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Análise jurídica da apreensão de bem pessoal em vôo doméstico
Anselmo Henrique Cordeiro Lopes*
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O objeto do
presente estudo é o questionamento da legitimidade de prática realizada por
autoridades fiscais federais consistente em apreender bens pessoais e lícitos, de origem estrangeira, de propriedade dos
passageiros – pessoas físicas – no embarque ou desembarque de vôos domésticos,
desde que o proprietário ou detentor do bem estrangeiro – notebook, ipod, p. ex. – não esteja
em posse da nota fiscal de compra.
Empregamos a
expressão "bens lícitos" aqui para nos referirmos àqueles cuja
comercialização não é absolutamente proibida, sendo sua introdução no país,
caso irregular, definida como descaminho (ofensa à ordem tributária), mas não
como contrabando (por exemplo, drogas, armas e produtos de descaminho).
Desde já, é
importante esclarecer que não se questiona no presente estudo a fiscalização de
bens em escala comercial (mercadorias
em sentido estrito), de propriedade de pessoas jurídicas ou de empresários
individuais, contribuintes de direito que são dos tributos que incidem sobre a
internalização e a circulação de mercadorias e riquezas em geral. Também não se
discute aqui a fiscalização em aeroportos, inclusive na bagagem de pessoas
físicas e em vôos domésticos, que tenha como fim apreender bens ilícitos, como,
por exemplo, drogas ilícitas, materiais orgânicos ou biológicos irregulares ou
cigarros que não atendam às normas sanitárias. Nesses casos, é interesse do
Estado e da sociedade a repressão dessas atividades, as quais, inclusive, são
sancionadas com normas criminais.
Igualmente,
esclareça-se logo aqui que não sugerimos reduzir qualquer poder de fiscalização
de autoridades fiscais. Reconhecemos como legítima sua atividade de
fiscalização, inclusive em bagagens de passageiros em vôos domésticos. O que
será examinado são as apreensões de bens pessoais, individuais, lícitos, usados
e sem finalidade comercial, em razão do mero "descumprimento" por
parte do cidadão comum da "obrigação acessória" (inexistente, segundo
demonstraremos) consistente em carregar consigo, em todo e qualquer lugar, nota
fiscal de todos os produtos de origem estrangeira de que sejam portadores, e de
apresentá-los sempre que requerido por uma autoridade fiscal, em situações que
não são fatos jurídicos criadores dos tributos incidentes sobre a importação.
Demais disso,
esclareça-se, desde já, que não se examina aqui qualquer pretensão de natureza
tributária, nem se questiona qualquer fenômeno de incidência tributária. O
objeto a ser considerado é, tão-só, o direito constitucional de propriedade, de
privacidade e de intimidade do cidadão, bem como a garantia do devido processo
legal, formal e substantivo.
2 DIREITO CONSTITUCIONAL DE PROPRIEDADE
Procuraremos
demonstrar que a apreensão de bens pessoais em vôos domésticos, em situações
que não presumam a importação indevida da coisa e quando os bens apreendidos
(p. ex., notebook) portam dados privados ou íntimos da
pessoa, deve ser entendida como afronta ao direito constitucional de
propriedade do cidadão, bem como a seu direito também constitucional à
privacidade e à intimidade. Por isso, faz-se necessário tecer considerações
sobre tais direitos violados. Comecemos pela propriedade.
A propriedade é bem
jurídico fundamental protegido e previsto no art. 5º da Constituição da
República. Correlato a esse bem fundamental, há o direito fundamental de
propriedade, consistente em direito ao livre desenvolvimento e manutenção do
patrimônio, que pode ser restringido, externamente, pelos modos previstos
expressamente no Texto Maior (desapropriação e tributação, por exemplo), e
conformada, internamente, por orientação da função social da propriedade.
Além de propiciar
o desenvolvimento patrimonial individual, a propriedade permanece em nosso
sistema constitucional como forma de proteção da própria pessoa humana
[01], bem como instrumento de maximização do bem-estar material da
comunidade [02]. A proteção da propriedade não é mais vista como um
fim em si mesmo, mas sim como meio de tutela ampla da pessoa, de sua liberdade,
de seu livre-arbítrio e de sua felicidade, nisso consistindo sua função existencial. Ao lado dessa função existencial, existe a chamada função social, informada por valores
solidarísticos. As referidas funções não se excluem; complementam-se. Tampouco
elas excluem a primeira função mencionada neste parágrafo: a função econômico-individual. Entre
as três funções, porém, deve sobressair a existencial em nosso sistema
constitucional, por ser a dignidade humana fundamento máximo de nossa República
(art. 1º, III, CRFB). Enfim, tanto num Estado Liberal quanto num Estado Social
de Direito, a proteção da propriedade faz-se necessária e basilar, em especial
a tutela de sua função existencial.
Nessa nova perspectiva,
a proteção da propriedade deve ser tão mais intensa quanto for a proximidade do
bem à vida pessoal do indivíduo. Nesse sentido, José Afonso da Silva, partindo
da distinção entre "a propriedade" e as "propriedades", com
fundamento na Carta Constitucional e apoiado na doutrina de Pietro Perlingieri,
defende a necessidade de tratamento distinto entre a propriedade de bens de
consumo e a propriedade sobre bens de produção, bem como entre a
"propriedade de uso
pessoal" e a "propriedade/capital" [03]. Em
razão da importância da lição, pedimos vênia para transcrever o referido trecho
do constitucionalista brasileiro:
"Em verdade, uma coisa é a propriedade pública, outra a propriedade social e outra a privada; uma coisa é a propriedade agrícola, outra industrial; uma, a propriedade rural, outra a urbana; uma, a propriedade de bens de consumo, outra a de bens de produção; uma, a propriedade de uso pessoal, outra a propriedade/capital. (...) Cada qual desses tipos pode estar
sujeito, e por regra estará, a uma disciplina particular, especialmente porque,
em relação a eles, o princípio da função social atua diversamente, tendo em
vista a destinação do bem objeto da propriedade".
A distinção entre
essas espécies de propriedade não é estranha ao Direito Comparado. Na Grundgesetz da Alemanha, por exemplo,
em seu art. 15, prevê-se, ponderadamente, a coletivização ou socialização de
"bens imobiliários, recursos naturais e meios de produção", com
prévia indenização, mas esta expropriação sequer é cogitada para os bens
pessoais, pois sobre estes prevalece o interesse do indivíduo sobre o do
Estado.
