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A ação do controle
JORGE ULISSES JACOBY FERNANDES
1. - da natureza e
das funções dos Tribunais de Contas;2. - da tomada de contas especial; 3. - do
devido processo legal e da TCE.
O poder político, por ser uno, é indivisível, mas a cultura da humanidade,
desde Aristóteles, vislumbra na ação do Estado a presença de várias funções, as
quais devem ser limitadas quanto ao seu alcance e conteúdo.
Na teoria clássica da divisão dos poderes, na atualidade melhor cognominada de
separação das funções do Estado, elaborada por Mostesquieu, vislumbra-se o
interesse em dividir as atividades do Poder e estabelecer sobre todas elas
controle.
Se inexiste dúvida quanto à necessidade do controle sobre as funções do Estado
e seus realizadores, o mesmo não se pode afirmar acerca dos meios de torná-lo
efetivo, operacional, isento e eficaz. Em breve pesquisa realizada, encontramos
mais de uma centena de proposições doutrinárias sobre a expressão controle, na
acepção voltada para o exame de atos da administração pública, em obras
nacionais, com dezenas de propostas de classificação.
A ação do controle deve evoluir, a partir da estruturação científica
inicialmente concebida por Montesquieu, para uma visão mais próxima da
realidade atual do Estado e da sociedade, aproveitando a experiência histórica
acumulada, suas deficiências e acertos.
A doutrina, de modo não uniforme, já sedimentou alguns parâmetros que merecem
destaque.
Em primeiro plano, insta asserir que qualquer estrutura de controle que não
vislumbra a possibilidade de ação individual do cidadão estará fadada a
transferir a iniciativa a grupos, corporações ou instituições, nos quais mais
facilmente se permearão ações ideológicas. É na possibilidade propulsora da
iniciativa individual do cidadão estará fadada a transferir a iniciativa a
grupos, corporações ou instituições, nos quais mais facilmente se permearão
ações ideológicas. É na possibilidade propulsora da iniciativa individual, que
reside a força de um sistema de controle.
A propósito, no ideário da Revolução Francesa, que mais pelo seu simbolismo do
que pela sua concretização, iluminou o mundo, fizeram os revolucionários
estabelecer, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, que “a
sociedade tem o direito de pedir conta a todo agente público de sua
administração”.
Em segundo, que o controle deve ser reconhecido como uma atividade acessória do
Estado, mas não menos importante. Em presciente estudo sobre o controle da Administração
Pública, a Profª. Odete Medauar, citando Berti e Tumiati, destaca que “na
acepção lógico-filosófica o termo controle designa aspecto do agir humano
necessariamente secundário e acessório, porque destinado a rever ou reexaminar
ou confrontar uma atividade de caráter primário ou principal”. Esse enfoque
coloca a função do controle na sua verdadeira dimensão institucional: por não
ser um fim em si mesma, busca acrescentar algo às atividades ditas principais e
à própria sociedade.
Em terceiro, que o controle deve;
· ser atividade permanente, desenvolvida prévia, concomitante e posteriormente
à prática do ato, acompanhando toda sua extensão;
· ocupar a atenção de toda sociedade, para afastar a idéia de omissão e
impunidade;
· ser desenvolvida por todos os órgãos do aparelho do Estado e da iniciativa
privada, quando exercente de função estatal, mesmo que em regime de
colaboração; e
· ser atribuída a um órgão específico, para o qual será atividade-fim.
Essa concepção, como facilmente se percebe, só pode permear num país que adote
um regime democrático.
O controle, como uma função do Estado, exige, como o regime democrático, um
grau de desenvolvimento da sociedade e dos agentes de administração para
alcançar seu escopo, evoluindo de modo permanente, como num ciclo de
realimentação permanente: democracia - controle - democracia. Foi sensível a
essa questão a Organização das Nações Unidas, quando consagrou a Declaração
Universal dos Direitos do Homem erigindo, entre outros dois direitos: ao de participar
ativamente no processo de desenvolvimento. Franco Montoro, em sua importante
obra Estudos de Filosofia do Direito, assinala que “não se trata, simplesmente,
de receber passivamente os benefícios do progresso, mas de tomar parte nas
decisões e no esforço para a sua realização. Em lugar de ser tratado como
“objeto” das atenções paternalistas dos detentores do poder, o homem tem o
direito de ser considerado pessoa consciente e responsável, capaz de ser
“sujeito” e “agente” no processo do desenvolvimento .
