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A ILICITUDE NOS DELITOS INTERNACIONAIS - CONTRIBUIÇÃO À CONSTRUÇÃO CIENTÍFICA DE UM DIREITO PENAL INTERNACIONAL
GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO
FDUSP - Quinto ano

 O Direito Penal Internacional
O Direito Internacional Penal principiou sua evolução hodierna com o término da 2ª Guerra Mundial , e com a instituição do Tribunal de Nuremberg, que pode ser visualizado como o marco histórico do efetivo implemento das normas jurídicas internacionais penais, fazendo-se atuantes no mundo dos fatos. Contudo, a problemática houvera já sido prenunciada em épocas anteriores; assim é que no século XIX, durante a Guerra da Secessão dos E.U.A., uma instrução de 1.863 previa punições para o que hoje chamamos de crimes de guerra. Da mesma forma, em 1.937 concluiam-se em Genebra duas convenções pertinentes à prevenção e à repressão do terrorismo e à criação de uma corte penal internacional,  a primeira adstrita ao Direito Penal Interestatal. Cumpre esclarecer, entretanto, não haver sinonímia entre o assim chamado Direito Penal Interestatal e o Direito Internacional Penal proprio sensu. O Direito Internacional Penal tem como objeto, exclusivamente, os denominados crimes internacionais (crimes contra a paz, crimes de guerra, e crimes contra a humanidade, inclusive o genocídio, consoante o Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, instituído pelo Acordo de Londres de 08/08/1.945 entre E.U.A., França, Grã-Bretanha e U.R.S.S.). O Direito Penal Interestatal ("Derecho Penal Interetatico" é a exata expressão usada por Manuel A. Vieira ) abrange os demais crimes que, embora considerados em convenções interestatais, não representam propriamente crimes internacionais, ainda que tenham sua repressão assegurada pelas referidas convenções, em nível internacional; ademais, não se submetem a uma jurisdição internacional, mas sim a uma jurisdição estatal, interna. Pertencem ao Direito Penal Interestatal os seguintes delitos, de repercussão transcendente ao interesse de um só Estado: a escravidão e o tráfico de escravos; o terrorismo; a discriminação racial e o apartheid ; a falsificação de moedas; o tráfico de mulheres e crianças; o tráfico de publicações obscenas; o apoderamento ilícito de aeronaves e outros delitos contra a segurança da aviação civil; os delitos praticados contra os bens culturais protegidos  internacionalmente;  os delitos praticados em detrimento de cabos submarinos bem como as demais violações às telecomunicações, como as "rádios piratas";  e, especialmente, o tráfico de entorpecentes, o terrorismo e a pirataria.
Versaremos, porém, sobre o Direito Internacional Penal, comprendido em seu senso mais estrito. E, uma vez que reporte-se à noção de infração internacional, cumpre-nos defini-la. Stefan Glaser  conceituou-a como um fato (ação ou omissão) contrário ao Direito Internacional, e tão nocivo aos interesses e bens da comunidade internacional, que se estabelece nas relações entre Estados a convicção de que esse fato deve ser penalmente sancionado. Para Glaser, tem esta infração cinco elementos que a integram: o material (um ato, comissivo ou omissivo); o legal (previsão pelo direito); o injusto (ato contrário ao direito); o moral (culpabilidade); e o penal (punibilidade). Recordemo-nos, ademais, que para a doutrina penal clássica o crime é um fato típico, antijurídico e culpável; neste sentido Hans Welzel  , ao propugnar que a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade seriam os três elementos que convertem uma ação em um delito. Parte da doutrina fala ainda na punibilidade como requisito do crime. Damásio E. de Jesus , porém, entende ser a punibilidade mera conseqüência jurídica do fato criminoso; e infirma ser esta a posição doutrinária prevalente. Repudia também a culpabilidade enquanto requisito do crime, vendo-a como uma mera condição de imposição da pena. Nada obstante, abstraídas estas questões de ordem ontológica, percebemos serem, em verdade, equivalentes os elementos do crime internacional e os do crime com repercussões adstritas à base territorial da consumação delituosa. Entretanto, tem-se apenas uma similitude, jamais uma perfeita equivalência, como veremos em relação a um tópico específico da discussão.
