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A JURISPRUDÊNCIA COMUNITÁRIA EUROPÉIA
Jorge Fontoura

O Direito Comunitário Europeu, memorável exemplo de construção jurídica de nosso final de milênio, tem, pelo viés jurisprudencial, apresentado suas mais surpreendentes manifestações. Em verdade, assente não só em tratados e normativas comunitárias supranacionais, o moderno Direito das Comunidades Européias tem se dinamizado na efetividade e realismo das decisões da Corte do Luxemburgo, o emblemático tribunal criado pelo Tratado de Roma, que, com seu imenso poder de interpretação ‘‘pré-judicial’’, uniformiza, conduz e conforma a Europa de instituições comuns.

A construção de um Direito não-estatal, no sentido de gerado além das instâncias internas de Municipal Law e não proveniente da negociação estatal soberana e expressa, pelo tratado, ou pelo consentimento tácito com opinio juris, pelo costume, conforme se vem construindo o Direito Comunitário Europeu, é prática extravagante sob o ponto de vista da dogmática jurídica, por excelência ‘‘estatólatra e soberanófila’’. O ineditismo e atipia do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias têm recebido, mesmo, críticas de considerável densidade doutrinária, com seu trabalho de interpretação construtiva e aplicação interativa das normativas comunitárias, sendo considerado como o colapso branco da velha democracia iluminista, com a imprecação de estar a União Européia se construído à revelia dos parlamentos nacionais, sob a égide ilegítima da ‘‘Europe das juges’’.

Não há como se negar a substancial natureza pretoriana da dinâmica comunitária, cujos princípios basilares vêm sendo deduzidos a partir da jurisprudência luxemburguesa, proferida por quinze juízes que, formal e materialmente, não representam seus Estados, senão o compromisso apátrida da consolidação e do aprofundamento comunitários. Os quinze juízes e os nove advogados gerais que compõem a corte são nomeados de comum acordo pelos governos, por seis anos renováveis por mais seis. De fato, cada um dos Estados-membros designa um juiz e os cinco maiores países, Alemanha, França, Itália, Reino Unido e Espanha, dispõem cada um de um advogado geral permanente, estabelecendo-se um sistema de rodízio para os quatro demais postos. Contando o francês como idioma de trabalho, com a cultura jurídico-comunitária impondo-se de forma a não identificá-los como representantes ou prepostos nacionais.

A maciça adesão ao processo de integração européia que se têm verificado e o seu inexorável sucesso político, recomendam, no entanto, dentro de uma concepção da Ciência do Direito como ductil causa dos influxos sociais, antes que inflexível e dogmática condutora de sociedades, que à Europe des juges se contraponha a correlata idéia, porém distinta em essência, de Europe du Droit Communutaire.

A nocividade e atipia da integração de estados soberanos para construir blocos econômicos geram, de fato, grandes perplexidades, com a subversão de convicções jurídicas seculares. Cumpre assinalar que, nesse sentido, um dos fatores complicadores para o entendimento jurídico da integração reside, em nosso país, no pouco estudo que temos dedicado ao Direito Internacional Público, básico para o entendimento de toda a temática da integração, considerado por significativa parte da comunidade acadêmica como disciplina jurídica menor ou sem importância.

A jurisprudência, como metamorfose substantiva do corpus jurídico-comunitário, vem se construindo em julgamentos dos quais defluem princípios considerados essenciais, como o efeito direto, a primazia (primeira geração) e a responsabilidade do Estado de indenizar por violação do Direito Comunitário (segunda geração).

Tais princípios, já pacificamente incorporados à cultura jurídica comunitária, não foram legislados na forma do tratado, ou seja, não derivam da negociação dos operadores políticos da integração, decorrendo diretamente da construção jurisprudencial, facultada pelo art. 177 do Tratado de Roma.

Não há dúvida que a sutileza engendrada pelo processo não é fruto do mero acaso; isto sim, é prova da notável prudência política de que eram portadores os ‘‘eurocratas’’ de primeira hora, autores dos documentos fundacionais da União Européia. Em nenhuma hipótese buscou-se impor a supremacia do Direito Comunitário sobre os direitos domésticos, com disposições expressas do tipo alemão ‘‘bundesrecht britchts landesrecht’’, o ‘‘direito federal quebra o direito local’’, deixando que à tessitura dos fatos acorresse a prudência das decisões judiciais mais qualificadas.

Em 1963, o Tribunal do Luxemburgo prolata acórdão no sentido de que normas comunitárias dispensam incorporação pelos parlamentos nacionais, não se prestando à ratificação, portanto, e sendo desde sempre exigíveis. Tratou-se do rumoroso ‘‘Caso Van Geend en Loos’’, proveniente da Holanda e conformador do princípio do efeito direto. No ano seguinte, voltava-se a decidir historicamente no ‘‘Caso Costa/Enel’’, originário da Itália, que estipulou a primazia da norma comunitária sobre os ordenamentos jurídicos internos, definindo a rumorosa questão da hierarquia das normas em conflito. Em 1967, o ‘‘Caso Simenthal’’, também da Itália, dava contornos mais bem acabados à primazia e ao efeito direto, este corolário daquele, mas anteriormente decidido por curioso capricho cronológico.

Em 1991 decide o Tribunal de Justiça europeu que incumbe aos Estados comunitários indenizar por violação do direito comunitário, ainda que por inação de não tê-lo implementado internamente. Tratou-se do ‘‘Caso Francovich’’, originário do Tribunal de Vicenza, Itália, e que vem se projetando como o mais importante aperfeiçoamento instrumental do Direito Comunitário, já de ‘‘segunda geração’’, conforme alguns estudiosos.

Tal dinâmica parece não cessar e reiterados casos inovadores estão sempre em pauta, confirmando princípios enunciados ou mesmo antecipando novos aperfeiçoamentos, como a necessidade da aplicação do Direito Comunitário de ofício pelos juízes nacionais, independendo da inovação das partes, conforme se decidiu nos recentes acórdãos ‘‘Peterbroeck’’ e ‘‘Jeroen Van Schijndel’’, prolatados em 1995, ou do polêmico ‘‘efeito direto invertido’’, discutido no ’’Caso Arcaro‘‘, de 1996, em que o Estado, de forma inovadora, invoca uma diretiva comunitária contra um particular, ainda em fase de intelecção doutrinária diante da novicidade do tema.

Todas estas inovadoras demandas representam, de toda sorte, a inelutável emergência de um hipotético Direito Comunitário Europeu de terceira ou novíssima geração que, de resto, evidencia a grande importância também política exercida pelo pretório luxemburguês.

A constante renovação derivada da construção jurisprudencial do Direito Comunitário, com uma insuspeita aura de ‘‘common law’’, permite-nos afirmar que a vertiginosa neo-disciplina, único significativo legado jurídico do século XX, contrariando a velha regra da Sociologia Jurídica que diz que o Direito sempre nasce velho, defasado em relação às necessidades de seu tempo, projeta-se como disciplina proposta a manter-se indefinidamente atualizada, sempre apta, pela hegemonia das idéias, ao confronto do futuro.



Jorge Fontoura
Doutor em Direito pela Universidade de Parma, Itália, e Universidade de São Paulo.
Consultor legislativo da Comissão de Relações Exteriores do Senado e do Conselho Federal da OAB.


retirado de: http://www.neofito.com.br/artigos/inter13.htm