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A imunidade tributária do patrimônio da ordem dos advogados do Brasil
Sumário: I –
Introdução. II – Os fatos. III – O regime autárquico da OAB. IV – A imunidade
tributária do patrimônio da OAB. V – A competência da Justiça Federal. VI –
Conclusão.
I - Introdução
A pedido do Presidente do Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Estado
de Mato Grosso do Sul, Dr. Carmelino de Arruda Rezende. elaboramos estudo
relativo à imunidade tributária do patrimônio da OAB.
Após elaborado o estudo, sugerimos o ajuizamento de ação de rito ordinário em
desfavor do Município de Campo Grande, o que foi efetivado, sendo certo que a
tese elaborada sagrou-se vencedora, em razão de já ter sido proferida sentença
reconhecendo a desvalia constitucional da exigência de IPTU relativo ao
patrimônio da OAB.
O estudo foi redigido da forma como segue adiante.
II - Os fatos
A consulente, na qualidade de proprietária de dois imóveis localizados na
cidade de Campo Grande, determinados pelo lote 14, quadra 07,
inscrição municipal nº 0585007140, e lote 17, quadra 07, inscrição municipal nº
05850070174, requereu ao Sr. Prefeito Municipal, em duas oportunidades, o
cancelamento de eventuais débitos relativos ao IPTU incidentes sobre os
referidos
imóveis.
Para requerer o cancelamento, a consulente demonstrou ser autarquia federal de
seleção disciplinar e defesa da classe dos advogados e, em razão disso,
pleiteou o reconhecimento de que seus bens e rendas gozam de imunidade
tributária total. No entanto, tais pedidos não foram acolhidos, uma vez que, a
despeito de se ter expressamente reconhecido a consulente como uma autarquia,
não se lhe concedeu o beneficio da imunidade tributária, em razão da
Procuradoria Jurídica do Município ter entendido que somente a autarquia
mantida pelo Poder Público é que faria jus à referida vantagem, requisito este
que não estaria preenchido pela consulente.
Indeferidos os pedidos, a consulente tem sido insistentemente cobrada dos
valores relativos ao IPTU de seus imóveis. lrresignada com as decisões que não
reconheceram a imunidade tributária em relação a seus bens, pretende a
consulente, após receber o estudo que se elabora, obter a anulação dos
lançamentos de ofício realizados pelo Município de Campo Grande e que se
referem ao IPTU dos anos de 1991 a 1995 (inscrições nºs 0585007014-0 e 0585007017-4),
com a consequente anulação dos débitos fiscais da consulente junto à pessoa
política tributante, decorrentes do mesmo tributo.
Para tanto, será demonstrado, na sequência, que a consulente tem a
personalidade jurídica de uma autarquia federal e que a ela não se aplica a
exigência de ser mantida pelo Poder Público, sendo que, exatamente em razão
disso. seu patrimônio, que está vinculado a suas finalidades essenciais, goza
do benefício constitucional da imunidade tributária.
III - O regime autárquico da OAB
A Lei Federal n0 8.906, de 04 de julho de 1994, estabeleceu, no “caput” do seu
artigo 44, que a Ordem dos Advogados do Brasil constitui-se em serviço público,
dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tendo por finalidades
básicas, “promover, com exclusividade, a representação, a defesa, a seleção e a
disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil” (inc. II do
art. 44). Também a Lei anterior, que havia instituído a OAB ( Lei Federal nº
4.215/63), previa exatamente o mesmo (art. 1º).
Assim agindo, o legislador, tendo por normas autorizadoras os artigos 59, XIII,
22, XVI e 37, XIX, todos da Constituição Federal, deu à OAB um
nítido perfil de pessoa jurídica de direito público interno, integrante da
administração federal descentralizada.
Sabendo-se que a própria Constituição (art. 37, XIX) estabelece serem entidades
da administração descentralizada da União as autarquias, mas. as empresas
Públicas, as sociedades de economia mista e as fundações públicas, coloca-se a
seguinte indagação: em qual desses regimes jurídicos a OAB se enquadra? A única
resposta insofismavelmente correta, em face da vestimenta jurídica dada à OAB
pela sua lei instituidora, é a de que esta entidade de representação dos
advogados integra o regime jurídico das autarquias federais.
