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Valores jurídico-tributários
implícitos na linguagem do texto constitucional
Roberto Wagner Lima
Nogueira*
Sumário. 1.
Introdução. 2. Princípios tributários e valores jurídicos. 2.1. Princípio da
liberdade fiscal. 2.2. Princípio da transparência fiscal. 2.3. Princípio da
solidariedade fiscal. 2.4. Princípio da mediania fiscal. 2.5. Princípio do
justo gasto do tributo afetado. 2.6. Princípio da justiça tributária (ética fiscal
pública e privada). 2.7. Princípio da cidadania fiscal. 2.8. Princípio da
improjetabilidade da lei tributária.
1.Introdução.
José
Joaquim Gomes Canotilho, professor da faculdade de direito de Coimbra, já
afirmou em obra clássica, que as regras e os princípios são duas espécies de
normas, logo, a distinção entre regras e princípios é uma distinção entre duas
espécies de normas. (1) Podemos então, falar em normas-regras e
normas-princípios. Nos interessa neste estudo as normas-princípios, doravante
denominadas tão-somente de princípios tributários, imersos na implicitude da
Fonte Constitucional, fonte aqui naquela dimensão abordada por Adriano
Soares da Costa (2).
2.
Princípios tributários e valores jurídicos.
Os
princípios constitucionais tributários (objetos jurídicos dinâmicos) são
justamente aqueles (valores) que influenciam a interpretação dos signos
inseridos no ordenamento jurídico constitucional, e que dizem respeito à
fenomenologia da tributação. Portanto, é premissa que o princípio jurídico por
ser um valor jurídico não estará integralmente representado no signo (palavra,
texto) jurídico constitucional, mas sim, influenciará a própria existência e
inserção de todos os signos jurídicos no sistema jurídico positivo. (3)
Os
princípios tributários, enquanto valores jurídicos, possuem em sua ontologia
importantes características, já denunciadas por Paulo de Barros Carvalho
(4) com supedâneo em Miguel Reale. E são elas: a)- a bipolaridade,
onde houver um valor, haverá, como contraponto, o desvalor, de tal modo que os
valores positivos e negativos implicar-se-ão mutuamente; b)- referibilidade,
o valor importa sempre uma tomada de posição do ser humano perante alguma coisa
a que está referido; c)- preferibilidade, frente aos valores temos
preferências, d)- incomensurabilidade, os valores são incomensuráveis,
não há como medi-los em sua grandeza existencial. As coisas valem
financeiramente, porém, o homem possui dignidade; e)- hierarquia,
apresentam forte tendência à graduação hierárquica, o que exprime a inclinação
de se acomodarem em ordem escalonada, quando se encontram em relações mútuas,
tomando como referência o mesmo sujeito axiológico; f)- base empírica,
no caso em tela, os textos normativos, requerem sempre objetos da experiência
para neles assumir objetividade, não se revelam sem algo que os suporte e sem
uma ou mais consciências às quais se refiram; g)- historicidade, é na
evolução do processo histórico-social que os valores vão sendo construídos, o
que lhes dá o timbre da historicidade; e por fim, a h)- inexauribilidade,
os valores sempre excedem os bens em que se objetivam. Ainda que o belo esteja
presente numa obra de arte, sobrará esse valor estético para muitos outros
objetos do mundo. Assim como o valor justiça não se esgota na sentença de um
magistrado, ainda que plenamente justa. Essa transcendência é própria às
estimativas, de tal modo que o objeto em que o valor se manifesta não consegue
contê-lo, aprisioná-lo, evitando sua expansão para os múltiplos setores da vida
social.
Expostas
as características dos valores jurídicos e portanto, dos princípios jurídicos,
podemos concluir tão acertada foi a decisão do legislador constituinte ao dizer
no art. 5º, § 2º da Constituição Federal, que: "os direitos e garantias expressos
nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados (...)". Ora, foi sábio o legislador ao
reconhecer que os valores jurídicos não são in totum aprisionáveis pelas
palavras expressas no Texto Constitucional, há um quantum de direitos,
deveres e garantias de natureza principiológica, que são construídos a partir
dos valores jurídicos implicitamente recepcionados pelo sistema jurídico
nacional, e por decorrência, pelo sistema tributário constitucional. (5)
Insistimos neste particular: há um quantum do jurídico que resiste à
linguagem verbal escrita...
