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HÁ JUÍZES NO MERCOSUL?
João Grandino Rodas

A questão da solução de controvérsias transformou-se em um dos assuntos polêmicos do Mercosul, em virtude de o Protocolo de Ouro Preto ter prorrogado sine die e sistemática, que deveria ter sido provisória, do Protocolo de Brasília. O fato de nunca ter-se chegado a segunda fase — a arbitral — do sistema instituído por esse Protocolo alimentava o debate. Assim, certamente, constitui marco a ser comentado a recente edição do primeiro laudo arbitral do Mercosul, por definição obrigatória e irrecorrível desde a sua prolação e que acaba de se tornar definitivo, pela decorrência do prazo para que as partes solicitassem esclarecimentos.

A Argentina, considerando os comunicados brasileiros nº 37/97 e nº 7/98 da Decex/Secex como restrição ao comércio intra-Mercosul e, conseqüentemente, como descumprimento do Tratado de Assunção (TA) e do Acordo de Complementação Econômica nº 18 (ACE 18), pediu ao Tribunal Arbitral Ad Hoc o fim da exigência de licença não-automática e licença automática com condições, estabelecidas pelos citados comunicados, com relação às exportações originárias e provenientes do Mercosul. Por seu turno, o Brasil requereu a improcedência da reclamação, por não ver incompatibilidade dos comunicados em tela quer com o TA, quer com normas posteriores do Mercosul.

O marco conceitual interpretativo adotado pelo tribunal foi o de resolver a controvérsia da perspectiva do conjunto normativo do Mercosul, sem perder de vista os objetivos assumidos, explícita ou implicitamente, pelos estados-partes ao adotá-lo. Tal esforço interpretativo justifica-se, pois se tratava de identificar direitos e obrigações derivados de um conjunto normativo de formação sucessiva, fundamentado em disposições tomadas no âmbito de um processo complexo de decisões políticas e jurídicas, inseridas em uma realidade econômica cambiante. Além de recordar o princípio de que os tratados devem ser cumpridos de boa-fé, lembrou que a interpretação teleológica é apropriada com relação a tratados que criam organismos internacionais e/ou mecanismos de integração, mesmo que ausentes normas de caráter supranacional.

Tanto é verdade que o programa de liberalização comercial é fulcral para o processo de integração do Mercosul, que o TA, sincronicamente, fixou o mesmo prazo — 31 de dezembro de 1994 — para o desmantelamento irreversível das restrições tarifárias e restrições não-tarifárias. Embora tratando isonomicamente as duas vertentes indissolúveis do processo de liberalização, prescreveu o TA para as restrições tarifárias um calendário automático e progressivo de desgravações lineares, até chegar à tarifa zero, inobstante não tenha especificado o procedimento a ser seguido no tocante às restrições não-tarifárias.

Ao adotar o TA, imaginavam os seus negociadores que o Mercosul, após breve período de transição — 1991 a 1994 — atingiria a sua etapa final, ou seja, o mercado comum. Em inícios de 1994, contudo, tendo os estados-membros percebido quão distantes estavam da livre circulação de todos os fatores, bem como da coordenação das políticas macroeconômicas, impôs-se a necessidade de reavaliar o TA. O Protocolo de Ouro Preto, embora mantendo o desiderato de se chegar ao mercado comum, não fixa prazo para tanto, estabelecendo a união aduaneira como referência para o cômputo dos prazos do processo integrativo. O novo regime marca termo para a eliminação total das tarifas intra-Mercosul: quatro anos para o Brasil e a Argentina e cinco para Paraguai e Uruguai. Dessa maneira, a data para circulação de produtos sem os gravames tarifários será 31 de dezembro de 1999.

Embora o programa de liberalização comercial tivesse como pressuposto a eliminação simultânea das restrições tarifárias e não-tarifárias, com referência a estas o TA não descreveu o roteiro específico, mas apenas indicações, cabendo ao tribunal, tendo em vista as finalidades do Mercosul, decantar as normas adequadas.

Relembra o tribunal não ser possível olvidar, que a legitimação do sistema normativo iniciado pelo TA, em razão do ACE 18, reside no Tratado de Montevidéu de 1980 (TM 80), que instituiu a Aladi. Dessa forma, por um lado as restrições não-tarifárias contidas nas notas complementares ao ACE 18 podem subsistir até o fim do Regime de Adequação, isto é, 31 de dezembro de 1994 (art. 11 do ACE 18), e por outro, no referente ao alcance, os estados-membros estão aptos a proteger valores de natureza não-comercial, como, entre outros, a moralidade pública, a segurança e o patrimônio artístico, mesmo após completada a liberalização comercial (art. 50 do TM 80). Dentro do paralelismo obrigatório, no final do prazo de adequação, como regra, todas as medidas não-tarifárias existentes no comércio infra-Mercosul deverão ser eliminadas.

