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A desrazão tributária
Roberto Wagner Lima
Nogueira*
"A fé e a razão (fides
et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se
eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem
o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de conhecer a ele, para
que, conhecendo-o e amando-o, possa chegar também à verdade plena sobre si
próprio."
Carta Encíclica Fides et
Ratio, do Sumo Pontífice João Paulo II, 7ª ed. São Paulo: Paulinas, 2004,
p. 5.
1.
Articulações preambulares.
Sem
dúvida alguma é dominante no Brasil uma total desrazão tributária
e até mesmo indignidade tributária, ofendendo assim o art. 1º,
inciso III da Constituição Federal, que trata do Princípio da Dignidade
da Pessoa Humana como Fundamento da
República Federativa do Brasil, na medida em que o tributo aqui é arrecadado em
benefício dos mais ricos ou dos detentores dos fatores reais de poder
(O que é uma Constituição. Ferdinand Lassale, Belo Horizonte: Líder,
2002), ou noutro dizer, o tributo (como recurso financeiro) não se destina
essencialmente aos mais pobres. Ademais de a carga tributária ser altíssima,
ela não é revertida em benefício dos mais necessitados.
Onde
estará a nossa razão que permite tamanha desrazão tributária?
No
ranking de Pobreza Humana elaborado pela ONU (Organização das Nações Unidas),
que faz parte do Relatório de Desenvolvimento Humano de 2004, cujo objetivo é a
análise das condições de bem-estar social em 177 países, o Brasil está na 18ª
posição no índice de Pobreza Humana. Numa lista de 95 países em
desenvolvimento, o Brasil ficou atrás de Paraguai, Colômbia, Chile, Venezuela e
Uruguai, com 11,8% das pessoas vivendo na pobreza. Esse indicador de Pobreza
Humana, leva em consideração as chances de se viver até os 40 anos, a taxa de
pessoas sem acesso à água tratada e a parcela de crianças menores de 5 anos
abaixo do peso. (1)
É
neste quadro social que este estudo se insere, procurando margear o conceito do
tributo frente aquilo que vamos chamar de nossa desrazão tributária, desrazão
esta que chega às raias da ofensa ao princípio jurídico da dignidade da pessoa
humana (art. 1º, III da CF).
Noutro
afirmar, o tributo é visto sob sua perspectiva teleológica. Qual o fim visado
pela arrecadação do tributo? Qual o papel do tributo arrecadado frente à
tamanha desigualdade social? Não obstante nossa altíssima carga tributária,
também somos geradores de uma profunda miséria social, por que? Manfredo
A. de Oliveira (2) já advertira que,
A
convivência da miséria e da pobreza aponta para o escândalo moral, que emerge
como fruto de um novo ethos social, aquele que faz do cultivo da própria
individualidade o valor supremo (...); o individualismo cada vez mais acentuado
torna muitos insensíveis ao fosso escandaloso entre os níveis altíssimos de
concentração de renda e as condições de vida miseráveis de milhões de
brasileiros.
O
iter delineado almeja correlacionar a idéia do tributo na sociedade
pós-moderna, com o conceito do caráter social do gasto público, e por
conseguinte o efeito social esperado por este gasto, i.e, distribuição de renda
e diminuição da desigualdade social. Tributo que não gera diminuição de
desigualdade social é tributo ilegítimo porque malversado. Analisaremos a
questão posta elegendo como base empírica o gasto público do Governo Federal.
2.
A impureza tributária.
A
idéia da impureza tributária aqui defendida por nós, de há muito vem
sendo elaborada com fina sensibilidade por Ives Gandra da Silva Martins (3),
senão vejamos,
Como
se percebe, estou procurando desenvolver neste trabalho uma linha de raciocínio
em que o elemento normativo seja apenas um dos componentes da realidade
jurídica, onde o fato e sua valoração, não de mero juízo de valor, mas de um
juízo de valor "justo", ocupem idêntico espaço na criação do
ordenamento jurídico. Por esta razão, todo o meu estudo parte de pressuposto
absolutamente distinto daqueles que diminuíram o direito, reduzindo-o a uma
arte de costureiro de outras ciências e não o transformando em ciência das
ciências, capaz de permitir a convivência social pelo correto ordenamento de
todos os fatos que a influenciam.
O
direito tributário positivo é ontologicamente tridimensional já o afirmamos
(4), i.e, uma implicação normativa (dogmática tributária) de
fatos econômicos (sociologia tributária) consoante valores (filosofia
tributária). Ditos elementos ou fatores não existem separados uns dos
outros, mas coexistem numa unidade que é a realidade histórica cultural. (5)
Não se trata de ver a interdisciplinaridade como uma "orgia" das
ciências sociais como bem já criticou Evaldo Cabral de Melo (6), porém, ver na
interdisciplinaridade o fenômeno da complexidade na linha de Edgar
Morin. (7)
Se
for certo que o "corte" inicial que demarca o objeto científico se dá
no continuum heterogêneo da realidade circundante, para propiciar o descontinuum
homogêneno de cada ciência em particular, nas lições de Paulo de Barros
Carvalho assoalhado em Rickert (8), tal "corte" metodológico, ao
nosso sentir, é um artifício que distingue para depois unir, i.e, não
se trata de abandonar o conhecimento das partes pelo conhecimento das
totalidades, mas, sim, de conjugar. Conjugar é diferente de sintetizar: na
síntese se reduz; na conjugação, distingue-se para unir. Portanto, distingue-se
a sociologia tributária, a filosofia tributária e a dogmática tributária, para
então conjugá-las no que chamamos direito tributário positivo, ou seja, uma
integração normativo-positiva de fatos segundo valores.
O
princípio do dever fundamental de pagar o justo tributo possui base empírica no
art. 3º, I da Constituição Federal, e mormente nos artigos constitucionais que
distribuem competência tributária aos entes da federação, i.e, na medida
em que a União tem competência tributária para instituir impostos sobre a
importação de produtos estrangeiros (art. 153, I), o contribuinte tem o dever
fundamental de pagar o justo imposto sobre a importação, e assim se dá com os
outros impostos e demais tributos do sistema tributário nacional: a cada
competência tributária corresponde um dever fundamental do
cidadão-contribuinte; eis aí uma das vertentes da cidadania fiscal.
