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Regras em pauta
Cobrança de contribuição previdenciária é inconstitucional
O Decreto nº 4.729, de 9-6-03,
introduziu várias alterações no Decreto nº 3.048, de 6-5-99, que instituiu o
Regulamento da Previdência Social. Entre as modificações, consta a do inciso
II, do § 5º, do art. 201. Para melhor compreensão da matéria seguem transcritas
essas disposições:
Art. 201. A contribuição a cargo
da empresa, destinada a Seguridade Social, é de:
…………………………………………………………………………………………….
§ 5º - No caso de sociedade civil
de prestação de serviços profissionais relativos ao exercício de profissões
legalmente regulamentada, a contribuição da empresa, referente a segurados a
que se referem as alíneas g a i do inciso V do art. 9º,(1) observado o disposto
no art. 225 e legislação específica, será de 20% sobre:
…………………………………………………………………………………………….
II - os valores totais pagos ou
creditados aos sócios, ainda que a título de antecipação de lucro da pessoa
jurídica, quando não houver discriminação entre a remuneração decorrente do
trabalho e a proveniente do capital social ou tratar-se de adiantamento de
resultado ainda não apurado por meio de demonstração de resultado do exercício.
O inciso II na redação original
dispunha:
II - os valores totais pagos ou
creditados aos sócios, ainda que a título de antecipação de lucro da pessoa
jurídica, quando não houver discriminação entre a remuneração decorrente do
trabalho e a proveniente do capital social.
Verifica-se do confronto desses
dois textos, que o Decreto sob exame ampliou o elenco de segurado obrigatório,
na condição de contribuinte individual, mediante acréscimo no citado inciso II
da expressão ou tratar-se de adiantamento de resultado ainda não apurado por
meio de demonstração de resultado do exercício.
Com isso, atribuiu-se ao sócio
quotista a dupla condição de segurado obrigatório: a) enquanto prestador de
serviço, auferindo pro-labore; b) enquanto destinatário de lucros
antecipadamente distribuídos. Essa última situação absolutamente nada tem a ver
com a retribuição do trabalho, que compõe o elemento nuclear ou objetivo do
fato gerador da contribuição previdenciária, nos termos do art. 22, incisos I e
III da Lei nº 8.212/91, que assim prescreve:
Art. 22. A contribuição a cargo
da empresa destinada a Seguridade Social, além do disposto no art. 23 é de:
I - vinte por cento sobre o total
das remunerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês,
aos segurados empregados e trabalhadores avulsos que lhe prestem serviços,
destinadas a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive as
gorjetas, os ganhos habituais sob formas de utilidades e os adiantamentos
decorrentes de reajuste salarial .
…………………………………………………………………………………………….
III - vinte por cento sobre o
total das remunerações pagas ou creditadas a qualquer título no decorrer do
mês, aos segurados contribuintes individuais que lhe prestem serviços.
Como se vê, sem vínculo laboral,
não há como exigir a contribuição previdenciária em razão da absoluta impossibilidade
de ocorrência concreta do fato gerador da obrigação tributária, por falta de
descrição legislativa da hipótese em que é devido o tributo, matéria submetida
ao princípio da reserva legal (art. 150, I da CF e art. 97, I e III do CTN).
Por muito menos, o Plenário do
Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, declarou a inconstitucionalidade da
contribuição previdenciária incidente sobre a remuneração dos detentores de
mandato eletivo federal, estadual e municipal, criada pela Lei nº 9.506/97.
Entendeu aquela Alta Corte de Justiça que a referida lei, ao criar nova figura
de segurados obrigatórios, acabou por criar uma nova fonte de custeio da
Seguridade Social, o que, ao teor do § 4º do art. 195 da CF, só poderia ser
objeto de implementação por lei complementar. Com esse fundamento foi declarada
inconstitucional a alínea h do inciso I da Lei nº 8.212/91, acrescentado pelo §
1º do art. 13 da Lei nº 9.506/97 (RE 351.717-PR, Rel. Min. Carlos Velloso, j.
em 8-10-03, in Boletim Informativo STF nº 324).
Ora, se nem lei ordinária poderia
criar nova fonte de custeio da Seguridade Social, mediante expansão do elenco
de segurados obrigatórios, com muito maior razão não poderia um simples decreto
criar nova casta de contribuintes da Seguridade Social, onde se insere a
Previdência Social, para custeio de seus benefícios.
Dentro do regime de normalidade
da ordem jurídica, não existe decreto como instrumento normativo autônomo, mas,
sempre como instrumento regulador de disposições legais. E regular, não
significa inovar ou alterar a disposição legal regulamentanda, nem modificar
seu conteúdo e alcance que estão expressos no art. 99 do CTN, nos seguintes
termos:
Art. 99. O conteúdo e o alcance
dos decretos restringem-se aos das leis em funções das quais sejam expedidos,
determinados com observância das regras de interpretação estabelecidas nesta
Lei.
Não pode o decreto querer
transformar a distribuição antecipada de lucro, proveniente de fator capital,
em pro-labore, proveniente do vínculo laboral, isto é, retribuição do trabalho.
São rendimentos de origens diversas, e como tais, tratados diferentemente pela
legislação do imposto de renda, que tributa o pro-labore (15% ou 27,5%) e
isenta a distribuição de lucros, tanto na fonte como na declaração do sócio
beneficiário, nos termos do art. 10 da Lei nº 9.249/95, que assim prescreve:
Art. 10. Os lucros ou dividendos
calculados com base nos resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996,
pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real,
presumido ou arbitrado, não ficarão sujeitos à incidência do Imposto de Renda
na fonte, nem integrarão a base de cálculo de Imposto sobre a Renda do
beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no país ou no exterior.