Com base na fundamentação sumariada nos parágrafos precedentes, decidiu o tribunal que ‘‘a eliminação total de todas as restrições tarifárias e não-tarifárias ou medidas de efeitos equivalentes ou ainda outras restrições ao comércio entre os estados-partes deverá ocorrer no máximo em 31 de dezembro de 1999, data em que se completa o Regime de Adequação e com ele o fim das restrições tarifárias’’. Determinou, ainda, que se executam da obrigação de eliminar as medidas não-tarifárias as contidas no art. 50 do TM 80, desde que, destinadas efetivamente aos respectivos fins, não sirvam meramente para encobrir obstáculos comerciais. Unanimemente, os três árbitros terminaram por acolher, parcialmente, a reclamação argentina, determinando que o regime de licenciamento brasileiro deverá ajustar-se ao decidido pelo tribunal até o dia 31 de dezembro de 1999, ficando divididas entre as partes na controvérsia os custos do procedimento arbitral.

Tendo-se esvaído o honroso e árduo munus arbitral, que me foi outorgado pelo governo brasileiro, posso, na qualidade de professor de Direito, dizer que a decisão do tribunal, mormente por ter sido por unanimidade, contribuiu para assentar bases jurídicas para que o processo integrativo do Mercosul possa continuar avançando. Procurou interpretar as normas que visavam à integração, à luz das finalidades auto-impostas pelos estados-partes. Seguiu, assim, a trilha da jurisprudência e da doutrina européias que, nos primórdios do processo integrativo da Europa, privilegiam o objetivo maior, fazendo com que esse servisse de guia para a integração de dispositivos normativos específicos. Recordou que, na trilha de soldatos (‘‘Le Système Institutionnel et Politique des Communautées Européennes dans un Monde em Mutation’’, Bruylant, Bruxelas, 1989, p. 115/7), se tratava de um continuum integratif, em que os elementos somente possuem significado no âmbito da visão de conjunto de todo o processo integrativo. Trouxe à baila que deixar de levar em conta a perspectiva finalista, de um lado significaria o bloqueio de um tratado-marco (Lecourt, ‘‘L’Europe des Juges’’, Bruylant, Bruxelas, 1976, p. 235) e, de outro, impediria que as normas fossem eficazes em relação à finalidade última, qual seja a de satisfazer às exigências da integração (Quadros, Direito das Comunidades Européias e Direito Internacional Público’’, Almedina, Lisboa, 1984, p. 426/7). Importante foi o tratamento dado pelo tribunal às restrições tarifárias e restrições não-tarifárias, reconhecendo a sincronia inseparável e o paralelismo necessário na eliminação de ambas. Nessa linha de raciocínio, tendo como base a reavaliação do processo integrativo, feita pelos estados-partes em 1994, restaurou, pretorianamente, o paralelismo deixado incompleto pela normativa do Mercosul. Como dicta, relembrou verdades importantes, como, exemplificativamente, a incompatibilidade de medidas unilaterais de estados-partes no seio de um processo de integração, quando as normas exigem procedimentos multilaterais.

Ao encerrar-se a primeira leitura do primeiro laudo arbitral do Mercosul, é auspicioso salientar que os dois países de maior expressão econômica desse bloco de integração — Argentina e Brasil — não titubearam em submeter um diferendo a um processo jurídico de solução de controvérsias, do qual emergeria uma decisão obrigatória e inapelável. Isso é mais significativo no âmbito do Mercosul, organização internacional de cunho nitidamente intergovernamental, que toma todas as suas decisões por consenso. Ficou, assim, fortalecido o próprio Mercosul, pois é inerente a todo processo de integração possuir um sistema para resolver, juridicamente, seus inevitáveis litígios. Ao primeiro laudo arbitral está destinado o papel de precursor e não de primeiro e único. Como é sabido, está em curso a segunda arbitragem, que opõe Argentina e Brasil, relativamente à exportação de carne de porco. Provavelmente seguir-se-á outra arbitragem, a ser proposta pelo Brasil contra a Argentina, tendo por tema a salvaguarda a produtos têxteis. A discussão sobre a preferibilidade para o Mercosul da manutenção da solução atualmente vigente ou da criação de um Tribunal Judiciário certamente vai continuar. O que não mais se poderá dizer, contudo, é que o Mercosul é destituído de um sistema que, minimamente, funcione. Rememorando o moleiro de Sans Souci, pode-se afirmar que há juízes não somente em Berlim, no Mercosul também.



João Grandino Rodas
Chefe do Departamento de Direito Internacional da USP
Vice-presidente da Comissão Jurídica Interamericana da OEA e
Árbitro indicado pelo Brasil na primeira arbitragem do Mercosul

Extraído do site do jornal Correio Braziliense em 13/09/99

retirado de: http://www.neofito.com.br/front.htm