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A possibilidade do reconhecimento de ofício da prescrição em matéria de execução fiscal

 

Rizzatto Nunes

 

Mestre, Doutor e Livre-Docente em Direito pela PUCSP, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unimes/Santos, Juiz de Direito do Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo e autor de diversos livros, dentre os quais Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, editado pela Saraiva.

 

No presente artigo discutiremos a possibilidade ou não de o Magistrado reconhecer de ofício a prescrição na execução fiscal. Ver-se-á que a questão, apesar de se apresentar como polêmica, parece-nos possível de ser solucionada, desde que deixemos de lado as aparentes soluções postas como dogmas indiscutíveis, e resolvamos examiná-la à luz do texto da Constituição Federal, aplicando-se uma lógica jurídica rigorosa e guiando-se pelo critério da razoabilidade, fundamento de toda razão humana. E, para tanto, serviremo-nos da realidade forense no âmbito estadual, mas também válida para o âmbito federal, pois em todas as esferas as Varas e os Tribunais estão literalmente abarrotados de executivos fiscais cujas dívidas venceram há muito mais que os cinco anos legais de prazo prescricional.

Vejamos.

1. Cobrança de tributos prescritos

O problema é simples: trata-se de cobrança de tributos, cujo débito prescreveu há muito tempo e quer-se saber se o Magistrado condutor do feito pode ou não declarar de ofício tal prescrição.

Ver-se-á que a posição ora trazida resolve não só o caso concreto, como contribui, sobremaneira, para a aplicação da Justiça e para a administração da coisa pública.

1.1. A realidade dos feitos

São milhares de processos que estão empilhados nas prateleiras dos Cartórios Forenses1. Os feitos ocupam espaço físico tanto nos Cartórios dos Juízos Singulares como, por exemplo, no 1.º Tribunal de Alçada Civil:  são 1.479 execuções fiscais não embargadas aguardando distribuição2.

Grande parte desses milhares de feitos tratam de dívidas prescritas há mais de 10 anos! Muitos há 15, 20 anos!!

A manutenção desses processos prescritos viola não só a necessária racionalidade da administração da Justiça como não tem qualquer função de ordem prática.

1.2. As certidões negativas

Sabe-se que muitos contribuintes que estão em débito com o fisco Municipal, Estadual ou Federal acabam quitando a dívida quando precisam fazer alguma transação importante. Nesse momento são obrigados a pedir certidão no Distribuidor Forense e ela é expedida positiva. Daí, sem alternativa, o devedor paga.

Por isso, é verdade, vai se argumentar que a parte executada, quando tiver interesse - por exemplo, tiver que apresentar uma certidão forense -, irá procurar a Municipalidade, o Estado ou a União para negociar sua dívida.

Todavia, nos casos em que a dívida teve cobrança judicial iniciada há mais de cinco anos, nem isso ocorrerá, pois as certidões forenses de cinco anos serão negativas!

2. Não se trata de Direito Privado

Aqueles que argumentam que não pode o Magistrado decretar de ofício a prescrição porque o direito do contribuinte é disponível e daí aplica-se à hipótese o Código Civil, incidem, com o devido respeito, num equívoco.

Com efeito, a cobrança de tributos não é - jamais foi - tema de direito privado. A questão é típica de Direito Público e todas as questões que a envolvem são de ordem pública e interesse social.

Fazer incidir as regras de reconhecimento da prescrição do vetusto Código Civil à hipótese é, como se disse, equivocado.

É que o Código Civil regra apenas relações de direito privado. Nesta se um credor, tendo título prescrito, resolve fazer sua cobrança judicial, o faz por sua conta e risco.

E se o devedor quiser pagar dívida privada prescrita, pode fazê-lo.

Trata-se, no caso, de obrigação natural:

"As dívidas prescritas são tradicionalmente reputadas como obrigações naturais tanto na doutrina estrangeira como na doutrina pátria. Em sua origem, são obrigações civis que, por força do fenômeno legal da prescrição, transformam-se em naturais: por isso que se denominam obrigações civis degeneradas"3.

Por isso que:

"A dívida prescrita oriunda da obrigação natural é desprovida de pretensão, como toda e qualquer obrigação natural"4.