Na
pós-modernidade não há mais espaços para afirmações como de outrora, e.g,
o direito tributário tem como limite de seu campo de especulação, o pagamento
do tributo, tributo pago torna-se recurso público, portanto, matéria de direito
financeiro, infensa à inconstitucionalidade, sujeita tão somente à fiscalização
dos Tribunais de Contas quanto à responsabilidade do gestor da res publica. Na
pós-modernidade prevalece o complexo, o híbrido, o plural, logo, tanto o
direito tributário quanto o financeiro dialogam entre si, para juntos,
declararem a justeza ou não dos valores arrecadados e gastos a título de
despesas públicas. Daí porque ressai forte no pós-positivismo, o Princípio
constitucional do justo gasto do tributo arrecadado (9), princípio este que
transita à vontade em ambas searas, sem qualquer pretensão a exclusividade de
ramo, senão apenas o forte desejo de dar eficácia ao princípio maior da justiça
tributária e da eficácia social do gasto público.
O
conceito de autonomia, ainda que didática do direito financeiro está
fragilizado, isto porque segundo Edgar Morin, (10) "a supremacia do
conhecimento fragmentado de acordo com as disciplinas impede freqüentemente de
operar o vínculo entre as partes e a totalidade, e deve ser substituída por um
modo de conhecimento capaz de apreender os objetos em seu contexto, sua
complexidade, seu conjunto". É dentro desta perspectiva complexa no
sentido empregado por Edgar Morin, que devemos entender a suposta autonomia do
direito financeiro, ou seja, os ramos do direito embora estudados
separadamente, hão que ser reunidos para uma compreensão total do direito, e
por sua vez, o direito deve dialogar com outras ciências para que só assim
possamos recompor o todo, o complexo, de modo que a complexidade é a união
entre a unidade e a multiplicidade.
3.
O gasto público federal é uma opção pelos mais ricos.
Falar
em gasto público é discorrer sobre a utilização da receita orçamentária do
Estado brasileiro. É de correntia sabença que o Estado Fiscal sobrevive às
expensas dos tributos, portanto, de receita derivada na linguagem do Direito
Financeiro. Destarte, não é nenhum absurdo retórico afirmarmos que o gasto
público é em última análise: o gasto do tributo arrecadado.
Tomando
como base o governo federal, urge rememorarmos que em 13 de novembro de 2003, o
Governo Federal fez publicar no site do Ministério da Fazenda (11), o
robusto estudo denominado: "Gasto social do Governo Central
2001/2002". Referido trabalho é uma nítida radiografia da pior distorção
do Estado brasileiro: a de gastar mais com os mais ricos. (12) O próprio estudo
reconhece através de fartos dados, número e gráficos, que em outros países, o
Estado corrige e diminui a desigualdade quando distribui os recursos
tributários arrecadados, porém, no Brasil, o Estado quando gasta confirma a
desigualdade.
Em
outras palavras: o Estado brasileiro ainda não fez uma opção social pelos menos
aquinhoados...
Em
2002, o gasto dos tributos arrecadados pelo governo federal no campo social foi
de R$204,2 bilhões, todavia, de todo este fabuloso gasto, 1,5% foram para os
programas de renda mínima e 73% foram para aposentadorias e pensões. Destes 73%
gastos com a previdência, a maior parcela foi para os 20% mais ricos. O estudo
ainda revela outra distorção, quando aprofunda no gasto da previdência por
faixa etária e o compara com o da Espanha. Lá o gasto maior é com quem tem mais
de 70 anos, já aqui no Brasil, o gasto maior concentra-se na faixa de 45 e 60
anos, revelando assim a prematuridade de nossas aposentadorias.
Em
país rico aposenta-se mais tarde - Espanha. Em país pobre aposenta-se mais cedo
- Brasil.
Outro
fato notado com propriedade pela jornalista Miriam Leitão (13) no estudo sob
enfoque, é que os gráficos quando tratam da "redução na desigualdade
provocada por tributos e transferências" chegar a ser alarmante.
Analisemos os critérios. Primeiro, é mostrado a desigualdade do país comparando
a renda inicial de cada cidadão; segundo, como fica esta desigualdade quando o
governo faz suas transferências; e terceiro, depois que se pagam os tributos.
Conclusões: em países como Bélgica, Suécia, Alemanha, Dinamarca, Espanha,
Canadá, Reino Unido, Austrália e EUA, a desigualdade cai fortemente depois que
o Estado recolhe e distribui as receitas tributárias, já no Brasil quase não há
diferença, mais um flagrante de que o Estado brasileiro é ratificador da
desigualdade social, ou seja, é um Estado Fiscal que ainda não fez uma opção
pelos mais pobres...
O
estudo ainda afirma: a desigualdade é antieconômica, países mais desiguais
precisam de uma taxa de crescimento mais alta do que países mais igualitários
para obter uma dada redução percentual na incidência da pobreza. (14)
No
campo do gasto com a universidade pública gratuita, que sabidamente favorece
aos mais ricos da população, o Ministério da Fazenda informa que o custo médio
por aluno do curso superior é estimado em cerca de 170% do PIB (produto interno
bruto) per capita. Já nos países da OCDE, o custo é estimado em 100% do PIB per
capita, i.e, no Brasil, não obstante a pobreza que grassa aos borbotões,
gasta-se mais que os países ricos com a educação gratuita dos mais ricos...
redundância enfática que se impõe.
Vejam
que no Uruguai o gasto per capita com educação pública é de 21%; no Chile 20%;
na China 65%; e na Índia, 93%, já no Brasil, 170%. Tendo em vista que este
gasto com as universidades públicas, beneficiam os 10% mais ricos da população,
sobre resta gritantemente cristalina, uma política de gasto educacional
distorcida, gerando ainda mais desigualdade social.
Por
fim, vale o registro do convite salutar feito pela jornalista Miriam Leitão:
"Quem já se perguntou alguma vez por que o Brasil é tão desigual, quem já
achou que paga imposto demais e não vê isso se revertendo em redução de
pobreza, quem já se indignou, deve entrar no site e ler o documento da Fazenda.
Lá está a fotografia da insensatez. Nenhum dinheiro público é neutro. Ele
reflete as escolhas que uma sociedade faz. O Brasil tem escolhido e confirmado
anualmente ser assim tão desigual". (15)
É
curioso ainda ressaltar, que todos os estudos oficiais sobre renda, partem da
premissa de que a família que tem receita total a partir de R$2,3 mil, ou o
brasileiro com per capita de R$856 mensais, são considerados ricos.
Para
o economista Eduardo Gianetti, em comentários a este estudo elaborado pelo
Governo Federal, o grande constrangimento político está em que os grupos
beneficiados pela distribuição equivocada dos recursos sociais são os que têm
grande poder de mobilização para protestar contra mudança, por exemplo, os que
se levantaram contra as reformas da previdência.
