® BuscaLegis.ccj.ufsc.br

 

 

A inconstitucionalidade e a ilegalidade do depósito para recurso administrativo em matéria previdenciária.

Art. 23 da Portaria nº 10.875/2007 da Secretaria da Receita Federal do Brasil

 

 

Denis Hideyuki Tokura*

 

 

1. Introdução

Em 24 de agosto de 2007, foi publicada a Portaria nº. 10.875, de 16 de agosto de 2007, da Secretaria da Receita Federal do Brasil ("RFB"), através da qual ficou estabelecida a disciplina concernente aos processos administrativos fiscais referentes às contribuições previdenciárias antigamente administradas pela Secretaria da Receita Previdenciária ("SRP").

Como é de pleno conhecimento, a antiga Secretaria da Receita Federal ("SRF") e a SRP foram extintas, criando-se em seus lugares a chamada Secretaria da Receita Federal do Brasil, a qual passou a administrar também as contribuições previdenciárias previstas no artigo 11, parágrafo único, alíneas a, b e c, da Lei nº. 8.212/91 de 24 de julho de 1991.

O reflexo imediato dessa unificação foi o de atribuir competência ao 2º Conselho de Contribuintes para o julgamento dos processos administrativos fiscais concernentes às referidas contribuições, papel este que era atribuído anteriormente ao Conselho de Recursos da Previdência Social ("CRPS"). Quanto a este conselho remanesce, atualmente, apenas o julgamento de matérias relativas aos benefícios concedidos pelo INSS.

Como dito acima, com o intuito de regulamentar o trâmite desses processos junto ao Conselho de Contribuintes, dentre outras disposições, a RFB acabou por editar a Portaria nº. 10.875/2007, cujo rito é bastante semelhante ao do já existente para os processos administrativos fiscais relativos aos tributos anteriormente administrados pela SRF.

Contudo, chamamos a atenção quanto à flagrante inconstitucionalidade e ilegalidade levada a efeito pelo artigo 23 - que será o objeto do presente estudo - da mencionada portaria, no qual foi reinstituída a exigência do depósito prévio de 30% do valor do crédito tributário para a interposição de recurso administrativo onde se discute matéria previdenciária, a despeito das declarações de inconstitucionalidade proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em março deste ano, tanto em controle concentrado [01] para os tributos administrados pela antiga SRF (especificamente quanto ao arrolamento de bens e direitos), quanto em controle difuso concernente às contribuições para o custeio da Seguridade Social previstas na Lei nº. 8.212/91 [02].

Diante disso, o presente estudo terá como escopo demonstrar os vícios de inconstitucionalidade e ilegalidade que permeiam o artigo 23 da Portaria nº. 10.875/07, o qual condiciona a admissibilidade do recurso administrativo, que trata de contribuições previdenciárias, ao depósito prévio de 30% do valor do crédito tributário discutido, através de uma análise sistemática da Constituição Federal e do Código Tributário Nacional, bem como em relação com o que já foi definitivamente decidido pelo Supremo Tribunal Federal acerca da questão.


2. Histórico legislativo e jurisprudencial

O depósito prévio recursal de 30% para admissibilidade de recurso administrativo em matéria previdenciária [03] foi instituído pelo artigo 126, parágrafos 1º e 2º, da Lei nº. 8.213/91, de 24 de julho de 1991 [04], com redação dada pelo artigo 10 da Lei nº. 9.639, de 25 de maio de 1998, originária da Medida Provisória nº. 1.608-14/1998.

Com a instituição de referido depósito pelo diploma legal acima mencionado, iniciou-se verdadeira batalha judicial entre a administração e os contribuintes acerca da constitucionalidade ou não do artigo 126, parágrafos 1º e 2º.

Fruto dessa discussão foi o julgamento do Recurso Extraordinário nº. 389.383-1/SP, de Relatoria do Ministro Marco Aurélio, onde o Plenário do Supremo Tribunal Federal, após longa discussão e inúmeros pedidos de vista dos Ministros desde a distribuição da ação junto ao tribunal em 2003, por maioria de votos, vencido o Ministro Sepúlveda Pertence, declarou a inconstitucionalidade do artigo 126, parágrafos 1º e 2º, da Lei nº. 8213/91, jogando a "pá de cal" sobre a questão a favor do contribuinte, na esteira da decisão proferida na ADIN nº. 1.976-7/DF, onde houve a declaração de inconstitucionalidade do arrolamento de bens e direitos de tributos administrados pela extinta SRF.