A partir da noção
acima exposta, apontamos que a propriedade dos bens pessoais de consumo merece
tratamento distinto em relação à propriedade dos bens comerciais – as
mercadorias –, pois que estes, enquanto pertencentes ao empresário, devem
obedecer a regramento muito mais exigente do que o que incide sobre aqueles. É
que os bens pessoais são informados, em geral, mais plenamente pelo princípio
da liberdade, enquanto que os bens comerciais são, em regra, submetidos a mais
intensa fiscalização, sendo esta justificada pelo interesse público, aqui
incidente com maior força.
Os bens pessoais,
por influírem no cerne da privacidade e quiçá da intimidade da pessoa e, ao
mesmo tempo, distanciarem-se da alçada do interesse público, devem estar menos
sujeitos à interferência estatal, por força do princípio constitucional da
dignidade humana, do qual decorre a função existencial da propriedade. Já os
bens comerciais, por condizerem menos com a privacidade e intimidade e mais com
o interesse público, legitimam maior interferência do Poder Público,
correspondendo a uma maior incidência da função social da propriedade.
Assim, a
propriedade de bens pessoais não pode ser tratada do mesmo modo que a
propriedade de bens comerciais. Mesmo um autor radical como o francês Pierre
Josesh Proudhon, que combatia o reconhecimento do próprio direito de
propriedade, admitia que o homem tem direito de possuir, com nota de
exclusividade, tudo o que baste a seu consumo e seu trabalho [04].
Pode-se dizer que o mencionado filósofo, ainda que negasse a própria
legitimidade da propriedade, reconhecia como legítima a função existencial da
posse exclusiva (que equivale à propriedade de bens pessoais). Isso demonstra
que, no mais variado espectro de matizes ideológicas e políticas, a propriedade
de bens pessoais é protegida e defendida com muito maior intensidade que a
propriedade de bens comerciais em geral.
Dentro da ótica
por nós desenvolvida, tratar indistintamente os proprietários de bens pessoais
e os proprietários de bens comerciais deve ser tido como absolutamente
inconstitucional, por ofender o princípio isonômico (art. 5º, caput, CRFB), bem como por violar o
princípio da proporcionalidade, que se arrima, além da igualdade, na cláusula
do devido processo legal substantivo (art. 5º, LIV, CRFB). A
desproporcionalidade, no caso, evidencia-se pela inobservância do subprincípio
da necessidade, porquanto os bens pessoais não demandam a mesma intervenção
estatal que exigem os bens comerciais.
É também nesse
contexto que devemos invocar a cláusula do devido processo legal, pois que, em
nosso entendimento, esse princípio constitucional é violado nas apreensões
agora analisadas, seja em seu caráter formal, seja em seu caráter substantivo
acima mencionado.
Apesar da concisão
do enunciado contido no art. 5º, LIV, de nossa Constituição, a qual não foi
didática como a Constituição dos EUA, que é expressa no sentido de que "(o) direito do povo à inviolabilidade de
suas pessoas, casas, papéis e haveres contra a busca e apreensão arbitrárias
não poderá ser infringido; e nenhum mandado será expedido a não ser mediante
indícios de culpabilidade" (Emenda IV – tradução livre), não há
dúvida de que nossa ordem constitucional, substancialmente, acolhe a mesma
norma, não se permitindo que o indivíduo seja privado de seus bens, em razão de
suposta irregularidade, sem "indícios de culpabilidade" suficientes
para a restrição de seu direito constitucional à propriedade.
Em suma, a prática
de impor ao cidadão comum o ônus de carregar consigo nota fiscal de produtos
importados em todo e qualquer lugar (no caso, em aeroportos, no momento de
embarque ou desembarque em vôos domésticos), obrigação esta que se exige
ordinariamente das pessoas e entidades empresárias (contribuintes que são dos
tributos de circulação), afronta o princípio isonômico, pois trata
indistintamente o cidadão comum e a entidade profissional, bem como é
desproporcional, pois afeta direitos constitucionais do cidadão sem maior
proveito para os cofres públicos (o ganho econômico do Estado é irrisório), e,
com isso, atenta indevidamente contra o direito constitucional de propriedade
da pessoa natural.
3 A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À PRIVACIDADE E À INTIMIDADE
O direito
fundamental à intimidade e à vida privada está previsto no inciso X do art. 5º
de nossa Lei Excelsa; é seu texto:
"X – são invioláveis a intimidade, a vida
privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização
pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".
Os referidos
direitos são, no campo juscivil, identificados como integrantes do direito
geral de personalidade (ou como espécies de ''direitos'' da personalidade). No
plano constitucional, pode-se dizer que a proteção desses direitos é forma de
preservar a dignidade humana, que é fundamento de nossa República (art. 1º,
III, CRFB). A dignidade do homem, entendida como o tratamento do ser humano
como um fim em si mesmo, determina que o Estado e a ordem jurídica respeitem a
vida pessoal de cada um, no âmbito da qual desenvolve-se o próprio projeto de
vida da pessoa. Nesse sentido, vale mencionar o magistério de Susana G. Cayuso,
que vincula estritamente o direito de liberdade e de privacidade "al derecho de la persona humana a su propio
proyecto de vida" [05].
No meio dos
operadores do Direito, há confusão terminológica entre os termos privacidade,
intimidade e vida privada. Os estudiosos do tema, todavia, apontam distinções
entre as expressões [06]. José Afonso da Silva emprega a expressão
"privacidade" como gênero, "num sentido genérico e amplo, de modo a abarcar todas essas
manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade, que o texto
constitucional em exame consagrou" [07]. Para o referido
constitucionalista, tal gênero teria como espécies a intimidade, a vida
privada, a honra e a imagem.
Para caracterizar
o conteúdo da intimidade, José Afonso da Silva [08] toma em
empréstimo as definições de René Ariel Dotti, que a define como "a esfera secreta da vida e do indivíduo na
qual este tem o poder legal de evitar os demais", e de Adriano de
Cupis, que a conceitua como "o
modo de ser da pessoa que consiste na exclusão do conhecimento de outrem de
quanto se refira à pessoa mesma". Já para definir vida privada, o
constitucionalista brasileiro divide-a em dois subconjuntos: (a) o segredo da vida privada e (b) a liberdade da vida privada. O
primeiro denota a intangibilidade de informações do campo individual que não é
objeto de interesse público ou social, enquanto que o segundo significa a
própria autodeterminação da vida individual.