Com efeito, a OAB, como organização profissional autônoma e de finalidades
corporativas, amolda-se à perfeição na definição de autarquia dada pelo
Decreto-lei nº 200/67, que, ao dispor sobre a organização da Administração
Federal, assim a delimitou normativamente:
“Art. 5º Para os fins desta lei, considera-se:
I – autarquia – o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica,
patrimônio e receitas próprios, para executar atividades típicas da
administração pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão
administrativa e financeira descentralizada.”
Pois bem, a OAB, que tem como seus órgãos integrantes o Conselho Federal, os
Conselhos Seccionais, as Subseções e a Caixa de Assistência dos Advogados (art.
45 do EOAB), é uma autarquia, de vez que foi criada mediante lei federal, tem
personalidade jurídica de direito público, é órgão autônomo da administração
pública federal, realiza atividade de administração de interesses públicos
específicos e tem receita e patrimônio próprios.
Não é outro o entendimento esposado pelos doutrinadores pátrios, que, ao
analisarem o regime jurídico das pessoas jurídicas integrantes da administração
pública descentralizada, situam a OAB, em uníssona voz, como uma autarquia,
ainda que de regime especial, mas sempre uma autarquia de serviço, em razão da
especialidade de suas funções e prerrogativas, ou, como preferem alguns
doutrinadores, uma autêntica corporação pública, espécie do gênero autarquia.
Talvez quem melhor definiu o verdadeiro regime jurídico da OAB entre nós tenha
sido o saudoso e insuspeito mestre THEMÍSTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI, que em seu
clássico “Tratado de Direito Administrativo” (Livraria Freitas Bastos, 41º ed.,
1966, vol. II, p. 268 a 272) dedicou um capítulo específico a este assunto,
tendo exarado esta preciosa lição:
O exercício das profissões liberais pressupõe, no nosso regime constitucional,
condições de capacidade intelectual e requisitos
de ordem moral que obrigam o Estado a exercer uma fiscalização contínua.
Não somente as profissões de advogado e engenheiro, mas ainda a de químico,
médico, guarda-livros, Tc estão subordinados a regulamentos especiais, cuja
importância, sob o ponto de vista técnico, deve ser salientada. O que nos
interessa, porém, neste capítulo, é o estudo das organizações profissionais
autônomas que se substituem ao Estado no exercício das funções peculiares a
este, de fiscalização de serviços profissionais.
Nesta qualidade, tais entidades acham-se integradas dentro do sistema
administrativo e exercem verdadeiro serviço público de todo equiparado aos dos
demais órgãos da administração pública. À Ordem dos Advogados do Brasil foi
criada pelo artigo 17 do Decreto nº 19.408, de 18 de novembro de 1930, como
órgão de seleção, defesa e disciplina da classe dos advogados em toda a
República. Os dispositivos dos decretos posteriores, isto é, 20.784 de, 14 de
dezembro de 1931, 21.592, de 1 de julho de 1932, 22.039, de 1 de novembro de
1932, e 22.266, de 28 de dezembro de 1932, foram consolidados pelo decreto
22.478, de 20 de fevereiro de 1933.
..........................
A Ordem dos Advogados tem, no nosso regime administrativo, uma posição muito
peculiar, porque se apresenta com um caráter eminentemente corporativo em
contraposição com a maioria das demais entidades autárquicas, que se constituem
com uma base patrimonial, a fim de explorar serviços públicos descentralizados.
Apesar de seu caráter corporativo, isto é, de se constituir como associação de
pessoas e não de bens, a Ordem dos Advogados foi criada como um serviço público
federal, executando funções de natureza essencialmente estatais, atribuídas
especificamente ao Estado ou por órgãos por ele organizados que realizam o
serviço público por uma delegação do poder público.
..............................
A Ordem dos advogados apresenta-se, em nosso regime administrativo, como um
serviço público inteiramente autônomo quanto à sua composição e nomeação dos
seus órgãos diretores e quanto ao exercício das funções que lhe são atribuídas
pela lei. Por outro lado, esta lhe assegura, também, completa autonomia
patrimonial.
.........................
Finalmente, caracterizam-se as funções da Ordem como natureza especificamente
estatal, pois se visa fiscalizar o exercício da profissão de Advogado, impor
penalidades e verificar as condições de capacidade e a validade dos diplomas
expedidos pelos institutos de ensino.
..........................
Não cabe, aqui, o exame detalhado dos inúmeros problemas sugeridos pela tese
ora posta em evidência. Basta que fique demonstrada a natureza de direito
público desse organismo disciplinador das atividades de uma certa categoria de
profissionais, e da importância preponderante que tem, na vida coletiva e nas
atividades subordinadas diretamente à alta vigilância do Estado.
