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Kiyoshi Harada*
O projeto legislativo,
prevendo a possibilidade de construção e exploração de via pública paga pelo
usuário, vem chamando a atenção da mídia. Contudo, o debate em torno do assunto
tem-se limitado, com raríssimas exceções, ao prisma da oportunidade e
conveniência da medida legislativa proposta, com abstração do importantíssimo
aspecto jurídico-constitucional. Pedágio é taxa e não tarifa, o que inviabiliza
sua implantação nos moldes em que vem sendo amplamente discutida pelos diversos
setores da sociedade. A confusão entre taxa e tarifa vem de longa data e,
infelizmente, não cessou após o advento da Carta Política de 1988, como era de
se esperar, em razão da clareza lapidar do novo texto constitucional. Essa
confusão iniciou-se com a crescente intervenção do Estado na atividade privada,
abarcando setores que nada têm de serviço público a não ser o fato de estar
sendo prestado por uma empresa estatal, geralmente, sob o regime de concessão.
Daí a expressão preço público que, apesar de não se sujeitar aos rígidos
princípios de direito tributário, está a indicar que sua formação não se
assenta na lei da oferta e da procura, mas em um critério que leve em conta a
tutela do interesse coletivo.
Taxa, como espécie tributária
que é, tem sua cobrança inteiramente submetida ao regime de direito público. É
uma obrigação ex lege , só podendo ser exigida dos particulares em
razão do exercício regular do poder de polícia ou pela utilização efetiva ou
potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao
contribuinte ou postos à sua disposição (art. 145, II da CF). Ela pressupõe
atuação concreta do Estado diretamente referida ao obrigado. Tarifa ou
preço público, ou simplesmente preço, outra coisa não é senão a contraprestação
paga pelos serviços solicitados ao Estado, ou pelos bens por ele vendidos e que
se constitui em sua receita originária, em contraposição à taxa, que se
constitui em sua receita derivada.
Três critérios distintivos
surgiram para estabelecer o marco divisor entre taxa e tarifa. Pelo critério
fundado no regime jurídico do pagamento o legislador é livre para criar uma
entidade como preço ou como taxa, ou transformar a taxa em tarifa e vice-versa,
mediante simples modificação do regime jurídico da relação que tem por objeto o
pagamento. Pelo regime jurídico da atuação estatal, vislumbra-se a taxa se a
atuação estiver voltada para a execução de serviço público, isto é, aquele que
atende ao interesse público, ao passo que, dará origem à tarifa se aquela
atuação estatal estiver voltada para satisfação de interesse público
secundário, que de rigor jurídico não configura serviço público. Seria uma
contradição nos termos afirmar que um serviço público está sendo remunerado por
preço. Verifica-se que esses dois critérios, por serem formais, só possibilitam
distinguir taxa da tarifa depois de elaborada a lei. Para nós o atendimento do
interesse público primário, que corresponde às atividades essenciais e
indelegáveis do Estado (atividade jurisdicional, atividade policial etc.) só
pode desenvolver-se debaixo de regime de direito público dando origem à taxa. O
interesse público secundário, que diz respeito às atividades não inerentes ao
Estado, podem ser desenvolvidas diretamente, ou pelo regime de concessão ou
permissão. Quando o Estado desenvolve diretamente essas atividades tem o
legislador a liberdade de optar entre o regime tarifário e o regime tributário,
ressalvada a hipótese de utilização obrigatória de determinado serviço,
como no caso de serviço de esgotos, na forma do art. 11 da Lei nº 2.312, de
3-9-54. Neste caso, o legislador só poderia instituir taxa de esgoto e não
tarifa de esgoto a não ser que a sua utilização fosse facultativa, o que não é.
Este último critério, por nós vislumbrado, combina os critérios formal e
material, afastando a remuneração por tarifa sempre que a utilização de
determinado serviço público decorrer de imposição legal.
Com relação ao pedágio,
cobrado nas vias públicas, a sua natureza tributária ficou claramente
estabelecida pelo inciso V, do art. 150 da Constituição Federal de 1988 de
sorte que o posicionamento anterior da doutrina e jurisprudência deve ceder à
nova realidade. Diz o referido texto que é vedado `União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios estabelecer limitações ao trafego de
pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais,
ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas
pelo Poder Público. Portanto, a Carta Política de 1988 define, com
solar clareza, que pedágio é tributo. Do contrário, a ressalva não teria
sentido algum. No passado, já tivemos a taxa pela utilização efetiva ou
potencial do serviço de conservação de estradas como a taxa rodoviária única
e o selo pedágio. Agora, cobra-se apenas pela utilização efetiva do
serviço de conservação de rodovias, ainda que sob o errôneo regime de direito
privado, distorção que cabe ao Judiciário corrigir, se vier a ser provocado à
luz do novo texto constitucional.
