“BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A REFORMA TRIBUTÁRIA SOB A ÓTICA DA JUSTIÇA FISCAL E DO PACTO FEDERATIVO”

 

 

Ricardo Lodi Ribeiro

Mestre em Direito Tributário pela UCAM. Professor de Direito Tributário nos cursos de Pós-Graduação da FGV, da FDC e da UFF e de graduação da UCAM. Procurador da Fazenda Nacional


 

 

Embora seja apontada nos discursos oficiais das autoridades federais, estaduais e municipais, como requisito indispensável para o desenvolvimento da economia brasileira, a Reforma Tributária encaminhada ao Congresso Nacional pelo Presidente Lula,[1] em tramitação na Câmara dos Deputados, e recentemente aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça,  pouco alterará a realidade econômica dos contribuintes  brasileiros, além de causar graves lesões ao pacto federativo.

 

Considerando o histórico compromisso do Partido dos Trabalhadores com as grandes transformações sociais e com o estabelecimento da Justiça Fiscal no Brasil, a proposta é bem tímida, pois não são sequer tangenciadas as vicissitudes encontradas nas raízes de um sistema tributário que se encontra entre os mais perversos do mundo.

 

Na verdade, o ideal de justiça tributária não se limita a uma mera figura de retórica a ilustrar o discurso do legislador constituinte.  Ao contrário, a justiça é o valor que, ao lado da segurança jurídica, deve alicerçar todo o ordenamento jurídico.

 

Esse ideal de justiça vai se realizar, não pela fixação de regras de ouro, mas por meio da abertura do direito tributário aos valores e princípios da igualdade, da capacidade contributiva e da generalidade, a partir de uma interpretação, que longe de se basear em premissas preestabelecidas, vai dar efetividade a esse arcabouço axiológico.

 

Assim, a justiça fiscal e a efetividade do princípio da capacidade contributiva não vão se revelar apenas pela adequada configuração legal do fato gerador da lei tributária, vista no plano abstrato da norma.  Ao contrário, o triunfo de tais idéias passa necessariamente pelo resgate ético da vida tributária nacional, a partir de um eficaz combate não só à evasão fiscal, mas principalmente  à elisão desarrazoada, praticada por meio do abuso de direito, em suas mais variadas nuances.  Tal combate pode ser efetivado por meio da atividade hermenêutica, e ainda da atividade legislativa que promova o fechamento das brechas legais e estabeleça cláusulas antielisivas.

 

Sem tais providências, o Estado brasileiro continuará indo buscar os seus recursos por meio de tributos que não rendem homenagem ao princípio da capacidade contributiva efetiva, mas que se coadunam com práticas simplificadoras de combate à evasão e à elisão, como a CPMF, a COFINS e o PIS.  É que o legislador tributário   -  como que aceitando a lógica jurídica formalista vigente em nosso país, e verificando a dificuldade fática em se arrecadar tributos dos segmentos de maior capacidade contributiva, (quase sempre ancorados a planejamentos fiscais abusivos) - parte para busca de soluções mágicas, capazes de obter recursos independentemente da capacidade contributiva, elegendo como alvo principal os consumidores, trabalhadores e correntistas, como se dá com a tributação dos bens de consumo popular pelos impostos indiretos, quase nunca atentos ao mínimo existencial, com o imposto de renda com retenções exclusivas na fonte, sem qualquer adequação à renda auferida em todo o ano, com a COFINS e o PIS, que incidem sobre empresas que apresentam prejuízos e a com CPMF, que adota fato gerador que nem sempre revela manifestação de riqueza.  Da mesma forma, as pessoas físicas, especialmente os assalariados e os consumidores, continuarão suportando a parte mais pesada da carga tributária, consolidando contradições valorativas que inutilizam todo  o discurso constitucional por uma sociedade justa e solidária.

 

Nesse sentido, a proposta governamental avança muito pouco ou quase nada, seja na criação de medidas de combate à evasão e elisão abusiva, seja na adoção de medidas  destinadas a facilitar a cobrança do crédito tributário.