O estudo meticuloso dos diversos elementos que constituem a infração penal seria de rigor para uma satisfatória apreensão do tema; nesse sentido, aliás, envidamos esforços em outro trabalho, ainda não publicado. Nos lindes da presente exposição, todavia, limitar-nos-emos a abordar apenas um desses elementos, talvez o que maiores dificuldades apresente no sentido da elaboração de uma estrutura científica para o Direito Penal Internacional. Trata-se da ilicitude nos delitos internacionais; partamos, pois, á sua análise.

2. A Ilicitude
O elemento injusto qualifica a infração como "ato contrário ao direito". Entende-se estar intimamente conectado à idéia da tipicidade, visto que nos ordenamentos nacionais determinadas condutas, embora perfeitamente subsumíveis ao modelo legal típico, não são punidas pelos Estados em  virtude da ausência do que se chama antijuridicidade. Esta conceitua-se como uma propriedade ou relação que se atribui ao fato típico penal, e que exprime a idéia de contradição, antagonismo ou oposição ao direito, no magistério de Francisco de Assis Toledo , que aliás prefere o termo ilicitude. Assim, também no plano internacional algumas condutas que são aprioristicamente ilícitas não serão deste modo consideradas, desde que se verifiquem causas de exclusão da ilicitude, que no Direito Penal são de quatro espécies: a legítima defesa, o Estado de necessidade, o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular do direito. O estudo da antijuridicidade equivale, em grande parte, ao estudo destas figuras; vejamos sua pertinência no Direito Internacional Penal.
De plano, descarta-se a existência de um estrito cumprimento do dever legal, posto não existir um "dever legal" em termos de DIP, se considerarmos este "dever" como proveniente de um ordenamento que emana de um poder político superior, de uma autoridade qualitativamente super posicionada em relação aos que têm o dever a cumprir para com ela. Assim é o dever dos policiais perante o Estado, que representa a sociedade: devem eles reprimir a criminalidade, e para tal mister efetuam prisões, arrombamentos, buscas e apreensões de pessoas ou coisas portas adentro de uma residência (CPP artigos 6*, III, e 240, §1º), em cumprimento de mandados judiciais. Usam "dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência"(CPP, artigo 292). No DIP, porém, os "deveres" que existem são recíprocos, decorrentes do princípio universal da igualdade dos Estados; não são deveres outorgados por uma entidade superior, e que portanto isentam de ilicitude eventual lesão que em nome destes deveres seja causada a um bem jurídico tutelado. Esta exclusão da ilicitude só é possível porque o dever havido para com a autoridade estatal, no plano interno, justapõe-se sobre qualquer dever do agente público para com a integridade física ou patrimonial do indivíduo lesionado; contudo, se na esfera internacional não há semelhante potestade, jamais um Estado poderá licitamente lesionar outro em virtude de deveres do primeiro para com um terceiro Estado, uma vez que todos os deveres, neste sentido, são do mesmo grau: os Estados são formal e juridicamente iguais entre si, não se pode argumentar que o dever do Estado "A" para com o Estado "B" seja qualitativamente superior ao dever deste mesmo Estado "A" para com o Estado "C". Alguém poderia refutar esta afirmação com base nos tratados de cooperação militar mútua, hoje existentes mesmo sobre bases regionais (v.g., artigo 21 da Carta da OEA) com vistas a suprir a morosidade decisória do Conselho de Segurança da ONU que, responsável pelo policiamento internacional, não raras vezes esteve impedido de atuar pelo mecanismo interno de decisão (em termos mais precisos, a possibilidade de VETO para questões "não processuais"), porém, rebateríamos o argumento postulando que este problema insere-se na esfera da legítima defesa coletiva, e não de um eventual "dever legal" do Estado não agredido para  com o Estado agredido, ou a comunidade internacional, e contrário aos interesses do Estado agressor. Mutatis mutandi, se um cidadão comum socorre outro na iminência do desferimento de um golpe letal por terceiro, pacífico é o entendimento de que temos aí legítima defesa de terceiro, e não "estrito cumprimento do dever legal", posto não ser tal cidadão um agente público.