A Ordem dos Advogados é uma autarquia, tem personalidade de direito público,
porque teia uma capacidade reservada aos órgãos do Estado, que preferiu delegar
essas funções a uma corporação e classe, constituída pelos seus próprios
membros e dirigida pelos representantes da própria classe” (destaques nossos).
A lição retro-exposta tem o grande mérito de sumariar o pensamento de toda a
nossa doutrina administrativa, pois nenhum doutrinador de expressão deixa de
situar a OAB no regime jurídico das autarquias. É o que faz, por exemplo, CELSO
ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, mestre de lições sempre precisas e admiráveis, ao
demonstrar o alcance da expressão autarquia:
“Autarquia, consoante o exposto, é expressão ampla. Refere-se ao instituto
jurídico correspondente a uma determinada técnica de administração pública: a
técnica de administrar interesse públicos através de demiurgos, pessoas
jurídicas auxiliares da administração central.
Por isso mesmo – em face da amplitude da noção – aplica-se indistintamente a
realidades muito diversas entre si, ora discrepantes pelos objetivos, ora pela
forma de organização, ora pela amplitude das funções, ora pela diversidade ou
especialidade de seus fins, ora pela estrutura jurídica, ora pela estreiteza ou
lassidão dos vínculos que a relacionam com a administração central, mas, de
qualquer forma, sempre igualadas pelo radical comum, suprareferida:
correspondem a uma técnica estatal de realizar administração pública através de
uma pessoa jurídica intermediária, projeção personalizada do Estado.
Por isso mesmo é noção extensa, que pode abrigar em seu bojo tanto pessoas
criadas para a realização de um único e específico cometimento – por exemplo,
acorrer à assistência hospitalar dos necessitados – quanto pessoas incumbidas da
persecução simultânea de diversificados escopos – tais as comunas e
departamentos, na França, responsáveis pela polícia administrativa local e
pelos serviços públicos que interessem aos residentes em suas áreas
geográficas.
Não é de estranhar, pois, que a expressão tanto albergue entidades que prestam
serviços materiais como verbi gratia a assistência médica, o ensino o
fornecimento de energia, de transportes, quanto compreenda entidades que não
prestam serviços materiais, se não apenas fiscalizam atividades ou as
coordenam, como as ordens profissionais, que regulamentam e fiscalizam o
exercício das profissões liberais ou as corporações profissionais, que
coordenam atividades produtivas” (“Natureza e Regime Jurídico das Autarquias”,
RT, 1968, p. 6).
A OAB, portanto, por força das funções e prerrogativas que lhe foram conferiras
pela Lei 8.906/94 e também em razão do Estatuto revogado (Lei nº 4.215/63)-,
que estabelece o complexo de regras jurídicas formadoras de seu regime
jurídico, é uma autarquia corporativa, ou uma corporação profissional pública,
espécie do género autarquia, pois é integrada por um conjunto de pessoas
físicas - os corporados, membros da entidade -, com personalidade de direito
público, endereçado a uma finalidade pública específica - a gestão de certos
serviços públicos -, destacados “do centro” - União, Estados ou Municípios.
Dando sequência a este escólio doutrinário, aduz o eminente Professor J.
CRETELLA JR.:
“Quando, por exemplo, o Decreto nº 19.408, de 18 de novembro de 1930, pelo art.
17, criou a Ordem dos Advogados do Brasil, atribuindo-lhe a natureza de órgão
de seleção, defesa e disciplina da classe dos Advogados em toda a República e,
a seguir, o Regulamento da Ordem, em seu art. 22, dispôs que a entidade criada
constitui serviço público federal, implicitamente lhe outorgou a natureza
autárquica corporativa.
A União, pessoa jurídica pública política de existência necessária, poderia,
evidentemente, desempenhar os serviços que a Ordem exerce, inclusive
arvorando-se em defensora da classe dos advogados. Quem melhor, no entanto, do
que os próprios corporados, elegendo seus dirigentes, poderia desempenhar tão
relevante serviço público federal?
Para selecionar, defender e disciplinar a classe dos advogados, no exercício de
seus serviços profissionais, a União outorgou a uma entidade da Administração
indireta – a Ordem dos Advogados do Brasil -, pessoa jurídica pública
administrativa – corporação pública – tarefas tão complexas. Administrar por
interposta pessoa é administrar de modo indireto. E a Ordem dos Advogados do
Brasil é, nesse caso, Administração indireta federal”(“Administração Indireta
Brasileira”, Forense, 25ª ed., 1987, p. 264/265).
