana, sem que a parte mexicana possa
exercer o mesmo direito contra uma parte dos EUA14.
4 A CONVENÇÃO DE VIENA SOBRE A LEI DOS TRATADOS E SEUS
EFEITOS PERANTE O DIREITO DOS
EUA
Muitos dos problemas discutidos no parágrafo anterior e derivados
das especificidades apontadas na lei dos EUA não
persistiriam se a Convenção de Viena sobre a Lei dos
Tratados — CVLT, concluída em 23 de maio de 1969 e em vigor
desde 27 de janeiro de 1980, tivesse sido ratificada por aquele país15.
De fato, a CVLT tenta codificar o Direito Internacional
no que diz respeito à lei dos tratados, bem como promover um
certo desenvolvimento progressivo na área.
No Direito Internacional, distinguem-se as figuras de Estado-parte da
de Estado signatário de um tratado. De acordo com o
artigo 11 da CVLT, apenas os Estados-partes devem ser obrigados por
um tratado internacional, o que se dá mediante a
troca de instrumentos, ratificação, adesão ou
qualquer outro meio convencionado no corpo do tratado. Assim, os dispositivos
da CVLT são obrigatórios apenas às partes do tratado
e aplicam-se somente aos acordos celebrados após a vigência
da
CVLT. Vários dispositivos da CVLT já faziam parte do
Direito Internacional costumeiro, tendo sido apenas codificados pelo
tratado.
Assim, as grandes inovações introduzidas pela CVLT dizem
respeito ao que foi inserto para um desenvolvimento progressivo,
no que chama a atenção ao disposto sobre as reservas
nos tratados internacionais (arts. 19 a 23). Dessa forma, o artigo 19
permite a formulação de reserva, a menos que:
a) a reserva seja proibida pelo tratado; ou
b) o tratado permita que apenas reservas específicas possam ser feitas, que excluem uma reserva pretendida.
Além disso, o artigo 17 da CVLT estabelece que o consentimento
de um Estado de ter um tratado obrigatório apenas para si
será válido apenas na eventualidade de existência
de dispositivo expresso a respeito no texto do respectivo tratado e se
as
outras partes contratantes assentirem.
O artigo 26 da CVLT estabelece a regra pacta sunt servanda com referência
à lei dos tratados e o princípio da boa fé nos
acordos internacionais. O artigo 27 determina que um Estado soberano
não pode invocar uma lei interna como uma
justificativa legal internacional para deixar de cumprir suas obrigações
decorrentes de um tratado; e esse dispositivo deve ser
interpretado em conjunto com o artigo 46, que não permite que
um Estado justifique o inadimplemento de uma obrigação
internacional com base em alegação fundada em vício
de consentimento, a menos que tenha sido violada uma norma interna de
fundamental importância.
Os EUA, não obstante signatários do tratado, não
ratificaram a CVLT. Em 1971, o presidente dos EUA enviou o texto
respectivo ao Senado para ratificação, que pretendeu
modificá-lo para sustentar a legislação americana
em vigor que conflita,
inter-alia, com os artigos 12 (consentimento em estar obrigado a um
tratado pela assinatura); 13 e 14 (consentimento); 19
(formulação de reservas); 24 (vigência); 26 (pacta
sunt servanda); 27 (lei interna e observância dos tratados); 31 (regra
geral
de interpretação); 32 (meios suplementares de interpretação);
42 (validade); e 46 (uso de lei interna como justificativa para
descumprimento de tratado).
