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O MP e a Legitimidade para a Defesa dos Interesses
Coletivos Decorrentes de Questões Tributárias de Massa
Paulo Valério Dal Pai Moraes
Promotor de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul, Coordenador da Promotoria de Defesa do Consumidor,
Mestre em Direito do Estado pela PUC/RS
1. Introdução; 2. O
princípio da vulnerabilidade - Introdução e Origem; 3. Vulnerabilidade jurídica
do contribuinte; 4. Conceito de Interesse Difuso, Coletivo "stricto sensu" e Individual
Homogêneo; 5. Da Relevância Social, do Interesse Público e da
Indisponibilidade; 6. Algumas decisões da jurisprudência; 7. Conclusões.
1- Introdução:
O artigo 127 da Constituição Federal
apresenta as características do Ministério Público como instituição, bem como
as funções que devem ser por ele exercidas. Nestes termos dispõe a Lei Maior:
"O Ministério Público é instituição permanente...incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do
regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis."
Também no artigo 129 da C.F. existe um rol de
funções atribuídas ao "Parquet", dentre
elas destacando-se, para os fins do presente trabalho, as constantes nos
incisos II, III e IX, que ora são transcritas:
"II- zelar pelo
efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos
direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a
sua garantia;
III- promover o inquérito civil e a
ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio
ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;
IX- exercer outras funções que lhe
forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade..."
Desta forma, o Ministério Público possui
evidente legitimidade para promover qualquer ação judicial com vistas à defesa
dos interesses coletivos "lato sensu"
(difusos, coletivos "stricto sensu"
e individuais homogêneos), principalmente para a observância, também, do
contido no artigo 5º, incisos XXXV e LXXIV, da C.F., os quais são assim escritos:
"XXXV- a lei
não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão;
LXXIV- o Estado prestará
assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de
recursos;"
Hugo Nigro Mazzilli O Ministério Público na
Constituição de 1988, editora Saraiva, São Paulo, 1989, p. 48.,
corroborando o acima declinado, realiza importante
comentário sobre o conceito de interesse público e de relevância social,
requisitos estes identificadores da "indisponibilidade" dos
interesses, a qual obrigará à intervenção do "Parquet".
Transcreva-se, portanto, a lição:
"...Entretanto, a expressão
mais abrangente ainda é a do interesse público, que, no dizer de Renato Alessi,
compreende o interesse público primário e o secundário. Com efeito, não há
confundir o interesse do bem geral (interesse público primário) com o interesse
da administração (interesse público secundário), ou seja, o modo como os órgãos
governamentais vêem o interesse público. Essa distinção evidencia que nem
sempre, ao contrário, está a coincidir, respectivamente, o interesse público
primário com o secundário. E é pelo primeiro deles que deve sempre zelar
realmente o Ministério Público. E, nesse sentido, o interesse público primário
(bem geral) pode ser identificado com o interesse social, o interesse da
sociedade ou da coletividade, e mesmo com os mais autênticos interesse
difusos...". (grifo nosso)
O conceito de relevância social, por sua vez,
é apresentado com características bastante objetivas na Lei n.º
8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), especificamente no artigo 82,
parágrafo 1º, merecendo ser transcrito o dispositivo, dado que as realidades
nele comentadas independem da existência ou não de relação de consumo:
"...quando haja manifesto
interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano , ou pela
relevância do bem jurídico a ser protegido." (grifo nosso)
Desta forma, em qualquer situação fática,
diga ela respeito a problemas envolvendo o consumidor, o meio ambiente, o
patrimônio histórico, turístico, paisagístico ou até mesmo em casos em que
alguma lesão tenha atingido contribuintes coletivamente considerados, desde que
presentes os requisitos acima apontados, caracterizadores da "relevância
social", estará o Ministério Público não somente autorizado, mas OBRIGADO
a intentar todas as ações necessárias à coibição de eventuais abusos (vide
artigos 83 e 117 do CDC – este último introduziu todo o Título III, ou seja,
quase toda a parte processual do CDC, do artigo 81 até o 104,
na Lei nº 7.347/85, que é a Lei da Ação Civil Pública).
Entretanto, no dia 09.12.1999, foi veiculado
na Internet notícia informando que o Supremo Tribunal Federal decidiu que
"o Ministério Público não tem legitimidade para promover ação civil
pública para impugnar a cobrança de tributos". Na mesma notícia é dito que
a decisão "...foi tomada no julgamento dos
recursos extraordinários 195.056 do Paraná, e 213.631 de Minas Gerais, cujos
relatores foram, respectivamente, os Ministros Carlos Veloso e Ilmar Galvão. No recurso extraordinário do município de Umuarama/PR, a questão examinada foi a majoração do Imposto
Predial e Territorial (IPTU), e no do município de Rio Novo, tratou-se da taxa
de iluminação pública.".
Na data de 11.12.99, igual notícia foi
veiculada no Jornal Correio do Povo, um dos maiores veículos de comunicação do
Estado do Rio Grande do Sul, onde era informado que o "MP só pode
encaminhar ações civis públicas quando se tratar de interesse do consumidor,
cuja competência está prevista no Código".
Para os operadores do direito
mais acostumados com o trabalho forense e com as múltiplas questões que
envolvem as ações civis públicas e coletivas de consumo o informe causou
espécie.
Exatamente por isso que nos propusemos ao
estudo do tema, especificamente no que tange às questões tributárias, a fim de
tentar contribuir para demonstrar que o relevante na matéria
processual tratada – legitimidade do "Parquet"
- não é o tipo de relação jurídica discutida, considerada a sua substância, mas
sim a sua forma, ou seja, se ela reúne os elementos suficientes para
identificar no seu âmago a existência da realidade unificadora chamada
"origem comum".
Este conceito, aliado ao de relevância social,
ambos acrescidos das imprescindíveis análises filosóficas, sociais e jurídicas
consubstanciadas no princípio da vulnerabilidade, certamente induzirão às
conclusões que nos propomos chegar.
Para tanto, propositadamente nos valeremos
das mesmas palavras usadas em artigo em que se comentou sobre a legitimidade do
Ministério Público para a realização do controle prévio e abstrato nos
contratos de massa, haja vista que a premissas e realidades
importantes são as mesmas.
Iniciemos, então, abordando o tema da
vulnerabilidade.
2-O Princípio da Vulnerabilidade - Introdução
e origem:
O princípio da vulnerabilidade foi pela
primeira vez positivado no direito brasileiro no artigo 4º, inciso I, do Código
de Defesa do Consumidor, constituindo-se em norma base de todo o sistema de
defesa da relação de consumo.
A vulnerabilidade, entretanto, não é uma
peculiaridade que atinge somente o consumidor, sendo fácil a
constatação de que também em grande parte das relações jurídicas tributárias o
contribuinte acaba sendo ofendido por ação das mesmas realidades que obrigaram
à proteção dos mais frágeis da relação de consumo.
O que se pretende com este trabalho,
portanto, é fazer um paralelo entre as normas consumeristas
e os problemas tributários, a fim de demonstrar a íntima ligação que existe
entre as matérias, não só em se tratando do aspecto material, mas,
principalmente, quando é feita análise das disposições processuais que, por
expressa determinação legal, são as mesmas, em se tratando de lesões de massa
(sejam consumidores ou contribuintes).
A vulnerabilidade do contribuinte, então,
acompanha as mesmas ocorrências que envolveram as relações de consumo, ao longo
da história A alteração do modelo de produção acontecida no final do século
XVIII e que se consolidou no século seguinte, fez com que a relação de
trabalho, que tinha um caráter individual a personalizado se convertesse em uma
relação massificada e despersonalizada. A energia humana foi substituída pela
mecânica e o trabalhador passou a ser considerado um número,
com funções laborais restritas e invariáveis. Como conseqüência disso, a
produção aumentou imensamente, sendo gerado um mercado consumidor que foi
seduzido pelas inovações, das quais sequer noção possui quanto à forma de
produção e suas conseqüências. Aliado a isto, o antigo ideal de
"liberdade", no qual a livre iniciativa tinha suas origens, começa a
ceder espaço para a tendência à concentração de capitais, dando surgimento,
aproximadamente no final do século XIX, aos monopólios e oligopólios com potência
suficiente para alterarem toda a conformação do mercado. Alberto do Amaral
Junior comenta que "...Diferentemente do que
ocorria na economia clássica, não é mais o consumo que determina a produção,
mas esta que determina o que será ou não produzido...a verticalização
das relações econômicas fez surgir um poderoso sistema de motivação e persuasão
capaz de controlar os consumidores. Este sistema passou a ser tão importante
quanto o próprio aparato de organização para a produção e distribuição de bens.
Com isso, as necessidades dos consumidores não são exclusivamente o produto de
suas exigências físicas ou biológicas, ou mesmo do ambiente em que vivem e
atuam, mas são em grande parte forjadas pelas campanhas publicitárias."
Inicia-se, assim, o "fenômeno" da
vulnerabilidade nas relações de consumo, propriamente dito.
. Por isso, é importante bem definir o
princípio, objetivando a sua correta compreensão.
Vulnerabilidade é a qualidade de quem é
vulnerável. Vulnerável, nos termos do que define Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira Dicionário da Língua Portuguesa, 11ª
edição, editora Civilização Brasileira S.A., Rio de Janeiro, 1987, p. 1256. é "...que se vulnera; diz-se do lado fraco de um
assunto ou questão, e do ponto por onde alguém pode ser atacado ou ferido."
Vulnerar é "...ferir; melindrar; ofender". Ou seja, vulnerabilidade é
um conceito que expressa relação, somente podendo existir tal qualidade se
ocorrer a atuação advinda de potência superior.
Também evidencia a qualidade daquele que foi
ferido, ofendido, melindrado por causa de alguma atuação de quem possui
potência suficiente para tanto.
Vulnerabilidade é, então, o princípio pelo
qual é reconhecida pelo sistema jurídico positivado brasileiro a qualidade
daquele ou daqueles sujeitos mais fracos na relação de consumo, situação esta
também presente na relação tributária, tendo em vista a possibilidade de que
venham a ser ofendidos, consumidor ou contribuinte, no âmbito econômico, por
parte do sujeito mais potente das respectivas relações.
O princípio da vulnerabilidade decorre
diretamente do princípio da igualdade, com vistas ao estabelecimento de
liberdade, considerado que somente pode ser reconhecido igual alguém que não
está subjugado por outro. Nelson Nery Junior informa que "...O
consumidor é reconhecido como a parte mais fraca nas relações de consumo (art.