Após rápido exame
da legislação, doutrina e prática estrangeira, percebe-se ora a preferência por
expressão equivalente a "intimidade", ora por "vida
privada", ora por "privacidade". Os universos de proteção,
entretanto, são bastante semelhantes, podendo-se alcançar identidade de
situações fáticas juridicamente protegidas. Assim, na realidade
norte-americana, adota-se a expressão
privacy, que inclui o "right
to be alone", ou direito de não ser incomodado na vida pessoal, e
engloba a liberdade da pessoa de tomar sozinha as decisões da esfera de sua
vida privada [09]. Na Alemanha, a proteção da vida privada é
entendida como decorrente do direito constitucional ao livre desenvolvimento da
personalidade, previsto no art. 2º da Lei Fundamental, que se biparte no
direito geral da personalidade e na liberdade geral, segundo a prática do
Tribunal Constitucional Federal Alemão, sendo também trabalhado o referido
direito constitucional pela doutrina clássica alemã dentro da chamada
"teoria do núcleo da personalidade", segundo a qual "haveria camadas ou esferas da personalidade
que mereciam proteção diferenciada, sendo que a esfera íntima deveria ser mais
protegida que, entre outras subdivisões, a esfera privada e a social"
[10]. Em Portugal, o próprio texto da Constituição determina a unificação
conceitual de "intimidade" e "vida privada", pois que
garante a todos a "reserva da
intimidade da vida privada", em seu art. 26, 1º. No mesmo
dispositivo, são mencionadas (e asseguradas) as noções de "identidade
pessoal", "desenvolvimento da personalidade", "nome" e
"imagem", noções estas que são, tanto aqui como alhures, relacionadas
ao conceito amplo de privacidade. Na Espanha, optou o constituinte pela
expressão intimidade em vez de privacidade, garantindo, no art. 18, 1º, da
Constituição, o direito "a la
intimidad personal e familiar", ao lado do direito à imagem e à
honra. Na Argentina, o conceito de privacidade, tomado por Susana Cayuso
[11] como mais amplo que o de intimidade, é relacionado intimamente ao
princípio da liberdade e extraído do art. 19 daquela Carta Constitucional e,
pensamos nós, guarda grande semelhança com a conceituação dogmática brasileira.
Optamos por
acolher o conceito de privacidade como englobante do conceito de intimidade. O
primeiro condiz com o respeito à "vida privada"; o segundo, com a
"vida íntima". Na cultura brasileira, a vida íntima é entendida como
estando muito mais próxima ao núcleo da personalidade do que a vida privada,
que estaria "no meio do caminho" entre a vida íntima e a vida
pública/social. Portanto, sempre que se trabalhar o conceito de privacidade
(conjunto continente), deve se ter como compreendida também a intimidade
(conjunto contido). Sem embargo disso, não se pode negar que a preservação da
intimidade deve ocorrer com mais intensidade que a privacidade, justamente pela
maior proximidade do núcleo da personalidade. É o que propõe a teoria alemã do
núcleo da personalidade, a qual pode ser substancialmente transportada para o
Brasil como decorrente da incidência do princípio da dignidade humana, que
impõe maior proteção aos interesses humanos mais diretamente relacionados a seu
âmago existencial.
Pois bem. Na
questão objeto deste estudo, a privacidade (e a intimidade) deve ser invocada
pela presença de bens pessoais que são sujeitos a apreensões com base em
"presunções de culpabilidade" não acolhidas por lei ou pela
Constituição.
Tomemos a hipótese
mais corrente: a apreensão de notebook
de uso pessoal do passageiro. Nesse bem estão contidas diversas informações
sobre a vida pessoal (quiçá íntima) do dono: endereços, números de telefones
próprios e de pessoas próximas, histórico de navegação pela Internet,
documentos baixados desta rede de comunicação, fotos e vídeos pessoais, cópias
de e-mails íntimos ou mesmo de
trabalhos, arquivos profissionais, estudos próprios e de terceiros, senhas
pessoais, músicas de sua predileção etc. Em verdade, a partir da revolução
digital do final do século XX para o Século XXI, boa parte da vida privada e
íntima de uma pessoa pode ser representada por seu computador pessoal, o qual
guarda informações relevantíssimas do indivíduo e para o indivíduo. O homem
desta década, desde que inserido na era digital, encontra-se arruinado se
perdido – ou apreendido – seu computador de uso pessoal.
Com as devidas
proporções, o mesmo pode ser dito de aparelhos celulares, blackberries e tocadores de MP3 e
MP4, pois todos, de uma forma ou doutra, guardam informações da vida pessoal do
indivíduo, seja agenda de telefones, mensagens de texto, fotos íntimas ou mesmo
músicas que denotam uma parte da personalidade da pessoa.
Perceba-se que os
bens pessoais, mormente os eletrônicos, contêm informações sobre a vida pessoal
que devem ser preservados. Um computador de uso próprio, levado nas mãos do
cidadão, por exemplo, não pode ser tratado da mesma forma que um computador
encaixotado e agrupado com outros cem no depósito de uma empresa. Uma camisa
vestida pelo indivíduo para cobrir seu corpo no momento da apreensão, também
obviamente, não pode receber o mesmo tratamento de um item de vestuário
transportado a tonel pelo comerciante profissional. A diferença entre tais bens
está em seu emprego (uso), o qual, juridicamente, aponta sua natureza,
qualificando-os em bens pessoais ou bens comerciais (mercadorias). Assim
retornamos à assertiva já subscrita em tópico anterior: os bens pessoais não
podem receber o mesmo tratamento dos bens comerciais; caso contrário, a
privacidade do indivíduo pode acabar comprometida, ou ao menos estará em estado
de risco.
Não estamos
defendendo que os bens pessoais (a fim de se proteger a privacidade/intimidade)
não podem sofrer qualquer forma de fiscalização. O que se defende, isto sim, é
que esses bens, sendo lícitos (não se tratando, por exemplo, de produtos
entorpecentes ou resultado de contrafação), somente podem ser apreendidos sob a
acusação de prática de ilicitude (introdução irregular no Brasil, sem pagamento
de tributos) se houver prova desta infração à lei. Não bastam presunções, como
as que incidem sobre o comerciante, de quem se exige a apresentação de nota
fiscal de qualquer mercadoria que esteja em seu poder.