Afirmativa
desta natureza é corroborada por decisão do Tribunal Constitucional Federal
alemão, verbis: "O direito não se identifica com a totalidade das
leis escritas. Em certas circunstâncias, pode haver um ''mais'' de direito em
relação aos estatutos positivos do poder do Estado, que tem a sua fonte na
ordem jurídica constitucional como uma totalidade de sentido e que pode servir
de corretivo para a lei escrita; é tarefa da jurisdição encontrá-lo e
realizá-lo em suas decisões" (6)
Nas
linhas seguintes construiremos alguns destes valores jurídico-tributários
implícitos na linguagem constitucional, valores éticos, que vem de ética, do
grego Ethos que significa analogamente "modo de ser" ou
"caráter" enquanto forma de vida também adquirida ou conquistada pelo
homem (Adolfo Sánchez Vázques (7)). Ética é assim a teoria ou
ciência do comportamento moral dos homens em sociedade, ou seja, é ciência de
uma forma específica de comportamento humano, logo, podemos falar de uma ética
fiscal pública e uma ética fiscal privada no estudo do comportamento do Estado
e do indivíduo no campo da tributação. Para o professor emérito de
direito financeiro e tributário da Universidade de Colônia, na Alemanha, Klaus
Tipke, ética tributária é a teoria que estuda a moralidade das atuações em
matéria tributária desenvolvidas pelos poderes públicos – legislativo,
executivo e judiciário – e pelos cidadãos contribuintes. (8)
Além
dos princípios tributários mencionados expressamente no Texto Constitucional, e.g,
capacidade contributiva, art. 145, § 1º, legalidade tributária, art. 150,
I, anterioridade tributária, art. 150, III, b; isonomia tributária, art. 150,
II etc, destacam-se alguns princípios tributários que conquanto não
clarificados textualmente, decorrem dos direitos, garantias e deveres adotados
pelo regime constitucional tributário (art. 5º, § 2º da CF), e são eles.
2.1
Princípio da liberdade fiscal.
O
tributo é o preço da liberdade, bem o disse Ricardo Lobo Torres, por servir
para distanciar o homem do Estado, permitindo-lhe desenvolver as suas
potencialidades no espaço público, sem necessidade de entregar qualquer prestação
permanente de serviço ao Estado. Porém, não basta a liberdade, em seu sentido
negativo, para a construção do conceito de tributo. É necessário também que se
garantam as condições iniciais da liberdade mediante a proibição de incidência
fiscal sobre o mínimo necessário à existência digna. (9) A base
empírica deste princípio é encontrada no art. 5º, caput, da Constituição
Federal. Para Rawls (10), liberdade é uma certa estrutura de
instituições, um certo sistema de normas públicas que definem direitos e
deveres. O princípio da liberdade fiscal possui dupla face: é ao mesmo tempo um
direito fundamental e um dever fundamental. (11) Explicando. Na
vertente do dever fundamental, submete-se a uma ética fiscal privada, uma
ética de conduta que norteia o cidadão-contribuinte em direção ao dever
fundamental de pagar tributos segundo a sua capacidade contributiva. Doutra
banda, como direito fundamental, o princípio da liberdade fiscal subordina o
Estado a uma ética fiscal pública, ou seja, o Estado é constitucionalmente
obrigado a reconhecer o princípio da liberdade fiscal (12),
aceitando mediante o devido processo legal, a opção fiscal adotada pelo
contribuinte quando no limite de sua capacidade contributiva.
2.2.
Princípio da transparência fiscal.
A
transparência fiscal (13) também é um princípio constitucional
implícito. Sua base empírica está situada no art. 5º caput da CF, bem
como, art. 37 caput ambos da Constituição Federal. Sinaliza no sentido
de que a atividade tributária deve se desenvolver segundo os ditames da clareza
de propósitos, abertura de informação e simplicidade na tributação. Tais
diretrizes principiológicas são dirigidas tanto ao Estado, ética fiscal
pública, quanto aos contribuintes, ética fiscal privada. Se a opção da sociedade
brasileira é pela justiça tributária, se estamos a favor da vida e não da
morte, da eqüidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio, da
convivência com o outro e não de sua negação, não temos outro caminho senão
viver plenamente nossa opção pela transparência fiscal, encarnando-a,
diminuindo assim a distância entre ser o dever ser, isto é, entre
o que está positivado expressa e implicitamente no Texto Constitucional, e o
que vem sendo materializado na realidade tributária brasileira.
