O Direito Penal Internacional
O Direito Internacional Penal principiou sua evolução
hodierna com o término da 2ª Guerra Mundial , e com a instituição
do Tribunal de Nuremberg, que pode ser visualizado como o marco histórico
do efetivo implemento das normas jurídicas internacionais penais,
fazendo-se atuantes no mundo dos fatos. Contudo, a problemática
houvera já sido prenunciada em épocas anteriores; assim é
que no século XIX, durante a Guerra da Secessão dos E.U.A.,
uma instrução de 1.863 previa punições para
o que hoje chamamos de crimes de guerra. Da mesma forma, em 1.937 concluiam-se
em Genebra duas convenções pertinentes à prevenção
e à repressão do terrorismo e à criação
de uma corte penal internacional, a primeira adstrita ao Direito
Penal Interestatal. Cumpre esclarecer, entretanto, não haver sinonímia
entre o assim chamado Direito Penal Interestatal e o Direito Internacional
Penal proprio sensu. O Direito Internacional Penal tem como objeto, exclusivamente,
os denominados crimes internacionais (crimes contra a paz, crimes de guerra,
e crimes contra a humanidade, inclusive o genocídio, consoante o
Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, instituído
pelo Acordo de Londres de 08/08/1.945 entre E.U.A., França, Grã-Bretanha
e U.R.S.S.). O Direito Penal Interestatal ("Derecho Penal Interetatico"
é a exata expressão usada por Manuel A. Vieira ) abrange
os demais crimes que, embora considerados em convenções interestatais,
não representam propriamente crimes internacionais, ainda que tenham
sua repressão assegurada pelas referidas convenções,
em nível internacional; ademais, não se submetem a uma jurisdição
internacional, mas sim a uma jurisdição estatal, interna.
Pertencem ao Direito Penal Interestatal os seguintes delitos, de repercussão
transcendente ao interesse de um só Estado: a escravidão
e o tráfico de escravos; o terrorismo; a discriminação
racial e o apartheid ; a falsificação de moedas; o tráfico
de mulheres e crianças; o tráfico de publicações
obscenas; o apoderamento ilícito de aeronaves e outros delitos contra
a segurança da aviação civil; os delitos praticados
contra os bens culturais protegidos internacionalmente; os
delitos praticados em detrimento de cabos submarinos bem como as demais
violações às telecomunicações, como
as "rádios piratas"; e, especialmente, o tráfico de
entorpecentes, o terrorismo e a pirataria.
Versaremos, porém, sobre o Direito Internacional Penal, comprendido
em seu senso mais estrito. E, uma vez que reporte-se à noção
de infração internacional, cumpre-nos defini-la. Stefan Glaser
conceituou-a como um fato (ação ou omissão) contrário
ao Direito Internacional, e tão nocivo aos interesses e bens da
comunidade internacional, que se estabelece nas relações
entre Estados a convicção de que esse fato deve ser penalmente
sancionado. Para Glaser, tem esta infração cinco elementos
que a integram: o material (um ato, comissivo ou omissivo); o legal (previsão
pelo direito); o injusto (ato contrário ao direito); o moral (culpabilidade);
e o penal (punibilidade). Recordemo-nos, ademais, que para a doutrina penal
clássica o crime é um fato típico, antijurídico
e culpável; neste sentido Hans Welzel , ao propugnar que a
tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade seriam os três elementos
que convertem uma ação em um delito. Parte da doutrina fala
ainda na punibilidade como requisito do crime. Damásio E. de Jesus
, porém, entende ser a punibilidade mera conseqüência
jurídica do fato criminoso; e infirma ser esta a posição
doutrinária prevalente. Repudia também a culpabilidade enquanto
requisito do crime, vendo-a como uma mera condição de imposição
da pena. Nada obstante, abstraídas estas questões de ordem
ontológica, percebemos serem, em verdade, equivalentes os elementos
do crime internacional e os do crime com repercussões adstritas
à base territorial da consumação delituosa. Entretanto,
tem-se apenas uma similitude, jamais uma perfeita equivalência, como
veremos em relação a um tópico específico da
discussão.