5 A LEGISLAÇÃO COMERCIAL DOS EUA E A SEÇÃO 301 DO ATO SOBRE TARIFAS E COMÉRCIO DE 1974
A seção 301 do Ato sobre Comércio e Tarifas de
197416 autoriza o escritório do representante comercial dos EUA17
(USTR) a investigar e sancionar práticas comerciais consideradas
"desleais" aos interesses norte-americanos. Essas sanções,
tanto de caráter tarifário como não-tarifário,
são estabelecidas de forma a impactar adversamente as importações
dos países
que de forma "injustificável" ou "não-razoável"
restringirem as exportações dos EUA. Em 1988, a lei foi emendada
para criar
três novas categorias: a Super 301; a Special 301; e a 301 de
Telecomunicações. A Super 301 requer que o USTR prepare
uma lista negra de países de práticas "não-razoáveis";
um cronograma para sua eliminação e um programa de sanções
a serem
aplicadas. A Special 301 é bastante semelhante e aplica-se à
área de propriedade intelectual e a 301 de Telecomunicações
visa abrir mercados "fechados" nessa área.
Entre as sanções disponíveis na seção
301, está a possibilidade de suspensão, retirada ou não
aplicabilidade de benefícios
conferidos por acordos multilaterais ou regionais, como o Nafta, OMC
ou Alca, se este um dia vier a ser assinado. Tudo isso
multilateralmente, é claro.
Durante a Rodada Uruguai do Gatt, medidas tomadas sob o amparo da seção
301 pelos EUA eram freqüentemente
justificadas com o argumento de que o sistema multilateral não
tinha um mecanismo eficaz de resolução de disputas. Esse
argumento foi utilizado para fins de propaganda, mesmo sendo os EUA
o país líder em não aceitação de laudos
arbitrais
adversos no Gatt18. Essa posição também motivou
iniciativas norte-americanas de melhoria da solução de controvérsias
no
âmbito do Gatt, que foram endossadas pela comunidade internacional,
na esperança de que a maior juridicidade do sistema
viesse a estabelecer a primazia do Direito no comércio internacional19.
Mesmo com o novo sistema de resolução de disputas bastante
aperfeiçoado, com a criação da OMC, os EUA não
abandonaram suas práticas unilaterais, ilegais frente ao Direito
Internacional de forma que, tecnicamente, os EUA estão em
violação fundamental aos tratados da Rodada Uruguai.
De acordo com um estudo preparado pela US National Association of
Manufacturers20, somente no período de quatro anos, entre 1993
e 1996, mais de 61 leis e atos administrativos diferentes
autorizando sanções unilaterais foram promulgadas nos
EUA, tendo como alvo 35 países, entre eles a Argentina, o Brasil,
o
Canadá e o México, justamente as maiores economias da
proposta Alca.
Há outros instrumentos no arsenal unilateral dos EUA que permitem
a imposição de sanções econômicas incompatíveis
com o
Direito Internacional, entre os quais a Lei de poderes internacionais
de emergência econômica de 197721; a Lei de comerciar
com o inimigo de 191722; a Lei de assistência ao exterior de
196123; a Lei de controle de exportação de armas de 1968;
a Lei
de energia atômica de 195424; e a Lei de adesão à
Organização das Nações Unidas de 1945. Tudo
isso sem mencionar as leis
chamadas Helms-Burton e D’Amato.
De qualquer forma, há quase um consenso geral dentre os juristas
no sentido de que as ações unilaterais embasadas na seção
301 violam, em ao menos três aspectos diferentes, o Gatt. Em
primeiro lugar, qualquer retaliação baseada na imposição
de
tarifas ad valorem aplicada seletivamente irá violar o princípio
da cláusula MFN (art. 1º). Por serem tais tarifas estabelecidas
acima do teto consolidada na Rodada Uruguai, haveria também
a violação do art. 2º do Gatt. Por derradeiro, o fato
de os
EUA arrogarem-se o direito de serem, ao mesmo tempo e no mesmo caso,
juiz e parte de um tribunal não sancionado pelo
Direito Internacional representa igualmente uma aberração
em face da ordem jurídica multilateral.
6 A LEGISLAÇÃO ANTI-DUMPING DOS EUA
Dumping pode ser definido em linhas gerais como sendo a venda, no mercado
externo, a preços inferiores àqueles praticados
no mercado doméstico. A prática do dumping é vedada
pelo art. 6º do Gatt de 1947. Se tal prática causa um dano
à indústria
doméstica, então um direito compensatório anti-dumping
sancionado pelo Direito Internacional pode ser imposto pela
autoridade do país que teve a indústria local prejudicada.