Autoridades
fiscais já sustentaram que não haveria norma alguma que proíba o tratamento
indiscriminado de bens de uso pessoal e bens de finalidade comercial. Cremos
ser esse entendimento equivocado. Não só a legislação ordinária não alberga as
apreensões referidas neste estudo, como a Constituição de nossa República
impede que os bens pessoais do cidadão sejam tratados com o mesmo rigor
fiscalizatório que os bens transportados por empresas. Essa ilação arrima-se
não só na proteção da propriedade, mas também da privacidade (aqui incluída a
intimidade) e da dignidade humana.
Sozinhos, os
fundamentos constitucionais aqui considerados são suficientes para coibir a
apreensão de bens pessoais lícitos em vôos domésticos. Sem embargo disso,
passaremos a analisar a legislação ordinária, a fim de demonstrar que, ainda a
partir dela, não se pode admitir a apreensão de tais bens, sem qualquer prova
de ilicitude. É o que passaremos a demonstrar.
4 ANÁLISE DOS TEXTOS LEGAIS E INFRALEGAIS
A fim de
demonstrar a ilicitude da apreensão de bens pessoais (lícitos e sem finalidade
comercial) em vôos domésticos, analisaremos as disposições legais que são
citadas por autoridades fiscais como fundamentos para tal prática.
As apreensões em
foco são realizadas com forte nos arts. 87 e 102 da Lei 4.502, de 30 de
novembro de 1964. Vejamos o referido texto legal:
"Art. 87. Incorre na pena de perda da mercadoria o proprietário de produtos de procedência estrangeira, encontrados fora da zona fiscal aduaneira,
em qualquer situação ou lugar, nos seguintes casos:
I – quando o produto, tributado ou não, tiver sido introduzido clandestinamente no país ou importado irregular ou
fraudulentamente;
II – quando o produto, sujeito ao impôsto de consumo, estiver desacompanhado da nota de importação ou de
leilão, se em poder do estabelecimento importador ou arrematante, ou de nota fiscal emitida com
obediência a tôdas as exigências desta lei, se em poder de outros, ou ainda,
quando estiver acompanhado de nota fiscal emitida por firma inexistente.
III – quando o produto sujeito ao impôsto de consumo não tiver sido
regularmente registrado nos livros ou fichas de contrôle quantitativo próprios,
ou quando não tiver sido marcado e selado, na forma determinada pela autoridade
competente.
Art. 102. As mercadorias de
procedência estrangeira encontradas nas condições previstas no artigo 87 e nos seus incisos I, II e III,
serão apreendidas, intimando-se imediatamente, o seu
proprietário, possuidor ou detentor a apresentar,
no prazo de 24 horas, os documentos comprobatórios de sua entrada
legal no país ou de seu trânsito regular no território nacional,
lavrando-se de tudo os necessários têrmos.
§ 1º Na hipótese de falta de registro da mercadoria nos livros ou
fichas de contrôle quantitativo próprios, comprovada no ato da apreensão, ou
quando a mercadoria estiver acompanhada de documentação que não atenda às
exigências desta Lei, será dispensada a intimação preliminar prevista neste
artigo.
§ 2º Verificando-se as hipóteses do parágrafo anterior, ou decorrido o
prazo da intimação sem que sejam apresentados os documentos exigidos ou se
êstes não satisfizerem aos requisitos legais, será lavrado o competente auto de
infração, que servirá de base ao processo fiscal para a aplicação da penalidade de perda da mercadoria.
§ 3º Transitada em julgado a decisão condenatória, serão as mercadorias
vendidas em leilão, competindo ao arrematante pagar o impôsto devido" (grifo
nosso).
Segundo o
entendimento de autoridades fiscais, as apreensões realizadas e analisadas no
presente estudo não são realizadas com forte no inciso I do art. 87 da Lei
4.502/52, cujo fundamento seria a entrada irregular de mercadorias no país, que
demanda, conforme subscreve a autoridade fiscal, comprovação deste ilícito. Em
vez disso, as apreensões seriam realizadas com forte no inciso II desse mesmo
artigo, o qual legitimaria a apreensão de produto portado por qualquer pessoa
desde que esta não esteja, no momento, carregando consigo a nota fiscal de
compra.
Ainda segundo a
mesma linha de entendimento, como a legislação faz referência a produtos "encontrados fora da zona fiscal aduaneira",
em qualquer lugar se poderia exigir de qualquer pessoa a apresentação de nota
fiscal de qualquer bem, seja um notebook,
um telefone celular, uma camisa ou uma bolsa, desde que o bem tenha sido
fabricado no estrangeiro. Nesse ponto, seria indiferente se a apreensão se dá
num desembarque de vôo doméstico, numa rodoviária ou num shopping center; qualquer lugar
estaria englobado pela previsão legal, que seria ampla e irrestrita. Entendemos
ser equivocada essa interpretação.
De fato, quanto à
aplicação do inciso I, parece não haver divergência. Trata-se de punição
decorrente de ato ilícito e, para sua aplicação, deve haver prova precisa do
fato, sendo da acusação o ônus probatório, salvo a prova de fatos impeditivos,
inclusive por força do princípio da presunção de licitude das situações
jurídicas e da presunção de boa-fé subjetiva (art. 5º, LV e LVII, da CRFB;
arts. 1202 e 1202 do CC; art. 333 do CPC; art. 156 do CPP; art. 36 da Lei
9.784/99).
O equívoco, porém,
dá-se na aplicação do inciso II do art. 87 da Lei 4.502/64. Esse dispositivo,
ao impor a pena de perdimento a quem não satisfaz a obrigação acessória de
apresentação de nota fiscal, dirige-se ao contribuinte de direito dos impostos
incidentes sobre a internalização de mercadorias no país, em geral pessoas
jurídicas profissionais, mas não ao consumidor final, "contribuinte de
fato" do tributo.
De fato,
apresentar nota fiscal é obrigação acessória, como bem definida no art. 113, §
2º, do Código Tributário Nacional. Ocorre que essa obrigação acessória só pode
ser exigida do contribuinte de direito. É sobre este que recai o ônus de
cumprir obrigações tributárias acessórias, e não sobre o contribuinte de fato,
mero consumidor.
Admitida essa
premissa, devemos observar que o cidadão comum que circula internamente no país
com seus bens pessoais não é contribuinte de direito dos tributos que incidem
sobre o ingresso de mercadorias no país, mas somente contribuinte de fato. A
ele, nessa situação, não se pode exigir o porte constante de todas as notas
fiscais dos bens que leva consigo.