1º., da Resolução da ONU sobre os direitos do consumidor, de 9.4.85; art. 4º,
I, do CDC)", acrescentando que por isso os consumidores devem ser
"...tratados de forma desigual pela lei, a fim de que se atinja,
efetivamente, a igualdade real, em obediência ao dogma constitucional da
isonomia (art. 5º, caput, CF), pois devem os desiguais ser tratados
desigualmente na exata medida de suas desigualdades (isonomia real, substancial
e não meramente formal)." (Revista Direito do Consumidor, vol. 3, editora
RT, São Paulo, p. 53)
Marcelo Abelha Rodrigues escreve que "...o princípio da igualdade constitucionalmente
garantido, possui um duplo enfoque, que não há como ser olvidado. Assim,
segundo o caput do art. 5º da CF/88, está claramente
estabelecido que todos são iguais perante a lei. Lembra Luis Davila Araújo que: `A regra isonômica não admite qualquer
privilégio, tratando igualmente as pessoas. Isto é o que se denomina igualdade
formal ou igualdade perante a lei". Continuando, diz que a lei maior "...ao tratar do princípio da igualdade, cuida também
de explicitar, no corpo deste aludido artigo, que alguns grupos de pessoas
existentes na sociedade, merecem uma proteção especial, justificando esse tratamento
diferenciado, pois, pelas condições sócio-político-culturais em que se
encontram. Este desnível ocupacional de certos grupos da população, tem como
culpado imediato o próprio Estado, e, justamente por isso que ele, Estado, por
via da carta maior, determina que estes grupos devam ser tratados através de um
tratamento desigual. Tem-se, no caso, a igualdade material (= igualdade na
lei). Com isto quer se dizer que, conforme o modelo adotado pelo constituinte,
estaríamos diante de uma autorização para desigualar na lei. No mesmo sentido
de justiça distributiva propugnado por Aristóteles, ou ainda, do princípio
geral do Direito Romano suum cuique
tribuere...Neste grupo que mereceu atenção especial
do legislador constituinte, destacam-se os consumidores." (Revista Direito do Consumidor, vol. 15, editora RT,
São Paulo, p. 50 e 51)
Olga Maria do Val
também aborda o tema, dizendo que "No âmbito da tutela especial do
consumidor, efetivamente, é ele sem dúvida a parte mais fraca,
vulnerável, se tiver em conta que os detentores dos meios de produção é que
detêm todo o controle do mercado, ou seja, sobre o que produzir, como produzir
e para quem produzir, sem falar-se na fixação de suas margens de lucro."
Ato contínuo, comenta que "...a vulnerabilidade do consumidor é, nas
palavras de João Batista de Almeida, `a espinha dorsal da proteção ao
consumidor, sobre que se assenta toda a linha filosófica do movimento. É
induvidoso que o consumidor é a parte mais fraca das relações de consumo;
apresenta ele sinais de fragilidade e impotência diante do poder
econômico". (Revista de Direito do Consumidor, volume 11, Editora RT, São
Paulo, julho/setembro de 1994, p. 78)
Da mesma forma entende Luiz Renato Ferreira
da Silva, o qual escreve que "A principiologia
que rege a política nacional das relações de consumo explica quais as
motivações da lei e, de início, expõe qual o critério discriminador que,
reconhecendo as desigualdades, tenta fazer prevalecer uma isonomia material. É
que se tem como regra cimeira dos princípios da lei de consumo, a norma
reconhecedora da `vulnerabilidade do consumidor no
mercado de consumo', devendo a ação governamental ser estabelecida `no sentido
de proteger efetivamente o consumidor". (Revista Direito do Consumidor,
vol. 8, Editora RT, São Paulo, out/dez.
de 1993, p. 155)
Estes exemplos doutrinários Reproduzidos nas
Nota 2 e 4. servem para reforçar que por uma série de
motivos existe uma desigualdade insuportável entre o fornecedor de produtos e
serviços e o consumidor, a qual é evidente e, por este motivo, precisa ser
debelada, pois tem reflexos na estrutura social, econômica e política como um
todo. A concretização, portanto, do princípio da isonomia é a base para a
realização da Política Nacional das Relações de Consumo, entendida esta palavra
"política" como o "conjunto de objetivos que informam (dão forma
a) determinado programa de ação governamental e
condicionam a sua execução." Prossegue a jurista Olga do Val, citando Thierry Bourgoignie, dizendo que uma "...política efetiva deve
abordar quatro aspectos: I) identificação da pessoa do consumidor, a partir de
sua participação sócio-econômica no desenvolvimento, e as particularidades e
condições nas quais ele exerce e assume seu papel; II) justificativas para
adoção dessa política, por meio de considerações de ordem econômica, de caráter
social e de natureza política; III) objetivos e conteúdo dessa política, que
deve atender integralmente as necessidades que surgem, tais como educação,
informação, proteção e acesso do consumidor à Justiça; IV) elaboração de leis
que possibilitem a efetiva proteção do consumidor, de forma que o direito do consumidor seja autônomo..."
(Olga do Val, Revista Direito do Consumidor,
volume 11, Editora RT, São Paulo, julho/setembro de l994, p. 68 e 69).
Desvenda-se, assim, a origem axiológica do
princípio da vulnerabilidade, como decorrente do princípio da igualdade e com
vistas ao estabelecimento de liberdade aos naturalmente subjugados no mercado
de consumo.
Falar de consumidor, entretanto, na correta
visão de direito público que encerra a matéria, significa ter em mente a
complexa estrutura do artigo 170 da Constituição Federal (Dos Princípios Gerais
da Atividade Econômica), na qual está inserido o princípio da defesa do
consumidor, não podendo ser olvidado que é a tributação, em grande parcela, um
produto da relação de consumo. Com efeito, é por intermédio da aquisição dos
gêneros alimentícios básicos, das compras de produtos ou serviços em geral, que
surgem os suportes fáticos que constituirão as relações jurídicas tributárias,
com isso sendo perceptível a íntima ligação entre os
ramos do direito ora conjugados para fins de estudo e de demonstração das suas
iguais realidades.
Comentar o tema da tributação, portanto,
significa abordar a questão consumerista em uma das
suas inúmeras perspectivas, pois os consumidores são, em muitas situações
fiscais, os reais pagadores dos tributos.
Ruy Barbosa Nogueira Curso de Direito
Tributário, Editora Saraiva, 10ª edição, São Paulo, 1990, p. 26. assim comenta sobre a relação jurídica tributária:
"Vamos então esclarecer e exemplificar o
que é a relação jurídico-tributária: o indivíduo, entrando em relação com outro
ou outros, pratica atos como, por exemplo, um contrato de compra e venda de uma
casa. Ao praticar esse ato, essa relação negocial,
com ela incide no campo da lei tributária, porque a lei tributária previamente
declara incidente no imposto a compra e venda de imóvel.
A ocorrência dessa relação humana que incide
na lei tributária, isto é, que produz efeitos jurídico-tributários, faz surgir
entre o Estado e o indivíduo direitos e obrigações recíprocos, formando o
conteúdo de uma relação específica chamada relação jurídica tributária."
Seguindo em suas lições, informa o mestre
tributarista Ob. citada, p. 145. o
conceito de "obrigação", como sendo "...a relação pela qual uma
pessoa (credora) tem o direito de exigir de outra (devedora) uma
prestação."
A relação tributária, portanto, é a "...relação de Direito Público prevista na lei
descritiva do fato pela qual o Fisco (sujeito ativo) pode exigir do
contribuinte (sujeito passivo) uma prestação (objeto)."
Constata-se, assim, que semelhantes
circunstâncias de submissão existem na relação de consumo - o fornecedor possui
maiores conhecimentos técnicos, profissionalidade,
estrutura financeira, organização do que os consumidores – e na relação
tributária, dado que nesta o Estado simplesmente "exige" o crédito do
contribuinte, configurando-se nítido relacionamento de desigualdade autorizado
por lei, em prol da captação de recursos suficientes para atender o total de
demandas feitas aos entes públicos.
Assim como na relação de consumo, onde também
existe o direito de o fornecedor impor alguns tipos de relacionamentos
naturalmente desiguais, como os contratos de adesão, as publicidades que
direcionam o consumo, etc, igualmente na relação tributária é suportável algum
tipo de desigualdade, em ambos os casos existindo como limite o reconhecimento
do "abuso do direito", pois, emergindo este, impõe-se a utilização de mecanismos processuais de contenção dos atos
administrativos estatais.
Vittorio Cassone
Direito Tributário Atualizado pela Nova Constituição, editora Atlas, São Paulo,
1991, p. 139. se manifesta sobre o assunto, dizendo o
que segue:
"O Poder Judiciário expressa a garantia
da segurança jurídica. Tem por função precípua prestar jurisdição, compondo,
por meio do processo e com a aplicação da lei, os conflitos de interesses entre
Fisco e Contribuinte.
Conforme o caso, são diversos os tipos de
ações judiciais de que o contribuinte pode recorrer para defender seus direitos
pertinentes aos tributos exigidos pelo Fisco, e de que nos ocuparemos dos
seguintes: Mandado de segurança, Ação de repetição do indébito tributário, Ação
anulatória de ato declarativo da dívida e Ação declaratória."
Ocorre que nem todos tem
condições de intentar ações dessa espécie, seja por problemas econômicos, por
falta de informação, por falta de tempo, por insignificância dos valores, em
suma, pelas mais variadas hipóteses cotidianamente emergentes. Assim, inúmeras
lesões não são passíveis de serem debeladas pela via do processo individual,
daí surgindo a importância das ações coletivas
"lato sensu", uma das principais delas
sendo a Ação Civil Pública para a neutralização de danos de massa impostos pelo
fisco aos contribuintes.
Em nosso livro - "O
Princípio da Vulnerabilidade nos Contratos, na Publicidade e nas Demais
Práticas Comerciais" Editora Síntese, Porto Alegre, 1999.-
identificamos a existência de 6 (seis) espécies de
vulnerabilidade, uma delas, em especial, servindo para as reflexões na área do
direito tributário. São elas: a vulnerabilidade técnica, política ou
legislativa, biológica ou psíquica, econômica e social,
ambiental e, por último, a vulnerabilidade jurídica.
Pois é desta última que trataremos a seguir,
objetivando evidenciar os problemas que decorrerão de uma interpretação
restritiva da atuação do "Parquet" para
intentar ações civis públicas para a defesa de lesões nas relações tributárias.
2.Vulnerabilidade Jurídica
do Contribuinte:
Este tipo de vulnerabilidade jurídica se
manifesta, predominantemente, na avaliação das dificuldades que o consumidor ou
o contribuinte possuem para defender seus direitos, seja na esfera
administrativa, seja na judicial.
Alguns juristas comentam que seria a "...falta de conhecimentos jurídicos específicos,
conhecimentos de contabilidade ou de economia."
Ousamos divergir da posição, pois esta
deficiência de conhecimentos técnicos corresponde à vulnerabilidade técnica,
assunto que, no momento, não temos condições de discorrer com mais
profundidade, mas que foi objeto do trabalho monográfico comentado.
O Direito, assim como a economia, a
contabilidade e outros ramos do conhecimento também possui suas técnicas, e o
fato de ser uma "ciência" Lembre-se Eros Roberto Grau, Revista
Direito do Consumidor, volume 5, Editora RT, São
Paulo, janeiro/março de 1993, pp. 183 e seguintes
quando diz que "...o direito não é uma jurisciência,
mas uma jurisprudência, não existindo apenas um caminho para chegar a um
determinado ponto, mas vários. Assim, o desafio jurídico é encontrar o caminho
mais adequado, mais prudente e que atenda às necessidades da sociedade, a
partir dos critérios ditados pelo sistema." compreensivo-normativa e não
meramente "explicativa" Miguel Reale,
Filosofia do Direito, volume 1, Editora Saraiva, 3ª edição, 1962, p. 226:
"É mister, pois, distinguir entre as leis físicas ou naturais, de ordem
explicativa, e as leis culturais que envolvem uma `conexão de sentido', sendo
de ordem compreensiva. Uma das expressões das leis culturais são as normas, que
implicam no reconhecimento da necessidade ética de se
agir ou não em certo sentido...O explicar é condição do compreender, porque em
todo objeto cultural existe um elemento que é o `suporte'.
A compreensão marca, ao contrário, a tomada de contacto com o elemento valorativo ou axiológico, que nos dá o sentido ou significado do
ser. Se lembrarmos, a esta altura, que as regras morais e as jurídicas
são bens de cultura, compreenderemos logo que elas não podem ser apenas
explicadas, porque devem ser `compreendidas'".
não invalida a independência que tem relativamente aos meios que estão à sua
disposição para alcançar suas finalidades.
Por isso visualizamos a vulnerabilidade
jurídica em outro plano, a saber, o momento a partir do qual surge algum
problema decorrente da relação tributária, originando a adoção de medida por
parte do contribuinte, tendente a solucioná-lo, seja junto ao fisco, com o
auxílio ou não de advogados, seja frente aos órgãos de defesa do contribuinte,
dentre eles o Ministério Público.
A vulnerabilidade jurídica em algum aspecto
talvez possa se equiparar à hipossuficiência,
pois, todo hipossuficiente é vulnerável, mas nem todo
vulnerável é hipossuficiente. Ou seja, em sendo a hipossuficiência no Código de Defesa do Consumidor um
conceito relativo ao processo – portanto passível de ser utilizado por analogia
em outros ramos do direito -, que indica a possibilidade ou não de serem
custeados os ônus decorrente do processo, poderão
existir situações em que o contribuinte terá tal possibilidade, isto é, não
terá insuficiência em relação a este aspecto, mas, mesmo assim, ainda
continuará vulnerável, com possibilidade de ser ofendido, melindrado, ferido
(vide conceituação exposta) pela atuação mais forte e intensa do fisco.
Em decorrência disso frisou-se que a hipossuficiência é um conceito relacionado ao processo e à
possibilidade de custeá-lo, enquanto que a vulnerabilidade é um conceito que
relaciona as forças em geral dos dois pólos da relação de consumo ou
tributária, verificando se um é mais fraco do que o outro.
Flávio Cheim Jorge
Revista Direito do Consumidor, volume 17, Responsabilidade Civil por Danos
Difusos e Coletivos Sob a Ótica do consumidor, editora RT, p. 109., citando Galanter,
aborda o assunto da vulnerabilidade jurídica a partir da distinção
"litigantes eventuais" e "litigantes habituais", procurando
identificar realidades vividas por todos aqueles que militam nos foros, mas
que, na maior das vezes, não são consideradas principalmente por membros do
Ministério Público e por Magistrados, resultando, assim, em uma apreciação
parcial das forças que atuam em juízo.
Estas as características dos litigantes habituais:
- "...maior
experiência com o Direito possibilita-lhes melhor planejamento do
litígio"- não há como não reconhecer que aquele litigante que já passou
pelo mesmo tipo de problema em juízo pode até mesmo alterar a sua maneira de
argumentar no processo, por uma série de motivos. Desde o conhecimento do
magistrado que atua na vara, suas convicções, forma de agir, até o tipo de
alegações que normalmente são veiculadas pelos contribuintes. Tudo isto é
possível avaliar previamente para o efeito de planejar uma boa conduta
processual.
Possibilidades de conversas sobre acordos
podem inexistir para o fisco, pois é sabedor de determinadas ocorrências no
processo que normalmente lhe beneficiam, enquanto o contribuinte, litigante
eventual, gastará energias tentando tal possibilidade que, muitas vezes, devido
à sua natural vulnerabilidade decorrente da necessidade, imaginará ser a melhor
saída;
- "...o
litigante habitual tem economia de escala, porque tem mais caso"- neste
aspecto emerge o problema da hipossuficiência,
evidenciando que ela deve ser analisada também com o auxílio deste critério,
pois o custo global de um processo para o fisco deve relevar o número de
demandas que possui, pois, quanto maior a quantidade, menores serão os custos
das demandas individualizadas, a começar com as despesas com procuradores;
- "...o
litigante habitual tem oportunidades de desenvolver relações informais com os
membros da instância decisora"- não há como
negar, também, que o ser humano é movido por simpatias e antipatias, variando
naturalmente o seu estado de ânimo para a realização de qualquer coisa, tendo
em vista a pessoa do seu interlocutor.
Neste aspecto, relações de amizade se formam,
estados de confiança prévia e recíproca se criam, ocorrendo, eventualmente,
abusos neste sentido, com decisões e condutas processuais eivadas de
sentimentos pessoais, situações estas que não são tão raras assim como possam
parecer.
Sentimentos de respeito ou até veneração
relativamente a alguns profissionais reconhecidos no meio jurídico também por
vezes contribuem para a alteração das potências na relação processual, tudo
isto resultando em óbvia distinção de forças em favor dos litigantes habituais;
- "...ele pode
diluir os riscos da demanda por maior número de casos"- de acordo com o já
afirmado, conhecendo melhor os riscos existentes em determinada demanda, o
litigante tem condições de mais facilmente se posicionar em relação a ela,
dando continuidade, aumentando a força da argumentação, acordando, etc;
- "...pode
testar estratégias com determinados casos, de modo a garantir expectativa mais
favorável em relação a casos futuros".
Aliado a isto, comenta
Flávio Cheim que os litigantes habituais possuem
profissionais especializados e em permanente atividade na área jurídica de
defesa do Estado, estando, portanto, acostumados aos mesmos problemas, o que
lhes garante um grau de organização e eficiência incomparáveis com outros bons
profissionais da mesma área do direito, quem dirá se a comparação é feita com
"profissionais que são procurados em virtude dos baixos honorários
cobrados ou lhes são impostos pelo estado, que em função dos baixos salários
recebidos, não proporcionam a dedicação e competência desejada."
Em resumo, ressalta o
mestre paulista, realizando abordagem relativa à área do consumidor, mas
útil para os problemas tributários, tudo isto resulta em "...menos
problemas em mobilizar as empresas no sentido de tirarem vantagens de seus
direitos, o que, com freqüência, se dá exatamente contra aquelas pessoas comuns
que, em sua condição de consumidores, por exemplo, são as mais relutantes em
buscar o amparo do sistema judicial."
Não bastassem todas estas "facilidades"
existentes para os litigantes habituais, deve ser relembrado que o Estado,
assim como as empresas, jamais assumem os prejuízos das demandas, mas sim os
internalizam como custos, que servirão como substratos fático e organizacional
para fazer as futuras exigências tributárias.
Já os contribuintes, de um modo geral litigantes eventuais, estão sempre com a possível
realidade de terem de arcar com os custos de eventual derrota que, muitas
vezes, obrigará a não ingressarem em juízo com medo de ainda serem condenados a
pagar os ônus da sucumbência, o que, por si só, já seria suficiente para
demonstrar a terrível disparidade de forças entre fisco e contribuintes, sob o
aspecto da vulnerabilidade jurídica.
A vulnerabilidade jurídica igualmente evidencia-se
porque o contribuinte, muitas vezes (repetição de indébito), está diante de uma
necessidade premente, enquanto que o fisco não tem qualquer pressa. Pelo
contrário, quanto mais demorar a demanda, melhor será, tática esta, aliás,
seguida por muitas empresas na área do direito do trabalho, onde ocorre a mesma situação.
Assim, conforme comentário de Antonio Carlos Efing Revista Direito do Consumidor, volume 17, Editora RT,
São Paulo, janeiro/março de l996,
p. 83. e novamente transferindo os conceitos para a
figura do contribuinte "...temos de transpor o obstáculo que, para o
acesso a justiça, representa a solidão do consumidor: isoladamente, é um ser
desarmado; tudo concorre para tirar-lhe a coragem de ingressar nos tribunais
para enfrentar-se com o responsável pelo ato lesivo", o que será feito por
intermédio dos entes coletivos de defesa dos vulneráveis.
Também válidos para a defesa do contribuintes são os ensinamentos de Neves Ribeiro (Director do Gabinete de Direito Europeu do Ministério da
Justiça da República Portuguesa) Revista Direito do Consumidor, volume 12,
Editora RT, São Paulo, outubro/dezembro de 1994, p. 7
e 8., quando comenta que "há um déficit de meios processuais novos e
caducidade de meios processuais antigos. A nosso ver, o papel do MP é decisivo
neste combate em benefício do consumidor, quer actuando
com a participação dos particulares, como tal, ou constituídos em associações
ou, porque não, em fundações".
Verifica-se, portanto, a vulnerabilidade do
contribuinte isoladamente considerado, pois é, na maior das vezes,
"litigante eventual", ficando completamente desprotegido diante de
abusos de massa que eventualmente são praticados.
Veja-se, por exemplo, os problemas de taxas
de iluminação ilegalmente instituídas por Decreto do Poder Executivo Municipal.
Teria o contribuinte condições de impugnar tal conduta
individualmente? De que forma faria isso se a ação civil pública somente pode
ser intentada por entes coletivos? Teria o contribuinte
individual informações sobre como buscar administrativamente ou
judicialmente seus direitos? E condições econômicas para custear o processo?
Mais, se o prejuízo individual é de pequena monta? Valeria a pena intentar uma
ação individual para obter resultado econômico inferior aos gastos que o processo
demandaria?
Outra hipótese bastante comum diz respeito
aos aumentos injustificados de IPTU e outras ocorrências irregulares que são
praticadas com base em tal imposto. De que forma os contribuintes individuais
poderiam fazer valer seus direitos?
Um terceiro singelo exemplo. As "taxas
de lixo" cobradas de populações das periferias das cidades, populações
pobres que muitas vezes sequer o serviço chega até as moradias, ou seja, o
contribuinte completamente vulnerável paga o que não pode, por algo (serviço)
que não recebe do ente público.
Todas essas são ocorrências que impedem o não
reconhecimento da legitimidade dos entes coletivos, dentre eles e, por óbvio, o
Ministério Público, principalmente por que a instituição está presente em todas
as comarcas e, portanto, possui condições de receber as reclamações e dar
andamento aos casos, objetivando a sua resolução.
A vulnerabilidade jurídica também se
evidencia na área dos contribuintes, haja vista que não existem juizados de
pequenas causas tributárias. Nicole L'Heureux Revista
Direito do Consumidor, volume 5, Editora RT, São
Paulo, janeiro/março de 1993, p. 10. aborda o assunto dos juizados de pequenas causas, dizendo
que esta seria uma solução adequada, no que tem, certamente, razão. Ao menos no
Estado do Rio Grande do Sul e mesmo com os grandes problemas enfrentados, o
juizado especial cível tem atuado com rapidez e agilidade, sem falar do grande
número de processos que atende anualmente. Não é incomum encontrar advogados de
grandes empresas, litigantes habituais, que dizem estar
preferindo fazer um acordo diretamente com o consumidor do que esperar o
ingresso deste no juizado especial, pois a adoção da segunda conduta somente
oneraria o fornecedor indevidamente. Ou seja, a atuação do Poder Judiciário,
nestes termos, está concretizando um dos principais objetivos do CDC, que é a
harmonização das relações de consumo, através da qual o consumidor e fornecedor
diretamente compõem o provável litígio. Existem referências extraoficiais
de que o Juizado de "Pequenas Causas" deste Estado teria julgado mais
de 130.000 processos em 1998, destes 70% diziam respeito a relações de consumo.
Transfira-se essas possibilidades para a área
tributária e será fácil a visualização da diminuição da vulnerabilidade
jurídica do contribuinte. Todavia, sistema como o ora aventado inexiste no
momento, o que configura graves concretizações de danos de massa aos
contribuintes.