Esse assunto tem sido controverso desde a Rodada Tóquio (1979)
e o foi também durante a Rodada Uruguai (1986 a 1994).
Se, por um lado, a prática do dumping tinha de ser coibida,
de outro tornava-se difícil a obtenção de um consenso
a respeito
e, na falta deste, o instrumental anti-dumping poderia se tornar, como
se tornou, um mecanismo de protecionismo
exarcebado. Desgraçadamente, foi nessa última categoria
que o mecanismo floresceu em diversos países em geral, mas na
União Européia e nos EUA em particular. Durante a década
de 80, houve, no mundo, cerca de 1.500 casos anti-dumping;
sendo que entre 1990 e 1991 o número de casos duplicou25.
A legislação anti-dumping dos EUA, originária do
Ato de Tarifas de 1930, foi posteriormente alterada em 1979, em 1984,
em 1988 e, mais recentemente, em 1994, pela legislação
de implementação dos tratados da Rodada Uruguai26. Essa
legislação encontra-se presentemente codificada no código
de leis federais dos EUA27 e tem uma reputação fortemente
protecionista, de tal forma que o economista chefe do Banco Mundial
declarou que dumping é qualquer coisa que se consiga
convencer o governo americano de combater e perseguir nos termos da
lei local28.
De acordo com o artigo 19 do US Code, seção 1.673, uma
vez ocorrido o dumping e um dano material ao mercado
doméstico, um direito anti-dumping será imposto, para
além das tarifas normais, correspondendo à diferença
entre o valor
doméstico e o valor posto nos EUA. O procedimento anti-dumping,
nos EUA, fica a cargo de duas agências governamentais
distintas: a Administração do Comércio Internacional29
(ITA) e o Departamento Internacional de Comércio30 (ITC). A
primeira das duas entidades supramencionadas é parte do Departamento
de Comércio31 e a segunda é uma agência
governamental sem dependência específica a um dado ministério.
Em um procedimento anti-dumping, a ITA determina se os
produtos importados estão sendo vendidos a preço inferior
ao justo e a ITC apura se houve dano à indústria doméstica
e trata
de quantificá-lo. Por sua vez, a alfândega nacional32
aplicará eventuais direitos anti-dumping.
O espírito de maior juridicidade havido na Rodada Uruguai impactou
de forma positiva o acordo anti-dumping que, uma vez
implementado como legislação ordinária nos EUA,
teve o condão de reduzir alguns dos notórios abusos do sistema
norte-americano. Entre tais abusos situava-se a metodologia de se misturar
os mesmos produtos de países diversos para a
determinação do dano. Essa prática revelou-se
infame no caso contra a Fundação Tupy, em que a ITC, para
conseguir
comprovar um dano à indústria doméstica, somou
dados do Brasil, da Coréia e de Taiwan para fazer uma conta de chegar33.
O Brasil é uma grande vítima do uso iníquo, pelos
EUA, do regime anti-dumping como instrumento do protecionismo, tendo
setores importantes de sua economia prejudicados, como os de calçados
e suco de laranja.
Outra prática americana que se procurou debelar foi a de se manter
direitos anti-dumping por prazo indeterminado que, em
alguns casos, chegavam a 20 anos. Isso se procurou fazer através
da chamada cláusula "pôr do sol"34, que obriga a uma
revisão decorrido o prazo de cinco anos35.
De qualquer forma, não obstante os progressos alcançados
no âmbito da Rodada Uruguai, ainda permanecem, na legislação
interna dos EUA, algumas enormes inconsistências com a ordem
jurídica multilateral, que permitem o uso abusivo da legislação
anti-dumping como instrumento do protecionismo comercial. Tais inconsistências
apresentam-se, por exemplo, na questão da
determinação do ponto de equilíbrio; na questão
da produção cativa; na questão do preço médio
e na do preço de
exportação.