Para
o professor Gianetti, a desigualdades sociais têm três fontes: a falta de
oportunidades, como o acesso ao ensino superior; a demográfica, já
que as mulheres pobres têm taxas bem superiores de natalidade; e o direcionamento
equivocado do gasto público. Segundo ele, é no redirecionamento dos
programas sociais para os quais são destinados os recursos financeiros oriundos
dos tributos que o governo pode atacar e corrigir com agilidade as
desigualdades. (16)
O
atual Ministro da Fazenda, Antonio Palloci, na abertura da Quarta Conferência
Nacional da Assistência Social, disse que um acréscimo de 10% nos níveis de
renda da população mais pobre teria o mesmo efeito de fazer o país crescer 3,5%
ao ano durante 25 anos. É interessante notarmos nestas palavras do ministro,
uma constatação de todos aqueles que militam na economia, i.e, não obstante o
Brasil ter sido um dos países que mais cresceu durante o século XX, tal
crescimento não redundou em diminuição da desigualdade social, pelo contrário.
Certamente,
a desigualdade social não é fruto de uma baixa carga tributária, a carga
tributária do país está entre as mais altas do mundo (36% do PIB), há
estimativas até piores para este ano. O próprio secretário da Política
Econômica da Fazenda, Marcos Lisboa, reconhece que: "o que impede uma
melhor distribuição de renda no país não é a arrecadação de impostos, mas sim o
mau uso do dinheiro recolhido. - Arrecadação não é problema. Temos uma
arrecadação no Brasil tão alta quanto a de países desenvolvidos. O problema são
os gastos". (17)
Oferecendo-nos
uma outra perspectiva sobre a questão do gasto sócial é a visão digna de
citação do economista Cláudio Salm, que procura chamar a atenção para o fato de
que, se a mesma carga tributária (alta) produz efeitos redistributivos maiores
em países ricos, se comparado com o nosso, isso não se deve tanto às
distorções, mas simplesmente ao fato de que o volume de recursos arrecadados
(per capita) por beneficiário nos países ricos é muito maior. Segundo ele, 1%
de nossa carga tributária destinado ao Fome Zero daria dois pãezinhos por dia a
cada 22 milhões de brasileiros necessitados. Já nos Estados Unidos, 1% de sua
carga tributária daria para fornecer ticket-academia de ginástica para todos os
seus obesos. (18)
Interpretação
como esta do economista Cláudio Salm, nos revela como ele mesmo acentua, que
por mais importantes que sejam os gastos sociais, e os são, não há como escapar
que só o crescimento, com redistribuição, poderá ter real eficácia na superação
do nosso quadro de pobreza e desigualdade.
4.
Gasto público, ética e miséria social.
A
decisão de gastar é fundamentalmente uma decisão política. O administrador
elabora um plano de ação, descreve-o nas leis orçamentárias, aponta os meios
disponíveis para o seu atendimento e efetua o gasto. A decisão política já vem
inserta no documento solene de previsão de despesas. O plano de gastos é fruto
de convicções políticas, religiosas, sociais e ideológicas do grupo que está no
poder. Estabelecidas estas prioridades, mediante autorização legislativa
(aprovação da lei orçamentária ou de créditos especiais e complementares),
opera-se a despesa (saída de dinheiro) pelas formas estabelecidas em lei.
Precisamos
aprofundar a noção trágica de como é nocivo à sociedade o gasto público
indevido, desnecessário. Precisamos de transparência no gasto público e na
gestão da coisa pública. Precisamos de eficiência e economicidade na forma de
gerir o estado brasileiro, para enfim, em meio a tantas escolhas trágicas ¾ e trágica por que sempre em detrimento de
muitas outras também relevantes ¾
fazermos a mais adequada e a mais justa para o desenvolvimento de nossa "sociedade
de miseráveis" como já verberou o filósofo Manfredo. A de Oliveira.
(19)
A
correta adequação do gasto público está diretamente relacionada com os direitos
do homem, e hoje, como bem alerta Norberto Bobbio (20), o problema fundamental
dos direitos do homem, "não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los.
Trata-se de um problema não filosófico, mas político". (grifos em itálico
no original). Sabidamente, o século XX foi o da técnica, o XXI será o da ética,
ou não teremos o que festejar daqui a cem anos, já o disse o ex-Ministro da
Educação, Cristovam Buarque. (21)
Realmente,
o século XXI há de ter como meta à proteção dos valores éticos como
definidores dos objetivos sociais, subordinando a economia e os gastos públicos
a estes objetivos, e fazendo da técnica uma simples ferramenta de uma utopia
definida eticamente. Todos queremos um país decente, com uma democracia
republicana, que respeite o povo (redundância que se impõe!), e o dinheiro
público, e na qual os direitos à justiça, à segurança, à eficiência do setor
público sejam ofertados de forma digna a todos. Um país sem corrupção, e que
confira uma garantia, uma proteção a um mínimo existencial aos seus
cidadãos, isto é, escola para todas as crianças, sistema de saúde assegurado a
todas as famílias que dele necessitarem e a todo adulto, um emprego. Isto
exige, mudanças de postura, inversão nas prioridades até então eleitas e
eliminação de privilégios cada dia mais difíceis de se manter, para só assim o
gasto público verter-se em gasto ético.