Assim, é
necessário compreender melhor a extensão da expressão "estabelecimentos ou pessoas"
contida no inciso II antes transcrito. A exigência de nota fiscal de
"pessoas", sob pena de perdimento do bem, somente pode ser feita se
essas "pessoas" forem contribuintes de direito do tributo. Logo,
ainda que se conceda à expressão o alcance das pessoas físicas
("pessoas" poderiam ser tanto "pessoas físicas" quanto
"pessoas jurídicas"), como defendem autoridades fiscais, não é a toda
pessoa que se impõe esse ônus, mas somente àquelas que, no momento, agem como
contribuintes de direito.
Explicamos. Quando
um indivíduo, desembarcando de vôo internacional, introduz mercadorias
estrangeiras em solo nacional, age ele como contribuinte de direito, pois que,
nesse momento, está incidindo a norma jurídica matriz do tributo, sendo esse
preciso fato um fato jurídico tributário, a partir do qual nasce uma obrigação
jurídica tributária. Nesse momento, conquanto seja ele somente uma pessoa
física, equipara-se ele, juridicamente, ao ente empresarial profissional, sendo
os bens introduzidos no país tratados juridicamente como mercadorias.
Diferentemente,
quando um cidadão carrega consigo um bem já internalizado no território
nacional, presumindo-se ser sua posse legal e de boa-fé (ou comprou o produto
numa loja do Brasil, ou comprou no exterior e no momento da internalização
pagou os tributos devidos, ou comprou no exterior e beneficiou-se de isenção,
ou mesmo ganhou o bem de um ente querido), não está ele agindo como
contribuinte de direito dos tributos de importação. Está ele, isto sim, em
condição de consumidor, contribuinte meramente de fato do tributo, não de
direito. A essa "pessoa" não pode ser conferido o tratamento de ente
empresarial, impondo-se o ônus de guardar e portar nota fiscal, sob a pena tão
grave de perdimento do bem.
O deslocamento
(físico, não econômico) de bem produzido no exterior mas já internalizado no mercado
nacional é irrelevante para fins tributários, mormente para fins de incidência
dos tributos relativos à importação. A pessoa que carrega um computador
portátil pessoal em uma viagem nacional de negócios, ou de lazer, não está
concretizando qualquer fato jurídico tributário. Como, então, impor-lhe o ônus
de apresentar nota fiscal e a pena de perdimento de seu bem pessoal?
Outrossim, não
podemos deixar de notar que, mesmo em desembarque de vôos internacionais, a
prática da Receita Federal do Brasil consiste em não exigir qualquer nota
fiscal se o bem ali introduzido no país estiver coberto pela faixa de isenção
(hoje, U$S 500,00 – quinhentos dólares). Como conferir a vôo nacional
tratamento mais rigoroso que o concedido a vôo internacional? E mais: mesmo em
vôos internacionais, permite-se que o viajante meramente declare a saída de
computador pessoal, p. ex., para depois voltar a internalizá-lo, por meio de
DST (Declaração de Saída Temporária), sem que lhe seja exigida a apresentação
de nota fiscal de compra. Para tanto, basta declaração de próprio punho. Como é
possível, logo, exigir do viajante nacional algo que mal se exige do viajante
internacional? Cremos que essa disparidade é desarrazoada, desproporcional.
É importante ainda
apontar que a legislação examinada faz referência à pena de perdimento de
"mercadoria". Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, além
de mercancia enquanto negócio ou ocupação profissional, mercadoria, em sentido
forte, significa "qualquer produto suscetível de ser comprado ou
vendido" ou "a carga de gêneros e objetos carregados por terra, mar
ou ar". Da análise morfológica da palavra, percebe-se sua relação com a
palavra "mercado", que é local físico ou lógico em que são realizadas
as trocas econômicas de bens e serviços. Portanto, percebe-se que não é
qualquer bem que se caracteriza como "mercadoria". Para sê-lo, o bem
precisa ser manejado comercialmente.
Dessa forma, não
se pode confundir mercadoria com bem pessoal. Este é portado para a satisfação
das necessidades pessoais do indivíduo. A mercadoria, por sua vez, é
transportada e negociada a fim de satisfazer necessidades econômicas. O bem
pessoal, em regra, é infungível para a pessoa que o utiliza. A mercadoria,
distintamente, é, em geral, fungível, restando de tal forma inviolada e
impessoal que pode ser trocada por outra de mesma espécie sem prejuízo para seu
destinatário.
Essa distinção é
importante porque a legislação aqui abordada (arts. 87 e 102 da Lei 4.502/64)
prevê a apreensão de mercadorias, e não de bens pessoais. Essa constatação é
convergente com nossa constatação anterior de que somente do contribuinte de
direito (em regra, entidade empresarial) se pode exigir a apresentação de nota
fiscal, sob pena de perdimento da coisa. Excepcionalmente, no caso de a pessoa
física ser o contribuinte de direito do bem, introduzindo o bem no território
nacional, por exemplo, por meio de vôo internacional, pode também lhe ser
imputado o mesmo ônus e pena, pois que o bem, nessa hipótese, ainda não está
pessoalizado, sendo ainda fungível, e podendo, no limiar da fronteira
semântica, ser caracterizado como mercadoria.
Por força das
razões acima expostas, o inciso II o art. 87 da Lei 4.502/64 não pode ser
aplicado em face de cidadãos que, de modo lícito e sem intuito comercial,
circulam com bens pessoais no território nacional, inclusive por meio de vôos
domésticos, sem carregar consigo a nota de fiscal de compra. Para que o
referido bem seja apreendido, é necessário que se aplique o inciso I desse
mesmo artigo de lei, que demanda da autoridade fiscal a prova da introdução
irregular do bem estrangeiro no território nacional, ou ao menos indício
fortíssimo nesse sentido, não se podendo presumir a má-fé da posse.
Pelos fundamentos
que apresentamos, entendemos ser também irrelevante fazer menção ao art. 33 do
Decreto-Lei 37/66, o qual preceitua que "a jurisdição dos serviços aduaneiros se estende por todo o território
aduaneiro", incluindo as zonas primária e secundária. De fato, os
serviços aduaneiros, inclusive de fiscalização, podem ser realizados em todo o
território aduaneiro, mas isso não significa que apreensões possam ser
realizadas contra bens pessoais de indivíduos, sem prova de ilicitude na
aquisição ou transporte, e sem estarem esses cidadãos qualificados como
contribuintes de direito, não realizando qualquer fato jurídico tributário.