Ocorre que, a despeito do que foi decidido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, a RFB acabou por editar a Portaria nº. 10.875/07, que em seu artigo 23 [05] voltou a exigir dos contribuintes o depósito prévio de 30% para admissibilidade de recurso administrativo em matéria previdenciária. As autoridades administrativas, sem qualquer base legal, calcam a exigência sob o argumento de que a decisão proferida pelo STF, por ter sido em controle difuso, somente surtirá efeito entre as partes, de modo que irão aplicar indistintamente a disposição constante no referido artigo a todos os demais contribuintes.

Porém, conforme será demonstrado, diversos são os fundamentos de inconstitucionalidade e ilegalidade que rechaçam qualquer argumento em defesa da aplicação do artigo 23 da Portaria RFB nº. 10.875/07.


3 – A inconstitucionalidade formal do artigo 23 da Portaria RFB nº. 10.875/07 - Cabe ao Congresso Nacional a competência privativa para legislar sobre o processo administrativo fiscal, nos termos do que dispõe a Constituição Federal

Como é sabido, constitui um dos princípios basilares do sistema constitucional o principio da legalidade, preconizado no artigo 5º, inciso II, da CF, determinando que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".

Diante da importância do referido princípio, temos que o mesmo se demonstra evidente em diversos dispositivos na Constituição Federal (v.g. artigo 5º, inciso VII, XL, XLI, artigo 7º, inciso IV, artigo 12, inciso II, alínea a, dentre outros artigos).

E, como não poderia deixar de ser, o princípio da legalidade do artigo 5º, inciso II, da CF, se desdobra quando nos deparamos com questões atinentes à matéria tributária, sendo tal princípio tratado no artigo 150, inciso I, da CF.

Cleide Previtalli Cais [06], ao analisar o princípio da legalidade em matéria tributária, discorre com a precisão que lhe é peculiar que:

"O princípio da legalidade é fundamental ao Estado de Direito, tendo origem no direito tributário em caráter consuetudinário, sofrendo modificações ao longo do tempo diante das influências das posturas político-filosóficas do Estado de Direito. A partir do século XI, fixou-se nos povos da Europa a idéia de que os tributos somente poderiam ser cobrados caso criados por lei, tanto que o artigo XII da Magna Carta estabelecia que "no scutage or aid shall be imposed on our kingdom unless by the commom conunsel of our kingdom", consagrando que já estava consuetudinariamente imposta (...)".

Feitas essas considerações iniciais, temos que não são necessárias maiores digressões ao afirmarmos que, quanto à regulamentação atinente ao processo administrativo fiscal, por se desdobrar em questões relacionadas à matéria tributária, também haverá de ser observado o princípio da legalidade, conforme determina o artigo 150, inciso I, da Constituição Federal. Além disso, ao adentrarmos mais especificamente na questão, podemos inferir também que, consoante preceitua o artigo 22, inciso I, da Constituição Federal, compete privativamente à União, através do Congresso Nacional, legislar sobre direito processual.

Com efeito, não compete à Portaria nº. 10.875/07, editada por membros do Poder Executivo, criar regras a respeito de direito processual, especificamente em matéria tributária – que, no caso ora em análise, é a exigência de depósito administrativo de 30% para admissibilidade de recurso administrativo em matéria previdenciária [07]. Os atos normativos expedidos por aquelas autoridades possuem apenas o condão de regulamentar o que prevê a legislação ordinária, a qual, na hipótese em estudo, foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Desse modo, não há mais no Ordenamento qualquer lei que dê suporte jurídico à exigência prevista na indigitada portaria. A respeito do caráter regulamentar do ato normativo, melhor análise será realizada no tópico seguinte.

Ademais, não se pode ignorar que nos termos do artigo 37 da Constituição Federal, toda a atividade levada a efeito pela administração pública está plenamente vinculada à lei, o que impede que as autoridades pertencentes ao Poder Executivo incorram em inovações no Ordenamento Jurídico sem respeitar os ditames previstos em lei!

