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Fontes e formas para uma disciplina jurídica comunitária

Jorge Fontoura

 

RESUMO

Coloca como questões nodais, nas pautas jurídicas comprometidas com a integração, a reavaliação do conceito de soberania e o realinhamento doutrinário sobre a validade e eficácia do direito supranacional e passa a discorrer sobre o Direito Comunitário europeu, tomando-o como referencial: a tipologia de suas normas e suas características.

Ressalta que o Direito Comunitário origina-se de um querer coletivo dos Estados envolvidos em uma experiência inusitada: a construção de blocos econômicos. Classifica a tipologia das normas comunitárias em: 1º) normas originárias de Direito Comunitário, contidas nos tratados e em eventuais protocolos complementares; 2º) normas produzidas pela autoridade comunitária, no uso da competência pactuada, para serem aplicadas dentro das instituições comunitárias; 3º) normas comunitárias derivadas do tipo dois, ou seja, aquelas produzidas pela autoridade comunitária, no uso da competência pactuada, para serem aplicadas nos espaços jurisdicionais dos Estados comunitários.

Indica como características dessa nova disciplina jurídica: sua autonomia; obrigatoriedade; efeito direto - primazia em relação ao Direito interno; uniformidade de aplicação e interpretação. Neste particular, esclarece sobre o modelo criado pelos europeus para construir a uniformidade do Direito Comunitário. Finaliza chamando a atenção para a responsabilidade do Estado pela violação do Direito Comunitário.

 

A integração econômica da América do Sul, fortemente emulada pela boa performance do Mercosul, impõe aos quadros jurídicos não só dos países signatários do Concerto de Assunção, mas também dos demais países latino-americanos, inadiável reflexão sobre a necessidade de uma disciplina jurídica que dê suporte às démarches político-econômicas que o projeto de construção de blocos econômicos encerra.

A correção política e as mútuas vantagens comerciais da integração, unindo todas as tendências políticas não extremadas, determinam a inexistência de opositores de alguma importância ou credibilidade, o que, indubitavelmente, fortalece e mesmo acelera o processo. A propósito, a recente votação na Câmara de Deputados do Chile, em 17 de agosto de 1996, pela qual se aprovou a ratificação do recente Protocolo de San Luís - Acordo de Livre Comércio Parcial com o Mercosul - parece indicar com clareza meridiana o que será o adesismo coalescente que se prenuncia ao porvir de um efetivo mercado sul-americano: 83 votos favoráveis, 23 contrários e 3 abstenções.

Em tal quadro, não se trata de prodígio de lucidez antever a necessidade da criação de quadros e instâncias jurídicas, pari passu à superação das fases previstas no processo de integração previsto programaticamente para o Mercosul. Se o nível de institucionalização intergovernamental do atual momento de transição, de zona de livre comércio (ainda por fazer) à união aduaneira (parcial), em que refulge uma inusitada "tarifa externa incomum", não requer, a rigor, profundas inovações jurídicas, o mesmo não se pode dizer com relação ao colimado mercado comum. Com efeito, na hipótese da implantação das quatro liberdades que lhe são características (circulação de bens, serviços, pessoas e capitais), conforme preconiza o art. 1° do Tratado de Assunção, sem esquecer a "quinta liberdade", na expressão de Werter Faria, qual seja, a liberdade de concorrência que, inexoravelmente, virá como corolário das demais, o suporte jurídico específico de um direito de integração será indispensável.

Embora cada processo de integração guarde um referencial próprio de peculiaridades e circunstâncias, uma das vantagens da civilização é a que nos desobriga de inventar duas vezes a mesma coisa. Aliás, como propriamente lembra Estevan Chaves de Rezende Martins, ninguém nasce em um vazio de História.

O exemplo do Direito Comunitário europeu é, neste momento de perplexidade e surpresas, de altíssima valia. A começar pelo formidável desacerto entre os direitos internos dos países do Mercosul e o Tratado de Assunção e seus Protocolos, como da mesma forma o foram, a seu tempo, o direito interno de muitos Estados europeus e o Tratado de Roma. A questão nodal, ou seja, a reavaliação do conceito de soberania e o realinhamento doutrinário sobre a validade e eficácia do Direito supranacional é, por conseguinte, assunto premente nas pautas jurídicas comprometidas com a integração.