E mais, a partir do exercício de
1997, a apuração do imposto de renda quer seja com base no lucro real, quer
seja com base no lucro presumido ou arbitrado passou a ser trimestral, com
fundamento nos balancetes encerrados em 31 de março, em 30 de junho, em 30 de
setembro e em 30 de dezembro de cada ano calendário (art. 1º da Lei nº 9.430/96).
A pessoa jurídica, sujeita à tributação pelo lucro real, poderá, ainda, optar
pelo pagamento mensal do imposto, calculado sobre base de cálculo estimada,
seguido de ajuste final em 31 de dezembro de cada ano, para determinação do
saldo do imposto a pagar ou a ser compensado (art. 2º e § § 3º e 4º da Lei nº
9.430/96).
Disso conclui-se que, em relação
à apuração de imposto com base no lucro presumido, o resultado encontrado em
cada trimestre é definitivo, não existindo a figura do ajuste final em 31 de
dezembro de cada ano calendário. Daí por que em relação às sociedades civis de
profissionais liberais, que tiverem optado pelo regime de tributação por lucro
presumido descabe falar-se em antecipação de lucros ou dividendos, porque o
balanço que irá apurar os resultados será sempre trimestral.
Por isso, coerente com a
sistemática da Lei nº 9.430/96, a Instrução Normativa nº 93, de 24-12-97, da
Secretaria da Receita Federal, no § 3º de seu art. 48 veio explicitar o
conteúdo do art. 10 da Lei nº 9.249/95, autorizando a pessoa jurídica tributada
com base no lucro presumido a distribuir lucros ou dividendos de resultados
apurados por meio de escrituração contábil, ainda que por conta de período base
não encerrado.
De fato, se o imposto de renda,
que tinha caráter anual, sujeito a lançamento por declaração, foi convolado em
imposto de natureza trimestral, sujeito a lançamento por homologação, é óbvio
que a apuração do lucro não poderia ser postergada para o final de cada ano
calendário.
O conceito de distribuição de
lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados
trimestralmente, segundo a legislação do imposto de renda, é vinculante à
legislação previdenciária. Esta última não pode desconsiderar o lucro
trimestral, regularmente apurado em balanço ou balancete, condicionando sua
validade, para efeitos de contribuição social, ao resultado do exercício, como
dispõe o decreto guerreado. Isso só teria sentido antes da Lei nº 9.430/96,
quando o imposto de renda tinha caráter anual.
O decreto sob comento, além de
violar duplamente o princípio da legalidade tributária (art. 150, I e § 4º do
art. 195 da CF) vale-se de institutos próprios do imposto sobre a renda
(distribuição de lucros ou dividendos), porém, confere-lhes conteúdo diferente
daquele estabelecido na legislação do imposto de renda, o que, não deixa de ser
uma forma de afrontar o art. 110 do CTN.
De fato, esse art. 110 proíbe a
alteração, por lei tributária, da definição, conteúdo e alcance de institutos,
conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente,
pela Constituição Federal, para definir ou limitar competências tributárias. E,
certamente, a legislação do imposto de renda adotou o conceito tradicional de
renda a que se refere o art. 153, III da CF, isto é, renda no sentido de
aquisição de disponibilidade deriqueza nova, de acréscimo patrimonial.
Ora, se o malsinado Decreto
confunde distribuição de lucro com pagamento de pro-labore, obviamente, estará
alterando o conceito de renda, incorrendo na proibição do art. 110 do CTN.
O legislador palaciano ignorou o
caráter dinâmico da legislação do imposto de renda, que transformou o imposto,
que era anual, em imposto trimestral e até em imposto mensal, no caso de sua
apuração pelo lucro real, mediante opção pelo pagamento com base em estimativa
mensal da base de cálculo. Na cabeça do legislador monocrático, o lucro só
poderia ser apurado e distribuído no final de cada exercício, assim entendido o
final de cada ano calendário. Mas, incoerentemente, o imposto poderia ser exigido
e arrecadado antes do final de cada ano calendário, isto é, sem prévia apuração
do lucro real, presumido ou arbitrado, que é a base de cálculo desse imposto.
Não é razoável, nem racional essa linha de pensamento levada em conta pelo
autor do Decreto sob análise. Se a apuração do imposto, que tem por base de
cálculo exatamente o lucro real, presumido ou arbitrado, passou a ser
trimestral seria um contra-senso, de todo inadmissível, exigir a apuração do
lucro a ser distribuído apenas no final de cada exercício, que coincide com o
ano calendário.
Positivamente, a cobrança
pretendida é absolutamente inconstitucional e também ilegal, por não ter sequer
suporte legal, só servindo aos propósitos condenáveis de emperrar ainda mais a
nossa justiça. O remédio contra esse inusitado abuso de poder é a impetração do
mandado de segurança coletivo, por parte de instituições ligadas a sociedades
civis de profissionais liberais.
Nota de rodapé
[1] Art. 9º - São segurados
obrigatórios da previdência social as seguintes pessoas:
……………………………………………………………………………………………………………..
V - como contribuinte individual:
……………………………………………………………………………………………………………..
h - o sócio gerente e o sócio
cotista que recebam remuneração decorrente de seu trabalho na socieade por
cotas de responsabilidade limitada, urbana ou rural.
Revista Consultor Jurídico, 21 de
outubro de 2003.
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Sobre o autor
Kiyoshi Harada é sócio fundador da Harada Advogados Associados, conselheiro do Iasp, professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro e ex- procurador-chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo