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Hélio Sabino de Sá*
A Constituição
Federal de 1988, denominada Constituição Cidadã, incorporou em seus artigos 150
a 152 salvaguardas aos cidadãos contra o poder do Estado Brasileiro de lançar
mão de parte do patrimônio, das rendas e receitas desses para o custeio de suas
despesas e investimentos.
Tais anteparos,
denominados "limitações constitucionais ao poder de tributar", já
existentes no sistema constitucional anterior, não foram trazidos ao sistema
constitucional brasileiro como idéia original; decorreram, na verdade, de longa
depuração e lapidação histórica, feita nos embates políticos do povo em busca
do respeito aos direitos necessários à digna existência do homem em sociedade.
Consta que essa
limitação ao poder estatal de tributar teve como marco na história
constitucional a imposição da Magna Carta pelos Barões Ingleses ao rei João,
dito João sem terras, em 1215, in
verbis:
Carta magna das liberdades, ou Concórdia entre o Rei João e os Barões
para a outorga das liberdades da Igreja e do rei inglês - foi a declaração
solene que o rei João da Inglaterra, dito João Sem-Terra, assinou, em 15 de
junho de 1215, perante o alto clero e os barões do reino.
I - Não lançaremos taxas ou tributos sem o consentimento do conselho
geral do reino (commue concilium regni), a não ser para resgate da nossa
pessoa, para armar cavaleiro nosso filho mais velho e para celebrar, mas uma
única vez, o casamento da nossa filha mais velha; e esses tributos não
excederão limites razoáveis. De igual maneira se procederá quanto aos impostos
da cidade de Londres. [01]
Não obstante
estejam consolidadas as fronteiras do poder de tributar dentro do Estado de
Direito vigente, o legislador constitucional brasileiro deixou de estatuir
limites ao poder estatal de criar e impor aos contribuintes, pessoas físicas,
jurídicas ou equiparadas a essas últimas, deveres formais consubstanciados em
obrigações tributárias acessórias.
Assim, sem
encontrar barreiras, os Executivos Federal, Estadual, Distrital e Municipal
editam normas criando os mais diversos tipos de obrigações acessórias, muitas
delas requerendo as mesmas informações já prestadas às outras Fazendas
Públicas, gerando enorme custo administrativo e sujeitando os contribuintes a
pesadas sanções pecuniárias em razão do descumprimento do dever formal criado.
Isso não bastasse,
o § 5º do art. 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta
de 1988 instituiu o Fenômeno da Recepção, pelo qual, vigente o novo sistema
tributário, ficou assegurada a aplicação das normas tributárias a ela
antecedentes, desde que não conflitantes com seu texto.
Desse modo,
restaram recepcionados os §§ 2º e 3º do art. 113 e o art. 115 do CTN, in verbis:
Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.
§ 2º A obrigação acessória decorrente da legislação tributária e tem
por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse
da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.
§ 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância,
converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária.
Art. 115. Fato gerador da obrigação acessória é qualquer situação que,
na forma da legislação aplicável, impõe a prática ou a abstenção de ato que não
configure obrigação principal. [02]
Dos dispositivos
colacionados, extrai-se que, no Brasil, o dever formal ou acessório de prestar
ou franquear o acesso a informações de interesse da administração tributária
pode ser instituído por qualquer das espécies normativas previstas em direito e
pertencentes ao gênero "legislação tributária"; ou seja, não se trata
de obrigação cuja criação fica adstrita às leis tributárias em sentido formal,
podendo ser criada por leis tributárias em sentido material (notificações
assinadas por autoridades competentes, circulares normativas, comunicados
técnicos, instruções normativas, portarias, decretos etc.). [03]
Disso deflui que o
menor dos atos normativos de natureza administrativo-tributária pode,
validamente, instituir o dever formal de prestar ou franquear a obtenção pelo
Fisco de informações que não sejam constitucionalmente protegidas e instituir
apenações pecuniárias para os casos de descumprimento dessa obrigação.
Ocorre que todo
poder ilimitado quase sempre deságua em acomodação ou em excessos perpetrados
pelos detentores de tal mandato -- no caso, as Fazendas Públicas Federal,
Estaduais, Distrital e Municipais.