2.3.
Princípio da solidariedade fiscal.
A
idéia de solidariedade se projeta com muita força no direito fiscal hodierno, e
isto ocorre por um motivo de extraordinária importância: o tributo é um dever
fundamental. Vários artigos do Texto Constitucional, revelam a importância da
solidariedade para o desenvolvimento da sociedade brasileira, uma base empírica
exemplificativa por exemplo é o art. 194, caput da Constituição Federal.
Então, se a solidariedade exterioriza a dimensão do dever, segue-se que não se
encontra melhor campo de aplicação que o direito tributário, que regula o dever
fundamental de pagar tributo, um dos deveres fundamentais do cidadão no Estado
Social Fiscal. A interpretação constitucional sofre um forte impacto desta
importante diretriz hermenêutica. Sensível à temática, Ricardo Lobo Torres
pondera que a solidariedade entre os cidadãos deve fazer com que a carga
tributária recaia sobre os mais ricos, aliviando-se a incidência sobre os mais
pobres e dela dispensando os que estão abaixo do nível mínimo de sobrevivência;
é um valor moral juridicizável que fundamenta a capacidade contributiva e que
sinaliza para a necessidade da correlação entre direito e deveres fiscais.
(14)
Como
bem ensinam Klaus Tipke e Douglas Yamashita, "O princípio do Estado Social
ou da solidariedade é apenas um dentre vários princípios do Estado Social e
Liberal de Direito. A tríade dos valores fundamentais consiste na liberdade, na
igualdade e na solidariedade. Esses valores têm de ser levados a uma proporção
equilibrada entre si. Enquanto a Constituição Norte-Americana concede ao valor
liberdade o grau mais elevado, muitas Constituições continental-européias
consideram a liberdade, a igualdade e a solidariedade igualmente
importantes." (15) Não é por outro motivo, que o professor
catedrático da Universidade de Barcelona, José Juan Ferreiro Lapatza (16)
afirma que o tema da repartição justa da carga tributária se converte em um dos
temas centrais da ciência do direito tributário.
Qualquer
estudo de direito tributário que pretenda contribuir para o desenvolvimento da
sociedade brasileira, não pode e não deve ser hermético a ponto de olvidar quem
somos. Não somos americanos nem europeus. Somos brasileiros e, se quisermos
mais, somos latino-americanos. Isso quer dizer que em nossa imensa maioria
somos pobres, mesmo que alguns poucos consigam acumular riquezas. Há que haver
solidariedade fiscal na construção das leis, na interpretação das leis
tributárias pelos operadores do direito e na aplicação dos recursos
financeiros, e isto só se materializará, se ao mesmo tempo em que estudarmos e
compreendermos o Direito Comparado no campo do direito financeiro e tributário,
transcriarmos (Haroldo de Campos) esta leitura segundo os nossos interesses, de
brasileiros e latino-americanos. Tamanho dever é um exercício permanente e
indormido, porquanto qualquer distração nos fará cair na armadilha dos países
desenvolvidos, e por conseguinte, aprofundará ainda mais a miséria social em
que vivemos.
No
Brasil, cuja eticidade é profundamente marcada pela injustiça, vivemos frente a
uma inafastável exigência de que, para tornarmos um verdadeiro Estado de
direito democrático, precisamos antes de qualquer coisa, integrarmos (com base
no princípio da solidariedade fiscal), no processo de desenvolvimento uma
imensa massa de excluídos. Essa é a exigência central de nossa epocalidade, é a
forma específica de efetivação em nossa contemporaneidade, da exigência ética
fundamental de solidariedade, respeito e proteção à dignidade da pessoa humana.
2.4.
Princípio da mediania fiscal.