Como segundo aspecto, aponta a doutrinadora
Canadense o grande benefício das ações coletivas, dizendo que, muitas vezes,
"o valor monetário das ações individuais pode ser muito pouco ou, em razão
de circunstâncias particulares, certas vítimas não quereriam ou não poderiam
desencadear o processo judiciário." Em acréscimo,
aponta que este tipo de ação "...proporciona um mecanismo que permite
reunir pequenos processos em uma só ação, substancialmente bastante, e que
torna economicamente factível, pelas economias de escala, a reunião de vítimas
que, de outra forma, não poderiam permitir-se individualmente contratar um
advogado para defender sua causa perante a justiça." Com isto, "... o
poder de barganha dos membros da classe é assim fortalecido".
Servem as ações coletivas, igualmente, para
reduzir o número de processo nos foros, diminuindo o número de provas a serem
feitas, de atos processuais a realizar, em suma, economizando os serviços de
toda uma estrutura que é cara e que tem reflexos na administração da justiça
como um todo.
Por fim, comenta a doutrinadora que as ações
coletivas auxiliam na prevenção, pois, sabedores os entes públicos que poderão
sofrer a atuação administrativa de órgãos como o Ministério Público e,
posteriormente, do Poder Judiciário, preferirão adequar suas condutas,
considerado que não mais existirá a "dispersão geográfica das vítimas"
e, a qualquer momento, poderão sofrer uma ação de monta, com todos os
prejuízos, até mesmo para a imagem do ente governamental tributante,
que este tipo de demanda causa.
As ações coletivas e ações civis públicas
Sobre a distinção vide o artigo escrito por nós e publicado na Revista
Jurídica, volume 264, out/99, Editora Notadez, Porto Alegre, p. 67., portanto, são o exemplo da concretização da união que
fortalece, precisando os contribuintes de órgãos que os agreguem e necessitando
o "Parquet" dos lesados, individualmente
considerados, para que sejam feitas as fiscalizações de cumprimento de eventual
medida que tenha sido imposta judicial ou extrajudicialmente aos demandados.
Neste particular é importante ressaltar os
grandes benefícios trazidos pela criação do compromisso de ajustamento (artigo
5º, parágrafo 6º, da Lei nº 7.437/85), que é título executivo extrajudicial
realizado por entes públicos, os quais poderão obrigar
os infratores dos direitos dos contribuintes a adotarem determinadas condutas
corretivas da sua atividade fiscal, sob pena de pesadas multas ou outras
cominações, o que tem auxiliado imensamente na redução de demandas coletivas e
individuais. No Estado do Rio Grande do Sul existe grande número de
compromissos firmados na área do consumidor o que pode ser alastrado para a
área tributária, sem qualquer problema.
Todavia, para que realmente possa ser um
pouco diminuída a vulnerabilidade jurídica do contribuinte, é preciso que sejam
seguidos os alertas feitos por Adroaldo Furtado
Fabrício Revista Direito do Consumidor, volume 7,
"Novas Necessidades do Processo Civil e os Poderes do Juiz", Editora
RT, São Paulo, julho/setembro de 1993, pp. 30 até
36., dos quais emergem os seguintes ensinamentos, que
podem ser assim resumidos:
- "...a própria
lide Carneluttiana, em sua formulação original,
supunha essa paridade e sugeria um processo de feição claramente duelística...". Este modelo "...mesmo
servindo à solução dos conflitos para os quais foi concebido...é claramente
insuficiente para acolher o dado novo dos contenciosos de massa...";
- existe a realidade da "...imensa
maioria da dispersa e vaga coletividade interessada". Na área tributária é
aumentada a vulnerabilidade do contribuinte, considerada esta ótica, dado que
inexistem associações de contribuintes, diversamente do que acontece no ramo consumerista, ambientalista, etc, nos quais existem várias
associações, que contribuem para diminuir um pouco os malefícios da desaglutinação;
-"...imensa
dificuldade de acesso individual dos lesados, em regra pobres, humildes e
desinformados, aos órgãos jurisdicionais";
-"...a
monumental e desanimadora diferença de forças, meios e recursos que separa o
litigante eventual do habitual";
- o litigante habitual "...tem
a seu favor a experiência acumulada dos litígios passados e a preparação sempre
mais aprimorada para os futuros...os quadros próprios e eficientes de
assessoria jurídica e procuratório judicial; está melhor aparelhado à produção
de provas de seu interesse...";
- sobre os contenciosos de massa afirma ser
fundamental o "...reconhecimento aos chamados
corpos intermediários...os sindicatos, associações, organismos de defesa de
interesses coletivos em geral. A legitimação do Ministério Público, para muitas
das ações deste gênero será complemento indispensável."; (grifo nosso).
- para reequilibrar
as forças "...a tendência é no sentido de
depressão do princípio dispositivo e incremento dos poderes do juiz na condução
do processo."
- "...o que se
pretende alcançar já não é só o contraditório `formal', no sentido de mera e
pouco mais do que aparente oportunidade para a manifestação de uma e outra
parte, mas o `contraditório substancial', efetivo, único apto a assegurar a
verdadeira igualdade em juízo";
- sobre o papel do poder judiciário diz que "...Juiz contido pela camisa-de-força do formalismo
rígido é Juiz que, mesmo capacitado a vislumbrar o justo, não o pode
realizar...Por tibieza ou por falta de assimilação da mentalidade nova ora
enfatizada, os juízes freqüentemente se abstêm de utilizar por inteiro os
poderes que o sistema legislado já lhes põe à mão. Mui raramente se vê o juiz
tomar iniciativas atinentes à produção da prova, embora seja o destinatário
dela..."
Estas algumas das conclusões que pedimos
"venia" para transcrever, pois aderimos
integralmente a elas, reconhecendo que contém os componentes principais para a
demonstração da vulnerabilidade jurídica dos contribuintes, em grande número
das relações tributárias.
3. Do conceito de Interesse Difuso, Coletivo
"stricto sensu" e
Individual Homogêneo:
A jurisprudência brasileira tem demonstrado
alguma dificuldade de entender com precisão e utilidade o que sejam interesse difusos, coletivos "stricto
sensu" e individuais homogêneos.
Por isso, importante defini-los, objetivando
tentar esclarecer porque motivos não há como afastar a legitimidade do "Parquet" para a defesa de contribuintes unidos por
condutas que lhes são lesivas.
3.1- O artigo 81, parágrafo único, do CDC, em
seu inciso I dispõe que são interesses ou direitos difusos "... assim
entendidos, para os efeitos deste Código, os transindividuais,
de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e
ligadas por circunstâncias de fato".
Elementos dos interesses difusos (artigo 81,
parágrafo único, inciso I do CDC, por expressa determinação do artigo 117 do
CDC aplicável às ações civis públicas, já que o art. 81 faz parte do Título III
do CDC):
- transindividuais
- extrapolam o âmbito individual, ou seja, são direitos de todos os lesados por
alguma ocorrência, mas, no âmbito individual, de ninguém em específico.
Comumente fornecemos o exemplo em aula da pessoa que dirige-se
até a Promotoria, realiza uma reclamação indicando a existência de uma infração
difusa e, dias após, retorna ao órgão desejando "retirar a queixa",
pois teria resolvido o seu problema individual. Por óbvio o Promotor deverá dar
continuidade a eventual inquérito, exatamente por
causa do requisito da transindividualidade por
ventura presente na matéria, considerado que a resolução individual de um caso
não evitará que outros danos decorrentes da mesma conduta continuem sendo
perpetrados;
-indivisibilidade-
normalmente sintetiza-se o conceito com a utilização da seguinte frase:
"resolvendo o problema de um, automaticamente é resolvido o problema de
todos". Na área consumerista o exemplo típico é
o da publicidade enganosa em que o magistrado defere pleito no sentido de que
seja suspenso eventual anúncio feito pela televisão e que seja ilícito. Com
apenas um provimento, a retirada da publicidade, é resolvido o problema da
pessoa que reclamou e automaticamente de todos os que estivessem unidos pela
mesma circunstância fática, no caso, a veiculação televisiva;
- pessoas indeterminadas - provimento no
sentido acima declinado serviria para atender aos interesses de todos os
lesados, independentemente de serem conhecidos. Assim, a indeterminabilidade
decorrerá do fato de que todos os expostos à prática abusiva, mesmo
desconhecidos, poderão se beneficiar do provimento jurisdicional exemplificado
(no Código de Defesa do Consumidor existe a regra do artigo 29, a qual informa
que "...equiparam-se aos consumidores todas as
pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas").
- unidos por circunstâncias fáticas - o
"fato" publicidade ilícita, no exemplo dado, une os lesados em torno
dessa realidade, o que dá o caráter coletivo à questão. Ou seja, todos os que
de alguma forma ficaram à mercê das informações passadas pela publicidade
ilícita têm algo em comum, que é a possibilidade de sofrerem danos advindos de
um mesmo fato, por isso não existe motivo para que não sejam defendidos
coletivamente.
3.2- Interesses coletivos "stricto sensu" (artigo 81,
parágrafo único, inciso II do CDC, por expressa determinação do artigo 117 do
CDC aplicável às ações civis públicas, já que o art. 81 faz parte do Título III
do CDC):
- transindividuais
– é a mesma característica existente nos difusos;
- indivisibilidade – a mesma característica dos
difusos. Deferido, por exemplo, provimento jurisdicional dizendo
"suspenda-se a cobrança do aumento de IPTU com
base no índice de reajuste ' x' e não mais volte a ser utilizado tal
índice", resolvido estará o problema daquele contribuinte que eventualmente
tenha se dirigido à Promotoria para reclamar e, automaticamente, de todos os
que estejam unidos pela mesma conduta lesiva praticada pela administração;
- pessoas determinadas – esta característica
principia a distinção entre os difusos e coletivos "stricto
sensu", pois naqueles as pessoas são
indeterminadas, enquanto nestes os lesados são determinados pelo grupo,
categoria ou classe de pessoas lesadas. Exemplo típico seriam as taxas, que são
cobradas de maneira específica como a taxa judiciária, pagamentos estes por
intermédio dos quais as pessoas podem ser determinadas com facilidade;
- a existência de uma relação jurídica base –
esta outra diferença em relação aos difusos, dado que nestes os lesados estão
unidos por circunstâncias fáticas e nos coletivos "stricto
sensu" existe uma relação jurídica base. No caso
sob enfoque, de um modo geral os provimentos atinentes a questões fiscais
diriam respeito a interesses coletivos "stricto sensu", haja vista que os eventuais lesados estariam
unidos entre si ou com o Estado por intermédio de uma relação jurídica base,
que é a relação jurídica tributária. Neste sentido é o comentário de Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida:
"A relação jurídica-base é aquela preexistente à lesão ou ameaça de lesão
do direito ou interesse do grupo, categoria ou classe de pessoas. ... Alcançam também grupo, categoria ou classe de pessoas
sem organização, servindo de elo a relação jurídica-base com a parte contrária
(contribuintes de tributos em geral, alunos de escolas particulares, mutuários
de agentes do Sistema Financeiro da Habitação, etc.)" (grifo nosso) (Livro
de Teses do 12º Congresso Nacional do Ministério Público Brasileiro, Tomo III,
p. 762, Fortaleza, de 26 a 29 de maio de l998)
Desta forma, parece não poder haver dúvidas no
sentido de que lesões de massa a contribuintes caracterizam a infração aos
interesses coletivos "stricto sensu".
3.3- Os interesses individuais homogêneos
possuem apenas um requisito (art. 81, parágrafo único, inciso III, do CDC,
combinado com o artigo 117 do CDC):
- origem comum – sem qualquer complicação,
"origem comum" é "origem comum". São coisas, interesses,
direitos, que advém da mesma "fonte", seja ela uma "fonte"
jurídica (quando existe uma relação jurídica de qualquer espécie. Ex. relação
jurídica tributária) ou fática, na forma do que acontece com os interesses
difusos.
