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TRATADO VERSUS LEI
Mirtô Fraga

O tema que hoje trago à reflexão dos leitores é polêmico e atual: o conflito entre o tratado internacional e a norma de Direito interno. Sobre ele os juristas discutem há quase cinco séculos, desde que Francisco I cedeu a Carlos V, da Espanha, parte do território francês (Tratado de Madri, de 14 de janeiro de 1526).

  No Brasil, a jurisprudência era uniforme no sentido da prevalência do tratado sobre a norma infraconstitucional de Direito interno. Entretanto, de setembro de 1975 a junho de 1977, desenronlou-se no Supremo Tribunal Federal o julgamento do Rec. Extra. nº 80.004, cujo acórdão está publicado na RTJ nº 83.

  Nesse julgamento, entendeu a nossa mais alta Corte que, havendo conflito entre o tratado e a lei posterior, deve prevalecer a norma de Direito interno ainda que o Brasil possa ser responsabilizado na esfera internacional pelo descumprimento do tratado. O Supremo Tribunal Federal não chegou a afirmar a revogação do tratado pela lei posterior, uma vez que, emanadas as normas de órgãos distintos, têm seus próprios meios de formação e de revogação. Prevaleceu a tese de que, não havendo na Constituição dispositivo que, expressamente, desse prevalência ao tratado, os tribunais estavam obrigados a emprestar eficácia ao Direito interno, porque oriundo do Congresso Nacional, representativo da soberania popular.

  O acórdão foi objeto de um estudo cuja versão inicial escrevi no final de 1977, antes mesmo que ele fosse publicado na RTJ. No ano seguinte, foi o tema de minha tese para obtenção do título de Mestre em Direito. Mantenho, ainda hoje, o mesmo entendimento que, àquela época, manifestei. Agora, todavia, é mais amadurecido pela reflexão que o distanciamento do tempo permitiu.

  O acórdão está exaustivamente analisado, voto a voto, no trabalho, agora publicado pela Editora Forense: ‘‘O Conflito entre Tratado Internacional e Norma de Direito Interno (Estudo analítico da situação do tratado na ordem jurídica brasileira)’’. O assunto é atual, importante, em conseqüência da globalização da economia, da intensificação das relações internacionais, do surgimento de blocos econômicos, da formação de mercados comuns (entre nós, o Mercosul) e do aparecimento, até mesmo, de órgãos supranacionais. Vale ressaltar que, com os notáveis progressos da tecnologia, as relações interestatais se intensificaram de tal forma que o mundo ficou menor e os tratados, hoje, se multiplicam a cada dia. Logo, é imprescindível o estudo das relações entre o Direito interno e o Direito Internacional, presente a possibilidade, a cada dia, de conflito entre a norma convencional e a de Direito interno. No Velho Continente, o Tratado de Maastrich representou um grande passo no campo do Direito Internacional. A União Européia está aí indicando a tendência para que fiquem cada vez mais tênues as fronteiras entre os Estados. Lá, parte-se agora para a adoção de moeda única — tudo acontece de forma bastante rápida. Característica do tempo em que vivemos.

  Causou, pois, perplexidade a diversidade dos fundamentos dos votos emitidos no julgamento do R.E. 80.004.

  O voto vencedor se baseou no pensamento de Kelsen, exposto na sua ‘‘General Theory of Law and State’’, escrita em 1944 e publicada em 1945. Mas Kelsen escreveu essa obra sob a influência do Direito inglês e do Direito americano. Na Inglaterra, os tratados internacionais, para produzir efeitos devem ser transformados em lei, sem o que os tribunais estão impedidos de aplicá-los, devendo conferir eficácia ao Direito interno. Na verdade, os juízes ingleses só aplicam o Direito interno. Nos Estados Unidos, o tratado é aprovado apenas pelo Senado.

  Antes de Kelsen, muitos outros autores defenderam o mesmo ponto de vista, mas, sempre, tendo presente que a Lei Suprema do Estado não determinava a aplicação dos tratados pelos Tribunais.

  Não é o que acontece com o nosso Direito. No Brasil, o Poder Judiciário, por imposição constitucional, aplica diretamente o tratado, ao contrário do juiz inglês que aplica a norma de Direito interno na qual, porventura, se tenha transformado o tratado. Entre nós, não há necessidade da transformação do tratado em Direito interno. Basta a promulgação que lhe confere força executória. Além disso, a solução aplicada pelo Tribunal não me parece compatível com a época atual, nem com o sistema jurídico que adotamos.

  Antigamente, nas monarquias absolutistas, o monarca personalizava o Estado, a soberania residia na pessoa do governante. Com o advento da Revolução Francesa e das idéias liberais, a soberania foi transladada para a nação, representada nas Assembléias. O pacto, o ajuste era, então, um ato do governante, em oposição à lei, ato da soberania nacional. E como o poder pertencia ao povo, o compromisso firmado pelo soberano não podia obrigar a nação, à qual era permitido dispor de forma contrária ao pactuado pelo governante. A manifestação obrigatória do Poder Legislativo sobre os tratados assinados pelo chefe de Estado surgiu, justamente, como resultado da democratização do poder: o povo, por seus representantes, deve manifestar seu assentimento ao acordo assinado pelo chefe de Estado.

  Na época atual, só cabe a invocação de que os tribunais estão obrigados a emprestar eficácia, primeiro ao Direito interno porque oriundo do poder representativo da soberania nacional, nos estados cujo Direito silencia quanto à aplicação dos tratados pelo Poder Judiciário.

  Não é o que acontece no Brasil, cujas Constituições sempre foram expressas: os compromissos assumidos pelo chefe de Estado são, necessariamente, submetidos à aprovação do Legislativo. Logo, também o tratado é oriundo dos poderes representativos da soberania, os mesmos poderes que se manifestam na elaboração da lei. E da mesma forma que, quanto à lei, os tribunais estão, também, obrigados expressamente pela Constituição, a emprestar eficácia aos tratados. E, também, só podem recusar aplicação ao tratado na hipótese em que ele seja contrária à Constituição. A solução não pode, pois, ser encontrada em norma expressa inexistente: ela há de ser buscada no contexto do nosso sistema jurídico. Não se podem transplantar conceitos e ensinamentos de sistema jurídico diverso do nosso.

  A tese vitoriosa no Tribunal não explica também como o tratado posterior à lei pode ser aplicado. Se é somente a oposição à Carta Política que autoriza o Poder Judiciário a recusar aplicação à lei, o mesmo princípio deve ser, também, observado se o tratado é posterior. E se o for, para que assinar tratados que jamais serão cumpridos? Como explicar, também, que se aceite a aplicação de um tratado de extradição? O Poder Judiciário é, também, uma das faces com que se manifesta a soberania popular: deve dar eficácia também aos tratados, porque a nossa Constituição só lhe permite afastar a aplicação de tratado contrário à Constituição.

  A composição do Supremo Tribunal Federal está hoje modificada: não há mais um só dos ministros que votaram no julgamento do R.E. nº 80.004.

  Espero que o trabalho, agora publicado, possa despertar o interesse de outros estudiosos para o assunto. E que novas reflexões se façam propiciando a rediscussão da matéria.



Mirtô Fraga
Mestre em Direito Público e ex-consultora legislativa do Senado


retirado de : http://www.neofito.com.br/