 

Embora a Proposta de Emenda Constitucional acene com a possibilidade de gradual extinção, a ser efetivada pela legislação infraconstitucional, da tributação sobre folha de salários, hoje onerada em mais de 45%, patamar que catapulta os índices de desemprego, não se pode esperar grande incremento na atividade econômica, uma vez que as contribuições incidentes sobre o salário serão substituídas  por contribuições sobre o faturamento e receita.

 

Ainda que a PEC estabeleça a não-cumulatividade das contribuições sobre o faturamento ou receita, o mecanismo não funcionará como no IPI e no ICMS, pois, do ponto de vista jurídico, os tributos sobre o faturamento não incidem sobre as operações plurifásicas da cadeia econômica, mas sobre os ingressos financeiros do contribuinte, que muitas vezes está sendo tributado, mesmo tendo prejuízo, em evidente violação ao princípio da capacidade contributiva.  A experiência infraconstitucional da não-cumulatividade do PIS, levada a efeito pela Lei nº 10.637/02, na verdade não estabeleceu uma não-cumulatividade, já que não se trata de tributo plurifásico, mas da escolha de um segmento integrante da cadeia econômica, o último, para suportar uma tributação majorada, compensada pela não incidência nas etapas anteriores.  Ressalte-se que a medida produziu efeitos bastante diversos nos variados setores econômicos.  Aqueles, como os prestadores de serviço, que possuem um número reduzido ou inexistente de etapas anteriores na cadeia econômica foram extremamente prejudicados com a medida.

 

Por outro lado, a previsão de que a alíquota da CSLL das instituições financeiras não será inferior a dos outros segmentos econômicos -  se é medida adequada quando adotada pelo legislador infraconstitucional em consideração ao conjunto da carga tributária do referido segmento econômico – quando na Constituição Federal, soa como demagogia destinada à inaplicabilidade, uma vez que a capacidade contributiva não se revela pela atividade econômica do contribuinte, mas pelo volume de riqueza que esta possui, de acordo com a sua base de cálculo.

 

Sob outro aspecto, o princípio da capacidade contributiva é prestigiado com a introdução da progressividade do ITBI e no ITD, a exemplo do que já fizera o constituinte derivado da EC nº 29/00, em relação ao IPTU.  A medida não só sepulta a tese de que os impostos reais não podem ser progressivos, como contorna as dificuldades apresentadas pelo STF, ao exigir, ao nosso ver de forma retrógrada, a expressa previsão constitucional de progressividade dos tributos.[2]

 

Quanto à introdução da CPMF como tributo permanente em nosso sistema, se é positiva, do ponto de vista de constituir a referida contribuição um importante mecanismo de fiscalização dos demais tributos, e portanto de combate à evasão fiscal, a sua exigência com base na alíquota atual de 0,38%, contribui para a elevação do Custo-Brasil e da manutenção da iniqüidade fiscal, uma vez que a movimentação financeira, como vimos, não é índice adequado à tributação, pois nem sempre revela manifestação de riqueza.   Medida razoável seria a sua previsão com a alíquota simbólica de 0,08%,[3]  apenas para servir de instrumento fiscalizatório.

 

Em relação à possibilidade de instituição do imposto sobre grandes fortunas por lei ordinária, e não por lei complementar como previsto no texto atual, é medida que facilitará a criação de um imposto com o fato gerador bem adequado a tributar a maior riqueza dos contribuintes que mais capacidade contributiva possuem.  No entanto, a medida é mais simbólica do que arrecadatória, como tem demonstrado a experiência francesa.

 

No entanto, é do ponto de vista federativo que a PEC causa maior polêmica, pois a proposta do governo, a pretexto de combater a guerra fiscal no ICMS, restringe substancialmente a competência dos estados para legislar sobre o  imposto.  Neste tema, o princípio federativo se equilibra entre dois interesses.  De um lado, a autonomia financeira dos estados da Federação de legislar sobre os seus próprios impostos.  De outro, o Princípio da Conduta Amistosa dos Entes da Federação,[4] que vem sendo vilipendiado pela guerra fiscal entre os estados, que vem concedendo benefícios fiscais unilaterais para atrair as empresas para seus territórios.  A questão se torna mais complicada, quando se sabe que o princípio federativo é cláusula pétrea em nossa Constituição.