Do exposto, claro está que à OAB foi outorgado o regime autárquico, uma vez que
a mesma atende aos requisitos conceituais de uma verdadeira autarquia, tida por
MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, professora titular de Direito Administrativo da
USP, como “a pessoa jurídica de direito público, criada por lei, com capacidade
de auto-administração, para o desempenho de serviço público descentralizado,
mediante controle administrativo exercido nos limites da lei” (“Direito
Administrativo”, Atlas, 2ª ed., 1991. p 270).
Oportuno se torna dizer que, embora se reconheça a natureza autárquica da ordem
dos Advogados do Brasil, é ela uma autarquia especial ou sui generis, sendo
autarquia no sentido lato da expressão, eis que não se subordina a qualquer
controle, vínculo funcional ou hierárquico no tocante ao seu ente criador,
conforme expressamente prevê seu atual Estatuto (art. 44, parágrafo 1º, da Lei
8.906,94). E assim deve ser porque a OAB tem ampla autonomia administrativa e
organizacional, não se incluindo entre as autarquias administrativas sujeitas,
por exemplo, a prestação de contas perante o Tribunal de Contas, até por não
receber a OAB qualquer ajuda, auxilio ou subvenção da União, pois custeia seus
serviços com a contribuição paga pelos inscritos nos seus quadros.
IV. A imunidade tributária do patrimônio da OAB
Definido o regime jurídico da consulente, compete-nos, neste tópico, demonstrar
que, por força de comandos constitucionais explícitos e implícitos, seu
patrimônio não poderia ter sido objeto de lançamento do IPTU, haja visto a
existência de regra de imunidade que exclui da competência tributária do
Município de Campo Grande a onerarão dos bens pertencentes à OAB.
Como já se disse, o Município de Campo Grande, por intermédio de sua ilustrada
Procuradoria Jurídica, não deixou de reconhecer a consulente como uma autarquia
federal. Ocorre, porém, que essa mesma Procuradoria entendeu ser necessária a
manutenção da autarquia pelo Poder Público para que a mesma possa usufruir do
beneficio constitucional da imunidade tributária.
Com precisão maior, a questão em causa consiste em saber se a expressão
“instituída e mantida pelo Poder Público”, a qual se encontra no parágrafo 2º
do artigo 150 da Constituição Federal, se prende exclusivamente ao seu
antecedente próximo “fundações”, ou se alcança, também, o que o precede, ou
seja, as “autarquias”, uma vez que o teor do citado dispositivo é este:
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao
contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:
............................
VI - instituir impostos sobre:
a) patrimônio,, renda ou serviços, uns dos outros;
.............................
Parágrafo 2º A vedação do inciso VI, a, é extensiva às autarquias e às
fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao
patrimônio, à renda e aos serviços, vinculadas a suas finalidades essenciais ou
às delas decorrentes”.
Ao esposar o entendimento exarado nos citados pareceres, não se houve com o
habitual acerto a ilustrada Procuradoria Municipal, pois adotou interpretação
equivocada e assistemática, olvidando-se das lições dos doutos no sentido de
que o método por excelência da interpretação do Direito é o sistemático, que
permite ao intérprete e ao aplicador uma visão grandiosa e harmônica do
ordenamento jurídico.
E que, conforme será demonstrado, a correta interpretação da regra de imunidade
tributária prevista no § 2º do artigo 150, deverá levar a autoridade judicial a
concluir que a expressão “instituídas e mantidas pelo Poder Público” refere-se
unicamente às fundações públicas, com a exclusão das autarquias do seu raio de
abrangência. Interpretação que chegue a este resultado, terá, certamente,
trilhado o magno caminho dos princípios e regras informadoras do sistema
constitucional tributário, com o soerguimento da riqueza do método de
interpretação sistemático e teleológico, em desfavor da pobreza do método
literal, canhestro e apressado utilizado pelo Município de Campo Grande, por
intermédio de sua Procuradoria Jurídica.
De início, cumpre afirmar que a consulente realmente não é mantida pelo Poder
Público, haja visto que a mesma não recebe qualquer ajuda, auxilio ou subvenção
do Tesouro Nacional, Estadual ou Municipal, sendo que o custeio de seus
serviços se dá exclusivamente com o valor que arrecada a título de contribuição
dos inscritos nos seus quadros, mais os valores pagos a título de Inscrições e
multas impostas aos seus membros, além de eventuais legados e doações.