Assim, os interesses individuais homogêneos
tanto podem estar presentes em situações que, também, envolvem interesses
difusos como em que existam interesses coletivos "stricto
sensu", ou ainda pode a mesma
"ocorrência" conter os três interesses cumulados.
Isso acontece porque os diferenciadores dos
vários tipos de interesse são o PEDIDO e a CAUSA DE PEDIR
formulados na petição inicial, constituindo o desconhecimento desta
realidade o motivo maior pelo qual tanta confusão é feita na jurisprudência.
No mesmo sentido é a lição da Dra. Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida Ob. cit., pp.
765, 766 e 767., artigo que será bastante comentado,
devido à excelência do trabalho:
"A natureza jurídica dos diferentes
direitos e interesses metaindividuais somente pode
ser definida, em face do caso concreto, repita-se, através do exame da
pretensão material e do tipo de tutela jurisdicional invocada, ou, como prefere
dizer mais amplamente Kazuo WATANABE, através da
correta fixação do objeto litigioso do processo (pedido e causa de pedir).
A confusão é inevitável, se se considerar que os direitos e interesses individuais
homogêneos surgem exatamente no âmbito de uma coletividade titular de direitos
e interesses difusos ou de direitos e interesses coletivos.
...
Não há um terceiro universo de pessoas
distinto, constituído por titulares de direitos e interesses individuais
homogêneos; eles são identificados entre os integrantes da coletividade titular
de direitos difusos ou coletivos.
...
A cumulação objetiva de pretensões difusas ou
coletivas com pretensões individuais homogêneas é possível em razão da conexão
pela causa de pedir (mesmo fundamento)."
Para facilitar o entendimento da questão, a
qual, diga-se, caso não seja entendida da maneira simples, mas, data vênia,
correta como é apontada, pode se converter em matéria de alta complexidade, declina a eminente articulista citada alguns exemplos para
melhor elucidar o tema Ob. cit.,
p 768.:
"Para fixar-se as distinções e
considerações feitas acerca das três espécies de direitos e interesses metaindividuais, são elencadas, a
seguir, exemplos de diversas pretensões e sua correta classificação:
1) divulgação de propaganda enganosa sobre
determinado produto ou serviço e tutela jurisdicional, através de ação coletiva,
objetivando a suspensão liminar e a cessação definitiva da divulgação
(pretensão difusa); com base no mesmo fato lesivo ("origem comum")
seria cabível pedido condenatório de cunho patrimonial (devolução do preço,
indenização) sendo beneficiários os consumidores lesados (pretensão individual
homogênea);
2) cobrança ou aumento ilegal ou
inconstitucional de tributo, de mensalidade escolar, de tarifa de transporte
público e pedido de tutela jurisdicional para fazer cessar a prática ilegal ou
inconstitucional e se atender às exigências e parâmetros legais (pretensão
coletiva, em sentido estrito); o mesmo fato lesivo (cobrança ou aumento ilegal
ou inconstitucional citados) pode ensejar, ademais, pedido de devolução da
diferença ou do total pago indevidamente pelos contribuintes, alunos, usuários,
respectivamente (pretensão individual homogênea)".
(grifo nosso)
Percebe-se, desta forma, que não existe
qualquer motivo para entender que o Ministério Público teria legitimidade para
defender os interesses coletivos "stricto sensu" e também individuais homogêneos dos alunos
lesados por aumentos abusivos (o Supremo Tribunal Federal já se manifestou
neste sentido, conforme abaixo se transcreverá), mas não teria a mesma
legitimidade para defender os interesses coletivos "stricto
sensu" ou individuais homogêneos de
contribuintes lesados em massa.
Ora! Se a vulnerabilidade jurídica é a mesma
– fala-se em dificuldade de organização, pequenos valores individuais, a
questão do litigante eventual, a hipossuficiência econômica,
etc -, a presença de uma relação jurídica-base é evidente, existe uma origem
comum (expressa pela existência da relação jurídica-base e pela lesão
praticada), qual o motivo que poderia justificar um tratamento distinto?
A Dra. Consuelo Yoshida Ob. cit., pp.
769 e 770. amplia a idéia sobre o conceito de
"origem comum", lições que ora são referidas:
"Antes de se pensar na lesão ou ameaça
de lesão aos bens difusos, coletivos e individuais de uma série de pessoas, que
constitui a causa de pedir próxima, tem-se o substrato comum que dá o elo de
ligação entre elas, e que pode ser considerado como integrante da causa de
pedir remota: é o vínculo não jurídico, meramente fatual,
nos direitos e interesses difusos; o vínculo jurídico consistente na relação
jurídica-base, nos direitos e interesses coletivos; e um ou outro desses
vínculos no caso dos direitos e interesses individuais homogêneos, como se
desenvolverá na seqüência.
...
Se os direitos e interesses individuais
homogêneos surgem no âmbito de uma coletividade titular de direito e interesses
difusos ou de direitos e interesses coletivos, tem-se que a 'origem comum' dos
direitos e interesses individuais homogêneos (enquanto causa de pedir remota)
pode se identificar com a mesma origem (enquanto causa de pedir remota) dos
direitos e interesses difusos ou coletivos da respectiva coletividade.
Portanto, como "origem comum" dos
direitos e interesses individuais homogêneos, do ponto de vista da causa de
pedir remota, pode-se ter:
1) a mesma situação fática ('circunstâncias
de fato') comum à universalidade de pessoas titular de
direitos e interesses difusos. Ex.: localização
do grupo de pessoas segundo as coordenadas de espaço e/ou
de tempo no raio de abrangência do fato ou ato danoso;
2) a mesma relação jurídica ('relação
jurídica base') comum à coletividade de pessoas que titulariza
direitos e interesses coletivos. Ex.: vínculo
societário ou associativo disciplinado por estatuto social próprio; relação
jurídica tributária dos contribuintes com o fisco; relação contratual regida
por cláusulas uniformes." (este último grifo
nosso)
A clareza das abordagens
transcritas e a riqueza dos exemplos fornecidos revela a realidade da questão
tratada, o que importa para esclarecer que não é pelo fato de ser uma relação
jurídica de consumo, ou decorrente de um contrato, de um ato ilícito, de uma
publicidade ou, até mesmo, de uma relação jurídica tributária que o Ministério
Público terá ou não legitimidade para a causa.
A questão da legitimidade ou não do "Parquet" é definida pela existência unicamente do
requisito da INDISPONIBILIDADE, evidenciado pelo interesse público ou pela
relevância social que existam no caso concreto, elementos estes que serão
tratados ao final deste artigo.
Exatamente por causa da realidade ora tratada
que nas questões que digam respeito a interesses coletivos "lato sensu" acontece a extensão subjetiva do julgado
coletivo para abranger terceiros individuais ou individuais homogêneos que não
integraram o feito (transporte "ope legis" para beneficiar terceiros – "secundum eventum litis"e "in utilibus" CDC Comentado pelos Autores do Anteprojeto,
Ada Pellegrini Grinover, 5ª edição, Editora Forense
Universitária, Rio de Janeiro, 1998, pp. 711 e seguintes.), bem como a
"...ampliação do objeto do processo, ope legis, passando o dever de indenizar a integrar o pedido.
Exatamente como ocorre na reparação do dano ex delito, em que a decisão sobre o
dever de indenizar integra o julgado penal." Ob. cit., Ada Pellegrini Grinover,
pp. 730 e 731. Melhor explicando o fenômeno jurídico, a Professora Ada
Pellegrini Grinover assim se manifesta: "Se, por
exemplo, a ação civil pública que tenda à obrigação de retirar do mercado um
produto nocivo à saúde pública for julgada procedente, reconhecendo a sentença
os danos, reais ou potenciais, pelo fato do produto, poderão as vítimas, sem
necessidade de novo processo de conhecimento, alcançar a reparação dos
prejuízos pessoalmente sofridos, mediante liquidação e execução da sentença
coletiva, nos termos do art. 97 do Código..." (Ob. cit., p. 731)
Recuperando os conceitos declinados pela Dra.
Consuelo Yoshida, como a "origem comum" ou causa de pedir remota dos
difusos é a mesma, torna-se dispensável pleitear a indenização genérica que
caracteriza os interesses individuais homogêneos (artigo 95 do CDC). Tal
acontece automaticamente (ampliação "ope legis" do objeto do processo).
Outra prova do que se afirma está nos efeitos
da coisa julgada nas ações coletivas, podendo ser constatado no artigo 103,
inciso III, do CDC (que trata dos individuais homogêneos), que ela é "erga
omnes", dado que poderá advir tanto de questões
envolvendo interesses difusos ("erga omnes")
como de situação envolvendo interesses coletivos "stricto
sensu" ( "ultra pates" ), tendo o legislador necessariamente colocado
a abrangência maior – "erga omnes"-, a fim
de atribuir a coerência imprescindível à sistemática prevista nas novas leis de
cunho social.
Não se olvide que tudo que foi abordado se
aplica a qualquer questão que possa ser abrangida pela ação civil pública ou
pelas ações coletivas do CDC, haja vista que o artigo 117 do Código de Defesa
do Consumidor é expresso ao dizer que todo o Título III do CDC se aplica à Lei
da Ação Civil Pública.
Não se olvide, igualmente, que os interesses
individuais homogêneos se caracterizam pelo PEDIDO DE INDENIZAÇÃO GENÉRICA,
sendo o artigo 95 claro no sentido, quando informa que "...em
caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a
responsabilidade do réu pelos danos causados." Após o trânsito em julgado,
cada lesado individual retira uma certidão da sentença coletiva e ingressa
diretamente com ação de liquidação, sendo economizada a interposição de milhares
de ações de conhecimento para dizer a mesma coisa.
Assim, relativamente aos individuais
homogêneos o procedimento é coletivo enquanto existe utilidade nesta forma de
agir (dever de indenizar = "an debeatur"), tornando-se individual quando fica
impossível reunir as milhares de situações
particulares e diversas de lesão (fase da liquidação em que é definido o
"quantum debeatur").
Nas questões tributárias, portanto, o mesmo
acontece. Pode ser feito pedido no sentido de que fique obrigado o fisco a
parar de cobrar determinado tributo, ou seja, com apenas um provimento é
resolvido o problema de um e automaticamente de todos que estão unidos pela
"origem comum", pela "relação jurídica tributária base"
(pretensão coletiva "strito sensu")
eventualmente reconhecida como ilegal, bem como pode, se assim deseja explicitar
o autor coletivo, existir pleito genérico objetivando a devolução de tudo que
foi pago indevidamente (pretensão individual homogênea - "an debeatur"). Após, cada
contribuinte liquidará individualmente o seu crédito (o que pode acontecer
também pela via coletiva), atendidas as especificidades de cada situação.
4- Da Relevância Social, do Interesse Público
- Indisponibilidade:
Alguns doutrinadores possuem a tendência de
afirmar que a existência de interesses individuais homogêneos caracteriza situação
de "disponibilidade", eis que eles seriam apenas a soma de interesses
individuais, tratados coletivamente para facilitar a sua defesa.
Não podemos com isso concordar por vários
aspectos, o primeiro deles sendo a mera observação das
ocorrência lesivas de massa, que certamente induzirão a uma conclusão
diversa.
Com efeito, verifique-se um exemplo da área
do consumidor, em que um condomínio constituído por 10 pessoas tenha sofrido
problemas em decorrência de erros no cômputo das verbas custeadas individualmente.
