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João Pedro Ayrimoraes Soares Júnior*
Conta a História que, na Roma Antiga, tendo o Imperador Vespasiano
instituído um tributo sobre os mictórios públicos (cloacas), logo foi sugerida,
por seu filho Tito, a extinção da nova exação, em decorrência de sua origem
espúria. Convicto, indagou Vespasiano, empunhando uma moeda: Olet? (Tem
cheiro?). Ao que lhe respondeu o filho: Non olet! (Não tem cheiro!),
ficando assim demonstrado que a receita advinda da tributação não é acompanhada
das características do fato tributado.
Da
Antiguidade Romana até o presente, muita coisa se passou na seara tributária,
contudo o princípio do non olet, em que pese hesitações e negativas
diversas, continua válido.
E
isso acontece, porque não se pode confundir a concreção da hipótese de
incidência tributária, ou seja, a materialização do fato gerador tributário,
abstratamente em lei previsto, com a nulidade, anulabilidade, ilicitude, crime
ou imoralidade circunstancial, ocorrente no surgimento desse fato gerador
concreto.
Nesse
sentido, dispondo o art. 43, do Código Tributário Nacional, que o imposto de
renda tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou
jurídica de renda ou de proventos de qualquer natureza, para que nasça a
obrigação tributária respectiva, basta que se adquira a disponibilidade de uma
renda ou de um provento qualquer e nada mais. Pouco importa se essa renda ou se
esse provento tem origem na prostituição, no jogo de azar, no tráfico de
entorpecentes ou, ao contrário, numa atividade comercial, industrial ou
profissional regular, posto que tal circunstância, para esse fim, não é
legalmente referida.
Do
mesmo modo, nos termos dos arts. 1º e 2º, da Lei Complementar Nacional nº
87/96, é bastante, para o surgimento da obrigação de pagar ICMS, a venda da
mercadoria, o transporte da carga ou o uso do serviço de telefonia, por
exemplo; nada importando se essa mercadoria foi adquirida por pessoa
absolutamente incapaz ou sob coação, se a carga é roubada ou se o telefonema
serve a organizações criminosas. O relevante, para efeitos tributários, é que a
hipótese de incidência, legalmente preconizada, materializou-se em fato gerador
da obrigação de recolher ICMS.
E
tanto isso é verdadeiro que, num espectro mais amplo, aplicável a todos os
tributos, preceitua o Código Tributário Nacional, em seu art. 118: "A
definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se: I – da validade
jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou
terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos; II – dos
efeitos dos fatos efetivamente ocorridos."
Comentando
esse dispositivo legal, Aliomar Baleeiro, Direito Tributário Brasileiro,
11ª ed., Forense, 2004, pág. 714, averba:
"A validade,
invalidade, nulidade, anulabilidade ou mesmo a anulação já decretada do ato
jurídico são irrelevantes para o Direito Tributário.
Praticado o ato jurídico ou
celebrado o negócio que a lei tributária erigiu em fato gerador, está nascida a
obrigação para com o Fisco. E essa obrigação subsiste independentemente da
validade ou invalidade do ato.
Se nulo ou anulável, não
desaparece a obrigação fiscal que dele decorre, nem surge para o contribuinte o
direito de pedir repetição do tributo acaso pago sob invocação de que o ato era
nulo ou foi anulado. O fato gerador ocorreu e não desaparece, do ponto de vista
fiscal, pela nulidade ou anulação."
Todavia,
não se quer dizer que o tributo deva incidir diretamente sobre atos proibidos
ou imorais, como que abrangidos na correspondente hipótese de incidência, mas
apenas que a receita eventualmente oriunda desses atos há de ser tributada.