Usufruindo da experiência européia, podemos nos abeberar em uma conspícua e sólida doutrina, que hoje embasa a desde há muito consagrada e corriqueira disciplina jurídica "Direito Comunitário", presente em todos os programas de formação universitária na União Européia, já desde a graduação.

Ao examinarmos os aspectos jurídicos do fenômeno comunitário, surge de chofre a questão basilar de precisar-se o sentido e a abrangência da disciplina jurídica "Direito Comunitário" ou "Direito de Integração". Não seria, como poderíamos imaginar, em princípio, Direito novo, uma matéria dotada de autonomia científica, nem Direito Internacional, nem Direito interno, mas tertium genus, homogêneo e diferenciado de todo o conhecimento jurídico pré-existente. Para que se proceda a um primeiro reconhecimento da disciplina, urge que se individuem os tipos de normas passíveis de compor a cogitada disciplina jurídica comunitária, a partir de suas necessárias fontes. Também, nesse exercício exordial, devem ser elencadas as características de um Direito Comunitário em abstrato sem, no entanto, deixar de considerar as pregressas experiências da União Européia.

 

A TIPOLOGIA DAS

NORMAS COMUNITÁRIAS

 

Tomando por referencial o modelo europeu, que poderia grosso modo ser seguido em análogos processos de integração, todo o universo referente a fenômenos comunitários subdividir-se-ia, essencialmente, em três grupos de normas jurídicas, diferenciadas a partir de suas fontes:

1) O primeiro grupo, dito Direito Comunitário originário, seria composto pelas normas previstas nos tratados de integração, incluindo seus eventuais protocolos modificativos ou complementares. Trata-se, a toda evidência, de normas que, enquanto inseridas em tratados geradores de obrigações recíprocas entre Estados soberanos, diriam respeito claramente ao Direito Internacional Público tout court, em cujo âmbito podem receber o específico tratamento e valoração. Não é sem mais razão que os primeiros estudiosos de Direito Comunitário provêm da área do Direito Público externo, sendo a per-cepção para o primeiro approche com as questões jurídicas comunitárias eminentemente de "direito das gentes". Trata-se, porém, de mero início, logo superado pelo turbilhão de demandas que se vão formulando; veja-se, por exemplo, o caso do corriqueiro particularismo dos direitos comerciais de países comunitários: o que fazer diante de títulos de crédito específicos de um único direito comercial, na emergência de um mercado onde circulam livremente bens, serviços, pessoas e capitais?

Cumpre assinalar que, nesse sentido, um dos fatores complicadores para o entendimento jurídico da integração reside, em nosso país, no pouco estudo que temos dedicado ao Direito Internacional Público, considerado por significativa parte da comunidade jurídica como "perfumaria", de pouca ou nenhuma utilidade. Celso de Albuquerque Mello registra, com muita propriedade e picardia, no prefácio da oitava edição de seu Curso de Direito Internacional Público, da Editora Renovar, do Rio de Janeiro, o surrealismo da propalada abertura do Brasil para o mundo, em oposição à carência quase que absoluta de conhecimentos jurídicos para a empreitada. Em verdade, ainda é possível o bacharelado jurídico em prestigiosas faculdades brasileiras, sem cursar-se a cadeira de Direito Internacional Público, disciplina meramente facultativa ou mesmo "não-oferecida".

2) No segundo grupo de normas jurídicas atinentes a um proposto Direito Comunitário, agora de natureza derivada, teríamos aquelas que se referem ao ordenamento jurídico interno dos organismos comunitários comuns. Se algumas dessas normas podem derivar do texto dos tratados, é claro que outras tantas promanam dos próprios organismos comunitários, no sentido de disciplinar suas atividades internas e seu funcionamento geral. Do ponto de vista formal, tal normatividade representa um sistema claramente distinto daquele derivado dos tratados, destinando-se ao âmbito restrito do organismo institucional comunitário. O estudo deste segundo grupo apresenta, virtualmente, maior complexidade, não propriamente pelo seu ineditismo e atipia, mas pelo fato de tais normas exprimirem-se por regras interna corporis e não em relação a direitos e deveres recíprocos de prosaicos sujeitos de Direito Internacional Público. Com toda a cautela que deve derivar das comparações fáceis, poderíamos aqui entrever o nítido delinear de um incipiente direito administrativo intracomunitário.

3) No terceiro grupo, teríamos as normas legisladas pelos próprios organismos e autoridades comunitárias, nos limites de suas competências de elaboração normativa previstas pacticiamente pelos tratados institutivos e eventuais protocolos complementares, destinadas a ser aplicadas nos territórios dos Estados comunitários, em cujos espaços jurisdicionais se devem concretizar.