 

Para uma emenda ser considerada violadora da cláusula pétrea não precisa abolir a Federação e instituir o estado unitário.  Uma emenda que fira a autonomia administrativa dos estados e municípios também viola a Constituição.  Nesse sentido, uma proposta que restrinja sensivelmente a competência tributária de um dos entes da Federação, ainda que reserve recursos dos impostos de outros entes para compensar a diferença, também é inconstitucional, pois retira da unidade federada a possibilidade de estabelecer uma política fiscal condizente com os seus objetivos políticos, que numa Federação, não são necessariamente alinhados com o poder central.

 

É que a autonomia das entidades periféricas da Federação pressupõe a auto-administração, ou seja,  o livre exercício das competências conferidas pela Constituição.

 

Nunca se pode perder de vista que a auto-administração depende, obviamente, de recursos financeiros para fazer frente aos misteres constitucionalmente conferidos a cada um dos entes federativos.  Para garantir a possibilidade de cada um deles cumprir os objetivos impostos pela Constituição Federal, é preciso que haja uma adequação dos recursos repartidos a essas atividades administrativas que lhe foram confiadas. 

 

Porém, não basta a simples atribuição de recursos aos entes periféricos da Federação.  É preciso garantir um mínimo de competências tributárias próprias, pois, como destacado por Flávio Bauer Novelli, o federalismo fiscal se funda “na distribuição da competência legislativa (autonomia normativa) em matéria tributária, ou seja, na atribuição, diretamente pela Constituição Federal, de poderes impositivos próprios e de fontes de receita, independentes e adequadas, respectivamente, à União e às unidades federadas.”[5]

 

É ínsita à idéia de autonomia, a descentralização territorial do poder, permitindo que os estados definam suas próprias prioridades, independentemente das políticas definidas pela União.[6]  Sem que haja a eleição de suas próprias prioridades por parte dos estados, inútil é a federação.[7]   É, em outro giro, fundamental que os estados tenham mecanismos, respeitado o Princípio da Conduta Amistosa, para estabelecer uma política fiscal compatível com as suas peculiaridades, inclusive no que tange à superação do desequilíbrio econômico de determinadas regiões do território nacional.

 

É justamente essa competência tributária própria que vai diferenciar a repartição das receitas tributárias ocorridas na Federação das encontradas nos estados unitários descentralizados.  Há uma tendência à descentralização de recursos e competências nos estados unitários como Portugal, Espanha e  Itália, inclusive com a criação de regiões autônomas, que possuem competências próprias e muitas vezes até impostos próprios.

 

Na Espanha, segundo o art. 142 da Constituição, as fazendas locais devem dispor dos recursos suficientes para o desempenho das funções que a lei lhes atribuir, e se nutrirão de tributos próprios e de participação nos tributos do Estado espanhol.  Salienta  Carrera Raya[8], com apoio em decisão do Tribunal Constitucional,  que esses recursos suficientes para que as entidades locais atendam às suas necessidades não são integralmente arrecadados por tributos próprios, mas também de tributos do Estado espanhol.  Porém, ressalte-se, como salienta Ferreiro Lapatza,[9]  que a atribuição de autonomia total e absoluta  aos territórios autônomos em matéria de ingressos públicos é incompatível com a existência do estado unitário.

 

Em Portugal, as regiões autônomas possuem também, segundo o artigo 227 da Constituição, um regime de autonomia político-administrativa, com a competência de criar seus próprios impostos, mas, segundo Diogo Leite de Campos e Mônica Horta Neves Leite de Campos,[10] trata-se de um poder tributário secundário, dependente de lei do Estado português quanto ao seu conteúdo e limites.

 

Na Itália, o artigo 119 da Constituição prevê que as regiões autônomas dispõem de impostos próprios, além de uma parte dos impostos do Estado italiano.  No entanto, segundo o mesmo artigo, essa autonomia financeira, inclusive quanto à instituição de impostos, é limitada pela lei da República.