A respeito da questão já se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento do MS nº. 8810-DF, publicado no DJU de 6 de outubro de 2003. Naquela oportunidade, estava em discussão a ilegalidade da interposição de recurso hierárquico pela Procuradoria da Fazenda Nacional ao Ministro da Fazenda face à decisão regular proferida pelo Conselho de Contribuintes. Vejamos o trecho do voto do Ministro Luiz Fux:

"A Constituição Federal estabelece a competência privativa do Congresso Nacional para legislar em matéria de processo administrativo federal, de modo que não pode o Sr. Ministro de Estado conhecer e determinar o processamento de recurso não previsto em lei (mais especificamente na legislação do PAF), sob pena de adentrar no campo de competência reservado ao Poder Legislativo, além de usurpar competência da CSRF. De igual forma, não poderá o Poder Judiciário validar essa usurpação de competência. "o devido processo legal – CF, art. 5º, LIV – exerce-se de conformidade com a lei".

Como se pode verificar, muito embora o assunto tratado fosse outro, temos que os fundamentos ali utilizados são plenamente aplicáveis ao caso ora em estudo, já que o Ministro Luiz Fux reconheceu que membro do Poder Executivo, qual seja o Ministro da Fazenda não pode invadir competência reservada ao Poder Legislativo, ao receber recurso que não possui qualquer previsão legal. Do mesmo modo, não pode o Poder Executivo legislar sobre a admissibilidade de recurso administrativo ao exigir depósito de 30% do valor do crédito tributário, por também invadir competência privativa do Congresso Nacional, já que a matéria, por possuir natureza processual, está submetida à reserva legal.

Sendo assim, verifica-se de forma irrefutável a inconstitucionalidade formal do artigo 23 da Portaria RFB nº. 10.875/07, posto que cabe à lei regular sobre direito processual, leia-se processos administrativos fiscais, consoante determinação constante na Constituição Federal (artigo 22, inciso I), cabendo às normas hierarquicamente inferiores apenas regulamentar as disposições ali contidas.

Além de tudo o que foi exposto até então, o dispositivo em foco ainda contraria as normas infraconstitucionais em vigor, conforme será adiante aduzido.


4 – Ilegalidade do artigo 23 da Portaria nº. 10.875/07 face ao Código Tributário Nacional

O Código Tributário Nacional trata do processo administrativo fiscal em consonância com os princípios constitucionais, de modo que o legislador complementar também tomou o especial cuidado de reservar à lei a regulamentação de algumas matérias, posto ser a legalidade estrita em matéria tributária garantia fundamental, prevista no artigo 150, inciso I, da Constituição Federal, sendo a mesma auto-aplicável [08].

O argumento acima expendido tem a sua razão de ser quando nos deparamos com o artigo 97, inciso VI, do Código Tributário Nacional. Veja-se:

"Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:

(...)

VI – as hipótese de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades.

(...)".

Pela leitura do indigitado dispositivo do CTN, infere-se que cabe à lei, dentre outras hipóteses, a devida competência para legislar acerca da extinção do crédito tributário.

Remetendo-nos ao artigo 156 do CTN, verificamos em seu inciso IX que "a decisão administrativa irreformável" constitui uma das modalidades de extinção do crédito tributário.

Ademais, o mesmo Código Tributário Nacional, ao enumerar as hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, de forma clara, determina que somente a lei pode tratar sobre recursos administrativos [09].

Pela exegese do dispositivo do CTN, verifica-se, de forma iniludível, que a suspensão da exigibilidade do crédito tributário com a interposição de recurso administrativo obedecerá sempre aos termos das leis reguladoras do processo administrativo fiscal.

Desse modo, podemos afirmar com segurança que, também nos termos do Código Tributário Nacional, somente a lei pode regular questões atinentes a decisões e recursos administrativos em processo administrativo fiscal, pela análise sistemática dos artigos 97, inciso VI, artigo 151, inciso III e 156, inciso IX.

Nessa esteira de raciocínio, cumpre trazer à discussão mais uma ilegalidade perpetrada pela Portaria RFB nº. 10.875/07: segundo o seu artigo 38 [10], todas as leis ordinárias que regulam matérias atinentes a direito processual, as quais são hierarquicamente superiores à Portaria (Decreto 70.235/72, Lei 9.784/99 e Lei 5.689/73 (CPC), terão apenas aplicação subsidiária e sucessiva em relação aos dispositivos contidos na referida portaria, o que valer dizer que a mesma se sobrepõe a qualquer limite previsto em lei, ofendendo claramente os princípios da legalidade e da hierarquia das leis.

Com efeito, vale dizer que, pela exegese do artigo 38 da Portaria RFB nº. 10.875/07, podemos concluir que o controle de legalidade será exercido pela própria autoridade administrativa, não existindo qualquer motivação decorrente de lei diante dos atos praticados, mormente quanto ao que dispõe o artigo 23 da referida portaria, de modo que o dispositivo em análise possui alta carga de arbitrariedade, afrontando o que preconiza o artigo 2º da Lei nº. 9.784/99, o qual estabelece que os princípios gerais do processo administrativo fiscal no âmbito federal, obedecerão estritamente ao princípio da legalidade e ao Direito.

Diante de tal quadro, não há como se admitir, dentro do Estado Democrático de Direito, a edição de disposição que afronta de forma veemente princípios consagrados na Constituição Federal, ao regular matéria que deve observar estritamente o princípio da legalidade e a hierarquia das leis. Apoiar tamanha arbitrariedade dará margem, em futuro próximo, a entendimento de que normas complementares às leis poderão se sobrepor à própria Constituição Federal.

Portanto, pelas razões acima expostas, o artigo 23 da Portaria RFB nº. 10.875/07, ao regulamentar a questão atinente à exigência do depósito prévio recursal de 30% em matéria previdenciária, contrariando a Constituição Federal (artigo 22, inciso I), do mesmo modo, incorreu em flagrante ilegalidade face ao Código Tributário Nacional, bem como ao princípio da hierarquia das leis, corporificado no artigo 38, o qual dispõe que leis de hierarquia superior possuirão apenas aplicação sucessiva e subsidiária (v.g. Lei nº. 9.784/99).

Outrossim, nos termos do artigo 100, inciso I, do Código Tributário Nacional, a Portaria RFB nº. 10.875/07 é ato normativo de natureza complementar às leis, o qual é expedido pela autoridade administrativa competente.

Nesse sentido preceitua Leandro Paulsen [11]: "os atos administrativos normativos a que se refere o CTN são, basicamente, as instruções normativas e as portarias, bastante utilizadas em matéria tributária".

Pois bem. Pelo fato de a Portaria RFB nº. 10.875/07 possuir natureza de norma complementar das leis, conforme brevemente suscitado no tópico anterior, deverá a mesma obedecer aos ditames da legislação de regência ou entes primários [12] (leis ou medidas provisórias), vinculando-se a um nexo de acessoriedade e de dependência.

Vale dizer que, se determinada instrução normativa ou portaria, editada com fundamento no artigo 100, inciso I, do CTN, vier a positivar em suas disposições circunstâncias que possam romper a hierarquia normativa que deverá ser observada com relação aos entes primários, estará então eivada de vícios de ilegalidade.

A situação ora em estudo depara-se justamente com esse vício de ilegalidade, porquanto o artigo 23 da Portaria RFB nº. 10.875/07, além de regular matéria reservada à lei, não possui qualquer suporte jurídico com os chamados atos primários, em decorrência da declaração de inconstitucionalidade do artigo 126, parágrafos 1º e 2º, da Lei nº. 8.213/91, proferida pelo Supremo Tribunal Federal no RE nº. 389.383-1/SP.

Não há, portanto, fundamento válido que sustente a exigência do depósito prévio para admissibilidade de recurso administrativo em matéria previdenciária perpetrada pelo artigo 23 da Portaria RFB nº. 10.875/07, posto ser o veículo normativo inadequado à finalidade pretendida pela administração pública, além de referida portaria não mais possuir suporte jurídico de validade em razão da declaração de inconstitucionalidade da legislação ordinária que previa a necessidade da garantia recursal.


5 – A inconstitucionalidade do artigo 23 da Portaria nº. 10.875/07, consoante os fundamentos articulados no julgamento do RE nº. 389.383-1/SP.

Nada obstante todos os vícios de ilegalidade e de inconstitucionalidade formal existentes no artigo 23 da Portaria nº. 10.875/07, temos que, caso referido artigo fosse introduzido no Ordenamento Jurídico através de uma lei ordinária, ainda assim o mesmo esbarraria na evidente inconstitucionalidade da questão relativa ao depósito prévio para admissibilidade de recurso administrativo em matéria previdenciária.

A afirmação acima possui a sua razão de ser, posto que conforme anteriormente mencionado, o Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do RE nº. 389.383-1/SP, em 28 de março de 2007, pacificou definitivamente a questão ao declarar a inconstitucionalidade do artigo 126, parágrafos 1º e 2º, da Lei nº. 8.213/91.

Quanto aos fundamentos da referida decisão, não são necessários maiores esclarecimentos, já que todos os seus termos já foram amplamente divulgados junto à comunidade jurídica tributária.

Contudo, vale destacar que, antes do referido julgado proferido pelo STF, a mesma corte por diversas vezes havia se deparado com a questão da exigência do depósito prévio [13], de modo que em todas as oportunidades firmou entendimento pela constitucionalidade da exigência. A declaração de inconstitucionalidade, levada a efeito no RE nº. 389.383-1, foi uma importante vitória do contribuinte, posto que reverteu questão que já estava pacificada junto à Corte Suprema – sendo que não havia, até então, perspectiva factível quanto à mudança de posicionamento por aquele tribunal.

De fato, a decisão demonstrou que a base do Estado Democrático de Direito corporificada na figura da Corte Suprema ainda está sendo respeitada, de modo a reprimir atos vazios de juridicidade e arbitrários perpetrados pela administração pública.

Nesse sentido, destacamos o trecho do voto do Ministro Joaquim Barbosa proferido no RE 389.383-1 transcrito abaixo. Veja-se:

"A construção da democracia e de um Estado Democrático de Direito exige da Administração Pública, antes de mais nada, respeito ao princípio da legalidade, quer em juízo, quer nos procedimentos internos. Impossibilitar ou inviabilizar o recurso na via administrativa equivale a impedir que a própria Administração Pública revise um ato administrativo porventura ilícito. A realização do procedimento administrativo como concretização do princípio democrático e do princípio da legalidade fica tolhida, dada a natural dificuldade – para não dizer autocontenção – da Administração em revisar os próprios atos".

Portanto, diante dos fundamentos expostos pela Corte Suprema na declaração de inconstitucionalidade da exigência do depósito prévio recursal, previsto no artigo 126, parágrafos 1º e 2º, da Lei nº. 8.213/91, podemos afirmar com toda a segurança que, além de todos os vícios de inconstitucionalidade formal e ilegalidades existentes no artigo 23 da Portaria RFB nº. 10.875/07, temos, ainda, que referido dispositivo irremediavelmente, em sua origem, nasceu inconstitucional, e que fatalmente terá a sua declaração de inconstitucionalidade decretada pelo Poder Judiciário em razão das demandas que serão ajuizadas pelos contribuintes.


6 – Críticas

Conforme discorrido no início do presente estudo, tanto a Secretaria da Receita Federal como a Secretária da Receita Previdenciária foram extintas, de modo que foi instituída a atual Secretaria da Receita Federal do Brasil, que, além de continuar a administrar os tributos que eram de competência da antiga SRF, passou também a administrar as contribuições previdenciárias da Lei nº. 8.212/91, cuja competência pertencia à SRP.

Como se vê, todo o regime de administração tributária de tributos de competência da União Federal, tais como a direção, supervisão, orientação, coordenação e execução de serviços de fiscalização, lançamento, cobrança, arrecadação, recolhimento e controle, foi unificado em único órgão denominado Secretaria da Receita Federal do Brasil, nos termos do que dispõe o artigo 1º, inciso VII, da Portaria MF nº. 95/07.

Qual é a crítica que podemos extrair a respeito dessa unificação, em relação ao caso ora em estudo?