Por igual motivo,
é irrelevante o apelo feito por autoridades fiscais aos arts. 15 e 18 do
Decreto 4.543/2002, cujo texto é o seguinte:
"Art. 15. O exercício da administração
aduaneira compreende a fiscalização e o controle sobre o comércio exterior,
essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, em todo o território
aduaneiro (Constituição da República, art. 237).
...
Art. 18. As pessoas físicas ou jurídicas exibirão aos Auditores-Fiscais
da Receita Federal, sempre que exigidos, as mercadorias, livros das escritas
fiscal e geral, documentos mantidos em arquivos magnéticos ou assemelhados, e
todos os documentos, em uso ou já arquivados, que forem julgados necessários à
fiscalização, e lhes franquearão os seus estabelecimentos, depósitos e
dependências, bem assim veículos, cofres e outros móveis, a qualquer hora do
dia, ou da noite, se à noite os estabelecimentos estiverem funcionando (Lei no
4.502, de 30 de novembro de 1964, art. 94 e parágrafo único, e Lei no
9.430, de 27 de dezembro de 1996, art. 34).
Parágrafo único. As pessoas físicas ou jurídicas, usuárias de sistema
de processamento de dados, deverão manter documentação técnica completa e
atualizada do sistema, suficiente para possibilitar a sua auditoria, facultada
a manutenção em meio magnético, sem prejuízo da sua emissão gráfica, quando
solicitada (Lei no 9.430, de 1996, art. 38)".
Em primeiro lugar,
estamos diante de decreto, que é texto infralegal, devendo ser entendido e aplicado
conforme o que estatui a lei. Logo, ainda que esse decreto possibilitasse as
apreensões discutidas neste estudo (o que não faz), não poderia ele afrontar a
lei. Mesmo que nesses dispositivos estivesse expresso o comando contido no
artigo seguinte (art. 19), o de que "não tem aplicação quaisquer disposições legais...",
obviamente tratar-se-ia de letra morta.
Em segundo lugar,
os mencionados dispositivos legais foram concebidos tomando em consideração os
contribuintes de direito profissionais – as atuais entidades empresariais. Não
se pode, por exemplo, crer que alguém defenda ser oponível aos cidadãos comuns, in totum, a ordem de que estes
"franquearão os seus
estabelecimentos, depósitos e dependências, bem assim veículos, cofres e outros
móveis, a qualquer hora do dia, ou da noite". Não se pode sequer
imaginar que um decreto assinado em 2002 pudesse ter como finalidade permitir
às autoridades fazendárias fazer algo que nem os juízes podem fazer: entrar no
domicílio de cidadãos, à noite, para realizar fiscalização. Obviamente, não é
esse o propósito do decreto. Sua finalidade é franquear aos respeitáveis
Auditores-Fiscais da Receita Federal o acesso aos estabelecimentos comerciais e
a todos recintos das entidades empresariais e dos empresários, em que se encontrem
mercadorias (não bens pessoais dos cidadãos). Igualmente, não é defensável que
seja oponível ao cidadão comum, mero consumidor, não-empresário, o mandamento
de que as " pessoas físicas ou
jurídicas, usuárias de sistema de processamento de dados, deverão manter
documentação técnica completa e atualizada do sistema, suficiente para
possibilitar a sua auditoria, facultada a manutenção em meio magnético, sem
prejuízo da sua emissão gráfica, quando solicitada". É claro que se
faz essa exigência em face da pessoa empresarial.
Em terceiro lugar,
ainda que se entenda que o Decreto 4.543/2002 se aplica também às pessoas que
não realizam atividade empresarial, o referido decreto deve ser lido em
consonância com os mandamentos legais já examinados da Lei 4.502/64, devendo,
assim, tal aplicação ser excepcional, só alcançando as situações em que o
cidadão comum é contribuinte de direito, realizando fatos jurídicos
tributários. É que, nesse caso, o indivíduo equipara-se a empresário, e o bem é
tido não como pessoal, mas como mercadoria; já o explicamos antes.
Em quarto lugar,
ainda que tais fiscalizações, por mais que sejam rigorosas, alcançassem o
cidadão absolutamente comum, disso não decorreria o poder de apreender seus
bens. Fiscalizar não é sinônimo de apreender. O propósito de se fiscalizar é
justamente encontrar provas concretas (ou, ao menos, indícios fortes) de
ilicitudes. São essas ilicitudes, uma vez provadas, que possibilitarão a
apreensão.
Todas essas mesmas
considerações devem ser dirigidas à aplicação do art. 50 do Decreto-Lei 37/66,
o qual pode ser aplicado a fim de possibilitar a fiscalização da bagagem de
passageiros, em vôos domésticos e internacionais, mas não pode legitimar a
apreensão de bens pessoais, lícitos, em razão da mera ausência de apresentação
de nota fiscal em vôo doméstico. Para haver tal apreensão, é necessário que, da
fiscalização, resultem ao menos indícios fortes de ter o bem sido importado ou
adquirido ilicitamente. O mesmo se diga do art. 60 da Lei 10.593/2002, que trata
das atribuições dos Auditores da Receita Federal do Brasil, atribuições estas
que não são aqui objeto de questionamento.
Enfim, após o
exame de toda a legislação e de todos os atos normativos infralegais
condizentes à quaestio iuris,
não restamos convencidos das razões apresentadas por autoridades fiscais para
apreender bens de cidadãos comuns em razão da não apresentação de nota fiscal
em vôos domésticos.
A seguir,
demonstraremos que a jurisprudência pátria é favorável ao nosso entendimento
aqui exposto.
5 JURISPRUDÊNCIA
A jurisprudência
dos tribunais brasileiros arrima totalmente nosso entendimento.
Em verdade, mesmo
em se tratando de desembarque de vôos internacionais, em que cremos se
legitimar mais ampla intervenção na propriedade do cidadão, a jurisprudência é
contrária à apreensão de bens pessoais, lícitos, individualizados, claramente
sem finalidade comercial.
Deveras, o
Tribunal Regional Federal da 1ª Região tem julgados no sentido de que, ainda
que em desembarque de vôos internacionais, a apreensão de bens pessoais não
pode ocorrer com fundamento em ausência de pagamento de tributo. Citamos
diversos julgados nesse sentido:
"TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. RETENÇÃO
DE MERCADORIA INTEGRANTE DE BAGAGEM DE VIAJANTE PROVENIENTE DO EXTERIOR.
