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O TRATADO EM CONFLITO
 

Murcio Kleber Gomes Ferreira
Supervisor de Execuções Penais da Justiça Federal/RN.

 

1 Introdução

                É importante observar que, atualmente, é de suma dificuldade alguém especificar com certeza no nosso país quais leis estão ou não em vigor.  Problema este começa com a profusão de leis que num efeito em cascata alteram-se umas às outras sucessivamente, numa confusão tal que no fim não se sabe o que estar valendo ou não.

                Muitas normas que hoje estão em desuso, e muitas que não são aplicadas devido à sua não regulamentação, além, é claro, dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, que sendo signatário encontram-se esquecidos no nosso ordenamento jurídico aplicável.

                Existem exceções, tratados com a Convenção de Genebra sobre cheques, mas sua grande maioria são letra quase morta.  Não sendo usado nem mesmo por aqueles de deles se beneficiariam.

2 O Tratado em vigor

                Estando o Tratado em vigor, desde o momento próprio da entrada em vigor no plano internacional e da ordem jurídica interna, terá ele a estatura hierárquica de uma lei nacional, ou mais que isto, conforme o Estado de que se cuide1.  É princípio corrente que os tratados, a exemplo do que sucede com os contratos de direito privado, só produzem efeitos entre as partes contratantes, sendo para estas, rigorosamente obrigatórios - pacta sunt servanda.  Sendo os não contratantes res inter alios acta, não podendo criar a estes obrigações, tampouco estes podem invocá-los.

                No presente estágio das relações internacionais, torna-se inconcebível que uma norma jurídica se imponha a um Estado soberano. Para que o mesmo ocorra é necessário que seja objeto de seu consentimento, sob qualquer aspecto, sem prejuízo de sua congênita e inafastável internacionalidade, devendo compor, desde sua vigência, a ordem jurídica nacional do Estado.  Desta forma poderão cumprir os particulares, se for o caso, ou o governante apenas, entretanto sob a vigilância daqueles, e de seus representantes.

                Nosso ordenamento é integralmente ostensivo.  O seu acervo é composto por produção internacional ou domestica, presumindo publicidade oficial e vestibular.  A regulamentação do tratado depende dessa publicidade para passar a integrar o acervo normativo nacional, habilitando-se ao cumprimento por todos, particulares ou governantes, e a garantia de vigência pelo judiciário.

3 O Conflito de Leis

                Sendo as leis, bem como as normas jurídicas em geral, são produtos da vida humana, que não se estratificam nem morrem, e que a cada momento, sendo sempre revividas com espirito renovado e adequados à conjuntura atual do momento.  Devendo o direito ser harmônico, e não conter antinomias.  O direito pode até ser harmônico, mas as normas jurídicas podem encerrar antinomias que entre os melhores processos hermenêuticos revelarão insuperáveis, ficando configurado então conflitos de normas jurídicas.  O direito não encerra conflitos insolúveis, porque deve encontrar em si mesmo a chave da solução, enquanto que a norma jurídica freqüentemente enseja problemas conflituais, devido a sua origem diversa, interna e externa, que emanam de diversos tempos e, não obstante, pretendem, e visam no mesmo âmbito, disciplinar as mesmas relações jurídicas.

                Podemos citar dois tipos de conflitos de leis tempo-espaço:

                I - conflitos no tempo das normas relativas aos conflitos de leis no espaço.  Tratando-se de normas puramente internas, o conflito resolve-se como um puro conflito intertemporal;

                II - conflitos no tempo das normas do Direito estrangeiro aplicável nos termos da norma sobre conflitos de leis no espaço.  Conflitos no tempo, de normas estrangeiras aplicáveis, a solução será encontrada no próprio direito estrangeiro, mas sempre o juiz nacional deverá observar o Direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, independente da norma ser estrangeira, nem tampouco ao aplicar tal direito, não seguirá norma conflitual  intertemporal estrangeira que atritem contra a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes;

                Ao se contrapor o Direito Internacional Privado ao Direito Internacional Público, este ultimo, porém, não possui, a rigor, o sentido que se lhe empresta, em geral, como idêntico ao direito das gentes, ainda não suficientemente desenvolvido, pretende regular e disciplinar a relação entre Estados, discriminando-lhes competências legislativas e incorporando-lhes normas do direito interno.  Ao contrario, o Direito Internacional Público, no exato sentido, é o conjunto das normas que disciplinam a extensão espacial das normas de Direito Público, ao mesmo tempo que o Direito Privado Internacional disciplinam a extensão espacial das normas de Direito Privado.