No modelo da União Européia, seriam exemplos de normas de tal espécie os regulamentos e as diretivas comunitárias, provenientes do Conselho e da Comissão Européia, nos termos do art. 189 do Tratado de Roma, de 25 de março de 1957.

No âmbito do Mercosul, abstraindo-se a natureza apenas intergovernamental do bloco – "os limites do possível" –, o que traz grandes conseqüências no plano da eficácia e efetividade da normatividade comunitária, poderíamos, no entanto, antever normas comunitárias derivadas de aplicação interna, quer nas decisões do Conselho do Mercosul, quer nas resoluções do Grupo Mercado Comum e mesmo, eventualmente, nas diretrizes e propostas de iniciativa da Comissão de Comércio, normas essas contempladas respectivamente nos artigos 9, 15 e 20 do Tratado de Ouro Preto, de 17 de dezembro de 1994.

Temos, portanto, no âmbito desse espectro legal, contendo normas absolutamente heterogêneas e mesmo com espaços de incidência e eficácia totalmente distintos, o complexo conformante do que se deve designar "Direito Comunitário".

Claro que inúmeras questões de grande relevância jurídica irão paulatinamente se formular, paralelamente à sedimentação de tal tipologia. As relações entre as normas jurídicas comunitárias e os ordenamentos jurídicos nacionais é, por exemplo, tema sempre presente nos recorrentes debates jurídicos que ocorrem na implantação de estruturas comunitárias. O tema ganha especial insight quando superpomos a hipótese do conflito entre as normas comunitárias e normas nacionais posteriores e antitéticas, constitucionais ou infraconstitucionais. A recepção e a coordenação do direito comunitário visa-vis dos direitos internos suscitaram, aliás, na construção européia, grande embate doutrinário, conducente a formidável esforço de elaboração jurisprudencial.

Com referência ao específico tema da constitucionalidade dos tratados institutivos das Comunidades Européias, considerando a variedade dos sistemas constitucionais dos Estados envolvidos, houve um processo diversificado de adaptação e acomodação, com alguns deles introduzindo emendas idôneas a prevenir a verificação de conflitos e outros buscando simplesmente interpretações constitucionais benignas à supremacia do direito europeu.

Em nosso caso específico, podemos desde logo detectar uma série de conflitos potenciais entre os próprios Tratados de Assunção, de 26 de março de 1991, e de Ouro Preto, de 17 de dezembro de 1994, e a Constituição de 5 de outubro de 1988. Tomando em conta que no seu iter para a ratificação dos referidos Tratados foram exaustivamente analisados pelo Poder Legislativo, tendo inclusive passado incólumes pelo crivo de duas Comissões de Constituição e Justiça, da Câmara e do Senado, é de crerse não estarmos diante de mero desleixo na apreciação da matéria, mas, em verdade, diante de uma consciente e deliberada intensão legislativa, ou, no mínimo, de um plausível ânimo de lege ferenda.

 

CARACTERÍSTICAS DE

UM DIREITO COMUNITÁRIO

 

O Direito Comunitário não é um direito sui generis, revolucionário ou gratuitamente subvertedor de convicções jurídicas seculares. Corresponde, ao contrário, à hegemonia das idéias diante de necessidades absolutamente novas, impondo-se a partir de um querer livre e coordenado de Estados que se propõem à construção de blocos integrados.

São as seguintes as características que se vêm identificando na neodisciplina:

 

1) AUTONOMIA - As comunidades econômicas constituem uma inusitada ordem de relações político-econômicas entre Estados soberanos, necessitando, para a realização de suas finalidades, de um aparato jurídico da mesma forma inusitado. Tal aparato não pode ser vislumbrado como Direito exclusivamente interno, tampouco como Direito estrangeiro a ser aplicado internamente. Diante do aparecimento do novo referencial, território comunitário, sem que se tenha um Direito novo, mas apenas um espaço jurisdicional múltiplo e diferenciado, de todo inovador, o Direito Comunitário irá conformar-se autonomamente, porém sem nenhuma fundamental modificação metodológica conducente a reformulações ou releituras substanciais da ciência do Direito.

Já é possível afirmar, a partir da prática e do grau de desenvolvimento do Direito europeu, que o Direito Comunitário constitui aparato jurídico particular, distinto dos ordenamentos jurídicos nacionais e bastante em si quanto aos requisitos de eficácia e desenvolvimento.