Essa questão, inclusive, gerou na doutrina uma controvérsia, pois alguns autores entendem que a prescrição faz desaparecer o próprio direito de crédito5, visto que se acabou afirmando com a lei civil que "a invocação dela em juízo é apenas uma afirmativa de que ela existe e não uma condição de sua existência"6.

3. A questão é típica de Direito Público

Repita-se que a questão não é da órbita privada. É de ordem pública e, como tal, cabe ao agente público - administrador, funcionário, magistrado - zelar por sua completa legalidade.

A questão, portanto, é de estrito cumprimento da ordem legal. Não se trata de direito disponível, ao menos no pólo do credor.

Na esfera privada, se o credor quiser perdoar dívida, pode. Se o devedor quiser pagá-la, uma vez prescrita, também. Porém, na esfera pública, não se pode nem se deve permitir que o Estado pratique ato que não seja revestido de estrita legalidade.

Daí que se deve respeitar a estrita ordem constitucional, na medida em que esta impõe claros limites, conforme veremos na seqüência.

4. O Princípio da Legalidade

Dispõe o caput do art. 37 da Constituição Federal, verbis:

"A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também ao seguinte:".

Com efeito,

"O princípio da legalidade encontra apoio constitucional no art. 5º, II, que prescreve que ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’, bem como na segunda parte do inciso IV do art. 84, também de nossa Lex Major, que atribui ao Chefe do Poder Executivo a tarefa de expedir decretos e regulamentos para a fiel execução da lei.

A afirmação de que a Administração Pública deve atender à legalidade em suas atividades implica a noção de que a atividade administrativa é a desenvolvida em nível imediatamente infralegal, dando cumprimento às disposições da lei. Em outras palavras, a função dos atos da Administração é a realização das disposições legais, não lhe sendo possível, portanto, a inovação do ordenamento jurídico, mas tão-só a concretização de presságios genéricos e abstratos anteriormente firmados pelo exercente da função legislativa"7.

Ora, a administração pública está submetida ao princípio da legalidade estrita (CF, art. 37, caput). Não pode, por isso, extrapolando os limites legais, cobrar dívida prescrita.

Ver a respeito as seguintes decisões do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:

"O ato administrativo deve reger-se pelo Princípio da Legalidade, segundo o qual o Administrador Público encontra-se vinculado aos comandos normativos, devendo atuar à luz da legislação. Ausente ou maculado o dispositivo legal, deverá o Poder Judiciário exercer o controle da legalidade do ato administrativo"8.

"Mandado de Segurança. Administração Pública. Princípio da Legalidade. Aplicação de Sanções Órfãs de Previsão Legal. Limites do Regulamento. Decreto-Lei 37/66 (arts. 94 e 96). Decreto 91.030/85.

1. O Administrador Público submete-se ao princípio da legalidade"9.

E na questão tributária esse princípio é sagrado:

"Não se trata, na verdade, de discussão sobre imunidade ou isenção da contribuição para o PIS, que teria, ou não, sido concedida às entidades sem fins lucrativos, mas sim da própria inexistência da contribuição no que tange àquelas pessoas jurídicas. Não poderia mera resolução do Conselho Monetário Nacional fixar elementos essenciais da contribuição, já que, se a Lei Complementar, ao estabelecer normas gerais sobre a contribuição para o PIS, determina que tal ou qual definição deverá ser feita ‘na forma da lei’, deverá ela ser levada a efeito por lei ordinária e não por resolução, pois que em matéria tributária vigora o princípio da legalidade estrita"10.

"A interpretação dos dispositivos que determinam punição aos contribuintes que não efetuam recolhimentos de contribuições previdenciárias (espécie tributária) deve seguir posicionamento mais favorável ao infrator. O princípio da legalidade tributária não permite agravar aplicação de multa por via interpretativa"11.

5. O problema do art. 40 da Lei n. 6.830/80

Como decorrência do princípio da legalidade deve-se examinar o disposto no art. 40 da Lei n. 6.830/80. É que tal dispositivo dispõe:

"O juiz suspenderá o curso da execução, enquanto não for localizado o devedor ou encontrados bens sobre os quais possa recair a penhora, e, nesses casos, não correrá o prazo de prescrição.