4 O Conflito entre o Tratado e a Norma Interna

                A primazia do Direito das gentes sobre o Direito Nacional do Estado Soberano é, hoje  uma questão meramente doutrinaria.  No Direito Internacional Positivo não existe norma assecuratória de tal primado.  A Constituição Nacional é o vértice do ordenamento do ordenamento jurídico, e dificilmente essas leis fundamentais desprezariam, em algum momento histórico, o ideal de segurança e estabilidade da ordem jurídica vigente, a ponto de sobrepor-se, a si mesmo, ao produto normativo dos compromissos exteriores do Estado.  Assim se a Norma Fundamental opor-se à Norma pacta sunt servanda, é corrente a preservação da autoridade da Constituição do Estado, ainda que isso signifique a prática de ato ilícito no plano externo.

                Apesar de não se posto em dúvida a prevalência dos tratados sobre as leis internas anteriores à sua promulgação.  Não sendo preciso que o tratado recolhesse da ordem constitucional o benefício hierárquico.  A simples introdução no complexo normativo faria operar, em favor dele,  a regra lex posterior derogat priori, onde a nova lei se sobrepõe à lei anterior.

5 Tratado Lei Federal ou Norma Constitucional?

                Estados como França, Grécia e Peru primam o tratado como Norma acima do ordenamento interno, assegurada com preceito constitucional, deixando expresso a validade sobre as leis internas em caso de conflito, sempre aquele prevalecerá.  Outros países como os Estados Unidos estabelecem uma paridade entre o tratado e a norma interna.

                Existem conflitos graves de interpretação de tratados com leis internas, como exemplificado a seguir:  No Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, art. 11, e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 7º, nº 7, é admitida apenas um tipo de prisão civil, a alimentante inadimplente, que é legítima, visto que, sacrifica-se o bem jurídico da liberdade individual para tutelar outro bem jurídico como a vida, a integridade física, a saúde.  No caso brasileiro nossa constituição conflite com tais tratados, pois ela admite também a prisão civil do depositário infiel.  Há um questionamento se tais prisões possuem validade hoje, concebendo-se que o tratado ingressou no ordenamento jurídico nacional com forca de lei federal, podemos distinguir as prisões anteriores à novembro de 1992, data de entrada em vigências das convenções no Brasil deveriam ser revogadas, defendendo a posição de que os tratados possuem forca constitucional (art. 5º, § 2º, CF), derroga-se parcialmente o inciso LXVIII do mesmo artigo e deste modo todas as prisões dos depositários infiéis são invalidas.

                Os tratados e convenções, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (v. O RE 80.004, verdadeiro leading case - RTJ 83, p.809 e §§) e a Constituição Federal (arts. 5º, § 2º, 102, III “b”, 105, III “a”), logo que devidamente aprovados, ratificados, promulgados e publicados, possuem, no mínimo, valor de lei federal ordinária (sistema paritário anglo-saxão).  De acordo com esse sistema, vigora o clássico lex posterior derogat priori, isto é, os conflitos entre o direito internacional posterior e o direito interno do país são resolvidos em favor da regra posterior.

6 Conclusão

                 Como foi relatado, o Direito, conforme doutrina PAULO FERREIRA DA CUNHA2  “procura também estruturar a sociedade, criar regras que conduzem a sua organização a vários níveis, a começar pelo político”.  Mas, por trás do objeto Direito, está o homem, donde se poderia concluir que “a legitimidade do Direito é uma esfinge que, a todo instante, propõe desafios ao político e ao jurista, chamando-o à realidade da experiência humana”3; poderíamos concluir mas os fatos nos impedem de fazê-lo.

                O que se observa ao longo do horizonte histórico é que a vontade inicial dos indivíduos que deu origem ao Estado, que na visão positivista é o próprio Direito, não consegue manter-se permanentemente em dado nível.  A psicologia social demonstra afrouxar-se a vigilância, que deveria ser permanente, sobre os outorgados do poder, permitindo-lhes transgredir as decisões originariamente estabelecidas.

                Percebe-se, claramente, a dominação do mundo por minorias (que podem ser países, empresas, instituições outras) organizadas e determinadas a esta finalidade.  Mesmo entre os que estão na rede desse domínio, eles mesmos repetem essa tendência à dominação como se valesse a assertiva “não me importa que me dominem, desde que alguém a mim se submeta”.