 

2) EFEITO IMPOSITIVO - As normas comunitárias possuem um caráter obrigatório e devem estar instrumentalizadas de forma a poder se fazer impor a todos os jurisdicionáveis, dentre os quais se incluem, além dos Estados aderentes à Comunidade, todas as demais pessoas físicas e jurídicas submetidas à jurisdição estatal. O caráter acaciano da assertiva "efeito impositivo" justifica-se pelo grande equívoco doutrinário que se tem disseminado, sobre um propalado caráter não-obrigatório do Direito Internacional Público, que, desprovido de aparato sancional contra os violadores de suas normas, seria disciplina pretensamente jurídica. Apesar de o Direito Comunitário não se confundir com o Direito Internacional Público, passando por ele é verdade, porém vindo muito mais aquém, não há como se negar a proximidade das disciplinas e, muita vez, sua circunstancial coabitação. Resta patente que esse apregoado caráter constritivo representa a única segurança político-jurídica da dinâmica comunitária, garantidora de sua eficiência política e segurança econômica e, por conseguinte, do contingente sucesso histórico do processo.

Na experiência européia, constatou-se que, em nenhum momento, se argüiu o caráter constritivo das normas comunitárias, com seu efeito impositivo conformando-se em convicção pacífica, assentada em reiterada jurisprudência da Corte do Luxemburgo, jamais contrariada ou questionada nas jurisdições locais.

 

3) EFEITO DIRETO - A presente característica decorre da automática integração do Direito Comunitário às ordens jurídicas internas, sem os mecanismos de incorporação aplicáveis aos tratados, dispensando-se as técnicas de outorga legislativa tradicionais. Tal dispensa não se refere, obviamente, ao direito comunitário originário, no que concerne aos tratados institutivos do bloco, que devem passar pelos mecanismos ordinários de incorporação. O sucesso de um processo de integração não dispensa a convicção social de que a vida comunitária não é algo de estrangeiro, mesmo às administrações locais. É eloqüente, per se, o fato de cerca de 60% das leis que atualmente compõem o ordenamento jurídico europeu serem de natureza comunitária, em detrimento dos outros 40%, diluídos entre as diversas instâncias político-administrativas nacionais. O fato de uma violação de Direito Comunitário poder ser argüida por qualquer jurisdicionável, já perante seus juízes nacionais e não só pelos Estados, nas instâncias européias, é ainda importante corolário do efeito direto da normas comunitárias.

Na história do Direito europeu, a convicção do efeito direto não foi de fácil construção, não estando prevista expressamente no bojo do Tratado de Roma. Houve, de fato, fortes resistências à idéia, tendo em vista a tradição jurídica dos países, bem como o arraigado espírito de soberania, cujo berço político foi o próprio velho continente.

Fruto de lenta elaboração jurisprudencial da Corte do Luxemburgo, o efeito direto confirmou-se a partir do julgamento do histórico caso Van Gend en Loos, em 5 de fevereiro de 1963, pelo qual se entendeu que, não obstante o silêncio dos Tratados CEE, não se poderia conceber a existência de um mercado comum sem esse requisito. A decisão foi gradualmente sendo assimilada pelos Estados comunitários, inclusive pela Grã-Bretanha, que sempre praticou um dualismo extremado, fundado no princípio da supremacia absoluta do Parlamento – ... Parliament cannot bind itself or its successor... –, com o requisito sendo revogado pelo European Communities Act, de 17 de outubro de 1972, que criou uma sofística forma de autorização de incorporação antecipada, sem precedentes na lógica jurídica, mas que de toda hábil a permitir a adesão britânica à Europa.

 

4) PRIMAZIA - A característica mais sacrílega de um Direito Comunitário ideal, sob o ponto de vista da concepção "estatólatra" do Direito, é indubitavelmente a que aponta para a sua primazia em relação ao Direito interno. A tradicional doutrina que abordou o análogo tema do choque entre o Direito Internacional e Direito interno, desenvolvida a partir dos estudos de Tripel e Anzziloti, ao final do século passado, parecem não mais estar aptas a fazer face às questões engendradas pela nova realidade dos blocos econômicos.

