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Tribunais de Contas e o
poder de julgar sob a ótica do Direito Financeiro e Tributário
Roberto Wagner Lima
Nogueira*
1.
Os Tribunais de Contas.
Com
supedâneo nos ensinamentos de Ricardo Lobo Torres (1) podemos dizer
que os Tribunais de Contas são órgãos auxiliares dos Poderes, Legislativo,
Executivo e Judiciário, bem como da sociedade organizada mediante seus órgãos
de participação política. Nesta condição, eles auxiliam o Legislativo no
controle externo, fornecendo-lhe informações, pareceres e relatórios sobre as
contas dos agentes políticos; auxiliam a Administração e o Judiciário na
autotutela da legalidade e no controle interno, orientando a atuação destes
poderes e controlando os responsáveis por bens e valores públicos, ex vi dos
arts. 70 a 75 da Constituição Federal.
Com
efeito, o Tribunal de Contas é órgão auxiliar dos Poderes do Estado, não sendo
ele próprio, portanto, um quarto Poder como quer certa doutrina. Suas funções
são hauridas diretamente do Texto Constitucional, neste sentido já se
manifestou o Supremo Tribunal Federal, "O Tribunal não é preposto do
Legislativo. A função, que exerce, recebe-a diretamente da Constituição, que
lhe define as atribuições" (STF - Pleno - j.29.6.84, in RDA158/196).
(2)
A
Constituição Federal em seus artigos 71, 72, 73, 74, e 75, dispõem sobre
funções, forma de composição e nomeação dos Ministros do Tribunal, bem como
outras atividades vinculadas ao Tribunal de Contas da União. A Constituições
estaduais disciplinam as normas pertinentes aos Tribunais de Contas
respectivos, sendo vedada à criação de Tribunais, Conselhos ou órgãos de Contas
Municipais, após a Constituição de 1988, por força do artigo 31, § 4º da CF.
2.
Natureza jurídica dos Tribunais de Contas.
Ao
nosso ver o Tribunal de Contas é um Tribunal Administrativo, auxiliar dos
Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Suas decisões fazem "coisa
julgada administrativa", não podendo ser mais objeto de discussão na
esfera da Administração Pública, salvo no aspecto atinente à legalidade da
decisão, quando então o Poder Judiciário poderá apreciá-la, e em especial, para
cotejá-la com princípio constitucional do devido processo legal (art. 5º, LV da
CF).
Alguns
autores de tomo, entendem que o Tribunal de Contas exerce função
jurisdicional, não pelo emprego da palavra "julgamento" no
Texto Constitucional, mas sim pelo sentido definitivo da manifestação da Corte.
Bem pondera Ricardo Lobo Torres (3) que o Tribunal de Contas exerce
alguns atos típicos da função jurisdicional em sentido material, uma vez que
julga as conta dos administradores e responsáveis com todos os requisitos
materiais da jurisdição, quais sejam, independência, imparcialidade, igualdade
processual, ampla defesa, produção plena das provas e direito a recurso.
Entretanto,
do ponto de vista formal, os Tribunais de Contas, com o que é concorde Ricardo
Lobo Torres, não detém qualquer parcela da função jurisdicional, podendo a
matéria decidida pelo Tribunal de Contas ser reapreciada pelo Poder Judiciário,
de acordo com o art. 5º. Inciso XXXV da Constituição Federal. Só a função
jurisdicional, que não detém os Tribunais de Contas, pode produzir a
definitividade da decisão e a denominada "coisa julgada". Os
Tribunais de Contas têm função apenas administrativa, ainda que
"julguem" e possam "apreciar constitucionalidade de leis" e
atos no exercício de suas atribuições (Súmula 347 do STF), nem por isso deixa
de ser jurisdição administrativa, uma vez que seus atos são revisáveis pelo
Poder Judiciário. (4)
3.
Competência, julgamento e aplicação do direito pelos Tribunais de Contas.
A
competência funcional do Tribunal de Contas da União, está prevista no art. 71,
seus incisos e parágrafos. Dentre tantas atribuições, destaca-se o "julgamento
das contas dos administradores" ex vi do inciso II do art. 71.