Um dos condôminos foi cobrado indevidamente em R$ 50,00,
relativamente ao gás consumido, outro teve prejuízo de R$ 130,00 por que a
verba do condomínio foi cobrada de maneira dupla, e assim sucessivamente, cada
lesado teve um dano particularizado, mas todos unidos pela "origem
comum" que, no caso, decorreu de um erro verificado no computador da
imobiliária. Nesta situação existiria "relevância social" capaz de
autorizar o Ministério Público a empreender ações objetivando solucionar os
problemas?
Uma outra situação. Um
condomínio com 10.000 unidades sofre o mesmo problema e a imobiliária
alega que nada deve ser corrigido. Neste caso existirá "relevância
social" em fazer a defesa coletiva?
Seguindo no raciocínio. No primeiro exemplo,
caso a imobiliária não queira solucionar o caso, no máximo serão intentadas 10
ações no juizado cível especial, o que não trará maiores transtornos para a
estrutura do Poder Judiciário.
Agora imaginemos no segundo exemplo 10.000
ações iguais ingressando ao mesmo tempo no mesmo juizado cível especial. É
possível concluir que as duas hipóteses são iguais?
A análise pode ser transferida para os
interesses coletivos "stricto sensu".
Consideremos que um condomínio de classe
média, constituído por 10 pessoas, teve problemas porque a construtora para a
qual são pagas as prestações mensais reajustou os valores com base em índice
ilegal. Típico interesse coletivo "stricto sensu", dado que todos estão unidos por uma relação
jurídica-base, que é o contrato de empreitada, bem como existe uma "origem
comum", representada pela conduta da empresa no sentido de impor um índice
de reajuste ilegal. Existirá "relevância social" em tal situação?
Deverá o Ministério Público ou outros entes manter estrutura para a defesa de
cada problema de condomínio ou de empreitada?
Consideremos agora um condomínio de classe
baixa com 10.000 unidades, em que aconteceu o mesmo problema. Neste caso
existirá "relevância social" autorizadora da intervenção Ministerial?
E em qualquer uma das hipóteses, existirá interesse público?
A relevância social ou interesse público,
portanto, são os elementos que têm o potencial para indicar a existência ou não
de indisponibilidade e, na forma já transcrita no item "1" deste
artigo, existem parâmetros objetivos para definir a presença ou não destes
elementos.
De fato, o artigo 82, parágrafo 1º, do CDC
informa que o "interesse social" pode ser evidenciado por três características:
- dimensão do dano – nos
exemplos fornecidos, em uma situação apenas 10 pessoas sofreram
problemas, enquanto que na outra 10.000 unidades teriam sido prejudicadas.
Neste caso, não poderá ser autorizado que ingressem 10.000 ações
simultaneamente no Foro Central, quando apenas uma seria necessária para a
resolução do problema ("an debeatur"),
desta simples realidade emergindo a relevância social de proporcionar uma
adequada prestação jurisdicional, não somente para o caso relativo às 10.000
unidades, mas para todas as demais causas que já tramitam no Poder Judiciário e
seriam prejudicadas em seu andamento pelo súbito acúmulo de processos. Veja-se
que os reflexos de uma grande demanda não são apenas endoprocessuais,
mas panprocessuais ou extraprocessuais,
considerações estas necessárias para que as realidades possam ser
entendidas em toda a sua extensão.
Assim, o problema relativo aos 10 condôminos,
na hipótese dos individuais homogêneos, pode ser identificado como "o mero
somatório de 10 interesses individuais". No problema atinente aos 10.000
condôminos, entretanto, os individuais homogêneos serão identificados pelo
"somatório de 10.000 interesses individuais, acrescidos dos elementos
relevância social e interesse público existentes na demanda ou, em outras
palavras, acrescidos da indisponibilidade", fazendo com que possa ser
visualizado com facilidade que não podem ser tratadas como iguais situações que são evidente e naturalmente diferentes.
Consuelo Yoshida comenta o assunto, dizendo o que segue: "No plano
processual, a relevância social dos interesses em jogo a legitimar a atuação do
órgão ministerial decorre das vantagens e conveniência da utilização de uma só
ação (coletiva) para a defesa de uma série de direitos e interesses
individuais, sem o risco de decisões conflitantes sobre a mesma matéria,
atendendo, ademais, aos propósitos de ampliação do acesso à justiça com desafogamento e agilização do Poder Judiciário, para
garantia da maior efetividade da tutela jurisdicional ."
(grifo nosso).(Ob. cit., p.
779)
Aliás, sobre o grande interesse público e
relevância social existente na questão do desafogamento
dos foros, merecem transcrição os números relativos aos
processo que tramitaram e tramitam no Tribunal Regional Federal da 4ª
Região, situado em Porto Alegre Jornal do Tribunal Regional Federal da 4ª
Região, fevereiro de 2000.:
"O número de ações julgadas cresceu
38,68% em comparação com o ano anterior, aumentando de 61.687 para 85.548.
A procura pelo Judiciário sofreu um acréscimo
ainda maior. A quantidade de processos distribuídos passou de 89.054 em 1998
para 141.685 no ano passado. Um incremento de 59,1%
A corte implantou 16 novas varas federais em
14 cidades da Região Sul para descentralizar a Justiça, agilizar os julgamentos
e facilitar o acesso da população ao Judiciário."
Este apenas um exemplo de que os foros
judiciais estão lotados de processo, sendo no mínimo contraditório que não se
reconheça a legitimidade de entes coletivos para a
óbvia diminuição de causas individuais com o mesmo objeto.
Retornando ao assunto dos exemplos antes
declinados, o mesmo acontecerá relativamente aos interesses coletivos "stricto sensu". No primeiro
deles os 10 condôminos contratarão seu advogado para fazer o trabalho, enquanto
no segundo será necessária a intervenção de um ente coletivo, podendo ser o
Ministério Público;
- características do dano –
sob este enfoque podemos imaginar as mais variadas hipóteses de dano,
como o desmoronamento do edifício Palace II, no Rio
de Janeiro, fato que ficou famoso, do Bateau Mouche que matou dezenas de pessoas na mesma cidade, o caso
dos consórcios fraudulentos que vendiam carros zero quilômetro por preços
irrisórios valendo-se dos classificados dos jornais de grande circulação ou
qualquer outra hipótese que possa ser imaginada na área tributária, evidenciadora de elementos que indiquem a necessidade de
uma resposta direta, rápida e eficaz não só dos Poderes constituídos, mas,
principalmente, dos órgãos de defesa da cidadania;
- relevância do bem jurídico a ser protegido
– aqui talvez esteja um dos elementos de mais fácil identificação no tratar as
questões tributárias, dado que nem sempre a contraprestação aos tributos pagos
é fornecida pelo Estado a contento, deste fato surgindo inúmeros problemas
sociais, como a sonegação, demandas para evitar o pagamento de impostos, etc,
haja vista que já existe um ambiente – especialmente em países subdesenvolvidos
– de insatisfação relativo aos serviços de responsabilidade
dos entes públicos. Tal situação fica, portanto, ainda mais agravada
quando novos e ilegais tributos são cobrados, exação esta que atinge de maneira
imediata a cidadania e a dignidade dos
jurisdicionados. Novamente citamos Consuelo Yoshida: "A legitimidade ad
causam ativa e o interesse de agir do Ministério Público na tutela
jurisdicional coletiva dos direitos individuais homogêneos decorre da
relevância social dos interesses materiais envolvidos de forma mediata...: a
tutela do Estado Democrático de Direito em face da violação em massa da ordem
jurídica (bem difuso), a tutela da cidadania e da dignidade da pessoa humana em
face da lesão em massa, individualmente experimentada e aferível, do direito
(difuso) à habitação, transporte coletivo, educação e ensino, saúde,
previdência e assistência sociais." (Ob. cit., p. 778 e 779)
Com isso, podemos concluir da seguinte forma:
a- nos interesses difusos
sempre existirá a indisponibilidade, dado que é impossível haver disposição do
interesse coletivo nessa dimensão, tendo em vista que os lesados são pessoas
indeterminadas. Ora, se são indeterminadas, como poderiam elas se manifestar e,
desta forma, dispor do objeto de eventual processo;
b- nos interesses coletivos
"stricto sensu"
de um modo geral poderá existir o requisito da indisponibilidade. Entretanto,
em algumas situações concretas como a demonstrada supra, tal não acontecerá;
c- nos interesses
individuais homogêneos, da mesma forma, eventualmente poderá estar presente a
indisponibilidade autorizadora da atuação do "Parquet".
Sobre o tema é o comentário de Hugo Nigro Mazzilli: "No caso dos interesses
difusos, em vista da abrangência ou extensão, não há negar, está o Ministério
Público sempre legitimado à sua defesa; mas, no caso de interesses individuais
homogêneos e até coletivos, a iniciativa do Ministério Público só pode ocorrer
quando haja conveniência social em sua atuação. Essa conveniência é aferida a
partir de critérios como estes: a) à vista da natureza do dano (saúde,
segurança e educação públicas); b) à vista da dispersão dos lesados (a
abrangência social do dano, sob o aspecto dos sujeitos atingidos); c) à vista
do interesse social no funcionamento de um sistema econômico, social ou
jurídico (previdência social, captação de poupança popular, et.)."(grifos nossos) (O
Inquérito Civil, Editora Saraiva, São Paulo, 1999, p. 117) Raimundo Gomes
de Barros segue a mesma orientação: "Os interesses da coletividade que
defendidos judicialmente, seja pelo MP, seja por qualquer dos demais
legitimados, são elevados à categoria de iter de
ordem pública e interesse social. São indisponíveis, exceto nos casos
expressamente definidos pelo próprio CDC. (Revista de Direito do Consumidor,
editora RT, volume 8, São Paulo, outubro/dezembro
de 1993, p. 164) Antonio Gidi também aborda o
assunto: "...os direitos individuais homogêneos globalmente considerados são
indisponíveis pela comunidade de vítimas. Disponível é, apenas, cada um dos
direitos isolada e individualmente considerados, por parte do seu titular
individual, e não os direitos individuais homogêneos como um todo
(coletivamente considerados).
O próprio Ministério Público, entretanto,
deve permanecer atento para não promover ações coletivas que tutelem
`interesses genuinamente privados sem qualquer relevância social (...)
sob pena de amesquinhamento de relevância institucional do Parquet'.
Poder-se-ia mesmo dizer que, em casos que tais, o MP não teria interesse de
agir.
Isso é válido, não somente em relação à
defesa coletiva dos direitos individuais homogêneos, como também em relação à
defesa coletiva dos direitos supraindividuais,
notadamente os coletivos. Para legitimar a atuação do MP é preciso que haja `manifesto interesse social evidenciado pela dimensão
ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser
protegido", para usar, analogicamente, as próprias palavras da lei (CDC,
art. 82, parágrafo 1º.)". (Revista de Direito do Consumidor, editora RT,
volume 14, São Paulo, abril/junho de l995, pp. 63 e 64)
Estas características da relevância social,
que não são "numerus clausus"
fizeram com que a doutrina, a partir da análise das "realidades"
efetivamente existentes no caso concreto, se posicionasse favoravelmente à
legitimação dos entes coletivos. Exemplo disso é o comentário de Cláudia Lima
Marques "A expressão `interesse social' possui
também uma outra finalidade específica no sistema do direito brasileiro e que
merece ser mencionada. Trata-se de uma antiga polêmica brasileira sobre a
legitimação para a defesa dos interesses difusos.