 

Já nas federações, os entes autônomos possuem competências tributárias próprias capazes de garantir o custeio de suas despesas, restando às transferências tributárias de tributos federais como um mecanismo, tão caro ao federalismo assimétrico, de compensação financeira  destinada a superar a desigualdade entre estados e garantir  a autonomia e independência da federação e dos estados.[11]

 

Deste modo, a autonomia dos entes da Federação depende de que todos eles possuam competência tributária própria, capaz de fazer frente às responsabilidades a eles atribuídas pela Constituição Federal.

 

Antes de analisar os eventuais obstáculos constitucionais que enfrentam as propostas de reforma tributária no que tange à Federação, cumpre analisar a importância do ICMS para a arrecadação dos estados, bem como a sistemática de sua incidência de acordo com a Constituição Federal de 1988.

 

Como é de todos sabido, o ICMS representa mais de 85% das receitas arrecadadas pelos estados.[12]  Portanto, o exercício da competência tributária relativa ao ICMS é vital para a sobrevivência financeira dos entes estaduais, no que tange à sua autonomia administrativa, conforme anteriormente abordado.

 

Ocorre que, embora sendo o principal imposto dos estados, e de longe a sua principal fonte de recursos, o ICMS é um tributo cujo exercício da competência tributária pelos seus titulares é bastante limitado pela Constituição Federal, a fim de evitar a danosa para a Federação e suicida  para o erário estadual guerra fiscal entre os estados.

 

Os mecanismos principais utilizados pelo constituinte originário para evitar a guerra fiscal foram:

 

a)   a possibilidade de o Senado Federal fixar alíquotas mínimas e máximas para operações internas (art. 155, § 2º, V, CF);

 

b)  a necessidade de aprovação por convênio entre estados das isenções, incentivos e benefícios fiscais (art. 155, § 2º, XII, g).

 

Tais limitações, portanto, impedem que os estados fixem qualquer alíquota e concedam unilateralmente benefícios fiscais, a fim de evitar a guerra fiscal, como vimos.  É indiscutível a legitimidade de tais limitações, haja vista terem sido estabelecidas pelo próprio constituinte originário que conferiu competência tributária aos estados para instituir o ICMS, em nome do Princípio da Conduta Amistosa dos Entes Federativos.  Ao repartir a competência tributária, a Constituição Federal pode deferir uma competência para instituir determinado tributo, cujo exercício seja mais restrito do que outra definida para as demais exações.

 

Quanto à possibilidade de o constituinte derivado estabelecer tais limitações, se não pode ser negada a priori, sua constitucionalidade dependerá de grau de influência que tais medidas impliquem no equilíbrio federativo, o que só no caso concreto pode ser aferido.  Porém, não se pode perder de vista nessa análise, que a competência para os estados legislarem sobre o ICMS já foi originalmente restrita pelo constituinte de 1988.

 

Ocorre que nas propostas hoje em discussão, com vistas ao aumento das limitações ao exercício da competência pelos estados no que tange ao ICMS, inspiradas no combate à guerra fiscal, há uma verdadeira supressão da competência tributária dos estados, que passam a ser tão somente titulares da capacidade tributária ativa e destinatários de parte da arrecadação do tributo.

 

Vale recordar a distinção entre os dois conceitos.  Competência tributária é o poder de instituir o tributo.  Ou seja de criar o tributo através de lei, legislando sobre todos os elementos necessários à imposição tributária, inclusive no que tange à concessão de benefícios fiscais.  O exercício dessa competência é plena, sendo, porém, limitada pelas restrições contidas da Constituição Federal.

 

Já a capacidade tributária ativa se traduz no poder de exigir o tributo, ou seja, de arrecadar, fiscalizar e executar a legislação tributária, não envolvendo, no entanto, o poder de legislar sobre ele.[13]

 

Há uma terceira figura: a do beneficiário da arrecadação, que não necessariamente é o titular da competência tributária ou o da capacidade tributária ativa.