Se é o povo que mantém o Estado e, por meio dos seus legítimos representantes,
define a aplicação dos recursos públicos, nada mais adequado do que
atribuir-lhe o controle externo da Administração Pública.
Salienta Manoel Gonçalves Ferreira Filho que “por tradição que data do medievo,
compete autorizar a cobrança de tributos, consentir nos gastos públicos, tomar
conta dos que usam do patrimônio geral. Na verdade, o poder financeiro das
câmaras é historicamente anterior ao exercício, por elas, da função
legislativa”.
Para desempenhar a função técnica do controle da Administração, o Brasil, a
exemplo de outros países, adota o modelo de Tribunal de Contas. Assim, enquanto
esses tratam exclusivamente do exame dos atos e da atividade administrativa, o
julgamento final da gestão do governo como um todo continua na restrita
competência do parlamento da respectiva esfera de governo.
Com sua habitual clareza, ensina Celso Antonio Bandeira de Mello que “não há
negar-se que o encargo de controlar a função administrativa do Estado, ante os
explícitos dizeres constitucionais, assiste ao Poder Legislativo. Entretanto,
também não há negar que a este Poder acode sobretudo uma função política, a de
fazer as opções sobre as regras fundamentais que irão ditar o destino do País e
reger os comportamentos dos indivíduos. Já a missão de efetuar um apurado
controle sobre a legitimidade dos atos administrativos conducentes à despesa
pública é, obviamente, uma missão técnica - técnico-jurídica e, portanto,
dificilmente poderia ser desempenhada a contento por um corpo legislativo, sem
que contasse com o auxílio de um organismo especializado ao qual incumba esta
apreciação técnica, que irá iluminar a posterior decisão política do
Legislativo na apreciação da gestão dos recursos públicos”.
1. Natureza e funções dos Tribunais de Contas
Para não perder a objetividade e que se propõe este trabalho e obviar o amplo
debate que, desde o tempo do Brasil Império, ocupa a inteligência dos
estudiosos, examinar-se a seguir a natureza dos Tribunais de Contas, pondo em
relevo as conclusões de administrativistas que procuraram compreendê-la, a
partir do contexto definido pelo Estatuto Político Fundamental.
O eminente administrativista Celso Mello, referindo-se ao assunto averbou que
“como o Texto Maior desdenhou designá-lo como Poder, é inútil ou improfícuo
perguntarmo-nos se seria ou não um Poder. Basta-nos uma conclusão ao meu ver
irrefutável: o Tribunal de Contas, em nosso sistema, é um conjunto orgânico
perfeitamente autônomo.”
Na mesma linha de entendimento, assere a Profª. Odete Medauar que "se a
sua função é de atuar em auxílio ao Legislativo, sua natureza, em razão das
próprias normas da Constituição, é de órgão independente, desvinculado da
estrutura de qualquer dos três poderes.
Com relação às funções das Cortes de Contas, também há divergência na doutrina
e jurisprudência pátria. Uma corrente de pensamento sustenta a função
jurisdicional, enquanto outra restringe as decisões à mera manifestação de
vontade administrativa.
A questão não é meramente acadêmica, apresentando relevantes conseqüências
práticas no que concerne, especialmente, aos limites de revisibilidade das
decisões dos Tribunais de Contas pelo Poder Judiciário. Para a primeira
corrente de pensamento, somente caberia o exame extrínseco do ato e a
verificação de sua conformidade ou não, com a Lei, pelo Judiciário; para a
segunda, a revisão poderia, inclusive, adentar no mérito do ato deliberativo da
Corte.
Tudo parece indicar que o ponto nodal da questão repousa na acepção do termo
julgamento, utilizado pela Constituição Federal, para designar a decisão do
Tribunal de contas.
Esse termo, mereceu detido exame de brilhantes juristas pátrios, a iniciar-se
pelo Procurador do Ministério Público junto ao TCU, Leopoldo da Cunha Melo,
asserindo que “o Tribunal de contas não é simples órgão administrativo”, mas
exerce “uma verdadeira judicatura sobre os exatores, os que têm em seu poder,
sob sua gestão, bens e dinheiros públicos”.