A
dialética entre a individualidade (microética) e a comunidade representada pelo
Estado (macroética) há que ser dominada pelo razão prática da mediania
aristotélica. A mediania não é uma espécie de mediocridade, mas sim, uma
culminância (17), um valor nobre, considerando que é a vitória da
razão sobre os instintos, neste caso os instintos públicos e privados. Mediania
fiscal, é pensar o tributo como justa medida de um dever fundamental de
solidariedade. (18) A base empírica deste princípio está situada no
art. 3º, I da Constituição Federal. Aqui, há quase que uma síntese de toda
aquela sabedoria grega que identifica no ''meio caminho'', no ''nada em
excesso'' e na ''justa medida'' a regra suprema do agir, assim como há também a
aquisição pitagórica que identificava a perfeição do ''limite'' e ainda, por
fim, há uma exploração do conceito de ''justa medida''. O homem é
principalmente razão, mas não apenas razão. Com efeito, na alma há algo de
estranho à razão (desejo, apetite etc), que a ela se opõe e resiste, mas que,
no entanto, participa da razão. Dominar esta parte da alma, e reduzi-la aos ditames
da razão é a virtude ética, a virtude do comportamento prático. Esse tipo de
virtude se adquire com a repetição de uma série de atos sucessivos, ou seja,
com o hábito. Nós adquirimos as virtudes com uma atividade anterior, como
acontece também com as artes. Com efeito, é fazendo que nós aprendemos a fazer,
tributando se aprende a tributar, pensando se aprende a pensar. Pois bem. Da
mesma forma, realizando ações justas tornamo-nos justos; ações moderadas,
moderados; ações corajosas, corajosos. Assim, as virtudes tornam-se como que
[hábitos], [estados] ou [modos de ser] que nós mesmos construímos. Assim como
muitos são os impulsos e tendências (excesso de tributação versus
excesso de sonegação) que a razão deve moderar, também são muitas as ''virtudes
éticas'', mas, todas têm uma característica essencial que é comum: os impulsos,
as paixões e os sentimentos tendem ao excesso ou à falta (ao muito ou ao
pouco), intervindo, a razão deve impor a ''justa medida'', que é o ''meio
caminho'' ou ''mediania entre os dois excessos. Tal lição serve ao Estado, ente
tributante e ao cidadão contribuinte. Portanto, a virtude tem a ver com as
paixões e ações, nas quais o excesso e a falta constituem erros e são
censurados, ao passo que o meio é louvado e constitui retidão, virtude. A
mediania fiscal na tributação está na ‘justa medida do tributo a ser exigido’,
nem tributo com efeito confiscatório, nem tributo aquém da capacidade
contributiva, mas sim, tributo como justa medida de um dever fundamental de
solidariedade do cidadão.
2.5.
Princípio do justo gasto do tributo afetado.
Aplicável
em especial às contribuições, encontra guarida também no art. 3º, I, art. 167,
IV, ambos da Constituição Federal. Tal princípio faz prevalecer o complexo, o
híbrido, o plural, para declarar que tanto o direito tributário quanto o
financeiro dialogam entre si, para juntos, afirmarem a justeza ou não dos
valores arrecadados e gastos a título de tributos-contribuições. Princípio este
que transita à vontade em ambos ramos do direito, sem qualquer pretensão a
exclusividade de ramo, senão apenas o forte desejo de dar eficácia ao princípio
maior da justiça tributária. Tributo afetado e desvirtuado para outro fim é
tributo ilegítimo, portanto, tributo que ofende dentre outros, os princípios da
transparência fiscal e da justiça tributária. Tributo desvirtuado de sua
afetação, é tributo injustamente arrecadado, portanto, tributo passível de
devolução, bem como, de punição dos responsáveis pela malversação dos recursos
públicos das contribuições. Quer este princípio chamar a atenção, para o fato
de que a afetação é do tributo e não só da receita como quer a doutrina
tradicional, com isto une-se o direito tributário ao financeiro com o fito de
criar-se mecanismo de controle e validação das normas tributárias.