A legítima defesa, destarte, é admitida no DIP, à semelhança do direito interno. Ela surge quando os órgãos competentes pelo policiamento na sociedade internacional não podem agir de plano, e visa à paralisação de uma violação da norma internacional. Possui dois requisitos: 1-) agressão injusta, atual ou iminente; 2-) defesa necessária, moderada e proporcional à agressão. Cumpre distinguir, inobstante, a legítima defesa da represália, figura conceitual que se tem desenvolvido no âmbito do DIP. Em comum enumeramos as seguintes características: a-) são atos que a priori violam o direito; b-) são praticados em resposta a um ato ilícito: c-) não acarretam responsabilidade do Estado. Contudo, diferenciam-se nos seguintes aspectos: a-) a legítima defesa é uma reação ao uso ilícito da força, porquanto a represália é uma reação contra qualquer ilícito; deste modo, v.g., as represálias adotadas institucionalmente contra a África do Sul, em face ao regime do apartheid , que embora não represente uso ilícito da força contra qualquer outro Estado, consubstancia ilícito internacional consoante a redação da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1.948 (os direitos e as liberdades estabelecidos no diploma são concedidos a todos, independentemente de raça, cor, sexo, língua, etc.) e da convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial (1.966), elaborada sob os auspícios da ONU, que reza em seu artigo 3º: "Os Estados-Partes especialmente condenam a segregação racial e o apartheid  e comprometem-se a proibir e a eliminar sob sua jurisdição todas as políticas dessa natureza"; b-)na legítima defesa o objetivo único é a defesa do Estado; na represália, intenta-se a punição do autor do ilícito, bem como a obtenção de uma reparação, não poucas vezes.; c-) a represália apenas seria lícita após um pedido prévio de reparação que não seja atendido, enquanto que alguns entendem possível a legítima defesa preventiva, em face ao pequeno território de alguns Estados, o que inviabilizaria retiradas estratégicas. Todavia, Albuquerque Mello  considera que a legítima defesa preventiva poderia dar ensejo a abusos no DIP.
A legítima defesa está prevista no art. 51 da Carta da ONU e no artigo 21 da Carta da OEA, perfazendo-se no direito que o Estado possui de agir em legítima defesa (a sua própria ou a de outro Estado) quando haja ataque armado injusto e atual, sendo que tal defesa não deve ultrapassar os limites da proporcionalidade no que tange à agressão verificada. Por ficção jurídica, admite-se a legítima defesa coletiva, quando a agressão a um Estado é interpretada como agressão a todos os demais Estados abarcados pelo tratado de cooperação militar mútua. Tal figura assemelhar-se-ia à legítima defesa de terceiro, consagrada no direito interno pátrio. Diferem, entretanto, na medida em que a legítima defesa do direito alheio é admitida genericamente, independentemente de quem seja o agredido, o agressor e o defensor, em termos de ordenamentos nacionais. Toda pessoa humana é favorecida por esta excludente, desde que atuando em pró dos direitos ameaçados de qualquer outro indivíduo. Já a legítima defesa coletiva pressupõe, para sua efetividade, um liame jurídico precípuo entre defensor e agredido, que se conforma pela celebração de tratados de cooperação militar recíproca, como o Tratado do Atlântico Norte, que originou a OTAN, e o extinto Pacto de Varsóvia,  ou convenções que contenham cláusulas neste sentido, como no caso da OEA. Destarte, e à diferença da figura anterior, neste caso é de suma relevância saber quais os Estados envolvidos no contexto conflitivo; por este exato motivo, quando deflagrado o conflito militar sobre as ilhas Malvinas, envolvendo a Argentina e a Inglaterra, os E.U.A. não tiveram legitimidade para intervir a favor de nenhum dos contendores, posto que deveriam colaborar militarmente com a Inglaterra conforme o Tratado do Atlântico Norte, mas também possuiam comprometimento neste  mesmo sentido com a Argentina, nos termos da Carta da OEA.