A proteção jurídica destes interesses de
massa ou interesses transindividuais, em um país com
tantas desigualdades econômicas e com níveis de formação tão diferenciados em
sua população, só se tornaria uma realidade com a modificação das regras sobre
o acesso à justiça e o fim da passividade social frente aos abusos do poder
econômico. Nesse sentido, a legitimação para agir na defesa dos interesses foi
concedida não só para associações da sociedade civil organizada, mas também
para órgãos estatais específicos (art. 82 do CDC).
Dentre os órgãos estatais destaca-se a
participação do Ministério Público, fiscal da lei e novo
`Ombudsman' do Mercado de Consumo brasileiro. Neste sentido, a menção do
art. 1º do CDC da expressão `interesse social', pode
facilitar a atuação do Ministério Público, pois o art. 127 da CF de 1988,
autoriza a sua atuação ampla (administrativa e judicial) para: `a defesa da
ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis". (Revista Direito do Consumidor, Editora RT, São Paulo,
volume 8, outubro/dezembro de l993,
pp. 46 e 47) sobre o conceito de interesse social, e os comentários de Nelson
Nery Jr. "O Ministério Público tem legitimidade para a defesa dos direitos
difusos e coletivos (artigo 129, III, CF). Quanto aos individuais homogêneos, a
legitimação do Parquet para defendê-los está nos
artigos 127, caput e 129, IX, ambos da CF e artigo 1º do CDC. Relativamente aos
direitos individuais "puros", ou individuais em sentido estrito, não homogêneos, não há razão para o Ministério
Público defendê-los em juízo."(Ob. cit.,
Revista de Direito do Consumidor, volume 1, Editora RT, São Paulo, 1992, p.
203) e Teori Albino Zavaski
"...ao Ministério Público não cabe,
evidentemente, bater-se em defesa de direitos ou interesses individuais, ainda
que, por terem origem comum, possam ser classificados como homogêneos.
Interesses individuais homogêneos não são, necessariamente, interesses sociais.
Entretanto, quando tais interesses individuais homogêneos, mais que a soma de
situações particulares, possam ser qualificados como de interesse comunitário,
nos termos acima enunciados, não há dúvida de que o Ministério Público estará
legitimado a atuar. Identificada situação em que interesses sociais desta
natureza careçam de defesa, será dever do Ministério Público promovê-la,
utilizando-se, para tanto, dos instrumentos processuais compatíveis e
apropriados." (Revista de Informação Legislativa
nº 117, p. 185).
Igualmente baseado na análise das situações
concretas, assim se posiciona Adroaldo Furtado
Fabrício Revista de Direito do Consumidor, "As Novas Necessidades do Processo
Civil e os Poderes do Juiz", editora RT, São Paulo, julho/setembro
de 1993, pp. 31 e 32., sobre
a vulnerabilidade jurídica, especificamente enfocando o problema da dispersão e
desorganização dos lesados:
"Não se há de esperar que a comunidade
incontável de lesados, verbi gratia,
pelo uso de um medicamento ou alimento mal-formulado – como no caso da
talidomida, para usar-se um exemplo nem tão recente – venha a manifestar por um
a um de seus indivíduos componentes a pretensão indenizatória. Isso significaria,
com efeito, a inviabilização desta pelo menos para a
imensa maioria da dispersa e vaga coletividade interessada.
Essa é, de resto, apenas uma das faces do
problema. Há mais, a imensa dificuldade de acesso individual
dos lesados, em regra pobres, humildes e desinformados, aos órgãos
jurisdicionais. E, mesmo para os que superem essas limitações e cheguem a colocar à face do juiz a sua queixa, resta a
monumental e desanimadora diferença de forças, meios e recursos que separa o
litigante eventual do habitual.
...
Considerados, pois, os contenciosos de massa,
torna-se imperioso – como princípio e não como exceção – a reconhecimento de
legitimação aos chamados corpos sociais intermediários. Aí se haverão de
incluir os sindicatos, associações, organismos de defesa de interesses
coletivos em geral. A legitimação do Ministério Público, para muitos gêneros,
será complemento indispensável.
...o que se pode
observar é um crescendo de reforço à representatividade e legitimatio
dos corpos intermediários. Aqui, como em tudo, a união faz a força. A
associação se impõe pelo número, é politicamente respeitada e socialmente
prestigiada; não precisa temer as represálias e discriminações punitivas a que
está irremediavelmente exposto o indivíduo. Isolado, este facilmente será
esmagado, e outro consolo não terá senão o que lhe reconheceu Pascal, como
atributo de sua racionalidade: o de saber que está sendo esmagado. Somando
forças a seus pares na organização coletiva que por todos postula em Juízo, ele
ao mesmo tempo se dilui e se agiganta: despido de sua identidade individual,
nada precisa temer; unido seu débil regato à torrente dos interesses comuns, pode
igualar-se em poderio ao oponente."
Ainda no que tange ao interesse de agir,
importante trazer à colação os ensinamento de Hugo Nigro Mazzili
Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, volume 19, pp. 42 e 43.:
"Se o autor da ação for o Ministério
Público parece-me que o interesse é presumido porque o Ministério Público é,
diante do artigo 1º da Lei Complementar 40/81, encarregado de defender perante
o Judiciário os interesses indisponíveis da sociedade. Ora, se a Lei o
considera defensor de interesses transindividuais,
assim porque a Lei lhe dá legitimação para defender os interesses difusos, deve-se-lhe presumir que tenha legítimo interesse para tal
fim."
Nessa mesma linha, Rodolfo de Camargo Mancuso
A Ação Civil Pública, Editora Revista dos Tribunais, 1989, p. 35. cita Milaré, Camargo Ferraz e Nery
Junior, os quais invocam Francesco Carnelluti, nos
seguintes termos:
"No que pertine
ao Ministério Público, entende o mestre que o interesse processual deriva do
poder (legitimidade) que o legislador lhe outorgou para o exercício da ação
civil. Em outras palavras, o interesse está pressuposto (in re ipsa) na própria outorga da legitimação: foi ele
identificado previamente pelo próprio legislador, o qual, por isso mesmo,
conferiu a legitimação."
Estes ensinamentos servem para QUALQUER
situação concreta, em que esteja presente a "origem comum", a
relevância social, em suma, a indisponibilidade, o que acontece principalmente
nas relações jurídicas tributárias de massa, sabido que eventualmente o Estado
exacerba em suas condutas e abusa do seu poder em detrimento dos vulneráveis
contribuintes.
5- Algumas decisões da jurisprudência:
Expressamente reconhecendo a legitimidade do
Ministério Público para a proteção de interesses individuais homogêneos são os
termos do acórdão do Superior Tribunal de Justiça, exarado no Recurso Especial
nº 49.272-6/RS:
"...
O artigo 21 da Lei nº 7.347, de 1985( inserido pelo artigo 117 da Lei nº 8.078/90) estendeu, de
forma expressa, o alcance da ação civil pública à defesa dos interesses e
`direitos individuais homogêneos', legitimando o Ministério Público,
extraordinariamente e como substituto processual, para exercitá-la (artigo 81,
parágrafo único, III, da Lei nº 8.078/90)..."
Merece transcrição, igualmente, a ementa do
acórdão exarado no Recurso Extraordinário nº 163231 - 3, de São Paulo, Relator
Ministro Maurício Corrêa, Recorrente Ministério Público de São Paulo:
"RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL.
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROMOVER AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM DEFESA
DOS INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E HOMOGÊNEOS. MENSALIDADES ESCOLARES:
CAPACIDADE POSTULATÓRIA DO PARQUET PARA DISCUTÍ-LAS EM JUÍZO.
...
2.Por isso mesmo detém o
Ministério Público capacidade postularia, não só para a abertura de inquérito
civil, , da ação penal pública e da ação civil pública para a proteção do
patrimônio público e social, do meio ambiente, mas também de outros interesses
difusos e coletivos ( CF, art. 129, I e III).
...
4. Direitos ou interesses homogêneos são os
que têm a mesma origem comum ( art. 81, III, da Lei nº
8.078, de 11 de setembro de l990), constituindo-se em
subespécie de direitos coletivos.
4.1 Quer se afirme interesses coletivos ou
particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica,
sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos,
categorias ou classes de pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas
isoladamente, não se classificam como direitos individuais para o fim de ser
vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua concepção finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias
ou classe de pessoas.
5. As chamadas mensalidades escolares, quando
abusivas ou ilegais, podem ser impugnadas por via de ação civil pública, a
requerimento do Órgão do Ministério Público, pois ainda que sejam interesses
homogêneos de origem comum, são subespécies de interesses coletivos, tutelados
pelo Estado por esse meio processual como dispõe o artigo 129, inciso III, da Constituição
Federal.
5.1. Cuidando-se de tema ligado à educação,
amparada constitucionalmente como dever do Estado e obrigação de todos ( CF, art. 205), está o Ministério Público investido da
capacidade postulatória, patente a legitimidade ad causam, quando o bem que se
busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento de
extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se a
obrigação estatal.
Recurso extraordinário conhecido e provido
para, afastada a alegada ilegitimidade do Ministério Público, com vistas à
defesa dos interesses da coletividade, determinar a remessa dos autos ao
Tribunal de origem, para prosseguir no julgamento da ação.
...acordam os
Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, na conformidade da
ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, conhecer
do recurso e lhe dar provimento."
Novamente do Superior Tribunal de Justiça:
"PROCESSUAL CIVIL. Ação Civil Pública.
Direitos e interesses individuais homogêneos. Ministério Público. Legitimidade.
Recurso especial.
Ementa: 1. Há certos
direitos e interesses individuais homogêneos que, quando visualizados em seu
conjunto, de forma coletiva e impessoal, passam a representar mais que a soma
de interesses dos respectivos titulares, mas verdadeiros interesses sociais,
sendo cabível sua proteção pela ação civil pública.
2. É o Ministério Público ente legitimado a
postular, via ação civil pública, a proteção do direito ao salário mínimo dos
servidores municipais, tendo em vista sua relevância social, o número de
pessoas que envolvem e já economia processual.
3. Recurso conhecido e provido." (Resp 96.002.9908-01/SE – 5ª T. – STJ – j. 24.11.1998
– Rel. Min. Edson Vidigal. Revista de Direito do Consumidor, volume 32, Editora
RT, São Paulo, outubro/dezembro. de 1999.)
Especificamente tratando de questões
tributárias, o Superior Tribunal de Justiça assim se posicionou:
"AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Taxa de iluminação
pública indevidamente cobrada pelo Município – Instituição de tal verba por Lei
Municipal editada anteriormente à Constituição Estadual que impossibilita a
ação direta de insconstitucionalidade – Interesse que
visualizado em seu conjunto transcende à esfera puramente individual –
Caracterização de interesse individual homogêneo – Legitimação do Ministério
Público para propor ação civil pública, como substituto processual –
Inteligência do art. 21 da Lei nº 7.347/85 c/c art.
117 da Lei 8.078/90.
Emenda oficial: A Lei nº 7.347 de 1985, é de natureza essencialmente processual, limitando-se a
disciplinar o procedimento da ação coletiva e não se entremostra incompatível
com qualquer norma inserida no Título III do Código de Defesa do Consumidor
(Lei nº 8.078/90).
É princípio de hermenêutica que, quando uma
lei faz remissão a dispositivos de outra lei de mesma hierarquia, estes se
incluem na compreensão daquela, passando a constituir parte integrante do seu
contexto.