 

Como acima demonstrado, a autonomia dos entes da Federação exige que estes possuam competências tributárias próprias, não bastando a mera capacidade tributária ativa e a posição de destinatário da arrecadação, pois estes últimos não podem definir as regras relativas à incidência e, em conseqüência, ficam impossibilitados de estabelecer uma política fiscal condizente com as suas prioridades político-administrativas.

 

Nesse sentido, a PEC produz uma sensível redução na autonomia financeira dos estados, ao retirar de sua competência a possibilidade de legislar, autonomamente, sobre o ICMS.  Nominalmente, o imposto continua a ser estadual.  Mas o legislador estadual se limitará a reproduzir o que já fora previsto em resoluções do Senado Federal, em leis complementares e em regulamentos do CONFAZ, sendo vedada a concessão de benefício fiscal.  Portanto, nenhuma regra sobre o ICMS poderia ser estabelecida pelos estados, que passará, se aprovada a emenda,  a depender quase que exclusivamente de órgãos federais.

 

Como se vê,  tais limitações fazem com que o ICMS passe a ser verdadeiramente um imposto federal em que os estados mantenham a capacidade tributária ativa e a arrecadação.  É bem verdade que o IVA (imposto sobre valor agregado), no direito comparado, é de competência legislativa do ente central, quando instituído em regimes federativos.  No entanto, a fixação do IVA na esfera da União é compensada por outras competências atribuídas aos estados.[14]

 

Assim, a PEC, por meio da fixação de um regramento inteiramente heterônomo em relação ao ICMS,  retira dos estados e do Distrito Federal a competência tributária, e a atribui à União, ferindo a cláusula pétrea da Federação, na medida que subtraem dos primeiros a possibilidade de definir regras a respeito de tributo responsável pela quase totalidade de sua arrecadação.

 

Poderia ser objetado a essa conclusão, o argumento de que os estados já sofriam limitações à sua competência, no que tange ao ICMS, impostas pelo próprio constituinte originário.

 

Porém, convém não se olvidar que cabe ao constituinte originário estabelecer o pacto federativo e, no exercício desse mister, estabelecer exceções ao exercício pleno das competências tributárias.  Já o constituinte derivado não tem a mesma liberdade no que tange a essas exceções.

 

Ademais, as regras estabelecidas pela proposta de emenda constitucional radicalizam sobremaneira tais limitações chegando mesmo a suprimir a competência tributária dos estados relativamente ao ICMS.  Pela legislação ainda vigente, um consenso entre os todos os estados viabiliza a isenção.  Nos projeto em comento inexiste até mesmo essa possibilidade que, embora estreita, respeita a autonomia federativa dos entes periféricos.

 

Do ponto de vista prático, vale lembrar que, se aprovada a proposta, os estados perderão o direito de conceder isenções de ICMS, o que hoje é feito através de convênio, um adequado instrumento para limitar a guerra fiscal.  Também não poderão fixar as alíquotas, cujos limites mínimos são hoje fixados pelo Senado Federal com o mesmo objetivo de evitar grandes discrepâncias danosas à Federação.

 

Como se vê, a possibilidade do estado estabelecer uma política fiscal comprometida com as prioridades definidas pelos seus próprios poderes fica inviabilizada pelas propostas em discussão.  De outro lado, a arrecadação dos estado dependerá quase que exclusivamente do exercício da competência legislativa da União, o que pode trazer efeitos desastrosos ao erário estadual, em prol de objetivos da política econômica do governo federal.  Basta lembrar os efeitos danosos aos estados causados pela Lei Kandir, que ao admitir o creditamento contábil e não físico, e ao desonerar as exportações de semi-elaborados e produtos não industrializados em relação ao ICMS, com graves prejuízos às já combalidas finanças estaduais.  Com a União definindo todas as regras do tributo, os estados ficam numa posição ainda mais fragilizada.