O estudo meticuloso dos diversos elementos que constituem a infração
penal seria de rigor para uma satisfatória apreensão do tema;
nesse sentido, aliás, envidamos esforços em outro trabalho,
ainda não publicado. Nos lindes da presente exposição,
todavia, limitar-nos-emos a abordar apenas um desses elementos, talvez
o que maiores dificuldades apresente no sentido da elaboração
de uma estrutura científica para o Direito Penal Internacional.
Trata-se da ilicitude nos delitos internacionais; partamos, pois, á
sua análise.
2. A Ilicitude
O elemento injusto qualifica a infração como "ato contrário
ao direito". Entende-se estar intimamente conectado à idéia
da tipicidade, visto que nos ordenamentos nacionais determinadas condutas,
embora perfeitamente subsumíveis ao modelo legal típico,
não são punidas pelos Estados em virtude da ausência
do que se chama antijuridicidade. Esta conceitua-se como uma propriedade
ou relação que se atribui ao fato típico penal, e
que exprime a idéia de contradição, antagonismo ou
oposição ao direito, no magistério de Francisco de
Assis Toledo , que aliás prefere o termo ilicitude. Assim, também
no plano internacional algumas condutas que são aprioristicamente
ilícitas não serão deste modo consideradas, desde
que se verifiquem causas de exclusão da ilicitude, que no Direito
Penal são de quatro espécies: a legítima defesa, o
Estado de necessidade, o estrito cumprimento do dever legal e o exercício
regular do direito. O estudo da antijuridicidade equivale, em grande parte,
ao estudo destas figuras; vejamos sua pertinência no Direito Internacional
Penal.
De plano, descarta-se a existência de um estrito cumprimento
do dever legal, posto não existir um "dever legal" em termos de
DIP, se considerarmos este "dever" como proveniente de um ordenamento que
emana de um poder político superior, de uma autoridade qualitativamente
super posicionada em relação aos que têm o dever a
cumprir para com ela. Assim é o dever dos policiais perante o Estado,
que representa a sociedade: devem eles reprimir a criminalidade, e para
tal mister efetuam prisões, arrombamentos, buscas e apreensões
de pessoas ou coisas portas adentro de uma residência (CPP artigos
6*, III, e 240, §1º), em cumprimento de mandados judiciais. Usam
"dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência"(CPP,
artigo 292). No DIP, porém, os "deveres" que existem são
recíprocos, decorrentes do princípio universal da igualdade
dos Estados; não são deveres outorgados por uma entidade
superior, e que portanto isentam de ilicitude eventual lesão que
em nome destes deveres seja causada a um bem jurídico tutelado.
Esta exclusão da ilicitude só é possível porque
o dever havido para com a autoridade estatal, no plano interno, justapõe-se
sobre qualquer dever do agente público para com a integridade física
ou patrimonial do indivíduo lesionado; contudo, se na esfera internacional
não há semelhante potestade, jamais um Estado poderá
licitamente lesionar outro em virtude de deveres do primeiro para com um
terceiro Estado, uma vez que todos os deveres, neste sentido, são
do mesmo grau: os Estados são formal e juridicamente iguais entre
si, não se pode argumentar que o dever do Estado "A" para com o
Estado "B" seja qualitativamente superior ao dever deste mesmo Estado "A"
para com o Estado "C". Alguém poderia refutar esta afirmação
com base nos tratados de cooperação militar mútua,
hoje existentes mesmo sobre bases regionais (v.g., artigo 21 da Carta da
OEA) com vistas a suprir a morosidade decisória do Conselho de Segurança
da ONU que, responsável pelo policiamento internacional, não
raras vezes esteve impedido de atuar pelo mecanismo interno de decisão
(em termos mais precisos, a possibilidade de VETO para questões
"não processuais"), porém, rebateríamos o argumento
postulando que este problema insere-se na esfera da legítima defesa
coletiva, e não de um eventual "dever legal" do Estado não
agredido para com o Estado agredido, ou a comunidade internacional,
e contrário aos interesses do Estado agressor. Mutatis mutandi,
se um cidadão comum socorre outro na iminência do desferimento
de um golpe letal por terceiro, pacífico é o entendimento
de que temos aí legítima defesa de terceiro, e não
"estrito cumprimento do dever legal", posto não ser tal cidadão
um agente público.