A declaração de inconstitucionalidade da exigência de garantia recursal para admissibilidade de recurso administrativo foi levada a efeito pelo Supremo Tribunal Federal tanto em controle concentrado como em controle difuso, através da ADIN 1.976-7/DF e RE 389.383-1/SP, ambas as ações julgadas em 28 de março de 2007, com relatoria dos Ministros Joaquim Barbosa e Marco Aurélio de Mello, respectivamente.

A ADIN nº. 1.976-7/DF tinha como objeto a declaração de inconstitucionalidade do artigo 33, parágrafo 2º, do Decreto 70.235/72, no qual era previsto o arrolamento de bens e direitos de 30% do valor da exigência fiscal referente aos recursos administrativos questionando tributos administrados pela extinta SRF. Por sua vez, no RE nº. 389.383-1/SP questionava-se a inconstitucionalidade do artigo 126, parágrafos 1º e 2º, da Lei nº. 8.213/91, que previa a exigência do depósito recursal para admissibilidade de recurso administrativo previdenciário.

Conforme acima exposto, a declaração levada a efeito na ADIN foi em controle concentrado, ou seja, com efeito erga omnes, vinculando toda a administração e contribuintes, enquanto que a declaração proferida no RE foi em controle difuso, estendendo os seus efeitos somente às partes, ao menos até a edição de Resolução pelo Senado Federal, nos termos do artigo 52, inciso X, da CF, que suspenderá os efeitos da legislação junto ao Ordenamento Jurídico.

Diante do julgamento da ADIN nº. 1976-7/DF, a RFB acabou por editar dois Atos Declaratórios Interpretativos, de n.ºs 9 [14] e 16 [15], de 5 de junho de 2007 e 21 de novembro de 2007, respectivamente.

Na esteira do julgamento da ADIN acima referida, a própria RFB, através de referidos atos, e dentro da competência que lhe é atribuída pelo seu novo regimento interno, acabou por fulminar a exigência do arrolamento de bens para admissibilidade de recurso administrativo questionando tributos administrados pela antiga SRF, tomando uma atitude extremamente coerente e razoável para este caso específico.

Todavia, se a RFB foi coerente na edição dos atos declaratórios quanto à questão do arrolamento de bens, foi, por outro lado, totalmente incongruente, com a edição do artigo 23 da Portaria RFB nº. 10.875/07, que reinstituiu a exigência depósito prévio para admissibilidade de recurso administrativo em matéria previdenciária.

Isto porque, além de todos os vícios de ilegalidade e inconstitucionalidade até então expostos, ainda temos que é extremamente complicado isentar de críticas atos administrativos deveras contraditórios, cujas matérias tratam, na essência, da mesma questão, levados a efeito, ainda, pelo mesmo órgão administrativo. Não se pode admitir que incongruências dessa estirpe prevaleçam na Administração Pública, que está calcada nos princípios da moralidade, da segurança jurídica e da eficiência, dentre outros.

Por outro lado, a justificativa da RFB para exigir o depósito prévio para admissibilidade de recurso previdenciário, foi no sentido de que como a declaração de inconstitucionalidade da lei autorizadora ter sido proferida em RE, cujos efeitos da decisão não possuem carga vinculante a todos os administrados, e sim somente às partes litigantes, os contribuintes terão de se valer das medidas judiciais cabíveis para afastar a exigência do depósito prévio.

Causa espanto o entendimento esposado pela RFB, pois, como dito acima, carece de razoabilidade, além de ser contraditório, posto ter sido manifestado pelo mesmo órgão que rechaçou o arrolamento de bens e direitos de tributos que eram de competência da antiga SRF.

Diante disso, pode-se afirmar com segurança que no caso ora em estudo, o que se vê são incongruências, vícios de ilegalidade, inconstitucionalidade, ofensas aos princípios constitucionais e da administração pública, além da hierarquia das leis, na medida em que a RFB pretende impor garantia que fatalmente será fulminada pelos órgãos competentes do Judiciário, em razão dos precedentes que declararam inconstitucionais as leis que exigiam garantias para a interposição de recursos administrativos fiscais, fato este que contribuirá ainda mais para o inchaço do Poder Judiciário em razão das demandas que serão ajuizadas pelos contribuintes para se valerem de seus direitos constitucionais à ampla defesa e ao devido processo legal.