§ 1º. Suspenso o curso da execução, será aberta vista dos autos ao representante judicial da Fazenda Pública.

§ 2º. Decorrido o prazo máximo de 1 (um) ano, sem que seja localizado o devedor ou encontrados bens penhoráveis, o juiz ordenará o arquivamento dos autos.

§ 3º. Encontrados que sejam, a qualquer tempo, o devedor ou os bens, serão desarquivados os autos para prosseguimento da execução".

Acontece que esse dispositivo legal se choca com o art. 174 do Código Tributário Nacional, que dispõe:

"A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em 5 (cinco) anos, contados da data da sua constituição definitiva".

E o parágrafo único desse mesmo artigo dispõe que:

"A prescrição se interrompe:

I - pela citação pessoal feita ao devedor;

II - pelo protesto judicial;

III - por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor;

IV - por qualquer ato inequívoco ainda que extrajudicial, que importe em reconhecimento do débito pelo devedor".

Ora, é sabido que o CTN é lei complementar, recepcionada como tal no Sistema Jurídico Constitucional Brasileiro, de modo que não poderia - nem pode - a simples lei ordinária, como é o caso da chamada Lei de Execução Fiscal, contrariar seus dispositivos, sob pena de ilegalidade e inconstitucionalidade12.

Logo, não incide a regra do art. 40 da LEF, por violação ao estabelecido no art. 174 do CTN.

A jurisprudência do E. STJ é pacífica a respeito. Leia-se:

"Tributário - Execução Fiscal - Prescrição. Art. 40, da Lei 6.830/80, em confronto com o art. 174, parágrafo único, do CTN.

1. As regras do art. 40 e seus parágrafos da Lei 6.830/80 merecem interpretação em harmonia subordinada ao princípio geral da prescrição tributária assumido pelo artigo 174, do CTN, considerada lei complementar.

2. O Ordenamento Jurídico Brasileiro não apóia a impossibilidade de prescrição em qualquer tipo de relação jurídica, especialmente a de natureza tributária onde sempre litigam Fazenda Pública e contribuinte.

3. A prescrição para a cobrança de crédito tributário é de 5 (cinco) anos, art. 174, CTN, aí compreendendo-se a intercorrente. Em conseqüência, se o processo de execução fiscal permanece inerte pelo prazo de 5 (cinco) anos, aguardando diligências da Fazenda Pública para ser movimentado, consumada está a prescrição.

4. Não prevalece a disposição do art. 40 da Lei n. 6.830/80, em face da imposição superior do art. 174, do CTN"13.

"A prescrição (e a decadência), por definição do CTN, é instituto de direito material, sendo regulada por lei complementar, a que a lei ordinária há de ceder aplicação. Somente a citação do devedor no processo de execução fiscal interrompe a prescrição (CTN, art. 174, parágrafo único), desservindo a esse fim o mero despacho do juiz determinando o chamamento do contribuinte para integrar a relação processual"14.

"Execução fiscal - Prazo - Lei ordinária - Impossibilidade. Não pode a lei ordinária elastecer prazo prescricional da execução fiscal previsto em lei complementar. Recurso provido.

Indexação: Impossibilidade, Lei Ordinária, Suspensão, Prazo, Prescrição qüinqüenal, Crédito Tributário, Execução Fiscal - Previsão - Lei Complementar"15.

"Processo Civil - Tributário - Execução Fiscal - Prescrição - Lei 6.830/80, art. 40, CTN, art. 174, parágrafo único. O artigo 40 da Lei 6.830/80 deve ser interpretado em consonância com o artigo 174 do CTN. A homenagem ao princípio da consolidação do direito não prestigia a imprescritibilidade de dívida fiscal, via legislação infraconstitucional. Recurso Especial improvido"16.

Assim, aplica-se aos casos de cobrança de tributos o art. 174, caput, e seu parágrafo único do CTN, com o que fica claro que prescreve a dívida em cinco anos, inclusive com o cômputo do período intercorrente, isto é, calculado após a suspensão do feito.

Quanto muito poder-se-á interpretar o dispositivo do citado art. 40 da Lei de Execução Fiscal para dizer que se opera uma suspensão pelo período de um ano, após o que iniciar-se-á novamente a contagem do prazo prescricional.