Discute-se
doutrinariamente ainda segundo as ricas lições de Ricardo Lobo Torres, se este
julgamento envolveria em seu decisum, a possibilidade de afastamento da
norma legal objeto de análise pelo Tribunal de Contas, com base em um exame de
inconstitucionalidade da mesma. Os que a defendem se baseiam, ora na premissa
de que os tribunais exercem função jurisdicional (Pontes de Miranda in
Comentários a Constituição de 1969) ou apenas entendem que ele não as declara
inconstitucionais, mas apenas deixa de aplicá-las via técnica de interpretação
que conduz à valorização da lei maior. (José Luiz Ahaia de Mello).
Ricardo
Lobo Torres (5) entende que não cabe o Tribunal de Contas in
abstracto declarar a inconstitucionalidade de leis, pois além de não exercerem
função jurisdicional, limitam-se a apreciar casos concretos. Já o os atos
administrativos, segundo ele, podem ter sua inconstitucionalidade reconhecida
pelos tribunais de contas no caso concreto, negando os tribunais a aprová-los e
dar quitação aos responsáveis, alinhando-se assim com a lei e a Constituição.
Há
duas súmulas sobre o assunto, uma do Supremo Tribunal Federal (STF), nº 347
"O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar
a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público". E outra
de São Paulo, Súmula 6 do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP),
"Compete ao Tribunal de Contas negar cumprimento a leis
inconstitucionais".
O
ato (orçamento) que dispõe dos recursos e bens públicos é formalmente
legislativo, já o controle de sua execução, importa, preliminarmente, um juízo
de legalidade, e depois de economicidade, regularidade contábil e
compatibilidade com os padrões de gestão financeira geralmente aceitos, ex
vi do art. 70 da Constituição Federal. Conseqüência desta afirmação, é que
sendo a lei financeira do domínio do Congresso, o Tribunal de Contas somente
conhece de atos administrativos, sendo-lhe defeso à declaração de
inconstitucionalidade, conquanto nada impeça, que as Cortes de Contas, ao
fiscalizarem os atos da Administração, vinculados à lei, e as próprias leis,
sejam elas do âmbito federal, estadual ou municipal, digam o direito (jurisdictio),
para autorizar-lhes os efeitos financeiros, ainda que esta atividade de
controle não seja de natureza jurisdicional, mas, nem por serem
administrativas, as resoluções e decisões dos Tribunais de Contas, são menos
efetivas, embora sujeitas à revisão pelos órgãos judiciários. (6)
Ao
assim agirem, isto é, dizerem o direito, as Cortes de Contas não estão
retirando normas gerias e abstratas (lei) do sistema, mas apenas atribuindo a
elas os efeitos financeiros cabíveis de acordo com o Texto Constitucional.
Noutro dizer, não há declaração de inconstitucionalidade, mas pré-exclusão da
incidência da norma refratada pela Corte de Contas, redução do campo eficacial
da norma refratada por aplicação da sobrenorma constitucional. E por que as
Cortes de Contas não podem retirar em definitivo a norma geral e abstrata do
sistema jurídico? É que a norma geral e abstrata (lei), produzida de acordo com
o procedimento constitucional pugnado, isto é, com obediência do processo
legislativo previsto no Constituição Federal, ex vi dos artigos 59 usque
69, e observando-se ainda a competência em razão da matéria pelo ente
legislativo, é norma válida ou existente como quer Adriano Soares da Costa
(7), no sistema jurídico, mantém pertinência com o sistema na linguagem
de Paulo de Barros Carvalho (8), e pelo princípio do paralelismo de
forma, só pode ser retirada do sistema por outra norma.
Explicando
mais. Se nos ativermos às ponderações de Adriano Soares da Costa, podemos dizer
que, "os atos jurídicos existem, valem e são eficazes; ou existem, são
inválidos e ainda assim são eficazes; ou existem, são inválidos e são
ineficazes; ou simplesmente não são, é dizer, não existem". Pois bem. No
caso em tela, a norma federal, estadual ou municipal refratada pela Corte de
Contas, existe, é válida, porém, tem seu campo eficacial reduzido pela Corte de
Contas, em virtude da aplicação da sobrenorma constitucional do art. 70, caput,
que confere aos tribunais de contas o poder de fiscalizar as contas dos
administradores sob o aspecto da legalidade, legitimidade e economicidade dos
gastos no que pertine ao aspecto financeiro.