7 CONCLUSÃO: RISCOS LEGAIS DOS ACORDOS COMERCIAIS COM OS EUA
A globalização das economias e bem assim as relações
econômicas internacionais entre os Estados não prescindem
do alicerce
legal do império da lei e do estado de direito. Ao contrário,
seus objetivos jamais serão alcançados fora de um arcabouço
legal
equitativo e exequível. Certamente, ao prevalecerem, seja a
anomia, seja o unilateralismo e o exercício arbitrário das
próprias
razões em matéria internacional, teremos a subversão
das relações entre os Estados, com a subordinação
de um Estado a
outro. Mais ainda, as conseqüências para os nacionais dos
Estados subordinados serão efetivamente dramáticas, porque
serão
eles condenados à miséria e ao oblívio, em triste
sacrifício aos bolsões de afluência estabelecidos em
uns poucos Estados
dominantes.
Assim, tanto como decorrência da ordem natural das coisas, bem
como do bom senso e de um sentimento básico de justiça,
uma efetiva juridicidade internacional deve preceder os acordos regionais
e mesmo os multilaterais devem atentar para essa
condição absolutamente essencial. Dentro dessa perspectiva,
não somente são de fundamental importância iniciativas
visando a
dar uma formatação jurídica básica às
relações internacionais, como é o caso da Convenção
de Viena sobre a Lei dos
Tratados, bem como aquelas que visam, na ordem jurídica interna
dos países, a aceitar a existência e a prevalência do
Direito
Internacional.
Os EUA representam um altíssimo risco jurídico, no mundo
de hoje, para seus parceiros comerciais, tanto nas relações
regionais, como nas multilaterais. Isto sucede porque, no Direito dos
EUA, na hierarquia das normas, os tratados internacionais
situam-se no mesmo nível que a legislação ordinária
federal interna. Não bastasse isso, as leis federais internas de
implementação dos acordos comerciais internacionais,
como já visto exemplificadamente nos casos do Nafta e da OMC,
sujeitam sua vigência à inexistência de conflitos
com leis internas no país, uma freqüência desgraçadamente
constante. O direto
corolário dessa situação é que, na prática,
o tratado internacional situa-se abaixo da lei federal na hierarquia de
normas nos
EUA. A existência de leis internas, nos EUA, que promovem o unilateralismo
e o arbítrio, como o caso das legislações 301 e
anti-dumping, além de dezenas de outras aludidas, só
vem agravar consideravelmente o quadro.
Assim, dentro desse quadro, é perfeitamente possível que
uma parte privada dos EUA, dentro de acordos comerciais como o
Nafta, possa exercer um direito a ela conferida dentro desse acordo
comercial, cujo direito não é reconhecido a uma parte
privada nacional de um outro país signatário do mesmo
acordo. Esta bizarra situação é agravada pelo quadro
adjetivo do
sistema de resolução de disputas pois, em acordos como
o Nafta, os EUA tendem a querer impor seus valores a respeito da
administração da Justiça, em seguimento a campanhas
de desmoralização do Judiciário de outros países,
como
lamentavelmente ocorreu anteriormente à visita do Presidente
Clinton ao Brasil. Assim, dá-se de fato uma transferência
das
atribuições do Judiciário para a arbitragem privada
em questões não somente comerciais mas também de relevante
interesse de
ordem pública, como ocorreu recentemente no México36.
Dessa forma, do ponto de vista do risco jurídico, é hoje
uma temeridade pretender-se negociar e celebrar um tratado
comercial com os EUA, pela absoluta falta de consistência jurídica
interna daquele país com uma ordem legal internacional,
pela falta de vocação daquele país em aceitar
a prevelência da lei internacional, e pela altíssima probabilidade
de se estar
celebrando um acordo do qual derivam obrigações, mas
que não confere direitos.