Na França, em especial, verificou-se grande reação à primazia do Direito Comunitário, motivada seguramente pela arraigada concepção cartesiana da soberania. Acabou, no entanto, prevalecendo esse entendimento, sob o respaldo de uma interpretação benigna do art. 55 da Constituição da 5ª República, que estipula: Les traités ou accords régulièrment ratifiés ou approuvés ont, des leur publication, une autorité superieure à celle des lois, sous réserve, pour chaque accord ou traité, de son application par l’ autre partie.

Também merece atenção o caso da Itália, onde reiterados arestos da Corte de Cassação consagraram o primado do Direito Comunitário, apoiados na interpretação extensiva do art. 11 da Constituição de 1946, historicamente destinado a permitir a inclusão da República nas Nações Unidas, no delicado contexto do pós-guerra: Art. 11 - L´Italia repudia la guerra come strumento di offesa alla libertà degli altri popoli e come mezzo di risoluzione delle controversie internazionali; consente, in condizioni di parità con le altre stati, alle limitazioni de sovranità necessarie ad un ordinamento che assicure la pace e la giustizia fra le Nazioni; promuove e favorisce le organizzazioni internazionali rivolte a tale scopo.

Com relação ao Mercosul, não há que se cogitar, diante de sua natureza eminentemente intergovernamental (artigo 16 do Tratado de Assunção e artigo 37 do Tratado de Ouro Preto), em primazia como categoria jurídica, até porque o Direito brasileiro ainda não resolveu a questão a priori, qual seja a questão da hierarquia do tratado no ordenamento jurídico interno. Vale salientar ter a Argentina, após reiterada elaboração jurisprudencial favorável ao monismo com prevalência da norma internacional, no qual se destacou o julgamento do caso Cafés La Virginia, constitucionalizado o princípio da supremacia do tratado, na revisão constitucional de 1994, nos termos do art. 75, inciso 24.

Em se verificando, no entanto, a implantação das liberdades típicas do mercado comum, a delegação estatal à autoridade comunitária será inevitável, para o que se vem designando, no modelo europeu, de soberania compartilhada ou complementar. Claro que este tem sido o mais polêmico e discutido aspecto do Direito Comunitário europeu, de certa forma retomado nos recentes debates sobre o Tratado de Maastricht, no qual veio a lume o dilema que aflige principalmente "eurocéticos": como continuar soberanos e unidos?

5) UNIFORMIDADE DE INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO – Um Direito Comunitário deve possuir uniformidade formal e material, sendo para tanto indispensável um aparato ordenador e harmonizador de sua interpretação e aplicação. Também, no atual estágio do Mercosul, a questão não chega a ser suscitada. O considerado nível light de institucionalização, com o mínimo de órgãos e com o modo consensual e unânime de deliberação, determina a existência de aparato de solução de controvérsias dos mais singelos. O Protocolo de Brasília de Solução de Controvérsias, de 17 de dezembro de 1991, estabelece três fases procedimentais: conciliação, consulta e arbitragem, moldadas de forma perceptivelmente política. Claro que isso não poderá perdurar na hipótese de uma evolução ao mercado comum ou mesmo quando se verificar o aperfeiçoamento do livre comércio, com o fim ou redução drástica das salvaguardas, bem como diante da convergência da tarifa externa comum. Nessa hipótese, haverá o adensamento das controvérsias, obrigando a adoção de um aparato jurídico bem mais sofisticado, aliás como preconiza o próprio Tratado de Ouro Preto, ainda que de forma indireta, em seu art. 44. A questão resta em aberto e muitas poderão ser as soluções a partir do heurismo e da fecundidade do pensamento jurídico dos "quatro amigos" e dos vizinhos transandinos.

O modelo seguido pelo Direito europeu é, a propósito, surpreendente e instigante: valendo-se de um instituto considerado a chave mestra, ou a válvula estabilizadora do todo o Direito Comunitário, os juízes nacionais, que são, em última análise, os efetivos aplicadores do Direito Comunitário, podem, sempre que a matéria objeto do litígio lhes for pertinente, consultar por via prejudicial a Corte de Justiça Européia, no Luxemburgo, para que pronuncie a correta interpretação da norma comunitária que deve incidir sobre o caso em concreto. O ineditismo do julgamento por via prejudicial nos sistemas judiciais dos países do Mercosul, bem como os princípios da independência e livre convicção da magistratura que adotamos, seguramente nos distanciam em muito de tal solução. O julgamento por via prejudicial, com a consulta prévia feita pelo juiz singular ou colegiado, em busca de um prius logico que deve conformar a sentença, por mais extraordinário que possa parecer, já é aplicado corriqueiramente na União Européia, conforme ordena o art. 177 do Tratado de Roma, assim redigido em sua versão oficial para a língua portuguesa:

 

O Tribunal de Justiça é competente para decidir, a título prejudicial:

 

a) Sobre a interpretação do presente Tratado;

b) Sobre a validade e interpretação dos actos adoptados pelas Instituições da Comunidade;

c) Sobre a interpretação dos estatutos dos organismos criados por um acto do Conselho, desde que estes estatutos o prevejam.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal de Justiça que sobre ela se pronuncie.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no Direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça.