Alguns autores entendem ser necessário que o Estado-vítima dê o seu consentimento para que operem militarmente Estados comprometidos convencionalmente. Ademais, a legítima defesa subsiste também em tempo de guerra: a convenção relativa aos direitos e deveres das potências e das pessoas neutras em caso de guerra terrestre (Haia, 1.907), em seu artigo 10, esclarece que não será considerado hostil (portanto, descriminaliza a conduta) o fato de que uma potência neutra repila, mesmo que pela força, eventuais violações à sua neutralidade.
O estado de necessidade tem sido descartado pelos doutos, presentemente, no DIP. Porém, foi já defendido por autores alemães, como Karl Strupp na obra "Les Régles Générales du Droit de la paix". É definido como a situação de perigo atual, para interesses legítimos, que só pode ser afastada por meio da lesão de interesses de outrem, não menos legítimos. Difere da legítima defesa, uma vez que naquele há o choque entre dois interesses dotados de legitimidade, e nesta a oposição de um interesse legítimo a uma agressão injusta. No caso do Direito Internacional Penal, o Estado estaria apto a licitamente defender sua integridade, quando ela se encontrasse ameaçada seriamente; entretanto, tal ameaça não provém daquele Estado que será lesionado em um interesse legítimo seu. Este argumento foi utilizado para justificar a violação da neutralidade da Bélgica na 1ª Guerra Mundial, pelos exércitos alemães. A inconveniência de semelhante construção para o DIP revela-se pelos seguintes motivos: sua utilização far-se-ia apenas pelo Estado mais forte, e apenas como pretexto para uma agressão injustificada; colocaria ao alcance das fileiras militares de um Estado até mesmo os países submetidos ao estatuto da neutralidade, sempre que houvesse conveniência estratégica (a legitimação de um ataque dependeria da simples transmudação deste termo para o seu correspondente eufêmico "estado de necessidade"); a não existência no DIP de um tribunal permanente para declarar a legitimidade ou não de um estado de necessidade eventualmente alegado, o que realmente redundaria em se admitir a vigência, na comunidade internacional, da lei do Estado mais forte. Celso D. Albuquerque Mello  enumera ainda o fato de que um Estado, para defender a sua conservação, terminaria por ofender o direito de outros Estados. Entendemos, porém, que esta realidade não pode ser erigida como óbice à admissão do estado de necessidade, posto que esta em verdade é a natureza deste instituto, como vimos: dois interesses legítimos em contraposição, predominando o interesse do que apresenta maior poderio. Por conseqüência, sempre haverá violação de um direito legítimo, no estado de necessidade; dizer que tal violação é um inconveniente na ordem internacional seria pressupor a inconveniência também na ordem interna, já que também aí um interesse legítimo é defraudado em nome de outro. Estado de necessidade sem ofensa a interesse legítimo, aliás, não é estado de necessidade; queda desqualificada a figura.