Conquanto o Tribunal de Contas não integre, até hoje, o elenco de órgãos do
Poder Judiciário, há muito, de fato, já assinalava o eminente e saudoso Seabra
Fagundes, que “inobstante isso, o art. 71 § 4ª, lhe comete o julgamento da
regularidade das contas dos administradores e demais responsáveis por bens ou
dinheiros públicos, o que implica em investi-lo no parcial exercício da função
judicante. Não bem pelo emprego da palavra julgamento, mas sim pelo sentido
definitivo da manifestação da corte, pois se a regularidade das contas pudesse
dar lugar a nova apreciação (pelo Poder Judiciário), o seu pronunciamento
resultaria em mero e inútil formalismo. Sob esse aspecto restrito (o criminal
fica à Justiça da União) a Corte de Contas decide conclusivamente. Os órgãos do
Poder Judiciário carecem de jurisdição para examiná-lo.”
Também Pontes de Miranda, com seu perene brilho, sustenta que “a função de
julgar as contas está claríssima no texto constitucional. Não havemos de
interpretar que o Tribunal de Contas julgue e outro juiz as rejulgue depois.
Tratar-se-ia de absurdo bis in idem.”
O debate tem prosperado, notadamente, porque os estudiosos costumam analisar a
questão apenas pela perspectiva do Direito Constitucional ou do Direito
Administrativo, faltando à reflexão uma visão abrangente e mais atualizada da
restrita tripartição das funções do Estado.
Essa posição muito bem se entende, se for considerado que a teoria da separação
dos poderes de Montesquieu, consagrada na obra L’Esprit des lois, 1748, jamais
foi adotada em seu sentido estrito. O já citado Pontes de Miranda assere que
“uma coisa é a distinção das funções do Estado em legislativa, executiva e
outra a separação absoluta dos poderes segundo tal critério distintivo.”
O silogismo fundamental para a correta equação assenta-se nas seguintes premissas:
- a separação das funções legislativa, administrativa e judiciária, não é
absoluta, nem é restrita aos órgãos do respectivo Poder. O Poder Executivo
exerce funções legislativas quando se lhe comete a iniciativa de leis, - art.
84, III- ou editar medidas provisórias, com força de lei - art. 84, XXVI -
sancionar, promulgar e vetar leis, - art. 84, IV - e também funções judiciais,
como comutar penas e conceder indulto - art.84, XII. Ao poder legislativo, além
das funções legislativas, constitucionalmente lhe foi deferida competência
judiciária para processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da
República e outras autoridades -, incs. I e II - e funções administrativas,
como dispor sobre sua organização -art.51,inc. IV. Ao poder Judiciário foi conferida
competência administrativa de organizar suas secretarias - art. 96, inc. I, b -
e legislativa, para propor leis - art. 96, inc. II - ou declarar a
inconstitucionalidade de leis - arts. 97, 102, inc. I, a - e impor a sentença
normativa em dissídio coletivo, art. 114, § 2ª.
- o Poder Judiciário não tem competência para a ampla revisibilidade dos atos
não-judiciais estritos. Arrimando-se no art. 5ª, inc. XXXV, da Constituição
Federal, os menos atentos pretendem erigir o princípio da revisibilidade judicial
como norma absoluta. A simples leitura desse dispositivo, demonstra que é
vedado à Lei excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de
lesão, mas não à Constituição. De fato, a interpretação sistemática dos
preceitos constitucionais revelam que, em alguns casos, o próprio Estatuto
Político delineia a competência para outros órgãos procederem ao julgamento de
determinadas questões, tal como ocorre com o julgamento do impeachment e dos
Tribunais de Contas, que Seabra Fagundes classifica como exceções ao monopólio
do Poder Judiciário. De outra parte, admitindo-se, ad argumentandum, que a
deliberação das Cortes de Contas fosse mero ato administrativo e não judicante,
mesmo assim, não poderia o Poder Judiciário adentrar ao exame de mérito desse
ato, ficando restrito ao exame da legalidade formal.
Nesse contexto, compreende-se facilmente que a jurisdição não é monopólio do
Poder Judiciário, sendo função também exercida pelo outros poderes.
Os efeitos do julgamento - como tal entendida a possibilidade de dizer o
direito nos casos concretos, - pelas Cortes de Contas prevaleceriam frente aos
órgãos do Poder Judiciário? Estariam os condenados sujeitos ao cumprimento
forçado da decisão das Cortes de Contas, em matéria de TCE?
Ao contrário do que sustentavam Chiovenda e Adolf Wach, que só entendiam a
jurisdição como a “atividade do Estado dirigida à atuação do Direito objetivo,
mediante a aplicação da norma geral ao caso concreto e mediante a realização
forçada da própria norma geral” esse segundo elemento, na moderna
processualística, necessita existir apenas potencialmente e sua efetivação,
quando necessária, poderá ocorrer com o auxílio de outros órgãos. Nesse
contexto evolutivo, situam-se as manifestações do próprio Judiciário em sede de
jurisdição voluntária ou graciosa e a homologação e execução de sentença
estrangeira. Na primeira, por inexistir de forma imediata a realização forçada;
no segundo, porque há interferência, para a força coativa da sentença, de órgão
diverso do prolator da sentença.