Fujamos
de uma discussão unicamente estrutural a respeito de fatos geradores, bases de
cálculos e etc, e enfim, enfrentemos de vez a questão funcional do princípio do
justo gasto do tributo afetado! Como controlar os recursos arrecadados a título
de tais contribuições? Pense caro leitor, o problema não é só o fato de que se
cria mais contribuições, mas, sim, de que se cria e mal se aplica o dinheiro
arrecadado! Então, o problema do justo gasto desses recursos é nosso (operadores
do direito financeiro e tributário) ou não é? Se não é nosso quem então vai
orientar os contribuintes brasileiros sobre a legitimidade ou não destes novos
recursos arrecadados? O economista? O criminalista? O sociólogo? Claro que não
só eles. Temos que ter sensibilidade para revermos nossos conceitos de direito
tributário e financeiro, para assim, criarmos novos instrumentais de diálogo
entre os contribuintes e o fisco brasileiro, não podemos mais fugir desta
convocação que nos impõe a pós-modernidade.
2.6.
Princípio da justiça tributária (ética fiscal pública e privada)
Encontra
sua base empírica no art. 3º, I, e art. 5º § 2º, ambos da Constituição Federal.
Ética é justiça consoante já nos ensinou o professor Olinto A. Pergoraro
(19). Portanto, a justiça está no centro de qualquer discussão ética.
Viver eticamente é viver conforme a justiça. Tributar e gastar de forma ética é
tributar e gastar conforme a justiça tributária. O princípio da justiça
tributária encontra vida, alma e impulso na virtude da justiça. Esta leva o
contribuinte virtuoso a viver como cidadão que luta por uma ordem tributária
socialmente mais justa. Somos éticos, justos e virtuosos, no espaço social,
ninguém é etico para si mesmo; somos éticos em relação aos outros (20),
neste sentido, ética tributária é a prática da justiça tributária, ou,
comportamento ético tributário é, antes de tudo, comportamento segundo a
justiça tributária, e conforme já sabemos, a ética tributária é fiscal privada
(contribuinte) e fiscal pública (Estado), ambos, com deveres e direitos na
relação jurídico-tributária.
Para
falarmos em Justiça Tributária numa sociedade democrática precisamos notar a
presença de pelo menos duas características básicas: i- uma forte regulação na distribuição
de bens na estrutura básica da sociedade e, ii- cidadãos-contribuintes que em
uma democracia constitucional pagam tributos e mantêm um fundo comum público,
destinado a garantir a oferta de bens e de serviços impossíveis de serem
assegurados com eqüidade a todos os cidadãos, se entregues ao mercado. A
garantia da oferta básica de tais bens materiais e imateriais, passa
inexoravelmente pela intributabilidade do mínimo existencial, e a
ausência da oferta deste bens à camada pobre da população redunda na perda do
sentido humano, na perda da dignidade no âmbito econômico, político, social e
jurídico-fiscal. Em uma sociedade democrática há bens primários, cuja
característica principal é serem necessários à sobrevivência digna de todos os
indivíduos, por força disto devem ser de acesso obrigatório a todos os
cidadãos, e.g, moradia, escola, saneamento básico, alimentação, saúde,
salários dignos, cultura etc (Ricardo Lobo Torres discorda, apartando os
fundamentais (art. 5º) dos sociais - art. 6º da CF) (21). A oferta
dos bens desta natureza é de obrigação do poder público, ainda que o Estado
deva recorrer ao mercado para garanti-los.
No
campo da tributação estes bens primários hão que ser protegidos da
tributação (22), e é justamente em nome desta proteção que os
governos democráticos estão legitimados à coleta de tributos sobre a renda,
propriedade e consumo daqueles que efetivamente podem contribuir. Tanto mais
evoluída é a sociedade democrática do ponto de vista da tributação, quanto mais
ela consiga inserir e garantir livre da tributação, na lista dos bens
primários, outros bens que possam elevar o padrão de dignidade humana dos seus
cidadãos. Diferentemente das sociedades hierárquicas, nas democracias deve-se
reverter para o cidadão, em especial ao cidadão economicamente mais frágil, na
forma da oferta de bens primários, o montante da riqueza que cada
cidadão-contribuinte produzir com sua participação econômica, política e
social. Por essa razão, nas democracias a pessoa não trabalha para o engrandecimento
da pátria, para merecer a salvação eterna, para honrar o monarca, para
enriquecer o empregador etc; as pessoas trabalham, galgam melhores cargos e
salários, tornam-se cidadãos-contribuintes para verem melhoradas a sua
qualidade de vida, a qualidade de vida de sua geração e para verem garantidas a
oferta básica de bens primários àqueles que em nome da solidariedade,
têm um direito subjetivo à proteção social, trata-se na verdade de um
reconhecimento de direitos e deveres gerados pela relação social.