A legítima defesa, destarte, é admitida no DIP, à
semelhança do direito interno. Ela surge quando os órgãos
competentes pelo policiamento na sociedade internacional não podem
agir de plano, e visa à paralisação de uma violação
da norma internacional. Possui dois requisitos: 1-) agressão injusta,
atual ou iminente; 2-) defesa necessária, moderada e proporcional
à agressão. Cumpre distinguir, inobstante, a legítima
defesa da represália, figura conceitual que se tem desenvolvido
no âmbito do DIP. Em comum enumeramos as seguintes características:
a-) são atos que a priori violam o direito; b-) são praticados
em resposta a um ato ilícito: c-) não acarretam responsabilidade
do Estado. Contudo, diferenciam-se nos seguintes aspectos: a-) a legítima
defesa é uma reação ao uso ilícito da força,
porquanto a represália é uma reação contra
qualquer ilícito; deste modo, v.g., as represálias adotadas
institucionalmente contra a África do Sul, em face ao regime do
apartheid , que embora não represente uso ilícito da força
contra qualquer outro Estado, consubstancia ilícito internacional
consoante a redação da Declaração Universal
dos Direitos do Homem de 1.948 (os direitos e as liberdades estabelecidos
no diploma são concedidos a todos, independentemente de raça,
cor, sexo, língua, etc.) e da convenção internacional
sobre a eliminação de todas as formas de discriminação
racial (1.966), elaborada sob os auspícios da ONU, que reza em seu
artigo 3º: "Os Estados-Partes especialmente condenam a segregação
racial e o apartheid e comprometem-se a proibir e a eliminar sob
sua jurisdição todas as políticas dessa natureza";
b-)na legítima defesa o objetivo único é a defesa
do Estado; na represália, intenta-se a punição do
autor do ilícito, bem como a obtenção de uma reparação,
não poucas vezes.; c-) a represália apenas seria lícita
após um pedido prévio de reparação que não
seja atendido, enquanto que alguns entendem possível a legítima
defesa preventiva, em face ao pequeno território de alguns Estados,
o que inviabilizaria retiradas estratégicas. Todavia, Albuquerque
Mello considera que a legítima defesa preventiva poderia dar
ensejo a abusos no DIP.
A legítima defesa está prevista no art. 51 da Carta da
ONU e no artigo 21 da Carta da OEA, perfazendo-se no direito que o Estado
possui de agir em legítima defesa (a sua própria ou a de
outro Estado) quando haja ataque armado injusto e atual, sendo que tal
defesa não deve ultrapassar os limites da proporcionalidade no que
tange à agressão verificada. Por ficção jurídica,
admite-se a legítima defesa coletiva, quando a agressão a
um Estado é interpretada como agressão a todos os demais
Estados abarcados pelo tratado de cooperação militar mútua.
Tal figura assemelhar-se-ia à legítima defesa de terceiro,
consagrada no direito interno pátrio. Diferem, entretanto, na medida
em que a legítima defesa do direito alheio é admitida genericamente,
independentemente de quem seja o agredido, o agressor e o defensor, em
termos de ordenamentos nacionais. Toda pessoa humana é favorecida
por esta excludente, desde que atuando em pró dos direitos ameaçados
de qualquer outro indivíduo. Já a legítima defesa
coletiva pressupõe, para sua efetividade, um liame jurídico
precípuo entre defensor e agredido, que se conforma pela celebração
de tratados de cooperação militar recíproca, como
o Tratado do Atlântico Norte, que originou a OTAN, e o extinto Pacto
de Varsóvia, ou convenções que contenham cláusulas
neste sentido, como no caso da OEA. Destarte, e à diferença
da figura anterior, neste caso é de suma relevância saber
quais os Estados envolvidos no contexto conflitivo; por este exato motivo,
quando deflagrado o conflito militar sobre as ilhas Malvinas, envolvendo
a Argentina e a Inglaterra, os E.U.A. não tiveram legitimidade para
intervir a favor de nenhum dos contendores, posto que deveriam colaborar
militarmente com a Inglaterra conforme o Tratado do Atlântico Norte,
mas também possuiam comprometimento neste mesmo sentido com
a Argentina, nos termos da Carta da OEA.