Precisamos
melhor entender "nossas condutas no poder" (22). Concordamos com o
antropólogo Roberto DaMatta. Sem descobrirmos as relações profundas entre a lei
(conscientemente escrita, promulgada e implementada em função dos
"indivíduos") e os "amigos do poder" (que são regidos por
regras implícitas e internalizadas em códigos muito mais difíceis de enxergar),
pouco avançaremos no entendimento e superação da realidade social brasileira.e
latino-americana. (23)
Veja
caro leitor, que o relatório de 2003 da Controladoria Geral da República, sobre
o uso de verbas federais, mostra um quadro devastador de corrupção nos
municípios. Segundo o levantamento feito pelos fiscais, foi detectado
irregularidades em obras e financiamentos em 33 dos 50 municípios submetidos a
uma devassa fiscal em agosto de 2003. São fraudes que vão de desvio de recursos
do Bolsa-Escola a repasse de até R$17,7 milhões para empreendimentos
inexistentes. (24)
Lembremos
que assim como foi a escravidão, a questão da pobreza no Brasil é primeiro, uma
questão moral, depois uma questão técnica e política. São sábias as palavras do
ex-Ministro da Educação Cristovam Buarque, do governo Lula quando diz: "O
fim da pobreza depende, por isso, do Estado: ético, no compromisso com um país
sem pobreza; competente, para formular soluções simples que enfrentem o
problema diretamente; austero, para não desperdiçar recursos; forte, capaz de
levar adiante suas políticas sociais; e pequeno, para não cair no pântano da
burocracia. Para financiar, bastaria definir uma hierarquia de nossas dívidas: paguemos
todas elas, mas primeiro as dívidas com os pobres, entre estes, as crianças,
através da educação." (25)
Para
tal enfrentamento, é necessário não só uma séria e profunda avaliação do gasto
público, mas, também, para que todos estes desejos de proteção (insistimos
aqui em Bobbio) se efetivem, é preciso conforme ensina Rubens Ricupero (26),
restituir o sentido original perdido pela economia, que é fazer com que ela
seja capaz de satisfazer os três principais tipos de necessidades humanas: as materiais,
as de relações entre as pessoas, as espirituais (necessidades de cultura, arte,
meditação, interioridade, todo o domínio do simbólico). Ora, a economia atual
prefere estimular necessidades artificiais em detrimento das de ordem
relacional ou cultural. Assim também é o pensamento do professor
norte-americano John Rawls (27), que dá sua contribuição no ramo da filosofia
política, para estabelecer parâmetros éticos, para a redefinição do modelo de
justiça distributiva pugnado pela tradição democrático-constitucional dos
últimos duzentos anos, que foi atropelado pela voracidade do liberalismo
econômico, o qual, ao estremar a defesa ilimitada da liberdade de acumular
riquezas acabou por também estremar, por outro lado, a concentração de miséria.
5.
Tributo e Estado.
O
tributo é um direito da sociedade e não do Estado. Tributar é um dever do
Estado, porém, o tributo é um direito da sociedade. A assertiva é óbvia, talvez
uma daquelas obviedades de que falava Alfredo Augusto Becker, todavia,
repisemo-la: o tributo é um direito da sociedade e um dever do Estado. Neste
sentido, o tributo não é um direito do Estado, até porque o Estado nas mais das
vezes é um delinqüente tributário. Esta distinção é importante na
medida em que com ela podemos separar os interesses do Estado dos interesses da
sociedade, cujo antagonismo se acentua com o passar dos dias.
O
tributo é da sociedade e não do Estado. Neste sentido o tributo arrecadado não
é do Governo Lula, ou do Governo FHC, mas, sim, da sociedade brasileira. Da sociedade
de miseráveis de que nos fala Manfredo A. de Oliveira. Assim como o direito
de punir não é do Estado, mas sim da sociedade como nos ensina o
procurador-geral da República, Dr. Claudio Fonteles, o tributo também não é do Estado,
mas da sociedade.
Ratificar
estas obviedades nos parece ser sempre oportuno quando vemos governos e mais
governos gastando o tributo da sociedade em obras inacabadas, licitações
superfaturadas, avião de luxo, prédios públicos suntuosos, salários nababescos,
viagens desnecessárias, enfim, quando assistimos o total desrespeito ao tributo
sofridamente arrecadado do bolso do contribuinte brasileiro. Não bastassem
estas distorções, ainda temos no inventário da delinqüência tributária a péssima
qualidade do serviço público prestado no Brasil.
Do
ponto de vista dogmático podemos vislumbrar duas relações jurídicas a partir
das colocações supra. Na primeira o Estado é credor em nome da sociedade, de
uma obrigação de dar dinheiro (comportamento) cujo sujeito passivo é o
contribuinte que revele capacidade contributiva (art. 145, § 1º da CF). Na
segunda, o cidadão é o sujeito ativo, credor do Estado, que é devedor do
tributo arrecadado, ou seja, o Estado é devedor do tributo que se tornou receita,
daí porque quando mal gasta estes recursos tributários está sujeito as
responsabilidades pela malversação do tributo da sociedade. (28) Em ambas
relações jurídicas o elemento legitimador é a adequação do agir do Estado
com o interesse da sociedade, reside aqui o princípio do justo gasto do
tributo arrecadado.
Corolário
do princípio da moralidade e da eficiência, ambos previstos no art. 37 da
Constituição Federal, o princípio do justo gasto tributo arrecadado,
encontra base empírica ainda em diversos outros artigos do Texto
Constitucional, a destacar o 37 já mencionado, o art. 3º I, bem como o art. 70 caput.
Na
era do Estado Fiscal, a qual vivemos hodiernamente, o tributo é a receita
derivada que dá sustentação à existência do Estado, daí crescer a importância e
a correta aplicação dos princípios que norteiam o gasto público. Moralidade,
eficiência, economicidade e legitimidade são conceitos jurídicos que formam o
núcleo substancial do princípio do justo gasto do tributo arrecadado. Gastar de
forma justa os valores arrecadados mediante a tributação, é gastar de forma a
atender a moral, a eficiência, a economicidade e a legitimidade, enfim, atender
os anseios da sociedade, porque insista-se, o tributo é um direito da
sociedade e não do Estado.
Cabem
ao Judiciário, ao Ministério Público Federal, a própria sociedade organizada e
mormente aos Tribunais de Contas a missão constitucional, na forma do art. 70 caput
da Constituição Federal, de viabilizar na realidade jurídica brasileira, a
aplicação do princípio do justo gasto do tributo arrecadado, otimizando os
conceitos jurídicos de legalidade, economicidade e legitimidade na aplicação
dos recursos públicos, punindo os agentes públicos que malversarem os escassos
recursos públicos.
O
princípio em questão envolve os gastos de todas as espécies tributárias
arrecadadas (impostos, taxas, contribuições de melhorias, empréstimos
compulsórios e as contribuições em geral). Insista-se à exaustão: na pós-modernidade
prevalece o complexo, o híbrido, o plural, logo, tanto o direito tributário
quanto o financeiro dialogam entre si, para juntos, declararem a justeza ou não
dos valores arrecadados e gastos pelo Estado. Tributo arrecadado cuja receita é
malversada, é tributo injustamente arrecadado, portanto, tributo passível de
devolução, bem como, de punição dos responsáveis pela má utilização dos
recursos públicos.
Diante
deste princípio constitucional, fica patente a duvidosa constitucionalidade da
Emenda Constitucional nº 42/2003, que fez alterar a redação do art. 76 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias, que diz: "Art. 76. É
desvinculado de órgão, fundo ou despesa, no período de 2003 a 2007, vinte por
cento da arrecadação de impostos e contribuições sociais e de intervenção no
domínio econômico, já instituídos ou que vierem a ser criados no referido
período, seus adicionais e respectivos acréscimos legais".