1. É ilegal a apreensão de mercadoria integrante de bagagem de viajante
proveniente do exterior, que excede a cota permitida, com a finalidade de
coagir o contribuinte a recolher os tributos devidos.
Aplicação da Súmula 323 do STF.
2. Remessa oficial improvida" (ROMS 1999.01.00.106051-1/PA, Rel. Juíza Ivani Silva da Luz, DJU
29.5.2003).
"TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. MERCADORIA IMPORTADA. DECEX -
BANCO DO BRASIL. VALOR DAS MERCADORIAS DE ACORDO COM AS NORMAS DO DECEX.
1. A retenção de mercadorias com o objetivo de exigir-se o pagamento de
tributo a maior de que o devido configura-se ato ilegal e abusivo da
autoridade.
2. Remessa oficial improvida" (REO 93.01.22890-4/RR, Rel.
Desembargador Federal Eustáquio Silveira, DJU 25.5.98).
"ADMINISTRATIVO E TRIBUTÁRIO. APREENSÃO DE VEÍCULO SUJEITO A
ISENÇÃO. IPI.
1. Não é legal a apreensão de veículo como meio coercitivo para
pagamento de tributo. Súmula 323, do STF.
2. Remessa oficial improvida" (REO 91.01.12205-3/RO, Relª Juíza
Selene Maria de Almeida, convocada, hoje integrando este Tribunal, DJU
26.11.98).
"TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. APREENSÃO DE MERCADORIAS.
SÚMULA 323 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
1. De acordo com a Súmula 323 do Supremo Tribunal Federal, não se apresenta
como juridicamente admissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo
para pagamento de tributos. Precedentes desta 4ª Turma.
2. A invocação, nas razões de apelação, da aplicação do disposto no
art. 543, do Regimento Aduaneiro, aprovado pelo Decreto nº 91.030/95, não
afasta a incidência in casu da Súmula nº 323, do eg. Supremo Tribunal Federal,
ainda que se considere o disposto no item 1, da Portaria 389/76, do Exmo. Sr.
Ministro da Fazenda.
3. Apelação e remessa oficial improvidas" (AMS 2000.33.00.001665-2/BA,
Rel. Desembargador Federal I’talo Fioravanti Sabo Mendes, DJU 12.3.02).
"ADMINISTRATIVO. APREENSÃO DE MERCADORIA. SÚMULA N. 323 DO STF.
1. É ilegal a
apreensão de mercadoria como forma de coerção para que o contribuinte
complemente o pagamento de tributo, conforme Súmula n. 323 do STF. (REO n.
91.01.12205-3/RO e REO n. 1997.01.00.001127-2/AM)2. Remessa ex officio
improvida
3. Sentença
mantida" (REO 95.01.25460-7/BA, Rel. Juiz Lourival Gonçalves de Oliveira,
DJU 20.4.01).
"ADMINISTRATIVO
- APREENSÃO DE MERCADORIA - LIBERAÇÃO.
1. Considera a
jurisprudência ilegal a apreensão de mercadorias importadas como forma de
coagir o contribuinte a pagar as exações.
2. Prática que
mereceu o repúdio da jurisprudência, cristalizada na Súmula n. 323 do STF.
3. Remessa oficial
improvida" (REO 1997.01.00.051127-2/AM, Relª Juíza Eliana Calmon,
atualmente integrando no STJ, DJU 4.6.98).
Vejamos o que
também decidiu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região:
"MANDADO DE SEGURANÇA. APREENSÃO DE
MERCADORIA. ILEGALIDADE.
A INT-23/95, que tratou das mercadorias integrantes da bagagem de
viajante procedente do exterior, estabeleceu que os bens que excedessem a cota permitida,
estariam sujeitos somente ao pagamento do imposto de importação. A apreensão do
aparelho pelo agente do Fisco configura abuso de autoridade. Ordem concedida.
Sentença confirmada" (AMS 95.04.59859-5/RS, DJU 27.1.99).
Como se pode
perceber, a maioria desses julgados busca apoio na Súmula 323 do Supremo
Tribunal Federal, cujo texto é o seguinte:
"Súmula 323. É inadmissível a apreensão de
mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos".
Ora, se esse
entendimento vale para "mercadorias", como não valerá para "bens
pessoais"? Se é proibida a apreensão como meio de cobrança de tributos,
como será permitida se não se faculta sequer que a pessoa pague o suposto
tributo não-pago para liberá-la?
Não estamos
discutindo neste estudo o acerto da jurisprudência consolidada acima citada.
Vale dizer, não estamos defendendo que não sejam apreendidos bens pessoais no
desembarque de vôos internacionais, em razão da não-apresentação de nota fiscal
por parte do cidadão comum. O que queremos demonstrar é que se, mesmo em vôos
internacionais, a jurisprudência não admite a apreensão de bens pessoais de
origem estrangeira, como aceitar tal apropriação estatal em vôos domésticos, em
que sequer incidem os tributos de importação?
Autoridades
fiscais subsidiam seu entendimento no acórdão do TRF da 4ª Região derivado do
julgamento do AI 2004.04.01.018474-5/RS, decidido em 2004, em que se negou
liminar para a liberação de produtos de informática apreendidos em vôo
doméstico. Ocorre que, naquele julgado, tratava-se de mercadorias, não de bens
pessoais, de propriedade de entidade empresarial, não de cidadãos, havendo sido
constatada finalidade comercial e indícios fortes de irregularidade por parte
das empresas envolvidas. Para que o referido julgado não seja mais citado a fim
de fundamentar aquilo que lá não se acolhe, transcrevemos o voto do Relator, o
Senhor Desembargador Federal Álvaro Eduardo Junqueira:
"O despacho inicial teve o seguinte teor, o
qual mantenho integralmente:
''Examinando os autos, verifico que efetivamente se trata de aquisição
de produtos de informática pelo agravante no mercado interno, São Paulo.
A primeira vista esse fato ensejaria a liberação das mercadorias, uma
vez que o consumidor não está obrigado a verificar a regularidade fiscal de
empresa sujeita à fiscalização fazendária antes de realizar seus negócios.
Nesse sentido, registro precedentes desta Corte - AMS nº 96.04.23439-0/RS, 1T,
Rel. Des. Federal Fábio Rosa, DJ de 18.02.98, p. 485 - e do STJ - RESP nº
79764/DF, 1T, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJU de 17.06.96, p. 21452.