Um
exemplo a ser mencionado, seria o de uma norma (veículo introdutor lei) que
autorize um município a firmar convênio com a iniciativa privada, para
prestação de serviços especializados de orientação à administração pública,
cujos valores viriam ofender o princípio da economicidade previsto no caput do
art. 70 da Constituição Federal. Neste caso, o Tribunal de Contas, ao apreciar
as contas do administrador e por conseqüência a lei em questão, negar-lhe-á
eficácia naquele particular excesso em que ofensiva à economicidade do gasto
público, prestigiando assim o Texto Constitucional.
Nesta
linha sinaliza também o Professor Luiz Fernando Mussolini Jr (9), ao
falar sobre a aplicação da lei no âmbito federal e asseverar que: "Há que
se distinguir a atitude de um funcionário público em geral da atitude de um
funcionário encarregado de julgar os atos administrativos. No primeiro caso, um
funcionário não pode deixar de cumprir uma portaria, uma instrução normativa ou
até um parecer normativo, pois está subordinado hierarquicamente ao DRF
(leia-se CAT) e ao Ministério da Economia (leia-se, Secretário de Fazenda) e
sua missão é executar o que é determinado pelas autoridades. O julgador, ao
contrário, tem por função apreciar a legalidade dos atos administrativos. O
princípio da legalidade exige que se cumpra a lei, sobretudo a lei máxima que é
a Constituição."
É
sabido que as Cortes de Contas em toda a federação não exercem, de ordinário,
função de natureza legislativa ou de criação do direito. Logo, como bem anota o
Professor de Direito Constitucional da UERJ, Carlos Roberto Siqueira Castro,
"não é dado aos Tribunais de Contas editar validamente, a qualquer título,
regras de direito, sejam elas independentes ou regulamentares, mas que sejam
abstratas e contenham imposição de obrigações dirigidas a terceiros, sejam eles
administradores públicos ou particulares administrados". (10)
Citada doutrina, vem roborar nosso raciocínio, ou seja, se à Corte de Contas
não é dado o poder de inovar (editar normas abstratas) na ordem jurídica, não a
pode suprimir (retirar) do sistema norma validamente inserida.
Todavia,
ainda segundo as lições do Professor Dr. Carlos Roberto Siqueira Castro,
"os Tribunais de Contas, na aferição do embasamento legal dos atos de
gestão financeira e patrimonial dos entes estatais, o que constitui preliminar
insuperável para a verificação da legalidade dos procedimentos resultantes em
despesa pública, podem apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do
Poder Público, a teor do enunciado da Súmula nº 347 do Supremo Tribunal
Federal. Fazem-no, contudo, sem caráter de conclusividade e sob a eventual
censura do Poder Judiciário, no âmbito do controle judicial difuso da
constitucionalidade das normas jurídicas". (11)
Entendemos
que a expressão "apreciar a constitucionalidade das leis", dita pelo
professor Carlos Roberto Siqueira Castro, deva ser entendida como, atribuir
os devidos efeitos financeiros (sem retirar a norma do sistema!), suprimindo
parte de sua eficácia, ou pré-excluindo a sua incidência, com base em juízo de
legalidade, legitimidade e economicidade ex vi do art. 70 da
Constituição Federal. Cabe ainda, aos Tribunais de Contas, ao exercerem o
controle de legalidade na forma do 70 da Constituição Federal, representar ao
órgão competente (art. 71, XI da CF) para dizer da constitucionalidade ou não
do instrumento jurídico.
Aliás,
mutatis mutandis, sem bem pensarmos, o funcionário público em geral (já
tratamos de um exceção acima) não pode deixar de cumprir lei validamente
inserida no sistema. Oportuna, parece-nos a doutrina do procurador do Estado do
Rio de Janeiro, Dr. Humberto Ribeiro Soares (12) quando veda a
possibilidade de o Executivo deixar de cumprir lei que ele, Executivo — sem
julgamento ou antes de julgamento do Poder Judiciário no caso concreto da lei
em questão — julgue, por si, inconstitucional. Se o fizesse, aliás, praticaria
dupla interferência na partilha de competências constitucionalmente
estabelecida, o Executivo sustando um ato do Legislativo, e, ao mesmo tempo,
usurpando competência do Judiciário, a quem a Constituição concedeu a
competência do controle de constitucionalidade sucessivo, seja pela via da
exceção, concreta, difusa, seja pela via da ação, abstrata, concentrada, não a
havendo concedido ao Executivo.