Alguns autores entendem ser necessário que o Estado-vítima
dê o seu consentimento para que operem militarmente Estados comprometidos
convencionalmente. Ademais, a legítima defesa subsiste também
em tempo de guerra: a convenção relativa aos direitos e deveres
das potências e das pessoas neutras em caso de guerra terrestre (Haia,
1.907), em seu artigo 10, esclarece que não será considerado
hostil (portanto, descriminaliza a conduta) o fato de que uma potência
neutra repila, mesmo que pela força, eventuais violações
à sua neutralidade.
O estado de necessidade tem sido descartado pelos doutos, presentemente,
no DIP. Porém, foi já defendido por autores alemães,
como Karl Strupp na obra "Les Régles Générales du
Droit de la paix". É definido como a situação de perigo
atual, para interesses legítimos, que só pode ser afastada
por meio da lesão de interesses de outrem, não menos legítimos.
Difere da legítima defesa, uma vez que naquele há o choque
entre dois interesses dotados de legitimidade, e nesta a oposição
de um interesse legítimo a uma agressão injusta. No caso
do Direito Internacional Penal, o Estado estaria apto a licitamente defender
sua integridade, quando ela se encontrasse ameaçada seriamente;
entretanto, tal ameaça não provém daquele Estado que
será lesionado em um interesse legítimo seu. Este argumento
foi utilizado para justificar a violação da neutralidade
da Bélgica na 1ª Guerra Mundial, pelos exércitos alemães.
A inconveniência de semelhante construção para o DIP
revela-se pelos seguintes motivos: sua utilização far-se-ia
apenas pelo Estado mais forte, e apenas como pretexto para uma agressão
injustificada; colocaria ao alcance das fileiras militares de um Estado
até mesmo os países submetidos ao estatuto da neutralidade,
sempre que houvesse conveniência estratégica (a legitimação
de um ataque dependeria da simples transmudação deste termo
para o seu correspondente eufêmico "estado de necessidade"); a não
existência no DIP de um tribunal permanente para declarar a legitimidade
ou não de um estado de necessidade eventualmente alegado, o que
realmente redundaria em se admitir a vigência, na comunidade internacional,
da lei do Estado mais forte. Celso D. Albuquerque Mello enumera ainda
o fato de que um Estado, para defender a sua conservação,
terminaria por ofender o direito de outros Estados. Entendemos, porém,
que esta realidade não pode ser erigida como óbice à
admissão do estado de necessidade, posto que esta em verdade é
a natureza deste instituto, como vimos: dois interesses legítimos
em contraposição, predominando o interesse do que apresenta
maior poderio. Por conseqüência, sempre haverá violação
de um direito legítimo, no estado de necessidade; dizer que tal
violação é um inconveniente na ordem internacional
seria pressupor a inconveniência também na ordem interna,
já que também aí um interesse legítimo é
defraudado em nome de outro. Estado de necessidade sem ofensa a interesse
legítimo, aliás, não é estado de necessidade;
queda desqualificada a figura.
Admitia-se no Direito Internacional Penal outra forma de conduta precipuamente
criminosa, sem entretanto apresentar a pecha da ilicitude; esta figura,
incogitada no direito interno, já foi mencionada: a represália.
Represálias são medidas empregadas por um Estado ou Estados
em relação a outro que tenha violado os direitos do(s) primeiro(s).