Contudo, na hipótese dos autos, não vislumbro a possibilidade de
liberação imediata das mercadorias
apreendidas pelo fato da nota fiscal ter sido emitida contra o ora agravante
com a observação de que os produtos
nela arrolados foram remetidos em consignação (fl. 26), descaracterizando, portanto a presunção de
boa-fé referida nos precedentes supramencionados.
Ademais, convém ressaltar que as diligências da Receita Federal
revelaram que a empresa que emitiu a
nota fiscal encontra-se em situação irregular, caracterizada pela
omissão na entrega da declaração de rendimentos desde o ano-base de 2000 (fl.
53).
Indefiro, pois, o efeito suspensivo''.
Em face do exposto, nego provimento ao agravo de instrumento" (grifo nosso).
Está claro,
dessarte, que o julgado mencionado não guarda pertinência com o objeto aqui
abordado.
Enfim, pesquisamos
exaustivamente jurisprudência, legislação, doutrina e a nossa consciência, e
não encontramos suporte algum para a apreensão de bens lícitos,
individualizados, de uso pessoal, sem finalidade comercial e de propriedade dos
cidadãos, em embarque e desembarque de vôos domésticos, em razão da mera
ausência de apresentação de nota fiscal do bem importado que leva consigo o
viajante.
6 CONCLUSÃO
Após todas as
considerações constitucionais, legais, jurisprudenciais e de bom senso acima
desenvolvidas, cremos ter demonstrado a ilicitude na apreensão de bens pessoais
(de uso e consumo pessoal), ainda que de origem estrangeira, dos cidadãos que
se encontram em embarque ou desembarque de vôos domésticos, em viagem entre
duas cidades brasileiras, em casos em que não há ilicitude no bem em si (não é
droga ilícita ou produto de contrafação, por exemplo), em que claramente não há
finalidade comercial do bem e em que não há qualquer prova de que o bem tenha
sido introduzido no país de modo ilícito, resultando tal apreensão em
perdimento do bem, caso não apresentada a nota fiscal em 24 horas.
Repita-se: não
objetivamos ver reduzida qualquer atribuição de fiscalização dos servidores de
Auditoria da Receita Federal do Brasil. Não se pretende negar sequer que possam
eles fiscalizar a bagagem e os bens pessoais dos cidadãos que se encontram em
embarque ou desembarque de vôos domésticos. O que se impõe é, tão-somente, que
os bens aqui minuciosamente identificados somente sejam apreendidos caso haja
prova de ilicitude praticada pelo cidadão, ou, ao menos, indício forte nesse
sentido.
Não podemos deixar
de comentar que nem mesmo o Poder Judiciário poderia determinar a apreensão de
um bem sem indício forte de prática de ilicitude por parte do cidadão
prejudicado. Como, então, pode a autoridade fiscal avocar-se de um poder que
não se atribui nem ao Poder Judiciário?
Em suma, pedimos
vênia para repetir a conclusão já enunciada em diversos momentos deste artigo:
a fiscalização fazendária abrange bens pessoais dos cidadãos, estrangeiros ou
não, mas estes bens, estrangeiros ou não, somente podem ser apreendidos pela
autoridade se for comprovada a prática de ilicitude, não podendo estes bens, se
lícitos e não-comerciais, serem aprendidos em razão da mera ausência de
apresentação de nota fiscal de compra.
7 BIBLIOGRAFIA (somente obras citadas)
CAYUSO, Susana. Constitución de la Nación Argentina: Claves para el Estudio Inicial de
la Norma Fundamental. Buenos Aires: La Ley, 2007.
COMPARATO, Fábio
Konder. "A Proteção ao Consumidor na Constituição Brasileira de
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Mercantil, n. 80, pp. 66-75.
MARTINS, Luciana
Mabilia. "O Direito Civil
à Privacidade e à Intimidade". In:
MARTINS-COSTA, Judith (org.). A
Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: RT, 2002.
PROUDHON, Pierre Josesh. ¿Qué es la Propiedad? Investigaciones sobre el Principio del Derecho e
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SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e Relações Privadas, 2ª
ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
SCHWABE, Jürgen. Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal
Constitucional Alemão. Trad. de Beatriz Hennig, Leonardo Martins,
Mariana Bigelli de Carvalho, Tereza Maria de Castro e Vivianne Geraldes
Ferreira. Montevidéu: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005.
SILVA, José Afonso
da. Curso de Direito Constitucional
Positivo, 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
TEPEDINO, Gustavo.
Temas de Direito Civil, 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
Notas
1.
Cf. SARMENTO, Daniel. Direitos
fundamentais e Relações Privadas, 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2006, pp. 90-1.
2.
Cf. TEPEDINO, Gustavo. Temas de
Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 309-20.
3.
Curso de Direito Constitucional Positivo, 23ª ed. São
Paulo: Malheiros, 2004, p. 273. A propósito da importância da distinção entre
bens de consumo (pessoais) e bens de produção (do capital), conferir também
Fábio Konder Comparato: "A Proteção ao Consumidor na Constituição
Brasileira de 1988". In: RDM 80, pp. 66-75.
4.
¿Qué
es la Propiedad? Investigaciones sobre el Principio del Derecho e del Gobierno. Trad. A. Gómez Pinilla. Buenos Aires: Libros de
Anarres, 2005, p. 53.
5.
Constitución
de la Nación Argentina: Claves para el Estudio Inicial de la Norma Fundamental. Buenos Aires: La Ley, 2007, p. 125.
6.
Cf. MARTINS, Luciana Mabilia.
"O Direito Civil à Privacidade e à Intimidade". In: MARTINS-COSTA, Judith (org.). A Reconstrução do Direito Privado. São
Paulo: RT, 2002, pp. 343-4.
7.
Ob. cit., p. 205.
8.
Ob. cit., p. 206.
9.
Cf. SILVA, José Afonso. Ob. cit., p. 205.
10.
Cf. SCHWABE, Jürgen. Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Trad. de Beatriz
Hennig, Leonardo Martins, Mariana Bigelli de Carvalho, Tereza Maria de Castro e
Vivianne Geraldes Ferreira. Montevidéu:
Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005, pp. 187-8.
11.Ob. cit., p. 125.
* Procurador da República, procurador regional
dos Direitos do Cidadão do Acre, ex-procurador da Fazenda Nacional
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11924&p=1
Acesso em: 10 nov.
2008.