6. O pincípio da eficiência

No mesmo caput do art. 37 da Constituição Federal está expresso o princípio da eficiência da Administração Pública.

Como diz o professor Hely Lopes Meirelles:

"Dever de eficiência é o que se impõe a todo o agente público de realizar suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros"17.

E ainda sabe-se que "O princípio da eficiência tem partes com as normas de ‘boa administração’, indicando que a Administração Pública, em todos os seus setores, deve concretizar atividade administrativa predisposta à extração do maior número possível de efeitos positivos ao administrado. Deve sopesar relação de custo-benefício, buscar a otimização de recursos, em suma, tem por obrigação dotar da maior eficiência possível todas as ações do Estado"18.

6.1. Eficiência "versus" desperdício

Tem-se dito, aliás com razão, que o Estado é um peso para o cidadão, sua incapacidade de se auto-administrar gera custos incalculáveis e sem fim para a coletividade19.

E, comparada a Administração do Estado com a iniciativa privada, vê-se que não só falta inteligência na administração do cálculo do custo versus benefício das ações implementadas como um desprezo pelo valor da coisa pública.

Nenhuma empresa privada iria continuar amontoando por anos a fio em seus arquivos, que ocupam espaço físico caro (com o custo de locação, impostos etc), pastas de devedores desaparecidos. Nem iria, claro, manter empregados que geram altos custos, para vigiar tais pastas. Tudo por anos intermináveis, aliás diga-se claramente: para sempre!

Infelizmente é isso que exatamente faz a administração pública: são milhares de pastas que continuarão tomando espaço dos arquivos do Estado, gerando gasto desnecessário, manutenção de pessoal, uso de prédios públicos, problema de meio ambiente, risco de incêndio etc. Literalmente papéis sem função.

Por essa via, portanto, o princípio da eficiência está violado. Trata-se de puro desperdício.

6.2. A Administração jamais receberá o crédito prescrito

Vamos supor que, apesar de tudo, um contribuinte seja encontrado.

Digamos que ele resolva ir ao processo: terá bens ou não. Se tiver o oferecerá à penhora, garantirá o Juízo e, em embargos de apenas três linhas, dirá: trata-se de dívida prescrita.

Se não tiver bens, fará o mesmo em exceção de pré-executividade: as mesmas três linhas; o mesmo fim!

Em ambos os casos, o contribuinte terá de contratar advogado; o processo terá curso; o Juiz de primeiro grau e todo o cartório trabalharão e, pasmem, os processos subirão ao Tribunal por recurso de ofício!!! É incrível.

Daí a via sacra prosseguirá, com autuação, distribuição, sessão de julgamento etc. Com a devida vênia do exemplo, nem Kafka pensou nisso.

Esse outro caminho, portanto, leva a mais desperdício e maior violação ao princípio da eficiência.

6.3. Acontece que a Administração Pública ganha com a extinção do feito

Ao contrário do que à primeira vista poderia parecer, a extinção desses feitos de execução fiscal antigos, prescritos há muito tempo, significam um grande benefício à Administração Pública, implicando cumprimento claro e estrito do preceito constitucional da eficiência.

Com efeito, a extinção alivia o trabalho dos procuradores, que terão mais tempo para perseguir bons créditos.

Enquanto eles perdem tempo e gastam dinheiro com papéis, tinta, espaço físico, pessoal etc., para manter nas prateleiras os feitos das dívidas prescritas, não o utilizam para trabalhar mais pormenorizadamente nos demais casos.

Veja-se que a cobrança desses créditos não é "para valer". Não há, verdadeiramente, uma "perseguição" do devedor.

Aliás, é bem ao contrário, pois o próprio princípio da eficiência insculpido no caput do art. 37 da Constituição Federal é violado pela conduta do ente público que pretende "continuar perseguindo" a cobrança de dívida prescrita.

Colocamos as proposições acima entre aspas, porque não se trata de perseguição real, verdadeira, na qual o credor público busca encontrar o devedor, penhorando-lhe bens. Trata-se apenas de um "fingimento": a manutenção de milhares de processos atravancando a Justiça, tornando a máquina do Judiciário mais ineficiente, violando, pois, o exercício da cidadania daqueles que precisam do Judiciário. As várias esferas da administração acabam querendo transformar o Magistrado em um "cobrador de luxo" (e ineficiente, pois o devedor não paga), gerando altos custos a toda a coletividade.