Poder-se-ia dizer que a
cobrança de pedágio intramunicipal, isto é, aquele cobrado dentro dos limites
do território municipal, não estaria abrangida pela norma constitucional retro
referida. Por essa a razão, alguns estudiosos da matéria posicionaram-se pela
constitucionalidade dos pretendidos postos de pedágios, ainda que reconhecendo
a sua inconveniência, por congestionar as vias públicas livres de pedágio.
Porém, a questão requer um exame mais aprofundado, estabelecendo distinções
entre as várias categorias de bens públicos. A Carta Magna conferiu natureza
tributária aos pedágios cobrados nas estradas conservadas pelo poder público,
porque bens de uso comum do povo não podem servir de instrumento de exploração
da atividade econômica pelo Estado. Existem três categorias de bens públicos:
os de uso comum do povo como estradas, ruas, avenidas e praças; os de uso
especial como escolas públicas, ginásio de esportes, prédios que abrigam as
repartições públicas etc., e finalmente, os bens dominicais, que constituem o
patrimônio disponível do poder público como terrenos, prédios desativados e
desafetados da destinação pública específica. Os dois primeiros acham-se fora
do comércio e são inalienáveis. Não se prestam à exploração de atividade
econômica. Os últimos podem ser explorados pelo Estado mediante percepção de
receitas públicas originárias (receitas comerciais, industriais ou de
serviços), desde que observados os requisitos do art. 173 e §§ 1º e 2º da CF.
Esses bens podem, também, serem objetos de concessão de uso, de concessão de
direito real de uso por um prazo determinado, e até mesmo alienados. Os
referidos bens, quando explorados economicamente, dão nascimento às receitas
originárias (tarifas ou preços públicos), enquanto que a utilização de bens de
uso comum do povo pode ensejar a receita derivada, isto é, aquela
realizada compulsoriamente pelo poder público. O exercício do poder tributário
é sempre facultativo, e não obrigatório. Nada impede o Estado de não instituir
a taxa de serviços ou de polícia em função de determinada atuação concreta e
específica. Compulsória é a arrecadação de tributo legalmente instituído.
Assim, a Municipalidade poderá, se quiser, instituir taxa, e não tarifa, pela
utilização efetiva das marginais, com observância rigorosa dos
princípios constitucionais tributários, dentre os quais, o da estrita
legalidade e da anterioridade, o que exclui a sua instituição por decreto, bem
como, veda a sua cobrança no mesmo exercício financeiro em que foi instituída
ou aumentada a taxa.
Impressionante a
promiscuidade entre o público e o privado, entre o direito público e o direito
privado que vem ocorrendo ultimamente, com nítido propósito de tentar subtrair
os rígidos princípios que regem a atividade da Administração Pública. No
Município de São Paulo já houve a privatização do serviço público de saúde, que
é um dever do Estado, assegurado a todos o direito ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação
(art. 196 da CF). Com efeito, através da implantação do miraculoso plano
denominado de PAS foram ilegalmente transferidos para entidades privadas
os bens de uso especial e até mesmo os servidores-médicos. Estes, sob pena de
confinamento na Regional de Pirituba, tiveram que se licenciar do serviço
público para se integrarem às cooperativas de serviços médicos. Assim,
prerrogativa excepcional do servidor de se licenciar, para cuidar de interesse
particular, transformou-se em regra geral para atender interesse coletivo. Isso
não entra na cabeça de um publicista. Houve, também, a terceirização do serviço
público de transporte coletivo, que tem caráter essencial e só poderia ser
prestado diretamente pelo poder público municipal, ou através do regime de
concessão ou permissão. Isso está dito com todas as letras no art. 30, V da CF.
Entretanto, a pretexto de municipalizar um serviço que, por definição
constitucional, já é municipal, institui-se um regime jurídico em que os
empresários de ônibus ganham por quilômetro rodado e que, por isso mesmo, não
precisam ter compromissos com o público usuário, em termos de eficiência e bom
atendimento, a exemplo das empresas do setor de telefonia, que sobrevivem
apenas com as tarifas pagas por seus usuários. Pergunta-se, em que modalidade
se enquadra a empresa "concessionária" que ganha, do poder público
"concedente", por quilômetro rodado? Esse regime já foi batizado de
regime de capitalismo sem risco, e com muita razão.