Trata-se
dos propalados Fundo Social de Emergência (FSE), ou Fundo de Estabilização
(FEF), que ofendem gravemente princípios orçamentários. Pois bem. O justo gasto
do tributo arrecadado no caso das contribuições sociais é justamente, a
afetação dos recursos aos fins desejados pela lei e pela Constituição, i.e, a
lei ou a emenda constitucional não pode contrariar o próprio Texto
Constitucional. Na medida em que a EC 42/2003 desvincula 20% dos valores
arrecadados a título de contribuições sociais da União, fere de morte o tributo
contribuição social e o princípio do justo gasto do tributo arrecadado, sendo
tais valores passíveis de devolução ao cidadão-contribuinte, até porque o
tributo é da sociedade e não do estado, logo, o respeito à Constituição há que
ser prévio a qualquer temática que envolva a instituição de tributos e seu
gasto, controlando-se desta forma a contumaz delinqüência tributária do Estado
Fiscal brasileiro.
6.
A nefasta burocracia fiscal no Brasil.
Segundo
matéria veiculada na VEJA (29), que faz menção ao documento Fazendo Negócios
2004 (Doing Business 2004), o Banco Mundial classificou 133 países por sua
capacidade de incentivar o crescimento econômico e a geração de empregos. Os
itens pesquisados pertencem ao universo da chamada microeconomia, ou
"economia real" como querem alguns especialistas. Referido trabalho
esmiuçou como as leis e a burocracia dos países interferem no processo natural
de nascimento, vida e morte das empresas. O Brasil não foi nada bem na
avaliação dos técnicos. O estudo mostra que a legislação brasileira é um emaranhado
burocrático que asfixia a atividade empresarial, por isto é um poderoso
obstáculo à criação de empregos, além de incentivo à corrupção.
Importante
conclusão parcial. Alta carga tributária, má distribuição de receita tributaria
arrecadada e burocracia asfixiante é igual a: desigualdade social.
O
trabalho do Banco Mundial citado por VEJA, em sua linha mestra focou 4
vertentes. 1. Burocracia para abrir uma empresa; 2. burocracia para
fechar uma empresa; 3. qualidade das leis trabalhistas e 4. funcionamento
da justiça. Pois bem.
Quanto
ao item 1. O Brasil tem o sexto pior desempenho da lista. Aqui, para se abrir
uma empresa leva-se em média 152 dias. O Brasil só está melhor neste item que
Moçambique (153 dias), Indonésia (168 dias), Laos (198 dias), Haiti (203 dias)
e República Democrática do Congo (215 dias). Os melhores são Austrália, (2
dias) e Canadá e Nova Zelância (3 dias cada).
Item
2. O Brasil é o segundo pior país do mundo no processo burocrático de fechamento
de empresas. O processo dura 10 anos. Só perdemos para a Índia, onde se consome
11,3 anos. Países do primeiro mundo levam em média 1,8 ano.
Item
3. O Brasil ficou na penúltima colocação neste item, em que o Banco Mundial
classificou os países pelo grau de adequação da legislação trabalhista à
necessidade de geração de empregos formais. Só o Panamá e Portugal têm leis
menos flexíveis que as nossas. As leis trabalhistas no Brasil são retrógradas
segundo o Banco Mundial, aparentemente protegem os trabalhadores, mas só os
desavisados crêem nisto, na verdade elas arrefecem o ritmo da criação de
empregos nos picos de expansão de economia, e nos abismos das crises, elas nada
podem fazer para evitar demissões.
Item
4. O Brasil tem a trigésima mais lenta justiça do mundo quando um credor
recorre a ela para fazer valer um contrato ou receber uma dívida. No Brasil, um
processo que visa o recebimento de uma dívida, dito de execução, leva em média
380 dias, enquanto na Tunísia isto ocorre em 7 dias, na Holanda em 39 e na Nova
Zelândia, em 50 dias.
Um
estudo do economista Armando Castelar Pinheiro, do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), também citado nesta matéria da VEJA, estima que uma
melhora radical no desempenho do Judiciário brasileiro traria um aumento de
13,7% nos investimentos, com repercussão positiva no nível de emprego.
Síntese
conclusiva deste tópico: ademais de gastar mal o recurso financeiro oriundo do
tributo, o Estado brasileiro ao longo dos anos burocratizou-se a ponto dele
mesmo ser um grandioso obstáculo ao crescimento econômico do país. Enfim,
paradoxalmente, mais Estado, mais pobreza e menos crescimento. Precisamos
mudar...
7.
O que nos separa de um país desenvolvido: EUA.
A
distância entre o nível de desenvolvimento das economias do Brasil e dos
Estados Unidos chega a oito décadas. São necessários hoje 84 anos para o país
alcançar o patamar de desenvolvimento dos americanos - tomando-se com base o
Produto Interno Bruto (PIB) per capita, total das riquezas produzidas
pelo país em um ano dividido pela população. Esta é a conclusão do estudo do
economista Marcelo Moura, doutor em economia pela Universidade de Chicago. (30)
Segundo
o estudo, o PIB per capita do Brasil em relação ao PIB per capita do
EUA em 1950 equivalia a 16%, i.e, a renda por habitante brasileiro era de 16%
de um habitante americano. Em 1980 atingiu o ápice de 31%, já no ano passado
recuamos para 21% da renda por habitante dos EUA.
Para
chegar a este cálculo de 84 anos, Marcelo Moura já considerou em seu cálculo
uma expansão econômica acelerada no caso brasileiro e a manutenção do ritmo
atual de avanço da economia americana nos últimos anos. Ou seja: o Brasil teria
que crescer levando o PIB per capita a um salto de 4% ao ano durante os
próximos 84 anos, até 2088, e os Estados Unidos manterem um crescimento per
capita de 2,1% ao ano durante todo este período.
Para
o Dr. Marcelo Moura a receita para o crescimento econômico é a seguinte. Livrar
as empresas para investirem mais, reduzindo para tanto a carga tributária, que
ao ver dele é sufocante. Investir o governo maciçamente em educação, saúde e
infra-estrutura, sem esquecer da segurança. Como exemplo de infra-estrutura
Marcelo Moura cita os investimentos essenciais em energia elétrica, transportes
e saneamento básico.
Segundo
Moura, se o Brasil chegasse à metade do nível de desenvolvimento americano
(medido em PIB per capita), já seria razoável, mas mesmo neste caso,
ainda seriam necessárias quase quatro décadas, i.e, 38 anos. Entretanto, se
chegássemos a este patamar, Moura afirma que seria um nível comparável a alguns
países europeus, como Portugal, e à Coréia do Sul.