Pois bem, o fato de a consulente não ser mantida (rectius: receber fornecimento
de meios materiais) por qualquer entidade pública é requisito constitucional
válido para excluí-la do benefício da imunidade concedida às autarquias? Aqui
também a resposta só pode ser uma: não, a autarquia não precisa ser mantida
pelo Poder Público para gozar do beneficio constitucional sob enfoque.
A resposta negativa sustenta-se, em primeiro lugar, em razão do seguinte: toda
e qualquer autarquia, em razão de imposição legal e doutrinária (que desvenda
seu perfil jurídico), é detentora de recursos e patrimônio próprios.
Com referência à lei, basta fazer rápida menção ao inciso 1 do artigo 59 do
Decreto-lei 200/67, já citado anteriormente, para demonstrar que a autarquia,
por se constituir em serviço autônomo e descentralizado, necessariamente deverá
possuir receita e patrimônio próprios, sob pena de completa desfiguração de seu
regime jurídico.
Por sua vez, a doutrina, ao desvendar referido regime jurídico, não deixa de
mencionar que uma das características básicas das autarquias é o de possuir
patrimônio e recursos próprios, conforme nos dá conta o Professor CELSO ANTONIO
BANDEIRA DE MELLO, in verbis:
“Em razão de sua personalidade, os negócios que a lei lhe confiou ao criá-la e
definir-lhe os fins, bem como os interesses que prosseguirá, para bem atender
ao comando legal, seus são seus, são próprios, no mais pleno sentido da
palavra. Do mesmo modo, todos os poderes em que tenha sido investido pela lei,
assim como os órgãos que a constituam, os bens que possua ou venha a adquirir e
reversamente os deveres, responsabilidades ou obrigações que contraria são diretamente
pertinentes a ela. Eis , pois, que a autarquia tem administração própria,
órgãos próprios, patrimônio próprio, recursos próprios, negócios e interesses
próprios, direitos, poderes, obrigações, deveres e responsabilidade próprios”
(“Prestação de Serviços Públicos e Administração Indireta”, RT, 2ª ed., 1987,
p. 61/62. sem destaque no original).
Também do conceito de autarquia elaborado pelo saudoso HELY LOPES MEIRELLES,
percebe-se tal requisito, conforme segue:
“Autarquias são entes administrativos autônomos, criados por lei específica,
com personalidade jurídica de direito público interno,
patrimônio próprio e atribuições estatais específicas” (“Direito Administrativo
Brasileiro”, RT, l5ª ed., 1990, p. 301, destaque nosso).
Ora, se assim é, a ponto de não se encontrar posicionamento doutrinário
diverso, inexiste qualquer razão de ordem jurídica que dê sustentação à tese do
Município de Campo Grande - no sentido da necessidade das autarquias serem
mantidas pelo Poder Público -, pois, conforme restou assentado, a autarquia -
como a consulente -, por ter patrimônio e recursos próprios, não necessita de
ser mantida por qualquer entidade pública, uma vez que possui plenas condições
de gerir-se a si própria.
Vê-se, portanto, que a tese do Município de Campo Grande começa a esboroar-se,
porquanto razão alguma existe para sustentar que uma autarquia pode ou deve ser
mantida pelo Poder Público, já que é um corolário natural da personalidade
jurídica desta entidade da administração pública descentralizada a
circunstância de não depender de subvenção financeira do ente criador para a
manutenção dos serviços por ela prestados. Com razões dessa ordem, verifica-se
que é de nenhuma sustentação jurídica o querer estender às autarquias exigência
que não se coaduna com seu regime jurídico, restando nítido que a expressão
constitucional “instituídas e mantidas pelo Poder Público” (art. 150. parágrafo
2º) refere-se somente às fundações públicas, estas sim, conforme se verá a
seguir, passíveis de instituição e manutenção pelo Poder Público.
Admitir-se o contrário seria desconhecer que as normas jurídicas incidem,
exclusivamente, no campo dos comportamentos possíveis, representando arrematado
absurdo deôntico regular a conduta impossível (PAULO DE BARROS CARVALHO), que no
caso seria a que desse pela extensão da cláusula sob enfoque às autarquias.