Devido ao
comodismo estatal, exigem-se dos contribuintes informações de toda ordem,
muitas das quais poderiam ser facilmente extraídas pelo trabalho de cruzamento
de dados já disponíveis em seus bancos informativos, bastando para tanto: 1) a
integração das máquinas das fazendas públicas, dos seus cadastros e bancos de
dados, adotando-se a sintonia fina na troca de informações; 2) modernização dos
seus parques informativos (hardware), dos seus sistemas (software) e dos seus
métodos de trabalho (melhor treinamento e gestão de pessoal).
O excesso
perpetrado pelas formas revela-se por várias medidas, a saber:
I – Pela edição de
número desarrazoado de normas de todos os quilates e matizes que exigem dos
contribuintes o cumprimento dos mais diversos tipos de deveres formais, gerando
um custo excessivo de contratação de serviços contábeis e de orientação
jurídica destinados, quase que exclusivamente, ao acompanhamento e ao
cumprimento das dezenas de obrigações acessórias a que estão sujeitos os
contribuintes brasileiros. Há casos em que os serviços contábeis contratados
para a apuração do imposto e para a prestação de informações de interesse do
Fisco têm um custo maior que o próprio imposto a pagar, ou seja, é mais caro ao
contribuinte cumprir as obrigações acessórias do que a obrigação principal de
pagar o imposto devido.
II – Pela imposição
de sanções pecuniárias tão gravosas que podem inviabilizar um empreendimento
produtivo – como exemplo, cite-se a obrigação de apresentação da Declaração de
Informações sobre Atividade Imobiliária – DIMOB.
"A pessoa jurídica que deixar de apresentar a Dimob no prazo
estabelecido, ou que apresentá-la com incorreções ou omissões, sujeitar-se-á às
seguintes multas:
I - R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por mês-calendário, no caso de falta
de entrega da Declaração ou de entrega após o prazo;
II - cinco por cento, não inferior a R$ 100,00 (cem reais), do valor
das transações comerciais, no caso de informação omitida, inexata ou
incompleta". [04]
Essas imposições
de obrigações tributárias acessórias sem limites asfixiam os pequenos
empreendimentos, causam aumento da informalidade e do Custo Brasil, que, por
seu turno, afeta gravemente a competitividade das empresas de porte médio e
grande quanto ao acesso aos mercados internacionais.
É bem verdade que
o sistema tributário da Constituição de 1988, no qual são previstas
competências impositivas de obrigações principais, necessita de urgente
reformulação, tal qual foi feito pela Emenda Constitucional n. 18 de 1965
[05], mas nenhuma reforma tributária terá sucesso se não forem
instituídas limitações ao poder de criar obrigações formais, uma vez que são
essas que consomem tempo e tornam a administração das obrigações de natureza
tributária onerosa aos empreendedores.
Há um estudo
demonstrando que o Brasil é o campeão mundial no gasto de tempo com cumprimento
de obrigações acessórias. Segundo o mesmo estudo, esse esforço pode consumir
até 5% da receita bruta de um empreendimento e inviabilizar a competição pelo
mercado externo em ramos cujas margens de lucro são baixas.
A realização dos procedimentos tributários solicitados por instituições
como Receita Federal, Previdência Social, secretarias das fazendas estaduais e
municipais, consome atualmente 5% da receita bruta das empresas e cerca de 108
dias por ano. O levantamento foi feito pelo especialista em soluções fiscais e diretor
da empresa de softwares Lumen IT, Werner Dietschi, com 120 empresários em todo
o País. [06]
Nesse cenário de
exigências desenfreadas de informações e outras prestações formais, deu-se um
primeiro passo rumo à simplificação com a publicação da Lei Complementar nº 123
de 2006, que, em seus artigos 25 e 26, estatui, como deveres acessórios das
Microempresas e Empresas de Pequeno Porte enquadradas no Estatuto, os
seguintes:
a)Entrega de
Declaração anual declaração única e simplificada de informações socioeconômicas
e fiscais;
b)Emitir documento
fiscal de venda ou prestação de serviço, admitindo-se para empreendimentos com
faturamento anual de até R$ 36.000,00 a requisição gratuita de Notas Fiscais
Avulsas nas Fazendas Estaduais ou municipais, conforme o caso;
c)Manter em boa
ordem e guarda os documentos que fundamentaram a apuração dos impostos e
contribuições devidos e o cumprimento das obrigações acessórias a que se refere
o art. 25 desta Lei Complementar enquanto não decorrido o prazo decadencial e
não prescritas eventuais ações que lhes sejam pertinentes;
d)Escriturar o
livro caixa, se faturar mais de R$ 36.000,00 por ano;
e)Manter controle
simplificado de vendas e/ou prestação de serviços, independente de emissão de
Notas Fiscais, podendo esse demonstrativo ser extraído diretamente do controle
de caixa, dos blocos de pedidos, caderno de controle de cheques pré-datados ou
espelhado nas notas fiscais avulsas gratuitas anteriormente mencionadas.