As decisões das Cortes de Contas, no Brasil, são expressões da jurisdição; não
jurisdição “especial” ou seguida de qualquer adjetivação que pretenda diminuir
sua força. Mas, apenas jurisdição, à qual se pode, em homenagem ao órgão
prolator, referir-se como jurisdição de contas. Uma vez que o constituinte,
repetindo Constituições anteriores, empregou a expressão julgar para algumas
deliberações do Tribunal de contas e, tendo em linha de consideração que,
quando “são empregados termos jurídicos, deve crer-se ter havido preferência
pela linguagem técnica” os julgamentos das Cortes de Contas devem ser acatados
pelo Poder Judiciário, vez que não pode rejulgar o que já foi julgado, como
acentua Pontes de Miranda.
O julgamento sobre as contas, decidindo a regularidade ou irregularidade, é
soberano, privativo e definitivo.
Soberano, porque não se submete a outra corte revisional. Sendo as Cortes de
Contas independentes dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, suas
decisões em sede de contas especiais, cuja competência lhe foi deferida pelo
constituinte, com exclusividade, não poderia ser subalterna a qualquer dos
poderes, sob pena de, diante do caso concreto, permitir a um órgão cujas contas
fossem julgadas irregulares, rever por si próprio, a decisão. Tal ocorreria,
v.g., se o Tribunal de Contas da União julgasse uma TCE envolvendo agentes do
Supremo Tribunal Federal e, a esse, fosse permitido rever o julgamento. O
sistema de “freios e contrapesos”, nota característica da evolução do processo
democrático, ficaria irremediavelmente comprometido. Somente o julgamento das
contas anuais do governo é que foge à competência exclusiva das Cortes de
Contas.
O julgamento, em matéria de contas especiais, é privativo dos Tribunais de
contas. Não pode ser delegado, transferido ou diminuído por lei ou qualquer ato
normativo, nem mesmo regimental das próprias Cortes. É possível, porém,
atribuir, no âmbito desses Tribunais, a competência à turmas ou câmaras,
conforme disciplina interna, desde que os julgadores sejam os membros dos
Tribunais de Contas da União e do Distrito Federal, pode também ser fixado
valor de alçada, abaixo do qual os autos de TCE não são remetidos para as
Cortes, mas esse fato, de ficar o processo na origem, não implica, nem pode
implicar, na transferência do julgamento das contas para os órgãos da
administração: deve o administrador público, nesse caso, envidar esforços para
o ressarcimento ao erário, observando, porém, que quaisquer providências que
vier a adotar, não poderão implicar no julgamento, estrito senso, pela
regularidade ou irregularidade, como ocorre quando decidido pelas referidas
Cortes.
O julgamento dos Tribunais de Contas é definitivo, observados os recursos
previstos no âmbito desses colegiados. Esgotados os recursos ou os prazos para
a interposição, a decisão é definitiva e, em matéria de contas especiais, não
sujeita à revisibilidade de mérito pelo Poder Judiciário, conforme o magistério
dos doutrinadores referidos.
Assim, sem laivo de dúvida algumas funções das Cortes de Contas se inserem como
judicantes, inibindo o reexame pelo Judiciário quanto ao mérito.
Nesse sentido já se pronunciou a Justiça Federal: “o TCU só formalmente não é
órgão do Poder Judiciário. Suas decisões transitam em julgado e têm, portanto,
natureza prejudicial para o juízo não especializado”.
* Artigo cedido pela Editora Del Rey
JORGE ULISSES JACOBY FERNANDES
Procurador-Geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas do Distrito
Federal, ex-Juiz do Trabalho da 10ª Região, Professor da Disciplina Direito
Administrativo da UDF, instrutor do Centro Ibero Americano de Administração e
Direito (Brasil/Portugal) e Instituto Serzedello Corrêa do TCU. É autor do
livro “Compras pelo Sistema de Registro de Preços”, editora Juarez de Oliveira,
1ª edição, 300 páginas, “Contratação Direta sem Licitação”, 3ª edição e Tomada
de Contas Especial, 2ª edição, ambos pela editora Brasília Jurídica.
http://www.jur.com.br/