Insistirmos
em que há no direito tributário duas éticas: uma ética fiscal privada e
outra ética fiscal pública. A ética privada é uma ética de
condutas que norteia o cidadão-contribuinte que tem o dever fundamental de
pagar tributos segundo a sua capacidade contributiva. Ao cidadão-contribuinte
não é ético contribuir a menos para o montante da riqueza social, em proporção
ao que suas faculdades lhe permitiam pagar, o que não deixa de ser uma
exigência aristotélica na teoria da justiça tributária contemporânea. Já a ética
fiscal pública é informada por quatro valores superiores, a saber, a liberdade,
que consiste na aceitação da opção fiscal a ser adotada pelo contribuinte,
desde que respeitada a sua capacidade contributiva; a igualdade,
no sentido de que todos que estiverem na mesma situação haverão de sofrer a
mesma tributação; a segurança, que pugna pela não tributação de
surpresa, irracional etc, e finalmente; a solidariedade, ápice da
efetivação da ética fiscal pública. Fazer justiça tributária é dentre
várias coisas, ser solidário com os carentes que têm direito subjetivo à
solidariedade, é garantir aos credores desta solidariedade a oferta de bens
primários intributáveis, porquanto os pobres, desempregados, e os
assalariados não podem suportar o ônus tributário do Estado, mas, sim, hão que
ser suportados pelo Estado via ética tributária da solidariedade mediante a
arrecadação e distribuição de riquezas oriundas do pagamento de tributos dos
cidadãos-contribuintes.
2.7.
Princípio da cidadania fiscal.
No
Brasil a concepção de cidadania adquire densidade jurídica sólida no art. 1º,
inciso II, da Constituição Federal de 1988, que a fez inserir entre os
fundamentos do Estado Democrático de Direito, abrindo novas perspectivas para
análise de sua temática. Por ser tratar de um direito fundamental, a idéia
jurídica de cidadania repercute em todos os quadrantes do direito, ocasião
então, que podemos falar em um princípio da cidadania fiscal, a saber, um
conjunto de deveres e direitos dos cidadãos frente ao fisco brasileiro, daí
porque uma reflexão sobre a cidadania fiscal envolve item concernente a ética
tributária e por conseguinte a uma cidadania constitucional.
A
relação jurídica tributária que se estabelece entre o fisco e o cidadão deve
ser contemporaneamente pensada sob dois prismas. Do ponto de vista dos efeitos
desta relação jurídica, ela será unilateral quando figurar no pólo ativo
o cidadão-carente, protegido que é neste liame pela intributabilidade do mínimo
existencial, isto é, o cidadão-carente na cidadania fiscal unilateral
tem unicamente a posição de sujeito credor da solidariedade do Estado e o
Estado tem unicamente a posição de sujeito devedor desta solidariedade. Já na cidadania
fiscal bilateral, a relação jurídica entre Fisco e cidadão-contribuinte
quanto aos seus efeitos é bilateral, ou seja, há obrigação para ambas as
partes, deveres e direitos do Fisco, ética tributária, deveres e direitos dos
cidadãos-contribuintes, ética fiscal privada.
Neste
sentido o conceito de cidadania fiscal unilateral ora cunhado, quer
significar o direito à intributabilidade de um mínimo existencial (bens
primários) à todos aqueles cidadãos brasileiros credores desta solidariedade,
até porque como bem alerta Ricardo Lobo Torres, ausente o mínimo indispensável
à existência, cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e com isto
suprimida está a dignidade humana, logo, as condições materiais da existência
não podem retroceder aquém de um mínimo, do qual nem os prisioneiros, os
doentes mentais e os indigentes podem ser privados.
Poderíamos
dizer que a cidadania fiscal unilateral é um direito do cidadão à
intributabilidade de um mínimo essencial, ou mínimo social, índice justo de
bens de primeira necessidade, abaixo do qual as pessoas simplesmente não podem
participar da sociedade como cidadãos. No Brasil como já vimos a Constituição
Federal prestigia como direito fundamental a cidadania (art. 1º, inciso II),
bem como, diz constituir objetivos fundamentais da república a constituição de
uma sociedade livre, justa e solidária.