Onde a eficiência? Não é aí nesses milhares de processos sem função. Logo, não se cumpre por essa via a Constituição Federal.

A se permitir que o agente público continue insistindo em cobranças de dívidas prescritas, estar-se-á onerando toda a coletividade, em vez de beneficiá-la.

Não só, conforme já dito, o custo social, economicamente falando, é enorme, como o entrave cada vez maior do Judiciário se dará e, também, levar-se-ão os feitos à extinção de qualquer modo, pois um dia (dezenas de anos depois!) o devedor finalmente surgirá das cinzas e dirá: a dívida está prescrita. E nesse momento todos já terão perdido, acrescentando-se, então ainda, mais a sucumbência!

7. O problema do reconhecimento da prescrição "de ofício"

Resta, então, agora e apenas, resolver a questão da decretação da extinção do feito, com o reconhecimento da prescrição de ofício pelo Magistrado.

7.1. Direito indisponível "versus" direito disponível

Já observarmos que a questão é de ordem pública - não privada -, e que o comando da cobrança de tributo é de ordem constitucional, pelo princípio da legalidade - e também da eficiência.

Pois bem, a questão sempre se pautou pela idéia de que o "direito" de pagar dívida prescrita é disponível. Podemos pensar assim.

Mas acontece que o chamado direito patrimonial disponível, no caso, está apenas num dos pólos da relação jurídica (a do contribuinte).

No outro pólo, no da Administração Pública, o direito em jogo é indisponível20.

Portanto, o que se tem é uma relação jurídica típica de direito público, em que de um lado - no pólo ativo - está um direito indisponível e de outro - no pólo passivo -, um direito disponível.

Surge, então, um conflito: direito indisponível versus direito disponível.

O último não poderia ser reconhecido de ofício; o primeiro, por sua própria natureza, sim.

O último, em casos como o das cobranças de tributos prescritos, goza, digamos assim, de uma presunção de negativa de pagar por parte do devedor. Afinal, são muitos anos sem manifestação do interesse.

Poder-se-ia, inclusive, falar claramente nessa presunção, caso se quisesse.

Mas o direito de cobrar tributo, por ser indisponível e por ter que respeitar o princípio da legalidade, e, em estando estabelecido pelo CTN que a prescrição se opera em cinco anos, pode e deve ser avaliado e julgado ex officio.

A jurisprudência assim o reconhece:

"Acordo celebrado entre as partes - Preceito legal não ferido - Crédito tributário - Bem indisponível - Ausência de Lei Municipal - Objeto de transação - Impossibilidade - Recurso provido - Manutenção do efeito suspensivo outorgado à decisão atacada.

1. O crédito tributário, por sua própria natureza, constitui bem indisponível por parte dos agentes administrativos e políticos, não podendo, com a ausência de Lei Municipal de caráter geral ou específico ser objeto de transação.

2. O acordo celebrado e adotado pelos Municípios não fere nenhum preceito legal, na medida em que apenas estão se utilizando proporcionalmente dos valores depositados, sem abrirem mão de qualquer crédito tributário, via transação, devendo quando definida a competência da tributação, os valores recebidos indevidamente ser restituídos a quem de direito"21.

"Diversamente do demandante privado vencedor, quando os honorários profissionais, de regra, constituem direito patrimonial do advogado, tratando-se de ente estatal não pertencem ao seu procurador ou representante judicial. Os honorários advenientes integram o patrimônio público. Diferente a destinação patrimonial, sendo indisponível o direito aos honorários em favor da Fazenda Pública, vencido o litigante privado, mesmo sem apresentação de contestação, decorrente da sucumbência, é impositiva a condenação em honorários advocatícios, fixados conforme os critérios objetivos estabelecidos expressamente (artigo 20 e §§ 1º e 3º, CPC)"22.

"Processo Civil - Execução - Embargos - Valor da causa - Alteração ex officio. Se existe uma discrepância relevante entre o valor dado à causa e o seu efetivo conteúdo econômico, de modo a causar gravame ao direito do erário, que é indisponível, cabe ao juiz determinar a correção da disparidade"23.