Recorde-se, a propósito, que tributo, na escorreita definição do art. 3º, do
CTN, configura: "prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo
valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito,
instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente
vinculada." Assim, não deve o tributo sancionar atividade ilícita,
seja no sentido de punir, seja no sentido de legitimar tal atividade. Nessa
linha de pensamento, expõe Hugo de Brito Machado, Curso de Direito
Tributário, 24ª ed., Malheiros, 2004, págs. 129-130:
"Não se pode,
entretanto, admitir um tributo em cuja hipótese de incidência se inclua a
ilicitude. A compreensão do que se está afirmando é facilitada pela distinção, inegável,
entre hipótese de incidência e fato gerador do tributo. Cuida-se, com efeito,
de dois momentos. O primeiro é aquele em que o legislador descreve a situação
considerada necessária e suficiente ao surgimento da obrigação tributária.
Nessa descrição a ilicitude não entra. O outro momento é o da concretização
daquela situação legalmente descrita. Nessa concretização pode a ilicitude
eventualmente fazer-se presente. Aí estará, assim, circunstancialmente. Sua
presença não é necessária para a concretização da hipótese de incidência do
tributo. Mas não impede tal concretização, até porque, para o surgimento da
obrigação tributária, como já visto, a concretização do previsto é bastante.
Por isto, a circunstância ilícita, que sobra, que não cabe na hipótese de
incidência tributária, é, para fins tributários, inteiramente
irrelevante."
Também
Luiz Emygdio Franco da Rosa Júnior, Manual de Direito Financeiro &
Direito Tributário, 16ª ed., Renovar, 2002, pág. 490, anota:
"Ademais, o fato de o
Estado cobrar imposto de renda da pessoa que aufira rendimentos da exploração
do jogo do bicho, ou de uma casa de prostituição, não tem o condão de legitimar
tais atividades. Isso porque o CTN, em seu art 3º, prescreve que a prestação
tributária não constitui sanção (legalização, validação) de ato ilícito."
Por
outro lado, sendo o fato gerador da obrigação tributária um fato econômico a
que o direito imprime relevo jurídico ou, dito de outra forma, um fato jurídico
de apreciável consistência econômica, apto, portanto, a servir de medida de
capacidade econômica do contribuinte, não poderia sua ocorrência, ainda que
circunstancialmente ilícita, criminosa ou imoral, passar despercebida. É o que
ensina Amílcar de Araújo Falcão, na sua clássica monografia Fato Gerador da
Obrigação Tributária, citado por Luiz Emygdio Rosa Júnior, Ob. Cit., pág. 203, verbis:
"Não pode ser de outro
modo, se se tomar em consideração que a natureza do fato gerador da obrigação
tributária, como um fato jurídico de acentuada consistência econômica, ou um
fato econômico de relevância jurídica, cuja eleição pelo legislador se destina
a servir de índice de capacidade contributiva. A validade da ação, da atividade
ou do ato em Direito Privado, a sua juridicidade ou antijuridicidade em Direito
Penal, disciplinar ou em geral punitivo, enfim, a sua compatibilidade ou não
com os princípios da ética ou com os bons costumes não importam para o problema
da incidência tributária, por isso que a ela é indiferente a validade ou
nulidade do ato privado através do qual se manifesta o fato gerador: desde que
a capacidade econômica legalmente prevista esteja configurada, a incidência há
de inevitavelmente ocorrer."
Ademais,
considerando que "o tributo é uma entidade amoral",
como ensina Zelmo Denari (Curso de Direito Tributário, 6ª ed., Forense,
pág. 176), a exoneração tributária das atividades proibidas ou não
recomendadas, em contraposição à taxação das atividades lícitas ou socialmente
úteis, antes de configurar consectário da moralidade, ensejaria isto sim séria
violação ao principio da isonomia, vez que trataria desigualmente fatos de
idêntica conotação contributiva, diversos, apenas, em sua emanação originária.