Demais disso, consultem-se todos os comentaristas da atual Constituição Federal
e todos eles, sem exceção de nenhum, sequer farão alguma correlação entre as
expressões autarquias e manutenção pelo Poder Público interpretação equivocada
dada ao parágrafo 2º do artigo 150 -, já que se tem por óbvio que a expressão
“instituídas e mantidas” refere-se exclusivamente às fundações públicas. A
propósito, convém citar os comentários elaborados pela Fundação Prefeito Faria
Lima - CEPAM:
“Confere-se tratamento quase idêntico ao do parágrafo 1º, do art. 19, do texto
anterior, em sua parte visto que agora foram incluídas as fundações, quer sejam
instituídas pelo Poder Público, quer sejam por ele apenas mantidas” (“Breves
Anotações à Constituição de 1988”, Atlas, 1990, p. 350).
Mas não são somente esses argumentos, de percepção clara e objetiva, que
deverão levar ao julgamento de inteira procedência do pedido a ser formulado em
demanda judicial, eis que outras razões ainda existem.
Comecemos pela seguinte: pertence à história do direito constitucional
brasileiro o estendimento às autarquias da imunidade tributaria recíproca
prevista no artigo 150, inciso VI, alínea “a”, da atual Carta Magna, pois a
mesma já vinha prevista nas Constituições de 1967 (art. 20, parágrafo 1º) e
1969 (art. 19, parágrafo 1º), sendo que nas mesmas não havia qualquer exigência
de ser a autarquia mantida pelo Poder Público para gozar do beneficio.
Aliás, não se pode deixar de mencionar a circunstância de a própria lei
instituidora da OAB ter feito menção expressa à imunidade tributária de seus
bens, conforme consta do seguinte dispositivo:
“Art. 45
........................
parágrafo 5º. A OAB, por constituir serviço público, goza de imunidade
tributária total em relação a seus bens, rendas e serviços”.
Se antes nunca houve a exigência de a OAB ser mantida pelo Poder Público para
gozar do beneficio da imunidade tributária, hoje também não há. consoante se
está a demonstrar. E não há tal exigência em relação às autarquias porque a
expressão “instituídas e mantidas pelo Poder Público” só se refere às fundações
públicas. Vejamos como se equaciona essa questão.
O Estado, como se sabe, para consecução de seus fins e visando a sua
descentralização administrativa, cria, de modo ordinário, entidades (pessoas
jurídicas), com a finalidade de atender a um serviço público específico.
Exemplo disso são as sociedades de economia mista e as empresas públicas
(pessoas jurídicas de direito privado), as autarquias (pessoas jurídicas de
direito público) e as fundações (que podem ser pessoas jurídicas de direito
público ou de direito privado).
Portanto, o Estado, no que diz respeito às fundações governamentais, “tanto
pode criar pessoas’ de direito público como pessoas de direito privado para
oferecerem aos administrados os serviços que entender sejam-lhes úteis. É a
lição de Celso Antônio Bandeira de Mello (“Prestação”, cit., p. 147), ao dizer
que da vontade do Estado podem nascer entidades públicas e privadas. Pública é
a que responde a um regime de direito público, e privada é a que atende a um
regime de direito privado, estatuídos, um e outro, nos atos de criação e
instituição” (DIOGENES GASPARINI, “Direito Administrativo”, Saraiva, 1989, p.
187).
Ora, o dispositivo constitucional inserido no parágrafo 2º do artigo 150 fez
expressa opção pelas fundações públicas, pois são essas que necessitam de
instituição direta por lei e de manutenção pelo Poder Público, com exclusão das
fundações privadas e das autarquias. Esta é a lição de IVES GANDRA DA SILVA
MARTINS ao comentar o referido parágrafo, in verbis:
“O artigo referido reproduz em parte o disposto no art. 19, parágrafo 1º da
Emenda Constitucional nº 1/69. A novidade reside no albergar as fundações
instituídas e mantidas pelo Poder Público. Não a qualquer fundação é estendida
a imunidade, mas àquelas do próprio Poder Público.
.................................
As fundações do Poder Público, agora abrigadas pelas proteções constitucionais,
possui idêntico tratamento mesmo se tiverem finalidades lucrativas, acréscimo
do texto atual plenamente justificado”. (“Comentários à Constituição do
Brasil”, Saraiva, 1990, 6º vol., tomo 1, p. 194e 196).