Logo, não há nenhum óbice a que o Magistrado reconheça de ofício a prescrição de dívida tributária. Ao contrário, ele deve reconhecê-la.

7.2. E se o devedor resolver pagar?

Perguntar-se-á: e se o contribuinte, apesar de tudo - apesar da prescrição -, quiser pagar?

Não há problema. Se depois de dez, quinze, vinte anos, o cidadão realmente resolver pagar ao Estado aquela dívida prescrita, oriunda do tributo, nada impede que ele faça uma espécie de doação. Por essa via, aliás, a boa intenção sempre esteve garantida.

8. Conclusão

Por todo o exposto, e como toda a questão está ligada à exigência de que a Administração Pública lato sensu só pode pautar sua conduta por atos legais e constitucionais, e como o Judiciário somente pode permitir atos legais, temos de concluir que é adequada a via do reconhecimento de ofício da prescrição nas execuções fiscais.


1 Não só nos Estados, mas também da Justiça Federal.

2 Dados obtidos do Distribuidor em 30 de novembro de 2001.

3 SERGIO CARLOS COVELLO, A obrigação natural, São Paulo: Leud, 1996, p. 124.

4 Covello, A obrigação natural, cit., p. 125.

5 Covello, A obrigação natural, cit., p. 125.

6 Covello, A obrigação natural, cit., p. 129.

7 LUIZ ALBERTO DAVID ARAÚJO e VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR, Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 227 e 228.

8 ROMS 10.743-SP, 5.ª T., Rel. Min. Gilson Dipp, j. 18-09-2001, DJ, 15.out.2001, p. 271.

9 REsp 131.494/RS, 1.ª T., Rel. Min. Milton Luiz Pereira, j. 15-02-2001, REPDJ, 15.out.2001, p. 231.

10 REsp 147.928/SC, 2.ª T., Rel. Min. Franciulli Netto, j. 2-8-2001, DJ, 17.set.2001, p. 129.

11 REsp 281.345/RS, 1.ª T., Rel. Min. José Delgado, j. 12-6-2001, DJ, 10.set.2001, p. 276.

12 É verdade que, a partir da Constituição Federal de 1988, não existe mais hierarquia entre lei complementar e lei ordinária. Todavia, à época da edição da LEF, o Sistema Constitucional então vigente comportava essa divisão hierárquica.

13 REsp 67.254/PR, 1.ª T., Rel. Min. Milton Luiz Pereira, j. 27-5-1996, DJ, 09.set.1996, p. 32328.

14 REsp 88.999, 1.ª T., Rel. Min. Demócrito Reinaldo, j. 17-6-1996, DJ, 19.ago.1996, p. 28441.

15 REsp 151.598/DF, 1.ª T., Rel. Min. Garcia Vieira, j. 10-3-1998, DJ, 4.mai.1998, p. 94.

16 REsp 5.375/RS, 1.ª T., Rel. Min. José Delgado, j. 18-6-1996, DJ, 14.out.96, p. 38931.

17 HELY LOPES MEIRELLES, Direito administrativo brasileiro", São Paulo: Malheiros, 21ª Edição, p. 90.

18 LUIZ ALBERTO DAVID ARAÚJO E VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR, Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 235.

19 "Desde há pelo menos vinte anos venho sustentando três coisas básicas com relação à política brasileira. Primeiro, que o Estado representa o item de maior peso...", Benedito Ferri de Barros, Artigos, Jornal da Tarde, São Paulo, 30.nov01, p. 2A.

20 E como a relação jurídica aí é toda de Direito Público, poder-se-ia até afirmar que o próprio dever de pagar tributo seria indisponível. Porém, não é preciso pensar assim para resolver a pendenga.

21 Agravo de Instrumento 24.979.002.185, Rel. Des. Antônio José Miguel Feu Rosa, TJ-ES, j. 30-12-1997.

22 STJ, REsp 147.221/RS, 1ª T., Rel. Min. Milton Luiz Pereira, j. 20-2-2001, DJ, 11.jun.2001, p. 102.

23 STJ, REsp 168.292/GO, 3ª T., Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, j. 10-4-2001, DJ, 28.mai.2001, p. 159.

Retirado de: www.saraivajur.com.br