Atento
a essa inaceitável possibilidade, objetou, não faz muito tempo, o Excelso
Supremo Tribunal Federal, por sua Primeira Turma, à unanimidade, no julgamento
do Habeas Corpus nº 77.530-4/RS, Relator Ministro Sepúlveda Pertence,
manifestando-se, peremptoriamente, nos seguintes termos:
"Sonegação fiscal de
lucro advindo de atividade criminosa: "non olet". Drogas: tráfico de
drogas, envolvendo sociedades comerciais organizadas, com lucros vultosos
subtraídos à contabilização regular das empresas e subtraídos à declaração de
rendimentos: caracterização, em tese, de crime de sonegação fiscal, a acarretar
a competência da Justiça Federal e atrair pela conexão, o tráfico de
entorpecentes: irrelevância da origem ilícita, mesmo quando criminal, da renda
subtraída à tributação. A exoneração tributária dos resultados econômicos de
fato criminoso - antes de ser corolário do princípio da moralidade - constitui
violação do princípio de isonomia fiscal, de manifesta inspiração ética."
Contudo,
dada a dialeticidade do Direito, abalizadas opiniões existem em contrário,
valendo transcrever a de Misabel Abreu Machado Derzi, que, em nota de
atualização à já citada obra de Aliomar Baleeiro, afirma:
"Em verdade, antes e
depois da Lei nº 9.613/98, o correto é concluir que, estando comprovado o crime
do qual se originaram os recursos ou o acréscimo patrimonial, seguir-se-á a
apreensão ou o seqüestro dos bens, fruto da infração. E é absolutamente
incabível a exigência de tributos sobre bens, valores ou direitos que se
confiscaram, retornando às vítimas ou à administração pública lesada. Pois o
tributo, que não é sanção de ato ilícito, repousa exatamente na presunção de
riqueza, em fato signo presuntivo de renda, capital ou patrimônio.
Coerentemente, a Lei nº 9.613/98, que disciplinou os crimes de "lavagem de
dinheiro", por exemplo, renovou, em alguns aspectos, as normas processuais
pertinentes e determinou, como efeitos da condenação, a perda dos bens,
direitos e valores, objeto do crime, assim como a interdição do exercício de
cargo ou função pública de qualquer natureza (art. 7º, I e II).
Imposto poderá incidir sobre
a ostentação de riqueza ou o crescimento patrimonial incompatíveis com a renda
declarada, no pressuposto de ter havido anterior omissão de receita. Receita,
em tese, de origem lícita, porém nunca comprovadamente criminosa. Não
seria ético, conhecendo o Estado, a origem criminosa dos bens e direitos, que
legitimasse a ilicitude, associando-se ao delinqüente e dele cobrando uma quota,
a título de tributo. Portanto, põem-se alternativas excludentes, ou a origem
dos recursos é lícita, cobrando-se em conseqüência o tributo devido e sonegado,
por meio da execução fiscal, ou é ilícita, sendo cabível o perdimento dos bens
e recursos, fruto da infração."
Ainda
assim, especialmente à luz dos dias que correm, em que a criminalidade, a
ilegalidade e a imoralidade assumem proporções cada vez maiores e mais
organizadas, a tributabilidade dos atos nulos, anuláveis, ilícitos, criminosos
e imorais constitui imperativo da mínima partição dos ônus e encargos públicos
sobre todos, de modo a suprir o Estado dos recursos necessários à consecução
dos seus fins sociais.
Se
efetivada a persecução criminal, e punidos os infratores, plenamente restará
assegurada a preservação da ordem jurídica e comunitária. Enquanto isso não
acontece, porém, que, pelo menos, a capacidade econômica externada nesses
proscritos atos contribua, como qualquer outra, para a manutenção do bem comum.
Ou, caso tal contribuição não aconteça, que sinalize essa falta a própria
prática do crime, como ocorreu ao Agente Eliot Ness, que somente conseguiu
desmontar a máfia de Al Capone, a partir da comprovação da sonegação do imposto
de renda.
* Procurador do Estado do Piauí e Advogado
Disponível em: http://jus2.uol.com.br/
Acesso em: 15 fev. 2007.