É
interessante também notar neste estudo, que Marcelo Moura reinvindica com
ênfase a indispensável eficiência no controle e gasto dos recursos públicos.
Segundo ele não adianta o governo ficar apenas aumentando a arrecadação, se não
introduzir um sério ajuste nos gastos do governo federal.
Para
Moura, o Estado brasileiro gasta mal. Só em aposentadoria, por exemplo, gasta
11% do PIB, enquanto nos países ricos, despesa semelhante está na faixa de 3,5%
do PIB. A reforma da Previdência estancou a sangria, mas não corrigiu o
problema. Outro exemplo nocivo mencionado pelo estudo é a área de educação,
onde os mais pobres não têm mais recursos porque o ensino superior recebe
verbas elevadas. Para ele, o que mais favorece a distribuição de renda é
investir em educação. (31)
8.
A necessidade de mais severidade na fiscalização orçamentária.
É
cientificamente comprovado que só a vigilância diminui a corrupção, neste
sentido se posicionam algumas das conclusões dos estudos do Professor de
Economia da Universidade de Chicago, Steven Levitt, que recentemente foi
agraciado com a medalha Clark, honraria que é considerada uma indicação de que
seu ganhador pode estar a caminho do Prêmio Nobel. (32)
Levitt
se destaca no estudo da chamada "economia empírica", ou seja,
economistas empíricos são aqueles que pouco se interessam por taxas de juros,
cotação das moedas ou dívida pública. Eles preferem analisar fenômenos do
cotidiano, e.g, corrupção, criminalidade, discriminação racial etc. Para
ele e seus colegas, a ciência econômica pode ajudar a sociedade melhor
compreender estes fenômenos.
Em
algumas das pesquisas feitas por Levitt e outros pesquisadores empíricos,
constatou-se que há algumas espécies de crimes que ocorrem independentemente de
fatores sociais como a pobreza e o desemprego, ou seja, os crimes de
espancamento de filhos e os crimes passionais ocorrem na mesma proporção em
todas as classes sociais. Outra constatação, é que nos períodos eleitorais as
taxas de criminalidades são inferiores à média histórica anteriores aos pleitos
eleitorais, porque os prefeitos tendem a aumentar o efetivo na rua quando as
eleições se aproximam. Resultado: a polícia na rua fez cair a criminalidade.
Utilizando-nos
grosso modo destes estudos dos economistas empíricos norte-americanos, podemos
afirmar que a vigilância orçamentária fatalmente produzirá como conseqüência
imediata, uma melhor eficiência dos gastos públicos no Brasil.
Vigiar
é tentar impedir a corrupção, que é um elemento altamente destruidor no que
concerne ao gasto público. Em livro (33) sabiamente didático, Antonio Marmo
Trevisam e outros, ensinam os caminhos da corrupção no Brasil e possíveis
medidas para coibi-la. Sinalizam os autores, como fruto da experiência que viveram
na cassação do prefeito de Ribeirão Bonito, em São Paulo, que algumas atitudes
administrativas revelam fortes indícios de corrupção no setor público, dentre
estas destacam-se:
a)-
sinais exteriores de riqueza, resistência das autoridades a prestar contas,
b)-
falta crônica de verba para os serviços básicos,
c)-
parentes e amigos aprovados em concursos,
d)-
falta de publicidade dos pagamentos efetuados,
e)-
comunicação por meio de códigos sobre transferências de verbas orçamentárias,
f)-
perseguição a vereadores que pedem explicações sobre gastos públicos.
Realmente,
a missão de fiscalizar o gasto público não é da mais fáceis, até porque há
verdadeiras quadrilhas (34) montadas para fraudar o dinheiro público. Não é à
toa aliás, que Constituição prescreveu decisivamente em seu art. 70, que:
"A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e
patrimonial da União e das entidades da administração direta e
indireta..." observará dentre outros os princípios da
legalidade, legitimidade, economicidade etc. Quer isto
significar que a análise do gasto público, envolve questões outras que não só a
tão burlada "legalidade".
Vejam
o conteúdo destes três aspectos a serem fiscalizados pelo Tribunal de Contas da
União, no que diz respeito ao gasto público.
8.1
Fiscalização orçamentária quanto à legalidade do gasto público.
É
a verificação no aqui-e-agora se os atos e gastos foram realizados em
consentâneo com as leis a eles aplicáveis. A palavra lei, aqui, não deve ser
compreendida na sua concepção mais restrita, mas em seu sentido amplo de forma
a abranger também as normas hierarquicamente superiores e inferiores (35).
Assim a fiscalização abrange portarias, decretos etc. Há divergências quanto à
possibilidade dos Tribunais de Contas, no exercício auxiliar de Controle
Externo juntamente com o Congresso Nacional (art. 71, caput da CF),
poderem declarar a inconstitucionalidade de leis.
8.2.
Fiscalização orçamentária quanto à legitimidade do gasto público.
O
conceito de legitimidade adentra a questão dos valores jurídicos, é conceito
que abrange não somente o aspecto puramente normativo (formal do ato), mas
também o aspecto valorativo, objetivando a coerência do ato com as regras e
princípios jurídicos a ele aplicáveis. Verifica-se aqui a legitimidade do gasto
público, do gasto do tributo arrecadado. Assim, determinado ato, ainda que
realizado em consonância com as leis pode não ser legítimo, por afrontar
princípios jurídicos, como a da moralidade administrativa (art. 37 da CF),
economicidade (art. 70, CF) tornando-se ilegítimo e passível de impugnação por
ocasião da fiscalização, e obrigatória sua devolução aos cofres públicos. Para
sua maior eficácia há que ser realizado preferencialmente de forma preventiva,
na análise prévia das minutas dos instrumentos que viabilizarão os futuros
gastos públicos.
Exemplo
de uma fiscalização a posteriori, um dispêndio excessivo com atividades
de representação ou mesmo cerimônias festivas, embora regulares do ponto de
vista legal, visto que financiados por verbas competentes do orçamento, podem
ter a sua legitimidade questionada. É dizer, reconhecer-se que aquela despesa
transcende ao que seria razoável a um ato daquela natureza.
Na
visão de Miguel Reale a validade de uma norma de Direito pode ser avaliada
sobre três aspectos: o da validade formal ou técnico-jurídica (vigência), o da
validade social (eficácia ou efetividade) e o da validade ética (fundamento).