Admitia-se no Direito Internacional Penal outra forma de conduta precipuamente criminosa, sem entretanto apresentar a pecha da ilicitude; esta figura, incogitada no direito interno, já foi mencionada: a represália. Represálias são medidas empregadas por um Estado ou Estados em relação a outro que tenha violado os direitos do(s) primeiro(s). Assim, este último teria infringido normas internacionais, e as represálias contra ele voltar-se-iam, para que respeitasse o DIP e ressarcisse o(s) Estado(s) prejudicado(s), regressando a situação ao status quo ante. Cabíveis em tempo de paz ou de guerra. Justificavam-se por representar uma resposta à violação do DIP em uma sociedade inorganizada. Para serem legítimas, as represálias deveriam apresentar pressupostos: a existência de um fato anterior contrário ao DIP; a inexistência de reparação para o Estado ofendido, muito embora este tenha tentado, antes de praticá-las, obter satisfação  sem sucesso; proporcionalidade em relação ao delito. Divergem da legítima defesa, já que não se resumem ao emprego de forças militares, admitindo outras formas de medidas coercitivas, como o bloqueio pacífico, o embargo e a boicotagem; além disto, como elucidado supra, a represália presta-se à reação contra qualquer ilícito, e não apenas contra o uso ilícito da força, como é o caso da legítima defesa. Denominadas "acts short of war"  por parte da doutrina, Albuquerque Mello considera que as represálias mediante o uso da força são vedadas na presente ordem internacional, tendo em vista ter a Carta da ONU proibido a utilização da força pelos Estados para solução dos conflitos internacionais, salvo a exceção da legítima defesa; este também o entendimento de José Francisco Rezek . Permitir esta forma de represália seria consagrar uma arma opressiva de que apenas os Estados mais fortes poderiam valer-se, contra os de menor poderio. Mesmo  o bloqueio pacífico, hoje, deve ser tido como ato de agressão, muito embora seja empregado ainda na comunidade interestatal. As represálias, entretanto, que não empregam forças militares, teriam um grau maior de admissibilidade, se nos orientássemos pelos sistemas jurídicos nacionais, onde se pode localizar a admissão de institutos muito próximos, como a exceptio non adimpleti contractus do Direito Civil.
Finalmente, quanto à figura do exercício regular de direito, forçosamente as discussões devem se iniciar com a referência aos direitos e deveres dos Estados, na concepção da doutrina internacionalista. Assim, Marotta Rangel  enumera, entre outros, os seguintes direitos: independência, conservação, igualdade, respeito, comércio internacional (os chamados "clássicos"), auto-determinação, não uso de ameaça de força contra território e independência, não intervenção em jurisdição alheia, solução pacífica dos conflitos, etc. (Resolução 2625 e Carta da ONU). Constata-se, porém, que muitos destes "direitos" em verdade nada mais são que pressupostos da própria existência do Estado; sem que se fizessem presentes, inexistiria a entidade estatal, na realidade. Portanto, não são propriamente direitos, uma vez que a priori a perda de um direito não desqualifica seu antigo titular enquanto sujeito potencial de direitos e deveres. Entretanto, ao efetuarmos uma avaliação mais detida sobre os complexos mecanismos que fazem defluir do direito objetivo interno os diversos direitos subjetivos para o ser dotado de personalidade jurídica, concluiremos que determinados direitos subjetivos são mesmo prolongamentos desta personalidade jurídica, entendida como a potencialidade de polarizar direitos e deveres; são aqueles direitos, em realidade, aspectos desta personalidade, chegando mesmo a se confundirem; tais seriam os chamados direitos personalíssimos (direito à vida, à saúde, á integridade física, ao próprio corpo, etc.) . O próprio existir do ser, nestes caso, evidencia o "exercício" contínuo destes direitos, exercício este que em princípio não pode, prejudicar interesses de outrem, mas que pode ser turbado pela atitude de terceiros. Deste modo, se alguém procura ceifar a vida de uma segunda pessoa, obviamente que objetiva, em última análise, inviabilizar o "exercício" do direito à vida que afinal integra a própria existência da pessoa ameaçada. Se contudo ela esboça uma reação, e repele a ação de seu algoz, nenhum penalista cogitará in casu de exercício regular do direito, mas sim de legítima defesa, como excludente de ilicitude. Assim será, sempre que o direito sob foco representar um prolongamento da personalidade do ofendido, e o seu "exercício" confundir-se com a própria existência do ser; o aludido exercício não pode ofender interesses alheios, inobstante possa ser elidido pela conduta de iniciativa alheia (perceba-se que o exercício regular do direito, tal qual seu tradicional enfoque pela doutrina, consubstancia-se em uma conduta do titular do direito em detrimento de interesses alheios, e não o contrário; assim é o desforço imediato para a defesa da posse, e os castigos corporais moderados que pais e tutores impõem aos menores sob sua guarda). Diante destas condições e em socorro deste exercício que, como dito, mescla-se à própria existência do sujeito, deverá atuar a legítima defesa; não há que se falar em "exercício regular de direito".