Às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, ou seja, às Fundações
Públicas, o Texto Constitucional faz menção em outros dispositivos, a saber:
arts. 22, XXVII, 37, XVII, 71, II, III e IV e 169, parágrafo único, numa clara
demonstração de que, por existirem outras espécies de fundações, somente a
fundação pública é que gozará do beneficio da imunidade tributária. E isto se
dá por uma boa razão: como as fundações particulares e as fundações privadas
instituídas pelo Poder Público gozam do regime jurídico de direito privado,
elas têm ampla autonomia para a consecução dos seus objetivos. O mesmo já não
ocorre com as fundações públicas, que necessitam da manutenção do Poder Público
para sua sobrevivência, por pertencerem ao regime jurídico de direito público,
com todas as consequências daí advindas.
De mais a mais, a regra do parágrafo 2º do artigo 150, na parte em que prevê a
instituição da entidade pelo Poder Público, somente se estende às fundações
porque estas é que podem não ser criadas por lei - tal é o caso das fundações
particulares ou das fundações privadas instituídas pelo Estado -,ao passo que
as autarquias jamais poderão deixar de ser criadas por lei especifica (vide, a
propósito, o disposto no artigo 37, inciso XIX, da Constituição de 1988).
A lição de CELSO RIBEIRO BASTOS, ao comentar o inciso XIX do artigo 37 da atual
Carta Magna, está de acordo com a conclusão tirada acima:
“Já no que diz respeito à referência feita pelo inciso à fundação pública,
impõe-se, de pronto o reconhecimento de que a exigência constitucional de lei
não é extensiva a toda e qualquer entidade fundacional, mas tão-somente àquela
que tiver a natureza pública. O texto constitucional consagra a distinção entre
fundação regida pelo direito comum e aquela disciplinada pelo direito público.
Portanto, a exigência da criação por intermédio de lei é restrita às fundações
de direito público.
Todavia, isto não significa que as fundações privadas não necessitem de
qualquer espécie de norma autorizadora. A distinção fundamental reside no papel
desempenhado pela lei num e noutro caso. Na pública a lei institui a fundação
na privada, autoriza a sua instituição, que se processa, contudo, na forma do
direito privado, tal como convém à entidade dessa natureza.” (“Comentários à
Constituição do Brasil”, Saraiva, 1992, 3º vol., tomo III, p. 141, sem destaque
no original).
De consequência, referida expressão, na parte em que prevê a manutenção da
entidade pelo Poder Público, também somente se estende às fundações (no caso,
às fundações públicas), pois, como é de correntio conhecimento, existem
fundações, as privadas e as particulares, por exemplo, que não dependem de
qualquer subvenção para a sua sobrevivência.
Nítido está que a expressão “instituídas e mantidas pelo Poder Público” só tem
sua razão de ser quando relacionada às fundações públicas, pois inexistem
razões que a relacione às autarquias.
Parece, inclusive, que uma simples leitura do texto sob análise (parágrafo 2º
do art. 150) é suficiente para repelir a interpretação dada pela Procuradoria
Municipal. De fato, pretendesse o legislador estender às autarquias a expressão
“instituídas e mantidas pelo Poder Público”, teria colocado uma vírgula logo
após a palavra “fundações”, pois com isto estaria a abranger as autarquias e as
fundações. A ausência deliberada da vírgula, que teria a finalidade de abrigar,
na oração seguinte, as duas espécies de entidades estatais, faz com que se
torne impossível estender às autarquias algo que só tem sua razão de ser quando
vinculado unicamente às fundações públicas.
Por derradeiro, deve ser sustentado que, ainda que inexistisse a regra de
imunidade prevista no § 2º do artigo 150, as autarquias, mesmo assim,
continuariam a beneficiar-se desta modalidade de não-incidência tributária,
haja vista que tanto a doutrina, “como a jurisprudência pacífica, na vigência
da carta de 1946, assentiram em que as autarquias gozavam de plena imunidade,
por implícito no princípio constitucional que resguardava as entidades
políticas da recíproca imposições tributárias”. (LUIZ RAFAEL MAYER, “Imunidade
Tributária – Autarquia”, RDA 129/258).