(36) Pensamos que a legitimidade dos atos públicos também deve ser vista sob
uma perspectiva tridimensional pelo órgão fiscalizador que é o Tribunal de
Contas na forma do art. 70, caput da Constituição Federal. O Tribunal de
contas no exercício do controle fiscalizatório da legitimidade, há que levar em
conta estes três aspectos do ato a ser examinado. O ato administrativo, ou a
lei, ou uma conduta de um agente público sob fiscalização no aspecto de sua
legimitidade, há que ser compatível com o querer coletivo (legitimidade
social), ser adequada aos trâmites legais (legitimidade técnica) e por fim, ter
um fundamento justo que a alicerce (legitimidade ética ou axiológica), afinal,
o Direito consoante lição de Stammler citado por Miguel Reale, deve ser sempre
uma "tentativa de Direito justo" (37). Ausente um destes aspectos da
legimitidade, não será legítimo o agir do agente administrativo.
8.3.
Fiscalização quanto a economicidade do gasto público.
É
aquela que analisa os atos administrativos do ponto de vista
jurídico-econômico, no sentido de verificar-se se, por ocasião da sua
realização, houve adequada observância da relação custo-benefício, de modo que
os recursos públicos tenham sido utilizados da forma mais vantajosa e eficiente
para o poder público. É princípio a ser visto e aplicado frente a um caso
concreto, traduzindo-se num compromisso econômico com o cumprimento de metas
governamentais, inseridas na equação custo e benefício, onde a eficiência e
eficácia estão introduzidas como finalidade última de toda e qualquer receita
destinada a um interesse público.
O
princípio da economicidade está diretamente vinculado ao princípio da
eficiência. Não basta honestidade e boas intenções para validação dos atos administrativos.
O princípio da economicidade previsto no art. 70 da CF impõe a adoção da
solução mais conveniente e eficiente sobre o ponto de vista da gestão dos
recursos públicos, porquanto toda atividade administrativa envolve uma relação
sujeitável a enfoque de custo-benefício. (38)
O
princípio da economicidade segundo a doutrina de Marçal Justen Filho (39)
estrutura-se em três fatores que devem ser observados. Primeiro,
avalia-se a economicidade ou não da solução no momento da prática do ato, tendo
em vistas as circunstâncias e padrões razoáveis de conduta, avaliando-se se ela
se apresentou como a mais adequada frente ao conjuntos das informações
possíveis de serem obtidas; segundo, a observância na tomada de decisão
de outros valores que não somente os econômicos. O critério de seleção da
melhor alternativa não é sempre a maior vantagem econômica. Por exemplo: se o
menor custo envolver riscos à integridade de vidas humanas, o Estado deverá
optar por outra alternativa, ainda que economicamente mais onerosa; terceiro,
a melhor solução não pode estar exclusivamente fundada na vantagem econômica e
em detrimento de formalidades jurídicas, por exemplo, contratação direta sem
prévia licitação, ainda que vantajosa, só pode se dar nos casos excepcionais previstos
em lei.
9. Conclusões.
a)-
Se for certo que o "corte" inicial que demarca o objeto científico se
dá no continuum heterogêneo da realidade circundante, para propiciar o descontinuum
homogêneno de cada ciência em particular, nas lições de Paulo de Barros
Carvalho assoalhado em Rickert, tal "corte" metodológico, ao nosso
sentir, é um artifício que distingue para depois unir, i.e, não
se trata de abandonar o conhecimento das partes pelo conhecimento das
totalidades, mas, sim, de conjugar. Conjugar é diferente de sintetizar: na
síntese se reduz; na conjugação, distingue-se para unir. Portanto, distingue-se
a sociologia tributária, a filosofia tributária e a dogmática tributária, para
então conjugá-las no que chamamos direito tributário positivo, ou seja, uma
integração normativo-positiva de fatos segundo valores.
b)-
No campo do gasto com a universidade pública gratuita, que sabidamente favorece
aos mais ricos da população, o Ministério da Fazenda informou que o custo médio
por aluno do curso superior é estimado em cerca de 170% do PIB (produto interno
bruto) per capita. Já nos países da OCDE, o custo é estimado em 100% do PIB per
capita, i.e, no Brasil, não obstante a pobreza que grassa aos borbotões, gasta-se
mais que os países ricos com a educação gratuita dos mais ricos... redundância
enfática que se impõe.
c)-
As desigualdades sociais têm três fontes: a falta de oportunidades, como
o acesso ao ensino superior; a demográfica, já que as mulheres pobres
têm taxas bem superiores de natalidade; e o direcionamento equivocado do
gasto público. É no redirecionamento dos programas sociais para os quais
são destinados os recursos financeiros oriundos dos tributos que o governo pode
atacar e corrigir com agilidade as desigualdades.
d)-
A desigualdade social não é fruto de uma baixa carga tributária, a carga
tributária do país está entre as mais altas do mundo (36% do PIB), há
estimativas até piores para este ano. O próprio secretário da Política Econômica
da Fazenda, Marcos Lisboa, reconhece que: "o que impede uma melhor
distribuição de renda no país não é a arrecadação de impostos, mas sim o mau
uso do dinheiro recolhido. - Arrecadação não é problema. Temos uma arrecadação
no Brasil tão alta quanto a de países desenvolvidos. O problema são os
gastos".
e)-
A correta adequação do gasto público está diretamente relacionada com os
direitos do homem, e hoje, como bem alerta Norberto Bobbio, o problema
fundamental dos direitos do homem, "não é tanto o de justificá-los,
mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas
político". Sabidamente, o século XX foi o da técnica, o XXI será o da
ética, ou não teremos o que festejar daqui a cem anos, já o disse o ex-Ministro
da Educação, Cristovam Buarque.
f)-
Assim como foi a escravidão, a questão da pobreza no Brasil é primeiro, uma
questão moral, depois uma questão técnica e política.
g)-
Ademais de gastar mal o recurso financeiro oriundo do tributo, o Estado
brasileiro ao longo dos anos burocratizou-se a ponto dele mesmo ser um
grandioso obstáculo ao crescimento econômico do país. Enfim, paradoxalmente,
mais Estado, mais pobreza e menos crescimento.
h)-
O conceito de legitimidade do gasto público (tributo arrecadado!) adentra a
questão dos valores jurídicos, é conceito que abrange não somente o aspecto
puramente normativo (formal do ato), mas também o aspecto valorativo,
objetivando a coerência do ato com as regras e princípios jurídicos a ele
aplicáveis. Assim, determinado ato, ainda que realizado em consonância com as
leis pode não ser legítimo, por afrontar princípios jurídicos, como a da
moralidade administrativa (art. 37 da CF), economicidade (art. 70, CF)
tornando-se ilegítimo e passível de impugnação por ocasião da fiscalização, e
obrigatória sua devolução aos cofres públicos.