Ademais, podemos ir além, ao afirmar que o artigo 23 da Portaria RFB nº. 10.875/07 é o nascedouro que afronta toda a suposta intenção inicial da administração pública federal, que é a de unificar todos os procedimentos atinentes aos tributos da extinta SRF com as contribuições previdenciárias da extinta SRP, formando um órgão único com a criação da RFB.

Portanto, diante de todas as razões expendidas, verifica-se que o artigo 23 da Portaria RFB nº. 10.875/07 não encontra qualquer respaldo jurídico que lhe dê fundamento, devendo os operadores do direito se rebelarem em face de ato tão contraditório e carecedor de razoabilidade perpetrado pela RFB.


7 – Conclusões finais

Realizada a abordagem da questão deveras polêmica, pode-se concluir o quanto segue.

A regulamentação atinente ao processo administrativo fiscal está adstrita à reserva legal pela exegese do artigo 22, inciso I, da Constituição Federal, de modo que o artigo 23 Portaria RFB nº. 10.875/07, incorre em vício de inconstitucionalidade formal, pelo fato de não ser o veículo normativo adequado para o fim almejado pela administração pública.

Do mesmo modo, o artigo 23 da Portaria RFB nº. 10.875/07 também incorre em vícios de ilegalidade, pois afronta as disposições do Código Tributário Nacional, o qual determina que as matérias relativas a processo administrativo fiscal deverão ser reguladas por lei, sendo vedada a utilização de normas infralegais para tanto, além de ofender o princípio da hierarquia das leis, já que o artigo 38 dispõe que leis de hierarquia superior terão aplicação subsidiária e sucessiva à Portaria (v.g. Lei nº. 9.784/99)

Ademais, o artigo 23 da Portaria RFB nº. 10.875/07, por ter natureza de norma complementar às leis, nos termos do artigo 100, inciso I, do Código Tributário Nacional, não mais possui qualquer fundamento de validade, em razão da declaração de inconstitucionalidade do artigo 126, parágrafos 1º e 2º, da Lei nº. 8.213/91, o qual poderia lhe dar suporte jurídico. Diante disso, as disposições ali contidas extrapolam qualquer limite legal, pela falta de previsão em lei ordinária.

Por mais que o artigo 23 da Portaria RFB nº. 10.875/07 tivesse sido introduzido no Ordenamento Jurídico por lei ordinária, mesmo assim o dispositivo esbarraria em evidente inconstitucionalidade, tendo em vista a declaração de inconstitucionalidade levada a efeito pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE nº. 389.383-1/SP.

Temos, ainda, que o ato editado pela RFB incorre em verdadeira falta de razoabilidade, além de ser incongruente, já que o mesmo órgão editou dois atos declaratórios interpretativos – ADI de nº.s 9 e 16, ambos em 2007, fulminando a inconstitucional exigência do artigo 33, parágrafo 2º, do Decreto 70.235/72, onde era previsto o arrolamento de bens e direitos de 30% do valor da exigência fiscal referente aos recursos administrativos questionando tributos administrados pela extinta SRF, na esteira do julgamento da ADIN nº. 1.976-7/DF.

Por fim, a edição do artigo 23 da Portaria RFB nº. 10.875/07, cujo entendimento é totalmente diverso do existente nos referidos ADI´s, levado a efeito pelo mesmíssimo órgão, acerca de uma mesma matéria, apenas sinaliza que a intenção inicial da administração pública em tentar unificar a administração tributária de tributos e contribuições previdenciárias da União Federal na figura da RFB, não será levada à risca por este órgão, o que dará margem a situações destoantes quando estiver em pauta discussões acerca de tributos administrados pela antiga SRF e contribuições previdenciárias administradas pela antiga SRP.