Está-se aqui a falar da imunidade ontológica, que “corresponde a uma exigência
natural do sistema. Em certo sentido é um subproduto dele. Contém-se, ,
implicitamente, no próprio esquema constitucional, como) verdadeira decorrência
de sua composição. Não se trata de uma liberdade do constituinte mas da
resultante imediata da adoção de certos princípios que definem o sistema
federativo. Por isso mesmo, parece—nos, mesmo à falta de previsão, deve ser
reconhecida, pois é solicitada pela própria lógica do regime. É precisamente o
caso de imunidade recíproca dos entes públicos. Sua insubmissão a impostos
deflui implicitamente da harmonia entre eles. Além disso seria inconveniente
que Estados, Municípios, Distrito Federal e União estivessem a salvo do gravame
fiscal e suas autarquias, simples serviços personalizados das mesmas entidades,
devessem sofrê-lo. A interpretar de outra forma insidir-se-ia na seguinte
desarrazoada conclusão: quando as pessoas políticas optam por processos
administrativos havidos por seus legisladores como mais oportunos, eficientes
ou racionais, devem sofrer, embora indiretamente, ônus tributário que
inexistiria se abandonassem o propósito de aprimorar a prestação de certos
serviços” (CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, “Natureza e Regime Jurídico das
Autarquias”, RT, 1968, p.462/463).
Portanto, a imunidade recíproca concedida aos Estados, Municípios, Distrito
Federal e União Federal, deve ser estendida. ainda que inexistente texto
expresso - e em razão de se estar a falar de uma imunidade ontológica -, às
autarquias, já que estas são entes criados por aquelas pessoas políticas e que
herdam os privilégios e condições do ente criador. Tributar a autarquia
federal, como bem diz J. CRETELLA JR. (“Comentários à Constituição de 1988”,
Forense Universitária, vol. VII, p. 3.563), é o mesmo que tributar a própria
União. Seria, de fato, artifício irreal e incompreensível dispensar-se
tratamento desigual, sem justificação, entre o centro (Estado) e a entidade
menor (autarquia), conforme aduz a doutrina especializada (LUIZ RAFAEL MAYER,
RDT 4/157; WALTER THAUMATURGO JÚNIOR, RDT 2.930/329; SUELI ALVES DE SOUZA, RDA
43/408 e AGUIAR DIAS, RDA 44/747).
Cabe dizer, ainda, que os dois imóveis de propriedade da consulente, acima
identificados, estão vinculados às suas finalidades essenciais de órgão de
seleção e disciplina da classe dos advogados no Estado de Mato Grosso do Sul.
V - A competência da Justiça Federal
Sendo certo que a consulente é uma autarquia criada pela União, compete à
Justiça Federal de 1ª instância processar e julgar eventual demanda a ser por
ela ajuizada, conforme expressa previsão do Texto Constitucional (art. 109, I,
que, em razão de sua supremacia hierárquico-normativa, tem o condão de afastar
qualquer outra regra estabelecedora de foro privilegiado porventura existente
em favor do Município de Campo Grande.
A matéria, aliás, já foi objeto de conflito de competência suscitado perante o
E. Superior Tribunal de Justiça, tendo este, na oportunidade, por unanimidade
de votos, decidido que:
“A OAB, por, seu Conselho Federal, suas seccionais e subseções, é entidade
atípica, inominada e, embora não classificada na própria lei que a instituiu,
nº 4.215, de 27.4.63, tem seu perfil de serviço público federal, definido no
art. 139, por isso que se enquadra na moldura dos limites expressos no art.
109, I, da CF; que estabelece competência à Justiça Federal para processar e
julgar os feitos, como no caso, em que figura como interessada, na condição de
autora, ré, assistente ou oponente” (RT 665/175).
Percebe-se, pois, a olhos vistos, que é da Justiça Federal de 1º grau a
competência ratione personae para processar e julgar demanda a ser aforada pela
OAB, nos exatos termos do dispositivo constitucional retrocitado.
VI - Conclusão
Exposto nosso pensamento a respeito do assunto, concluimos ser viável o
ajuizamento de demanda para obter o reconhecimento judicial da imunidade
tributária que beneficia o patrimônio da Ordem dos Advogados do Brasil.
Como pedido a ser formulado, sugerimos o pleito de anulação dos lançamentos de
oficio realizados pelo Município de Campo Grande e que se referem ao IPTU dos
anos de 1991 a 1995, referentes aos imóveis de propriedade da OAB. bem corno e
por consequência para que sejam anulados os débitos fiscais da consulente junto
ao Município de Campo Grande, decorrentes do mesmo tributo e referentes aos
mesmos imóveis.
NETTO,
André L. Borges. A imunidade tributária do patrimônio da ordem dos advogados
do Brasil. Disponível em <http://www.direitovirtual.com.br/artigos.php?details=1&id=87>.
Acesso em 06/06/06.