Porém, mesmo essa
norma simplificadora não conseguiu se livrar por completo dos ranços do
passado. Em diversos dispositivos desse Estatuto, além dos artigos 25 e 26 já
mencionados, abrem-se brechas para imposições de obrigações acessórias já
existentes no sistema anterior e para a imposições de novas obrigações formais,
a saber:
1) Art. 26 - § 3o
A exigência de declaração única a que se refere o caput do art. 25 dessa lei
Complementar não desobriga a prestação de informações relativas a terceiros.
Exemplo: Declaração de Informações sobre Atividade Imobiliária – DIMOB,
Declarações de Retenções de ISS, de retenções IRPF - DIRF etc.
2) Art. 26 - § 4o
As microempresas e empresas de pequeno porte referidas no § 2o
deste artigo ficam sujeitas a outras obrigações acessórias a serem
estabelecidas pelo Comitê Gestor, com características nacionalmente uniformes,
vedado o estabelecimento de regras unilaterais pelas unidades políticas
partícipes do sistema.
3) Art. 52. O disposto no art. 51 dessa lei
complementar não dispensa as microempresas e as empresas de pequeno porte dos
seguintes procedimentos:
III – apresentação
da Guia de Recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e Informações
à Previdência Social – GFIP;
IV – apresentação
das Relações Anuais de Empregados e da Relação Anual de Informações Sociais –
RAIS e do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados – CAGED.
Nesse ponto,
incorreu o legislador em contradição, pois a simples manutenção do dever formal
de apresentar as declarações citadas no art. 52 retrocitado gera custo
adicional ao pequeno empreendedor, pois, em razão da complexidade de
preenchimento das declarações e de sua periodicidade de entrega, há que se
contar com a assistência de um profissional contábil, sob pena de o empresário
ter que abandonar seus afazeres para se dedicar ao cumprimento de obrigações
acessórias, o que por certo não é possível.
Assim, por todo
exposto, conclui-se que urge a transformação da obrigação tributária acessória
em obrigação decorrente de lei em sentido formal e instituída segundo limites
constitucionais preestabelecidos.
Se no passado
obteve-se, a duras penas, a conquista das "limitações constitucionais ao poder de tributar", no presente
deve-se buscar, urgentemente, a imposição de "limitações constitucionais ao dever de informar".
Notas
01 Disponível em:
http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Doc_Histo/texto/Magna_Carta.html.
Acesso em 1 mai 2007.
02 Disponível em:
http://www.receita.fazenda.gov.br/Legislacao/CodTributNaci/ctn.htm. Acesso em:
1 mai 2007.
03 Entende-se por
Lei em sentido formal a votada em casa legislativa competente e segundo o rito
próprio e por lei em sentido material qualquer ato normativo editado por
autoridade competente segunda as formalidades prescritas em Direito
Adminstrativo.
04 Pergunta sobre a
Declaração Informações sobre Atividades Imobiliária – DIMOB. Disponível em:
http://www.receita.fazenda.gov.br/principal/Informacoes/InfoDeclara/declaraPJ.htm.
Acesso em: 6 mai. 2007.
05 Antes da reforma
tributária introduzida pela Emenda Constitu-cional nº 18, de 1º de dezembro de
1965**, ou seja, no regime da Constituição de 1946, o sistema impositivo
tributário se tinha completamente deteriorado.
06 Burocracia emperra o avanço da economia. Jornal
do Comércio.Economia - 18 de abril de 2007. Disponível em:
http://www.ibracon.com.br/noticias/news.asp?identificador=2610. Acesso em 18
abr. 2007.
* Servidor público em Brasília (DF)
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10899
Acesso em: 14 out.
2008.