Assim, este último teria infringido normas internacionais, e as
represálias contra ele voltar-se-iam, para que respeitasse o DIP
e ressarcisse o(s) Estado(s) prejudicado(s), regressando a situação
ao status quo ante. Cabíveis em tempo de paz ou de guerra. Justificavam-se
por representar uma resposta à violação do DIP em
uma sociedade inorganizada. Para serem legítimas, as represálias
deveriam apresentar pressupostos: a existência de um fato anterior
contrário ao DIP; a inexistência de reparação
para o Estado ofendido, muito embora este tenha tentado, antes de praticá-las,
obter satisfação sem sucesso; proporcionalidade em
relação ao delito. Divergem da legítima defesa, já
que não se resumem ao emprego de forças militares, admitindo
outras formas de medidas coercitivas, como o bloqueio pacífico,
o embargo e a boicotagem; além disto, como elucidado supra, a represália
presta-se à reação contra qualquer ilícito,
e não apenas contra o uso ilícito da força, como é
o caso da legítima defesa. Denominadas "acts short of war"
por parte da doutrina, Albuquerque Mello considera que as represálias
mediante o uso da força são vedadas na presente ordem internacional,
tendo em vista ter a Carta da ONU proibido a utilização da
força pelos Estados para solução dos conflitos internacionais,
salvo a exceção da legítima defesa; este também
o entendimento de José Francisco Rezek . Permitir esta forma de
represália seria consagrar uma arma opressiva de que apenas os Estados
mais fortes poderiam valer-se, contra os de menor poderio. Mesmo
o bloqueio pacífico, hoje, deve ser tido como ato de agressão,
muito embora seja empregado ainda na comunidade interestatal. As represálias,
entretanto, que não empregam forças militares, teriam um
grau maior de admissibilidade, se nos orientássemos pelos sistemas
jurídicos nacionais, onde se pode localizar a admissão de
institutos muito próximos, como a exceptio non adimpleti contractus
do Direito Civil.
Finalmente, quanto à figura do exercício regular de direito,
forçosamente as discussões devem se iniciar com a referência
aos direitos e deveres dos Estados, na concepção da doutrina
internacionalista. Assim, Marotta Rangel enumera, entre outros, os
seguintes direitos: independência, conservação, igualdade,
respeito, comércio internacional (os chamados "clássicos"),
auto-determinação, não uso de ameaça de força
contra território e independência, não intervenção
em jurisdição alheia, solução pacífica
dos conflitos, etc. (Resolução 2625 e Carta da ONU). Constata-se,
porém, que muitos destes "direitos" em verdade nada mais são
que pressupostos da própria existência do Estado; sem que
se fizessem presentes, inexistiria a entidade estatal, na realidade. Portanto,
não são propriamente direitos, uma vez que a priori a perda
de um direito não desqualifica seu antigo titular enquanto sujeito
potencial de direitos e deveres. Entretanto, ao efetuarmos uma avaliação
mais detida sobre os complexos mecanismos que fazem defluir do direito
objetivo interno os diversos direitos subjetivos para o ser dotado de personalidade
jurídica, concluiremos que determinados direitos subjetivos são
mesmo prolongamentos desta personalidade jurídica, entendida como
a potencialidade de polarizar direitos e deveres; são aqueles direitos,
em realidade, aspectos desta personalidade, chegando mesmo a se confundirem;
tais seriam os chamados direitos personalíssimos (direito à
vida, à saúde, á integridade física, ao próprio
corpo, etc.) . O próprio existir do ser, nestes caso, evidencia
o "exercício" contínuo destes direitos, exercício
este que em princípio não pode, prejudicar interesses de
outrem, mas que pode ser turbado pela atitude de terceiros. Deste modo,
se alguém procura ceifar a vida de uma segunda pessoa, obviamente
que objetiva, em última análise, inviabilizar o "exercício"
do direito à vida que afinal integra a própria existência
da pessoa ameaçada. Se contudo ela esboça uma reação,
e repele a ação de seu algoz, nenhum penalista cogitará
in casu de exercício regular do direito, mas sim de legítima
defesa, como excludente de ilicitude. Assim será, sempre que o direito
sob foco representar um prolongamento da personalidade do ofendido, e o
seu "exercício" confundir-se com a própria existência
do ser; o aludido exercício não pode ofender interesses alheios,
inobstante possa ser elidido pela conduta de iniciativa alheia (perceba-se
que o exercício regular do direito, tal qual seu tradicional enfoque
pela doutrina, consubstancia-se em uma conduta do titular do direito em
detrimento de interesses alheios, e não o contrário; assim
é o desforço imediato para a defesa da posse, e os castigos
corporais moderados que pais e tutores impõem aos menores sob sua
guarda). Diante destas condições e em socorro deste exercício
que, como dito, mescla-se à própria existência do sujeito,
deverá atuar a legítima defesa; não há que
se falar em "exercício regular de direito".