Mutatis mutandi, embora não seja usual falar-se em "direitos personalíssimos dos Estados", os direitos que a doutrina comumente atribui ao Estado e que mais seriam pressupostos existenciais do mesmo poderiam ser definidos como tais, unicamente para fins de ilustração, em face à comparação que procuramos tecer para com o direito interno. Abdicar destes direitos seria, para o Estado, a própria "morte"; vê-los elididos pela ação de um segundo Estado seria efetivamente a perda de sua soberania, e conseqüentemente de sua individualidade na comunidade internacional. Estes direitos são "exercidos" desde que o Estado surge, e a partir do momento em que se faz membro da referida comunidade. Destarte, apenas envidará esforços para a preservação destes direitos se a  conduta de outro Estado de algum modo ameaçá-los; e neste caso, conforme o raciocínio aduzido supra, não há um "exercício regular de direito" nos moldes em que tradicionalmente é compreendido, mas sim uma legítima defesa dos próprios interesses, senão de sua existência mesma. O Estado encontra-se numa situação de passividade até o momento em que é turbado em seus "direitos" por um segundo Estado, e a defesa destes "direitos" representa sua legítima defesa, decorrente da agressão, diferentemente do que se dá com o exercício regular do direito no plano estatal interno, quando a atitude do titular do direito é precipuamente ativa. Por conseguinte, somos da opinião de que um "exercício regular de direito" por um Estado nada menos representa que a legítima defesa de seus interesses legítimos.
Em conclusão, depreende-se de todo o dito que, entre todas as excludentes de ilicitude, apenas a legítima defesa é tida como indubitavelmente viável na ordem internacional; por isso, andou bem a Carta de São Francisco, proscrevendo formal e extensivamente a guerra e os fenômenos variantes das relações internacionais (em seu artigo 2º, § 4º, a Carta refere-se não à guerra, mas ao "uso da força"), mas admitindo a legítima defesa, singular ou coletiva, como única exceção à ilicitude do emprego da força (não foram mencionadas quaisquer outras figuras de exclusão da antijuridicidade). Ressalte-se, ademais, quais são os efeitos jurídicos da ocorrência desta, ou de qualquer outra causa de exclusão do ilícito que porventura venha a ser admitida internacionalmente: a conduta característica - com esta expressão desejamos evitar a similar "conduta típica" - foi realizada, o elemento material do delito verificou-se sem sombra de dúvidas; apenas perde tal conduta a sua ilicitude, posto ser justificada. Assim o esclarecimento de Oyama Cesar Ituassú : "(...) Aceitando ou dizendo da licitude que o procedimento da guerra defensiva representa, afirmam [os tratados que admitem a legítima defesa] que (...) a legítima defesa não exclui a noção de delito, apenas o justifica". Concordamos em parte, ressalva feita à afirmação de que mesmo a guerra defensiva representa um delito, ou um crime. Pela ciência penal, a ilicitude ou antijuridicidade é elemento constitutivo da noção de crime; se o ato é justificável, se não há ilicitude, crime também não há, por conseqüência. Apenas a conduta que, aliada ao injusto e à culpabilidade, integraria a figura delituosa. Mesmo porque entendemos ser uma contradictio in terminis a expressão "delito justificável", adotando-se a acepção penal da palavra "delito"; se o ato é justificado, crime não .poderá ser.
 

 

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