 

Deste modo, é evidente o desequilíbrio do pacto federativo estabelecido em 05/10/88, bem como a violação da cláusula pétrea da Federação, inviabilizando a apreciação e a aprovação da emenda constitucional da Reforma Tributária conforme proposto, a despeito da medida ter sido aprovada pela CCJ da Câmara dos Deputados.

 

Por outro lado, o Federalismo Fiscal também é atingido com as restrições ao poder de legislar dos estados, no ITD, que passa a ter alíquotas definidas em lei complementar, e no ITR, que passa nominalmente a ser estadual, mas cuja legislação continuará federal.  Nota-se que a atribuição do ITR à competência estadual, nem de longe compensa as parcelas de poder que os estados perdem em relação ao ICMS, não só pela disparidade dos valores arrecadados nos dois tributos, mas pela impossibilidade do legislador estadual estabelecer regras sobre o imposto rural.

 

A rigor, o legislador estadual só será livre para legislar sobre IPVA, que, não sendo um imposto de larga base econômica, é inteiramente insuficiente para fornecer a necessária possibilidade de o estado estabelecer sua própria política fiscal.

 

A proporcionalidade entre as medidas propostas pelo governo, tendentes a combater a guerra fiscal, doença infantil da Federação brasileira, e os danos que tais medidas causam à autonomia federativa, é sensivelmente contrária à constitucionalidade da norma, uma vez que o próprio constituinte originário já havia vislumbrado mecanismos menos gravosos à autonomia federativa, mas que nem sempre foram efetivados pelos Poderes Legislativo e Judiciário.

 

Deste modo se conclui que a PEC apresentada pelo governo federal, além de não avançar no tema da Justiça Fiscal, traz graves prejuízos ao regime federativo, por praticamente aniquilar a competência tributária dos estados-membros da federação brasileira. Por outro lado, não contribuirá significativamente para incentivar o desenvolvimento econômico do país, frustrando os que identificam a aprovação das reformas constitucionais como pressuposto para a adoção de uma política econômica menos dependente das idiossincrasias do mercado financeiro.

 

 

http://www.mundojuridico.adv.br/



[1] Vide as principais mudanças contidas na Proposta de Emenda Constitucional apresentada pelo governo:

 

- O imposto sobre grandes fortunas poderá ser instituído por lei ordinária, e não mais por lei complementar.

 

- O ITR passa a ser de competência estadual, mas regulado por lei complementar, sendo vedada adoção de norma estadual autônoma.

 

- O ITD será progressivo e terá suas alíquotas definidas em lei complementar.

 

- O ITBI será progressivo em razão do valor venal, e poderá ter suas alíquotas diferenciadas em razão da localização e utilização do imóvel.

 

- A CPMF passa a ser definitiva, tendo alíquota mínima de 0,08% e máxima de 0,38%, facultado ao Poder Executivo reduzi-la ou restabelecê-la, nas condições e termos da lei.

 

- As contribuições previdenciárias incidentes sobre folha de salários serão, total ou parcialmente, substituídas por incidências não-cumulativas sobre o faturamento e a receita.

 

- O PIS e a COFINS passam a ser não-cumulativos para os setores da economia definidos em lei.

 

- A alíquota da CSLL das instituições financeiras não poderá ser inferior a das demais empresas.

 

- A União instituirá programa de renda mínima, destinado a assegurar a subsistência das famílias de baixa renda.

 

- A desvinculação de receitas da União, em relação às destinações constitucionais dos tributos, inclusive da seguridade social,  valerá até o ano de 2007.

 

- Além do percentual de 47% da arrecadação do IR e do IPI que são hoje destinados aos éstados, municípios e programas de fomento às regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, mais 2% da receita dos referidos impostos serão destinados ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional para a aplicação nas regiões mais pobres do país, conforme definido em lei.