Notas

01 Ver ADIN 1976-7/DF

02 Ver RE 389.383-1/SP

03 O presente estudo não terá como objeto, a análise do depósito prévio recursal de 30% para a interposição de recurso administrativo de tributos administrados pela antiga Secretaria da Receita Federal, posteriormente substituído pelo arrolamento de bens e direitos a que se refere o artigo 33, parágrafo 2º, do Decreto nº. 70.235/72, com redação dada pela Lei nº. 10.522 de 19 de julho de 2002, cuja declaração de inconstitucionalidade já foi proferida pelo Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de inconstitucionalidade na ADIN 1.976-/DF, vinculando sob o efeito erga omnes toda a administração pública e os contribuintes, pacificando de forma definitiva a questão.

04 "Art. 126. Das decisões do Instituto Nacional do Seguro Social-INSS nos processos de interesse dos beneficiários e dos contribuintes da Seguridade Social caberá recurso para o Conselho de Recursos da Previdência Social, conforme dispuser o Regulamento

§ 1o Em se tratando de processo que tenha por objeto a discussão de crédito previdenciário, o recurso de que trata este artigo somente terá seguimento se o recorrente, pessoa jurídica ou sócio desta, instruí-lo com prova de depósito, em favor do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, de valor correspondente a trinta por cento da exigência fiscal definida na decisão.

§ 2º Após a decisão final no processo administrativo fiscal, o valor depositado para fins de seguimento do recurso voluntário será:

I - devolvido ao depositante, se aquela lhe for favorável;

II - convertido em pagamento, devidamente deduzido do valor da exigência, se a decisão for contrária ao sujeito passivo".

05 "Art. 23. Em se tratando de NFLD ou Auto de Infração lavrado contra pessoa jurídica de direito privado ou sócio desta, o recurso somente terá seguimento se o recorrente o instruir com prova de depósito correspondente a trinta por cento da exigência fiscal definida na decisão.

(...)".

06 in O Processo Tributário,4ª edição revista atualizada e ampliada,, Editora Revista dos Tribunais – 2004, pg. 64e 65.

07 O Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do RE nº. 138.284/CE, firmou entendimento pacífico de que após a Constituição Federal de 1988, as contribuições previdenciárias revestem-se de caráter tributário.

08 Cf. Leandro Paulsen; "Direito Tributário Constituição e Código Tributário Nacional à Luz da Doutrina e da Jurisprudência; editoria livraria do advogado, Porto Alegre 2006; pg. 917.

09 "Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário:

(...);

III - as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo";

10 Art. 38. Aos casos não tratados nesta Portaria, aplicam-se subsidiária e sucessivamente as disposições do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, e da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil.

11 Ob. Cit., pg. 933

12 Ver ADI – AGR 365-DF, DJU de 15.03.91, Relator Ministro Celso de Mello, Plenário do STF

13 Vide ADI 1.049-MC, RE 210.246, ADI 1.922-MC e 1976 - MC

14 "Art. 1º Não será exigido o arrolamento de bens e direitos como condição para seguimento do recurso voluntário.

Art. 2º A autoridade administrativa de jurisdição do domicílio tributário do sujeito passivo providenciará o cancelamento, perante os respectivos órgãos de registro, dos arrolamentos já efetuados".

15 Art. 1º As unidades da Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB) deverão declarar a nulidade das decisões que não tenham admitido recurso voluntário de contribuintes, por descumprimento do requisito do arrolamento de bens e direitos, bem como dos demais atos delas decorrentes, realizando um novo juízo de admissibilidade com dispensa do referido requisito.

Parágrafo único. A declaração de nulidade referida no caput será proferida mediante requerimento do contribuinte, observado o prazo prescricional de cinco anos, contados da ciência da decisão administrativa.

Art. 2º Na hipótese de o débito ter sido encaminhado à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, o requerimento deve ser dirigido pelo contribuinte àquele órgão.

Segundo o ato acima, as unidades da RFB deverão declarar a nulidade das decisões que não tenham admitido recursos voluntários de contribuintes, por descumprimento do requisito do arrolamento de bens e direitos, bem como todos os demais atos decorrentes daquelas decisões, de modo que deverá ser realizando um novo juízo de admissibilidade com a dispensa do referido requisito.

 

 

* Advogado em São Paulo, integrante da equipe de contencioso tributário de instituição financeira de grande porte, bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduando em direito tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET).

 

 

Disponível em:

http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10752

Acesso em: 08 set. 2008.