Voltando à questão do pedágio
nas marginais, como poderia o Município outorgar a uma empresa particular a
concessão de uso de vias públicas, destinadas ao uso comum do povo? Dir-se-ão
que as futuras vias pagas serão construídas por particulares que saírem
vitoriosos nos procedimentos licitatórios, o que democratiza essa forma de
exploração do bem público. Isso é irrelevante, porque a construção dar-se-á em
áreas desapropriadas pela Prefeitura, com fundamento em utilidade pública (art.
5º, letra "i" do Decreto-lei nº 3.365/41). Poder-se-ia argumentar
que, salvo em alguns trechos, não haverá necessidade de desapropriações. É
evidente que, se as novas vias forem construídas em espaços antes
desapropriados, aqueles espaços não precisarão ser novamente desapropriados,
pois isso seria juridicamente impossível. Mas, o que importa é a destinação
pública e não quem construiu ou quem vai construir a via pública. A execução de
grandes obras, entre nós, sempre foi terceirizada, porque o poder público nunca
dispôs de recursos materiais e pessoais para execução direta. Permitir que a empresa
que construiu a via pública a explore economicamente é o mesmo que outorgar a
concessão de uso de bem público de uso comum do povo. Assim, quem construiu o minhocão
poderia cobrar pedágio, da mesma forma que aquele que construiu os túneis,
também, poderia condicionar a sua utilização ao prévio pagamento do pedágio.
Não importa que, no caso das marginais, a empresa vencedora do certame
licitatório construa com recursos financeiros próprios. Irrelevante, também,
que essa empresa fosse proprietária de terrenos ao longo das marginais,
hipótese pouco provável, pois, ela só poderia construir em sua propriedade
aquilo que é legalmente autorizado a todos pela legislação do uso e
ocupação do solo. Desta forma, em vários de seus trechos, só poderia construir
prédios residenciais (Z.1) ao invés de via particular a ser explorada
economicamente. Se isso ocorrer, o povo passará a ser mero súdito da
"concessionária", que vai cercar o seu "feudo" com cancelas
para permitir o acesso apenas a quem se dispuser a pagar o preço,
unilateralmente estabelecido e que pode ser majorado na calada da noite. Ainda
que em forma de utilização facultativa, não pode haver via particular,
ao longo das marginais, para exploração da atividade econômica por este ou
aquele empresário contemplado. Se isso fosse possível juridicamente um
particular qualquer poderia, por exemplo, construir e instalar um
mini-zoológico na Praça da Sé e cobrar pedágio dos visitantes, encarregando-se,
em contrapartida, da limpeza e conservação da Praça.
O certo é a aplicação do
regime de direito público em todos os casos de utilização de bens públicos de
uso comum do povo. Em outras palavras, o poder público deve instituir taxa para
cobrir os custos com os serviços de limpeza e de conservação desses bens. Nada
impede de o poder público limitar essa cobrança aos que usufruem efetivamente,
e não potencialmente, desses serviços (usuários da via paga).
Pela correta aplicação do
regime de direito público, o Município arrecada os tributos nos limites legais
e constitucionais e promove o pagamento de suas despesas, aquelas estimadas e
estas fixadas na lei orçamentária anual, cuja execução é controlada e
fiscalizada pelo Legislativo, com auxílio do Tribunal de Contas. Tanto a
receita, como a despesa rege-se pelo princípio da legalidade, em respeito ao
princípio do prévio consentimento do povo na instituição de tributos e na
realização de gastos públicos. Nada pode ser arrecadado sem expressa previsão
legal, e nada pode ser gasto sem prévia autorização legislativa por meio de lei
orçamentária anual. É preciso colocar um ponto final nessa simbiose que se
instaurou no seio da Administração Pública. A imaginação criadora dos agentes
políticos, em busca de eficiência e agilidade do setor privado, não pode
conduzir à destruição dos princípios basilares do direito público, que rege o
Estado. Noções como serviço público, serviço ao público, privatização,
terceirização, parceria etc, não devem merecer um tratamento jurídico uniforme.
Do contrário, logo teremos a concessão dos serviços de segurança pública, de
administração de justiça etc., esvaziando as atribuições próprias do Estado
acabando por negar a razão de sua existência.
*Advogado,
professor de Direito Financeiro, Tributário e Administrativo da UNIP, diretor
da Escola Paulista de Advocacia, ex-chefe da Consultoria Jurídica do Município
de São Paulo
HARADA, Kiyoshi. Pedágio é taxa e
não tarifa. SADireito, 10 ago. 2003. Disponível em:
<www.sadireito.com.br/index.asp?Ir=area.asp&area=5&texto=568>.
Acesso em: 18 ago. 2006.