                Pois bem.  Restritamente, verificamos que essa dominação, a princípio, foi econômica (e hoje a melhor parte da riqueza natural do planeta está nas mãos de poucos), seguindo-se a conquista política (em maior ou menor escala sob o ponto de vista interno de cada nação; e em larga escala sob o ponto de vista internacional atropelando-se, inclusive, a Soberania, que passa a ser mera retórica quando os meios necessitam de serem justificados), e passando-se, agora, à usurpação do Direito.  Por enquanto, este fenômeno ainda é interno, e varia de gravidade de país para país.

                O que percebemos é que o Direito, no Brasil, aos poucos deixa de ser legitimação de poder.  Este, o poder, vem, cada vez mais, legitimando-se por instrumentos outros que não se confundem com a norma jurídica.  Portanto, é um poder ilegítimo, mesmo que aparentemente revestido de legitimidade.  O que diremos de um indivíduo que é alçado à categoria de representante lídimo da vontade geral, quando essa “vontade” é conduzida de modo sub-reptício para a consecução daquele fim?  E observe-se o meio mais vil empregado:  a manutenção de cidadãos na mais extrema pobreza, tanto no seu sentido material, quanto no seu sentido espiritual, que é a ignorância.  Além do mais, afogando-lhes com mentiras e falsas promessas que se repetem desde memoriais tempos.  Vejam que o analfabeto brasileiro foi elevado à categoria de cidadão político, com direito a voto, quando a classe política percebeu que poderia ser substituída pelos eleitores, até então maioria, com politizada consciência...

                Podemos perceber que usurpa-se o Direito e portanto este não legitimiza o poder porque aqueles que; outorgados, fazem o Direito, não traduzem o anseio do cidadão.  Por outro lado, vemos o Direito ser aplicado apenas e tão somente aos pobres e desamparados, quando sanção repressiva (à maneira das encontradas nas sociedades que praticam um tipo de “solidariedade mecânica”) e nunca ou quase nunca amparando-o na forma do art. 5? da nossa Constituição.

                Contrariamente, a sanção dificilmente é aplicada à classe economicamente favorecida e nunca à classe absolutamente rica, por mais que sobrem provas materiais de crimes cometidos (mesmo contra a pessoa).

                Então, é este o direito que legitima o poder?  A nosso ver, não, muito embora o mestre REALE4  revele a historicidade do problema da legitimidade sob vários aspectos.  Num deles, alega o caso da Constituição de 1934, “nascida sob os melhores auspícios da fidelidade democrática, e que não resiste senão três anos às conjunturas políticas da época, abrindo campo ao sistema do Estado Novo, de irrecusável ilegitimidade.  No extremo oposto, temos a Constituição Imperial de 1824, outorgada por ato de força de D. Pedro I, e que, no entanto, se converteu em fonte de poderes e direitos legitimamente exercidos, dando lugar a quadros teóricos isentos de qualquer submissão ao predomínio da força (...) através de um processo coletivo de reconhecimento (ammerkenung), sendo o Estatuto Político espúrio adotado e assimilado pela comunidade nacional.  Dir-se-á, nesse caso, que se deu uma legitimação ‘a posteriori’”.  Eis os fatos.   Abram-se os debates.

Notas

1 REZEK, Op. Cit., p.85.
2 CUNHA, Paulo Ferreira da, Introdução à Teoria do Direito, Ed. Resjurídica, Porto-Portugal, p. 35.
3 REALE, Miguel, op. cit., p. 69.
4 Ibidem, p. 68.

Bibliografia

REZEK, José Francisco, 1944 - Direito Internacional Público: curso elementar. 2ª Edição - São Paulo, Ed. Saraiva, 1991.
ACCIOLY, Hildebrando, 1888-1962.  Manual de Direito Internacional Público, 11ª Edição, 10ª tiragem / rev. Pelo Embaixador Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva, São Paulo, Ed. Saraiva, 1993.
BATALHA, Wilson de Souza Campos.  Tratado de Direito Internacional Privado, Vol. I e II. São Paulo, Ed. Revistas dos Tribunais, 1977.
FOLHA DE SÃO PAULO, Caderno Cotidiano, outubro de 1994.
CORREIO BRASILIENSE, Caderno Direito & Justiça, maio de 1995.

Autor: Murcio Kleber Gomes Ferreira

fonte: http://www.geocities.com/~ambitojuridico/di0001.html