 

- O ICMS passa pelas seguintes modificações:

. não será objeto de incentivos fiscais, ressalvadas as isenções concedidas às pequenas empresas;

. resolução do Senado, de iniciativa do Presidente da República, de 1/3 dos Senadores, ou 1/3 dos Governadores, e aprovada por 3/5 dos senadores,  regulará as alíquotas internas e interestaduais;

. uniformidade de alíquotas internas por mercadoria ou serviço em todo o território nacional, no número máximo de cinco faixas;

. regulamento emitido pelo CONFAZ definirá as mercadorias e serviços que serão atingidos pelas alíquotas definidas pela resolução do Senado;

. a menor alíquota será aplicada aos gêneros alimentícios de primeira necessidade definidos em lei complementar e às mercadorias e serviços definidos no regulamento do CONFAZ, ainda que em  operações interestaduais;

. as alíquotas internas, exceto a dos gêneros alimentícios e das mercadorias e serviços definidos em convênio, não poderão ser inferiores à alíquota interestadual;

. as alíquotas internas aplicam-se às operações de importação;

. em relação às operações interestaduais, o imposto continuará sendo cobrado no estado de origem -  ressalvados o petróleo, a energia elétrica e as hipóteses previstas em lei complementar - , com a possibilidade de o estado de destino cobrar o diferencial entre a alíquota interna e a interestadual;

. terá regulamento único editado pelo CONFAZ;

. a instituição por lei estadual limitar-se-á a definir a incidência do imposto;

. a parcela da receita pertencente aos municípios será rateada conforme definido em lei complementar.

 

 

[2] Sobre a nossa crítica à posição do STF a respeito da exigência de previsão constitucional expressa para a progressividade e quanto à aplicabilidade desta aos impostos reais, vide RIBEIRO, Ricardo Lodi.  Justiça, Interpretação e Elisão Tributária.  Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 72.

[3] Percentual fixado pela PEC como alíquota mínima.

[4] De acordo com Konrad Hesse, o Princípio da Conduta Amistosa dos Entes Federativos se traduz na fidelidade para com a Federação, não só dos estados em relação ao todo e a cada um deles , mas da União em relação aos estados.  Segundo HESSE, é inconstitucional a iniciativa que fira essa fidelidade federativa, uma vez que se rompe o dever de boa conduta que deve presidir as relações entre os integrantes da Federação, baseada na colaboração e cooperação recíprocas.   (HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha.  Tradução da 20ª edição alemã por Luís Afonso Heck, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998Op. Cit. , p. 212/215).

[5] NOVELLI, Flávio Bauer, “Norma Constitucional Inconstitucional?  A propósito do art. 2º, § 2º, da Emenda Constitucional nº 3/93”, RDA 199, p. 39.

[6] CARRAZZA, Roque Antônio, Curso de Direito Constitucional Tributário.  4ª ed.  São Paulo: Malheiros, 1993,  p. 81

7 DALLARI, Dalmo de Abreu, “Competências municipais”, in “Estudos de Direito Público”, Revista da Associação dos Advogados da Prefeitura do Município de São Paulo, 1983, nº 4,  p. 7, apud CARRAZZA, Ob. Cit., p. 82.

 

[8] CARRERA RAYA, Francisco José.  Manual de Derecho Financiero, Vol. I, p. 63.

[9] FERREIRO LAPATZA, José Juan, Curso de Derecho Financiero Español,Vol. I,  p. 108.

[10] CAMPOS. Diogo Leite de. e  CAMPOS, Mônica Horta Neves Leite de. Direito Tributário ,  p. 98.

[11] HESSE, Konrad, Op. Cit., p. 205/207.

[12] No ano de 1998 as receitas arrecadadas pelo Estado de São Paulo totalizaram pouco mais de 30 bilhões de reais, sendo o ICMS responsável por mais de 26 bilhões, segundo dados da Secretaria de Estado da Fazenda, disponíveis na Internet.

[13] Artigos  7º e 119  do CTN.

[14] Na Alemanha, por exemplo, o artigo 106 da Lei Fundamental, atribui aos landers (estados-membros), além da participação na receita de vários impostos da União, como o de renda e o incidente sobre as sociedades, a competência, exercida sem interferência do legislador central, para a instituição dos impostos sobre o patrimônio, sobre as sucessões e transmissões a qualquer título, sobre os veículos automotores, sobre a cerveja e as casas de jogo.