NOTAS
1 Artigo II, seção 2, da Constituição dos EUA.
2 V., neste sentido, por Durval de Noronha
Goyos Jr., Reflections on Certain US Law Specificities that
Constitute Obstacles to the FTAA: A Brazilian
Perspective, Inter-American Law Review,
Florida-EUA:University of Miami, 1997.
3 V. seção 101.
4 Single undertaking, em inglês.
5 fast track, em inglês.
6 V. Missouri v. Holanda, 252 EUA 416 (1920).
7 Em seu artigo VI, também conhecido como "cláusula da supremacia".
8 V. artigo III.
9 Foster v. Neilson, 2. Pet. 253 (EUA, 1829).
10 Conforme Mannington Mills, Inc. v. Congoleum Corp., 595 F. 2d 1287, 1298 (3rd Circuit 1979).
11 19 United States Code.
12 Para maiores informações sobre
o Nafta, V. GOYOS Jr., Durval de Noronha. Gatt, Mercosul & Nafta. 2.
ed., São Paulo:Obs. Legal Editora,
1996.
13 19 United States Code 3312.
14 V., nesse sentido, de Durval de Noronha
Goyos Jr., Certas Especificidades do Ordenamento Jurídico dos
EUA Vistas como Obstáculos à
Alca: uma perspectiva brasileira, in: LAMPREIA, NORONHA et alli. O
Direito do Comércio Internacional.
São Paulo:Obs. Legal Editora, 1997.
15 O Brasil também não a ratificou.
16 Pub. L. 93-618, && 031-09.88 Stat.
1978, 2041, emendado pelo Ato de Comércio e Tarifas de 1988, pul.
L. 100-418.102 Stat. 1107,1164, codificado
no 19 U.S.C. &&2411-2419 (1988).
17 United States Trade Representative, departamento
do governo dos EUA, em nível de ministério, que dentre
outras atribuições conduz as
negociações comerciais internacionais daquele país.
18 V. HUDEC, Rober E. Aggressive Unilateralism. United Kingdom:Hauster Weatsheaf, 1991.
19 V. GOYOS Jr., Durval de Noronha. A OMC e
os Tratados da Rodada Uruguai. São Paulo:Obs. Legal
Editora, 1995.
20 National Association of Manufacturers, A
Catalog of New Unilateral Economic Sanctions for Foreign
Policy Purposes 1993-1996, Washington D.C.,
1997.
21 International Emergency Economic Powers
Act (IEEPA) de 28 de outubro de 1997, alterada
posteriormente.
22 Trading with the Enemy Act of October 16, 1997, alterada posteriormente.
23 Foreign Assistance Act of 1961, de 4 de setembro de 1961, alterada posteriormente.
24 Atomic Energy Act of 1954, alterada posteriormente.
25 CROOME, John. Reshaping the World Trading System. Genebra:World Trade Organization, 1995.
26 Para maiores especificidades a respeito
do Acordo Anti-Dumping, reporte-se a GOYOS Jr. A OMC e os
Tratados da Rodada Uruguai, op. cit.
27 United States Code, ou US Code.
28 US antidumping rules shown to be arbitrary, Financial Times, 13/10/1994, p. 4.
29 International Trade Administration, em inglês.
30 International Trade Department, em inglês.
31 Equivalente ao Ministério da Indústria e Comércio.
32 U.S. customs, em inglês.
33 V. a respeito, JACKSON, John et alli. International
Economic Relations. St. Paul-Minn:West Publishing
Co., 1995.
34 Sunset clause, em inglês.
35 V. GOYOS Jr. A OMC e os tratados da Rodada Uruguai, op. cit.
36 V. U.S. Company Plans to Present Argument
Against Mexico in Trade Arbitration Case, International
Trade Reporter, 15/10/97.
Durval de Noronha Goyos Júnior é Membro da Ordem dos Advogados
do Brasil e da Ordem dos Advogados
Portugueses. Sócio sênior de Noronha-Advogados. Presidente
da Comissão do Gatt da OAB-SP. Árbitro da Organização
Mundial do Comércio (OMC).
retirado de: http://www.cfj.gov.br