O artigo 21 da Lei 7.347, de 1985 (inserido
pelo art. 117 da Lei 8.078/90) estendeu, de forma expressa, o alcance da ação
civil pública à defesa dos interesses e `direitos
individuais homogêneos', legitimando o Ministério Público, extrordinariamente
e como substituto processual, para exercitá-la (art. 81, parágrafo único, III
da Lei 8.078/90).
Os interesses individuais, `in
casu' (suspensão do indevido pagamento de taxa de
iluminação) embora pertinentes a pessoas naturais, se visualizados em seu
conjunto em forma coletiva e impessoal, transcendem a esfera de interesses
puramente individuais e passam a constituir interesses da coletividade como um
todo, impondo-se a proteção por via de um instrumento processual único e de
eficácia imediata –a `ação coletiva'.
O incabimento da
ação direta de declaração de inconstitucionalidade, eis que, as leis municipais
25/77 e 272/85 são anteriores à Constituição do Estado, justifica também, o uso
da ação civil pública para evitar as inumeráveis demandas judiciais (economia
processual) e evitar decisões incongruentes sobre idênticas questões jurídicas.
Recurso conhecido e provido para afastar a
inadequação, no caso da ação civil pública e determinar a baixa do autos ao Tribunal de origem para o julgamento do mérito
da causa. Decisão unânime." (Resp Nº 49.272-6- RS
– 1ª Turma – j. 21.9.94 – Rel. Demócrito Reinaldo - DJU 17.10.94 Livro de Teses
do 12º Congresso Nacional do Ministério Público, TOMO III, Fortaleza, 1998, p.
786 e 787.).
Desta forma, nos parece mais acertado o
posicionamento que amplia a legitimação do Ministério Público, considerada a
REALIDADE DA VIDA HUMANA, pois, no mínimo é uma orientação mais útil à
concretização das funções sociais do direito Paulo Valério Dal
Pai Moraes, O Princípio da Vulnerabilidade no Contrato, na Publicidade e nas Demais
Práticas Comerciais, Editora Síntese, Porto Alegre, 1999, pp. 45 e seguintes., senão para a configuração da
justiça material.
Ademais, a restrição à legitimidade do "Parquet" para a defesa de lesões decorrentes do
relacionamento tributário infringiria o artigo 5º, inciso XXXV, da CF, o qual é
assim escrito:
"A lei não excluirá da apreciação do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".
Tal aconteceria, posto que as pequenas lesões
tributárias ou a vulnerabilidade jurídica como um todo, impediriam que fossem
apreciadas as questões de massa.
Infringiria, ainda, o artigo 83 do CDC, o
qual permite a utilização de "todas as espécies de ações" para a
defesa dos direitos e interesses protegidos neste Código",
artigo este que deve ser combinado com o artigo 117 do CDC, que estende a
previsão para qualquer outro interesse coletivo, na forma já vista.
Em síntese, se o Ministério Público ficar
impedido de realizar a sua precípua obrigação constitucional, certamente
proliferarão os litígios individuais e será diminuído o poder de proteção
coletiva dos contribuintes e da coletividade em geral.
Assim, desenvolvendo um raciocínio de fácil
previsão - já que tal processo psicológico é natural e possui lógica -,
relevada a realidade legal e as decisões jurisprudenciais apontadas, sabedores os agentes público que, se não ajustarem suas condutas
fiscais, sofrerão a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário,
aumentará o poder de "barganha" dos contribuintes individualmente
considerados, pois estes terão possibilidade de opinar e de não concordar com
determinadas práticas ilegais. Atinge-se, desta forma, a concretização de três
princípios válidos para as relações de consumo, mas igualmente úteis para as
relações tributárias, quais sejam a harmonia do relacionamento tributário entre
fisco e contribuinte, a repressão eficiente aos abusos e o respeito à natural
vulnerabilidade dos contribuintes.
6-CONCLUSÕES:
6.1- Por expressa determinação do artigo 117
do Código de Defesa do Consumidor, todo o Título III da Lei Consumerista,
ou seja, do artigo 81 até o artigo 104, se aplica às questões abrangidas pela
Lei da Ação Civil Pública, dentre elas as questões tributárias;
6.2- São funções do
Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses sociais e individuais indisponíveis. Assim, não outorgar
legitimidade ao "Parquet" para a defesa de
interesses de massa de contribuintes ofende às normas
dos artigos 127 e 129 da Constituição Federal;
6.3- O princípio da vulnerabilidade foi
positivado no artigo 4º, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor, mas, por
ter substância, conteúdo de direito material, é aplicável a qualquer tipo de
questão em que estejam presentes os requisitos de vulneração do mais fraco,
inclusive em questões tributárias;
6.4- As abordagens realizadas no item
"2" deste trabalho, relativas à vulnerabilidade do consumidor são
integralmente válidas para os relacionamentos tributários de massa, dado que em
ambas situações o que é discutido é a concretização do princípio da igualdade
(igualar por intermédio da intervenção legal os naturalmente desiguais), independendo
da matéria que esteja sendo analisada;
6.5- Devido à densidade axiológica do
princípio da igualdade, é fundamental a aplicação do princípio da
vulnerabilidade e das demais regras de interesse social para a concretização
daquele princípio do ordenamento jurídico;
6.6- Existe íntima ligação entre a questão consumerista e a tributária, não só pela via processual,
mas pela via do direito material, haja vista que muitos dos tributos são
repassados aos consumidores por intermédio dos mecanismos de composição do
preço final, fazendo com que aqueles "paguem a conta";
6.7- O Código de Defesa do Consumidor pode
ser aplicado analogicamente às questões tributárias, tendo em vista a
necessidade de concretização dos princípios da igualdade, da vulnerabilidade,
da defesa do consumidor, da repressão eficiente aos abusos e da harmonia do
relacionamento tributário;
6.8- O princípio da vulnerabilidade
subdivide-se em pelo menos 6 perspectivas, sendo que a
vulnerabilidade jurídica é plenamente identificada nos relacionamentos
tributários de massa;
6.9- Vulnerabilidade jurídica é a
possibilidade de o contribuinte ser maculado, ofendido, melindrado nos seus
direitos básicos, considerada a sua dificuldade de, isoladamente, defender-se
do fisco na esfera administrativa e judicial;
6.10- Na grande maioria das questões
tributárias de massa o contribuinte caracteriza-se como litigante eventual, daí
surgindo desigualdade que precisa ser debelada pela Lei de relevância social;
6.10- A vulnerabilidade jurídica dos contribuintes
é agravada pelo fato de inexistirem associações capazes de organizar,
congregar, unir lesados, diversamente do que acontece em outras áreas, como a
ambiental, consumerista, etc;
6.11- Não existe possibilidade, na prática,
de o contribuinte se contrapor individualmente a aumentos de IPTU, taxas de
iluminação pública, taxas de lixo ilegais, etc, dado que não tem legitimidade
para intentar ações civis públicas;
6.12- O acesso à justiça fica limitado com a
adoção da tese da ilegitimidade do Ministério Público, principalmente
considerando que o Promotor de Justiça está em todas as Comarcas. Ou seja, já
existe estrutura na organização judiciária brasileira para resolver o grave
problema das lesões fiscais de massa e ela ficaria ociosa injustificadamente;
6.13- A pequena monta de algumas lesões
fiscais de massa impede que o contribuinte demande, ficando estes prejuízos
individualizados indevidamente. Considerada a questão no âmbito coletivo,
grandes somas de dinheiro acabam por ser expropriadas ilegalmente dos cidadãos,
devidos à concretização da dificuldade de acesso ao poder judiciário;
6.14- Não existem juizados especiais de
pequenas causas tributárias, o que impede o acesso dos contribuintes
individuais vulneráveis;
6.15- Com apenas uma ação coletiva são evitadas milhares de ações individuais de conhecimento sobre
a mesma coisa, economizando-se dinheiro da estrutura estatal, dos contribuintes
e oportunizando que outras questões que não podem ser reunidas coletivamente
sejam julgadas com maior rapidez e efetividade;
6.16- O respaldo do Poder Judiciário às ações
do Ministério Público promoverá a diminuição das ações individuais e coletivas
em juízo, dado que os entes públicos, após reiteradas
decisões em favor do "Parquet", preferirão
resolver as questões tributárias no âmbito administrativo do inquérito civil,
por intermédio do compromisso de ajustamento (Lei n.º 7.347/85, art. 5º,
parágrafo 6º). Assim, se atende ao interesse público e à tão reclamada
efetividade das instituições;
6.17- A produção massificada de bens e
serviços e o aumento da população passaram a demandar serviços ao Estado, o
qual se vale dos tributos para cumprir suas obrigações. Assim, massificaram-se
as relações tributárias, sendo imprescindível que o direito processual civil se
compatibilize com estas novas realidades, sob pena de ser considerado obsoleto
e inócuo;
6.18- Os interesses existentes em questões
tributárias se caracterizam, de um modo geral, por serem coletivos "stricto sensu", tendo em
vista a existência de uma relação jurídica base, pessoas determinadas, transindividualidade e indivisibilidade do objeto;
6.19- O que define se o interesse é difuso,
coletivo "stricto sensu"
ou individual homogêneo é o pedido e a causa de pedir, sendo que nos
individuais homogêneos o pedido é sempre de condenação genérica (art. 95 do CDC);
6.20- A "origem comum"
caracterizadora dos interesses individuais homogêneos tanto pode se configurar
ou estar presente em situações em que os lesados estejam unidos por
circunstâncias fáticas (pretensão difusa), como em ocasiões em que eles estejam
unidos por circunstâncias jurídicas (pretensão coletiva "stricto sensu");
6.21- Uma mesma "origem comum" pode
reunir simultaneamente interesses difusos, coletivos "stricto
sensu" e individuais homogêneos, tudo depende do
pedido e da causa de pedir;
6.22- Entendemos que inexiste motivo para
atribuir legitimidade ao Ministério Público para a defesa de interesse
individuais homogêneos ou coletivos "stricto sensu" advindos de problemas atinentes a mensalidades
escolares e não atribuir a mesma legitimidade para a defesa de
interesses individuais homogêneos e coletivos "stricto
sensu" lesados em questões tributárias, dado que
o indicador da necessidade de atuação via ação coletiva é o requisito
"origem comum", existente em ambas situações, e que independe do tipo
de matéria tratada, considerado o seu cunho processual;
6.23- O Ministério Público sempre possui
legitimidade para a defesa de interesse difusos, sendo
que no tocante aos interesses coletivos "stricto
sensu" e individuais homogêneos só terá
legitimidade ativa quando presente o requisito da indisponibilidade,
representado, no caso concreto, pelo interesse público e pela relevância
social;
6.24- Alguns dos critérios identificadores da
relevância social estão no artigo 82, parágrafo 1º, do CDC, sendo eles a
dimensão do dano, as características do dano e a relevância do bem jurídico a
ser protegido. Além desses, a relevância social e o interesse público emergem
da necessidade de permitir um fácil acesso à justiça, do desafogamento
dos foros e da necessidade de economia processual, a fim de que a justiça não
precise se manifestar várias vezes sobre a mesma ,questão,
fornecendo um serviço público ágil, rápido e útil à sociedade;
6.25- O Ministério Público possui
legitimidade para a defesa das questões tributárias que evidenciem interesse
público ou relevância social, portanto, que contenham o requisito da
indisponibilidade.
Paulo Valério Dal
Pai Moraes
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Retirado de: http://www.mp.rs.gov.br