Certamente a parte final do dispositivo, que constrange à via prejudicial em casos de julgamentos nacionais de última instância (" ...tale giurisdizione é tenuta a...", no texto ori-ginal do Tratado de Roma), é a que mais estupefaz e intriga a nossa visão latino-americana, logo iberogênica de exercício da jurisdição.

 

6) RESPONSABILIDADE DO ESTADO PELA VIOLAÇÃO DO DIREITO COMUNITÁRIO – Considerado o Direito Comunitário europeu de segunda geração, em relação à primazia e o efeito direto, e também de origem jurisprudencial nos acórdãos da Corte de Justiça das Comunidades Européias, a responsabilidade dos Estados comunitários em relação a particulares, por violação de normas de Direito Comunitário europeu, ganhou seus contornos definitivos a partir do "Acórdão Francovich", prolatado em 19 de novembro de 1991.

Embora a responsabilidade do Estado comunitário pelos prejuízos causados aos particulares não esteja prevista em nenhuma disposição comunitária inter alia, já se tem como assente na cultura jurídica européia, a partir da construção jurisprudencial, que "... o Direito Comunitário impõe o princípio segundo o qual os Estados-membros são obrigados a reparar os prejuízos causados aos particulares pelas violações do Direito Comunitário que lhes sejam imputáveis." No mesmo sentido, outros recentes casos julgados pela Corte de Luxemburgo têm reiterado este novo e importante princípio, haja vista o "Acórdão Bonifaci", também de 1991, bem como os casos "Brasserie du Pêcheur versus República Federal da Alemanha" e "Factortame versus Reino Unido", julgados em 1993.

A definição das características de um Direito Comunitário em abstrato e da tipologia de suas normas, sem pretender exaurir o estudo preliminar da matéria, propõe-se a fazer ver a abrangência do tema, bem como as grandes dificuldades que sua implantação fatalmente suscita.

De toda forma, os imensos obstáculos a se superarem em processos de integração demonstram, com clareza didática, que tais projetos destinam-se a sociedades que, amadurecendo, estão dispostas a ingentes desafios.

Existem duas clássicas lições de sociologia jurídica que me parecem, nesse instante, dizer respeito ao Direito Comunitário com muita propriedade.

A primeira é a que leciona nascer todo o Direito sempre velho, já superado pelas necessidades e demandas sociais de seu tempo. Permito-me observar, como o fez Maria de Los Angeles Benitez, representante da Comissão Européia perante o Governo da República Argentina, em recente seminário em Buenos Aires, que o Direito Comunitário é, ao contrário, um Direito que nasce totalmente permeável e aberto aos desafios do influxo social, fadado, por conseguinte, a permanecer indefinidamente jovem.

A segunda dessas lições ensina que, se de uma civilização nos remanescesse apenas seu ordenamento jurídico, seria possível fazer saber ao pesquisador do futuro quais foram os seus valores essenciais. Pois bem, se por um exercício de imaginação desaparecesse ainda hoje o processo de integração e dele ficasse apenas seu ordenamento jurídico, seguramente seus valores fadados à posteridade não seriam meramente os farisaicos valores do lucro e das vantagens materiais, mas, com certeza, os valores de solidariedade, paz, compreensão, equilíbrio, igualdade e eqüidade.

Para finalizar, gostaria de assinalar que os blocos econômicos, como vêm surgindo, não são superestados, federação de Estados ou algo semelhante. Os blocos econômicos não possuem exércitos e suas forças armadas são exclusivamente a força do Direito e, no caso do Mercosul, a força do Direito Comunitário que ousarmos e pudermos criar.

Jorge Fontoura, é professor visitante do Curso de Doutorado em Direito da Universidade Federal do Paraná e Membro Consultor da Comissão de Relações Exteriores do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil .



retirado de: http://www.cfj.gov.br