Humberto
Ribeiro Soares (13) leciona que desde o ano de 1966, a maioria do
Supremo Tribunal Federal adotava a tese de que não é possível o Presidente
descumprir a lei por entendê-la, ele — sem pronunciamento hábil do Judiciário —
que seria inconstitucional, sobretudo diante dos recursos do controle abstrato
ensejados no ordenamento constitucional.
Mais
recentemente, o Ministro Moreira Alves em julgado de 29 de março de 1990,
publicado na RTJ 151/133, assim se pronunciou, verbis:
"Sucede, que, no
Brasil, o controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos em
vigor é atribuição exclusiva do Poder Judiciário, à semelhança de países como,
por exemplo, os Estados Unidos da América do Norte, a Argentina, a Itália, a
Alemanha, em que só se admite o controle judiciário dessa constitucionalidade.
(…) Os Poderes Executivo e Legislativo podem declarar nulos, por ilegalidade ou
por inconstitucionalidade, atos administrativos seus, e não leis ou atos com
força de lei, e quando declaram a nulidade desses atos administrativos ficam
sujeitos ao controle do Poder Judiciário, e poderão ser responsabilizados pelos
prejuízos advenientes dessa declaração se este entender que inexiste a
pretendida ilegalidade ou inconstitucionalidade.".
Tal
decisão acima citada há que ser interpretada no contexto do que vimos de
escrever, isto é, muito embora, o Tribunal de Contas, na condição e exercício
de Tribunal Administrativo auxiliar dos Poderes, Legislativo, Executivo e
Judiciário (art. 71 caput da CF), não detenha competência para retirar
lei validamente inserida no sistema jurídico conforme bem anota a decisão acima
transcrita, pode e deve a Corte de Contas, no exercício de sua competência
fiscalizadora e aplicadora do direito, ao examinar a lei introduzida pelo ente
administrativo municipal (no caso do exemplo dado), pode sob a perspectiva de atribuição
de efeitos financeiros, reduzir o campo eficacial da norma municipal sob
exame financeiro, com base em juízo de legalidade, legitimidade, e
economicidade com fulcro no art. 70 da Constituição Federal, e negar a sua
eficácia naquilo em que sobejar aos ditames constitucionais, neste sentido,
julgando, inclusive, irregular as contas do administrador, que em última
instância poderá recorrer ao Judiciário.
Notas
01.
Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro.
Renovar. 2000. p. 358.
02.
Apud, José Maurício Conti, Direito Financeiro na Constituição de 1998. São
Paulo. Oliveira Mendes. 1998. p.21.
03.
Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário op. cit. p. 359.
04.
Cf. Régis Fernandes de Oliveira, Manual de Direito Financeiro. 4ª ed.
São Paulo. RT. p. 139-140.
05.
Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário. Op. cit.
377-378.
06.
Cf. Célio Borja. Competência Constitucional dos Tribunais de Contas. Revista
do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. nº 40. abr/jun 1998, p.
29-31.
07.
Instituições de Direito Eleitoral. 4ª ed. Belo Horizonte. Del Rey. 2000. p. 71.
08.
Direito Tributário - Fundamentos jurídico da incidência. São Paulo.
Saraiva. 1998. p. 56.
09.
Os Tribunais administrativos e a não aplicação de lei sob a alegação de sua
incompatibilidade com a Constituição. Tributário.NET. Disponível em:
www. tributário.net/ler_texto.asp?id=25584. 7/7/2003.
10.
A atuação do Tribunal de Contas em face da separação de poderes do Estado, Revista
do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. nº 38. ou/dez 1997, p.
45.
11.
"A atuação do Tribunal de Contas em face da separação de poderes do
Estado". in Revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. nº
38. Rio de Janeiro. out/dez 1997. p. 47
12.
Cf. Humberto Ribeiro Soares, "Pode o executivo deixar de cumprir uma lei
que ele próprio considere inconstitucional ?" Revista de Direito da
Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro, Volume nº 50.
13.
Humberto Ribeiro Soares, op. cit. p. 28.
*Mestre em Direito Tributário, professor do Departamento de
Direito Público das Universidades Católica de Petrópolis (UCP) e Estácio de Sá
(UNESA) de Juiz de Fora (MG), procurador do Município de Areal (RJ), membro do
Conselho Científico da Associação Paulista de Direito Tributário (APET)
NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Tribunais de Contas e o poder de julgar sob a ótica do Direito Financeiro e Tributário . Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 131, 14 nov. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4470>. Acesso em: 15 fev. 2007.