i)-
O princípio da economicidade está diretamente vinculado ao princípio da
eficiência. Não basta honestidade e boas intenções para validação dos atos
administrativos. O princípio da economicidade previsto no art. 70 da CF impõe a
adoção da solução mais conveniente e eficiente sobre o ponto de vista da gestão
dos recursos públicos, porquanto toda atividade administrativa envolve uma
relação sujeitável a enfoque de custo-benefício.
j)-
O tributo é um direito da sociedade e não do Estado. Tributar é um dever do
Estado, porém, o tributo é um direito da sociedade. Neste sentido, o tributo
não é um direito do Estado, até porque o Estado nas mais das vezes é um delinqüente
tributário. Esta distinção é importante na medida em que com ela
podemos separar os interesses do Estado dos interesses da sociedade, cujo
antagonismo se acentua com o passar dos dias.
NOTAS
1. Cássia
Almeida e Luciana Rodrigues. Brasil é o quarto país mais desigual do mundo – Os
10% mais pobres respondem por apenas 0, 5% da riqueza brasileira, enquanto os
ricos ficam com 46,7% da renda. Rio de Janeiro: O Globo. Economia.
15/07/2004, p. 21.
2. Ética
e racionalidade moderna. (Coleção filosofia: 28) São Paulo: Loyola, 1993,
p. 42-43
3. Teoria
da imposição tributária. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 1998, p.
180-181.
4. Cf.
nosso Direito Financeiro e Justiça Tributária. Rio de Janeiro: Lumen
Juris: 2004, p. 116-117.
5. Cf.
Miguel Reale. Lições preliminares de direito. 26ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2002. p. 65.
6. Segredos
de um Historiador. Rio de Janeiro: O GLOBO, Caderno Prosa & Verso.
20-09-03, p. 3.
7. Os
setes saberes necessários à educação do futuro. 4ª ed. São Paulo: Cortez,
2001. p. 38
8. Apud.
Heleno Tôrres, Direito Tributário e Direito Privado. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003. op. cit. p. 7.
9. Cf.
nosso Direito Financeiro e Justiça Tributária. Rio de Janeiro: Lumen
Juris. 2004. passim
10. "Os
sete saberes necessários à Educação do Futuro" 4ª ed. São Paulo.
Cortez. 2001. p. 14.
11. www.fazenda.gov.br.
12. Cf.
Miriam Leitão. Tudo é tão desigual. Rio de Janeiro. O Globo. Coluna Panorama
Econômico. 14/11/2003, p. 26.
13. Cf.
artigo já citado.
14. Cf.
Miriam Leitão, op. cit. p. 26.
15. Cf.
Miriam Leitão, op. cit. p. 26.
16. Cf.
Adauri Antunes Barbosa. Para especialistas, política social precisa mudar. Rio
de Janeiro. O Globo. 15/11/2003, p. 12.
17. Apud.
Adauri Antunes Barbosa, op. cit. p. 12.
18. O
caráter social do gasto público. Rio de Janeiro. O GLOBO. 27/11/2003, p.
7.
19. "Ética
e racionalidade moderna" São Paulo. Loyola. 1993. p. 42.
20. "A
Era dos Direitos" Rio de Janeiro. Campus. 1992. p. 24.
21. "Os
Instrangeiros" 2ª ed. Rio de Janeiro. 2002. p. 116.
22. Expressão
de Oliveira Vianna, apud, Roberto DaMatta, Conta de mentiroso – Sete
ensaios de antropologia brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p.
138.
23. Cf.
Roberto DaMatta, op cit. p. 138.
24. Cf.
Jaílton de Carvalho. De 50 municípios investigados, 33 têm irregularidades. Rio
de Janeiro. O Globo. 18/10/2003, p. 10.
25. "Os
Instrangeiros" op. cit. p. 65.
26. "Esperança
e Ação - Um depoimento pessoal" Paz e Terra. Rio de Janeiro. 2002. p.
268.
27. Uma
Teoria da Justiça. São Paulo. Martins Fontes. 1997.
28. Cf.
Gabriel Troianelli, Responsabilidade do Estado por dano tributário. São
Paulo: Dialética, 2004.
29. Eurípedes
Alcântara e Chrystiane Silva. O Brasil entre os piores do mundo. São Paulo. VEJA.
Edição 1.838, ano 37. nº 4, 28/01/2004, p. 72-79.
30. Apud.
Gustavo Villela, Oito décadas separam Brasil e Estados Unidos. Rio de
Janeiro. O Globo. 25/01/2004, p. 35.
31.
Apud, Gustavo
Villela, op. cit. p. 35.
32. Apud,
Leandro Beguoci, Prêmio para o bom senso. O economista Steven Levitt ganha
medalha que para muitos vale mais que o Nobel. Seu talento? Pensar! São Paulo. VEJA.
Economia e Negócios. Edição 1.837, ano 37. nº 3. 21/01/2004, p. 88.
33. O
Combate à corrupção nas prefeituras do Brasil. São Paulo: Ateliê, 2003, p.
24-30.
34. "As
quadrilhas que se formam para dilapidar o patrimônio público têm se
especializado e vêm sofisticando seus estratagemas. O modo de proceder varia:
apoderam-se de pequenas quantias de forma continuada ou então, quando o esquema
de corrupção está consolidado, de quantias significativas sem nenhuma
parcimônia". Antonio Marmo Trevisam e outros, op. cit. p. 19.
35. José
Maurício Conti, "Direito Financeiro na Constituição de 1988",
1ª ed. São Paulo. Oliveira Mendes. 1998. p. 4.
36. Miguel
Real, Licões Preliminares de Direito. 26ª ed. São Paulo: Saraiva. 2002.
p. 105.
37. Miguel
Reale, Lições preliminares de Direito. op. cit. p. 115.
38. Marçal
Justen Filho. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 9ª
ed. São Paulo: Dialética. 2002, p. 70.
39. Cf. Comentários à Lei
de Licitações...op. cit. p. 70-71.
*Mestre em Direito Tributário, professor do Departamento de
Direito Público das Universidades Católica de Petrópolis (UCP) e Estácio de Sá
(UNESA) de Juiz de Fora (MG), procurador do Município de Areal (RJ), membro do
Conselho Científico da Associação Paulista de Direito Tributário (APET)
NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. A desrazão tributária . Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 652, 21 abr. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6602>. Acesso em: 15 fev. 2007.