Ricardo
Lobo Torres bem anotou que a Constituição de 1946 (23), art. 15, §
1º, garantia a imunidade ao mínimo indispensável à habitação, vestuário,
alimentação e tratamento médico das pessoas de restrita capacidade econômica,
todavia, tal dispositivo desapareceu expressamente do Texto Constitucional, e a
proteção hoje se efetiva comedidamente através de isenções de IPI e do ICMS
veiculadas através de legislações ordinárias. Entrementes, pensamos nós que a
Constituição ainda agasalha tal princípio, podendo ser detectado em diversas
passagens da Carta Magna, e.g, nas dobras do art. 1º, inciso III que
trata da dignidade da pessoa humana, portanto, do princípio
constitucional-tributário da cidadania fiscal.
A
cidadania fiscal só existirá em sua plenitude, quando o número de
cidadãos-contribuintes, isto é, cidadãos com capacidade de cumprir com o seu
dever fundamental de pagar tributos, for supinamente maior que o dos cidadãos-carentes,
impossibilitados de pagar tributos. Dito isto, é fácil verificar a fragilidade
da cidadania fiscal no Brasil, onde uma pequena parte da população tem
condições de pagar tributos e a imensa maioria de miserável não pode pagar, por
conseguinte, esta imensa maioria está excluída do conceito de cidadania fiscal
plena, ou cidadania fiscal bilateral como vimos de afirmar.
2.8.
Princípio da improjetabilidade da lei tributária.
Se
o princípio constitucional da irretroatividade da lei tributária veda a
tributação de fatos anteriores à sua vigência, o princípio constitucional da
improjetabilidade da lei tributária veda a tributação de fatos futuros, que
ainda não ocorreram, proibindo que a lei tributária seja arremessada, lançada ao
futuro, hipotetisando um fato ainda inexistente e conferindo-lhe efeitos
jurídicos no aqui-e-agora. A base empírica deste princípio é construída a
partir dos enunciados prescritivos do art. 150, III, "a" da
Constituição Federal. É fora de dúvida que a lei tributária aplica-se a
situações jurídicas que irão ocorrer (frisa-se: ocorrer!) a partir da data em
que teve início a sua vigência, neste sentido a lei (norma geral e abstrata) se
volta para o futuro como bem anota Eurico Marcos Diniz de Santi (24),
com o objetivo de regular comportamentos, implantando os valores que a
sociedade almeja. Todavia, o princípio da improjetabilidade da lei
tributária impede é que a lei tributária seja aplicada a fato não ocorrido
no mundo real, isto é, fato vindouro, que há de vir, mas, que ainda não veio...
Embora
a lei, como instrumento jurídico geral e abstrato, se direcione ao futuro, ela
é sempre aplicada no presente com relação a fatos passados, que foram por ela,
juridicizados. A lei (leia-se: norma) não incide somente quando a aplicamos: a
lei já incidiu, a aplicação é, apenas, o dizer-se que a lei já incidiu, com
outras palavras também são estas as lições de Adriano Soares da Costa.
(25) Nesta linha, que alcunhamos ponteana, o futuro só ganha relevo
jurídico quando deixa de sê-lo, para se materializar no presente, só o real
presentificado justifica a produção de efeitos jurídicos tributários,
porquanto, todo efeito jurídico é efeito de norma + fato concretizado, fato
presumido é fato insuficiente, portanto, impossível de ser juridicizado pela
incidência, razão de nossas críticas a Emenda Constitucional nº 3/1993 que fez
acrescentar o § 7º ao art. 150 da Constituição Federal (26), que ao
nosso ver está em franca antinomia com o princípio da improjetabilidade da lei
tributária.
Notas
01.
Direito Constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina. 1993. p. 166.
02.
Sobre o conceito de fonte do direito, cf. Adriano Soares da Costa. Teoria
da incidência da norma jurídica. Crítica ao realismo lingüístico de Paulo de
Barros Carvalho. Belo
Horizonte: Del. Rey. 2003. p. 4.
03.