Mutatis mutandi, embora não seja usual falar-se em "direitos
personalíssimos dos Estados", os direitos que a doutrina comumente
atribui ao Estado e que mais seriam pressupostos existenciais do mesmo
poderiam ser definidos como tais, unicamente para fins de ilustração,
em face à comparação que procuramos tecer para com
o direito interno. Abdicar destes direitos seria, para o Estado, a própria
"morte"; vê-los elididos pela ação de um segundo Estado
seria efetivamente a perda de sua soberania, e conseqüentemente de
sua individualidade na comunidade internacional. Estes direitos são
"exercidos" desde que o Estado surge, e a partir do momento em que se faz
membro da referida comunidade. Destarte, apenas envidará esforços
para a preservação destes direitos se a conduta de
outro Estado de algum modo ameaçá-los; e neste caso, conforme
o raciocínio aduzido supra, não há um "exercício
regular de direito" nos moldes em que tradicionalmente é compreendido,
mas sim uma legítima defesa dos próprios interesses, senão
de sua existência mesma. O Estado encontra-se numa situação
de passividade até o momento em que é turbado em seus "direitos"
por um segundo Estado, e a defesa destes "direitos" representa sua legítima
defesa, decorrente da agressão, diferentemente do que se dá
com o exercício regular do direito no plano estatal interno, quando
a atitude do titular do direito é precipuamente ativa. Por conseguinte,
somos da opinião de que um "exercício regular de direito"
por um Estado nada menos representa que a legítima defesa de seus
interesses legítimos.
Em conclusão, depreende-se de todo o dito que, entre todas as
excludentes de ilicitude, apenas a legítima defesa é tida
como indubitavelmente viável na ordem internacional; por isso, andou
bem a Carta de São Francisco, proscrevendo formal e extensivamente
a guerra e os fenômenos variantes das relações internacionais
(em seu artigo 2º, § 4º, a Carta refere-se não à
guerra, mas ao "uso da força"), mas admitindo a legítima
defesa, singular ou coletiva, como única exceção à
ilicitude do emprego da força (não foram mencionadas quaisquer
outras figuras de exclusão da antijuridicidade). Ressalte-se, ademais,
quais são os efeitos jurídicos da ocorrência desta,
ou de qualquer outra causa de exclusão do ilícito que porventura
venha a ser admitida internacionalmente: a conduta característica
- com esta expressão desejamos evitar a similar "conduta típica"
- foi realizada, o elemento material do delito verificou-se sem sombra
de dúvidas; apenas perde tal conduta a sua ilicitude, posto ser
justificada. Assim o esclarecimento de Oyama Cesar Ituassú : "(...)
Aceitando ou dizendo da licitude que o procedimento da guerra defensiva
representa, afirmam [os tratados que admitem a legítima defesa]
que (...) a legítima defesa não exclui a noção
de delito, apenas o justifica". Concordamos em parte, ressalva feita à
afirmação de que mesmo a guerra defensiva representa um delito,
ou um crime. Pela ciência penal, a ilicitude ou antijuridicidade
é elemento constitutivo da noção de crime; se o ato
é justificável, se não há ilicitude, crime
também não há, por conseqüência. Apenas
a conduta que, aliada ao injusto e à culpabilidade, integraria a
figura delituosa. Mesmo porque entendemos ser uma contradictio in terminis
a expressão "delito justificável", adotando-se a acepção
penal da palavra "delito"; se o ato é justificado, crime não
.poderá ser.
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