Cf. nosso Fundamentos do Dever Tributário. op. cit. p. 74.
04.
Curso de Direito Tributário. 14ª ed. São Paulo: Saraiva. 2002. P. 141-142.
Cf. também, Miguel Reale, Introdução à filosofia. 3ª ed. São Paulo:
Saraiva.1994. p. 143-145.
05.
Cf. nosso Fundamentos do Dever Tributário. op. cit. p. 70-85.
06.
BVerGE 34. 269, Jürgen Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e
validade, v. 1, 1997, p. 303. Apud. BARROSO, Luís Roberto.
Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro
(pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Revista Diálogo Jurídico.
Salvador. CAJ - Centro de Atualização Jurídica. v. I. nº 6. setembro de 2001.
Disponível em: www.direitopublico.com.br.
07.
Ética. 23ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2002. p. 22-24.
08.
Moral tributaria del Estado y de los contribuintes. Tradução de
Pedro M. Herrera Molina. Madrid.
Marcial Pons. 2002. p. 21.
09.
Cf. Liberdade, Segurança e Justiça no Direito Tributário, Justiça Tributária
- I Congresso Internacional de Direito Tributário Vitória - 12-15 de agosto
de 1998. São Paulo. Max Limonad. 1998. p. 684-685.
10.
John Rawls. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes.
1997. p. 219.
11.
Cf. José Casalta Nabais. O dever fundamental de pagar impostos. Almedina.
Coimbra. 1998. p. 679.
12.
Para uma ampla visão do tema, autonomia privada, simulação e elusão
tributária, cf. Heleno Tôrres, Direito Tributário e Direito Privado. São
Paulo. Revista dos Tribunais. 2003. passim
13.
Cf. Ricardo Lobo Torres. O princípio da transparência fiscal. Publicação da
Conferência pronunciada em 27.10.200 no XIV Congresso Brasileiro de Direito
Tributário, promovido pelo IGA/IDEPE em São Paulo. Malheiros. São Paulo. Revista
de Direito Tributário. v. 79. p. 9.
14.
Cf. Ricardo Lobo Torres, Solidariedade e Justiça Fiscal, in, "Estudos
de Direito Tributário em homenagem à memória de Gilberto de Ulhôa Canto" [coord]
Maria Augusta Machado de Carvalho. Rio de Janeiro. Forense. 1998. p. 301 e 303.
15.
Justiça fiscal e princípio da capacidade contributiva. São Paulo:
Malheiros. 2002. p. 43.
16.
Curso de Derecho Financiero Español. 13ª ed. Madrid. Marcial Pons. 1991. p. 318.
17.
Cf. Aristóteles. Ética à Nicômaco. São Paulo: Martin Claret. Livro II.
2002. p. 47-49.
18.
Cf. José Casalta Nabais. op. cit. p. 674-679
19.
"Ética é Justiça" 6ª ed. Petrópolis: Vozes. 2001. 13
20.
"Ética é Justiça" op. cit. p. 9.
21.
Cf. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. v.5. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2000.
p. 179-180.
22.
Cf. John Rawls. Uma Teoria da Justiça. op. cit. p. 303-313.
23.
Assim dispunha o art. 15, § 1º da Cf de 1946: "São isentos do imposto de
consumo os artigos que a lei classificar como o mínimo indispensável à
habitação, vestuário, alimentação e tratamento médico das pessoas de restrita
capacidade econômica."
24.
Decadência e prescrição no direito tributário. 2ª ed. São Paulo: Max
Limonad. 2001. p. 54-55.
25.
Sobre a distinção entre incidência e aplicação, por todos, Adriano Soares da
Costa, Teoria da incidência da norma jurídica...op. cit. p. 28-36.
26.
Cf. Fundamentos do Dever Tributário. p. 102.
*Mestre em Direito Tributário, professor do Departamento de
Direito Público das Universidades Católica de Petrópolis (UCP) e Estácio de Sá (UNESA)
de Juiz de Fora (MG), procurador do Município de Areal (RJ), membro do Conselho
Científico da Associação Paulista de Direito Tributário (APET)
NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Valores jurídico-tributários implícitos na linguagem do texto constitucional . Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 123, 5 nov. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4467>. Acesso em: 15 fev. 2007.