® BuscaLegis.ccj.ufsc.br



A CRISE DA PREVIDÊNCIA
Benedito Calheiros Bomfim


 
 

Sob a alegação de desequilíbrio nas contas e previsão de déficit insustentável no orçamento da Previdência Social para os próximos anos, com risco de quebra de todo o sistema, o Congresso Nacional submeteu-se à pressão do governo, de grupos econômicos e à exigência do FMI, e aprovou, em 15 de dezembro de 1998, a malsinada Emenda Constitucional nº 20, modificando o sistema de previdência e estabelecendo regras de transição.

Segundo afinal se admitiu, a economia decorrente do aumento da majoração das alíquotas impostas ao pessoal ativo e inativo do setor público representaria menos de três bilhões de reais por ano, quantia inferior à que a União despende, mensalmente, em juros da dívida pública.

Sempre que a economia e as finanças do país entram em crise, em vez de se debitar essa situação à incompetência, aos erros, à má administração, aos desmandos dos governantes, aos pesados encargos do endividamento externo e interno, procura-se imputar ao sistema previdenciário parte da responsabilidade por tal descalabro. Aumentam-se as alíquotas dos descontos, reduz-se a abrangência, retiram-se vantagens e valores dos benefícios, e, decorridos anos, o quadro econômico, financeiro e social do país volta a agravar-se. Este é o ciclo que se repete, até que somente venha a restar a previdência privada (e este parece ser o objetivo oficial), só acessível a estratos sociais privilegiados. É a farsa do agora modernamente chamado custo Brasil.

Na raiz do colapso financeiro da Previdência Social está, sem dúvida, o desvio de imensas somas de dinheiro para o financiamento de atividades estranhas à sua finalidade, algumas de proporção monumental, tais como a construção de Brasília, da Transamazônica, de Itaipu, da Ponte Rio—Niterói.

O débito da União com o Ministério da Previdência era calculado, em abril de 1981, pelo então titular da pasta, ministro Jair Soares, em 100 bilhões de cruzeiros (O Globo, 5-4-81), enquanto a dívida das empresas estatais era orçada, pelo Ministério do Planejamento, à época, entre 120 e 150 bilhões. (Jornal do Brasil, 16-8-81). A inadimplência dos municípios e empresas privadas, com as obrigações previdenciárias, era avaliada, na mesma data, em 200 e 26 bilhões, respectivamente.

em março de 1979, cerca de 70 mil empresas encontravam-se atrasadas com o recolhimento de suas contribuições previdenciárias, passíveis até de responsabilidade penal, por apropriação das cotas de seus empregados.

A deterioração financeira do sistema, que data de decênios, deve-se, igualmente, a fraudes escandalosas, falta de controle e ausência de fiscalização, corrupção, negligência na cobrança de débitos, tráfico de influência, complacência e favoritismo com objetivos eleitorais. Ainda há poucos anos, uma quadrilha de defraudadores no Rio de Janeiro, envolvendo juiz, serventuários, advogados, procuradores, funcionários da Previdência, apropriou-se de alguns bilhões de reais dos cofres desta.

Esse processo de desagregação vem se agravando com a crescente queda do fluxo de caixa do órgão, decorrente do brutal aumento do desemprego. Pois, à medida que o trabalho formal recua e a economia informal avança, diminui na mesma proporção a receita previdenciária. Basta que se tenha em conta que, hoje, no Brasil, os trabalhadores com CTPS assinada não passam de 40%, o que vale por uma radiografia do quadro recessivo em que se debate o país. Já na década de 80, o então ministro Jair Soares, em pronunciamento no Centro de Convenções da Bahia, admitia que a aceleração do desemprego e a rotatividade da mão-de-obra (decorrente do poder de despedida arbitrária conferido aos empresários) exacerbavam a crise da previdência, na medida em que implicam redução de recursos arrecadados. (Jornal do Brasil, 1-10-81).

Embora se reconheça a existência de abusos e privilégios em alguns tipos de proventos de benefícios e aposentadorias, a correção dessas distorções, conquanto justa, por si só não saneará o desequiliíbrio nem as mazelas da Previdência Social. Nem, muito menos, a medida justifica a iniqüidade e ilegalidade do aumento, praticamente generalizados, dos descontos sobre os salários dos servidores ativos e proventos dos inativos.

A aposentadoria, ao contrário do que o governo faz crer, não é favor, concessão, benesse. É, sim, um direito que o segurado conquista ao satisfazer, com suas contribuições, as normas a que aderiu por ocasião de sua filiação do órgão previdenciário. Implementado o requisito, então estabelecido, do recolhimento das cotas e do tempo necessário à obtenção do benefício, o direito a este é adquirido, cabendo à instituição a concessão daquilo a que se obrigou.

Estabelecido um regime jurídico, é inadmissível sua alteração unilateral, com imposição de condições adversas, diferentes das anteriores, já incorporadas, ainda que potencialmente, ao patrimônio do segurado.

As inovações, se desfavoráveis, só podem alcançar, quando muito, aqueles que, à data da modificação, ainda não tinham completado o requisito ou condição para consecução do benefício.

Ao contrário, seria desrespeitar o regime jurídico já constituído, dar o preceito inovador efeito retroativo, atentar contra o direito adquirido.

Como entendeu o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Mandado de Segurança 9.813 e no Recurso Extraordinário 73.189, em acórdão de que foi relator o ministro Luiz Gallotti, ‘‘expectativa de direito é algo que antecede a sua aquisição, não pode ser posterior a esta. Uma coisa é a aquisição do direito, outra, diversa, é o seu uso no exercício. E convém ao interesse público que não o sejam, porque, assim, quando pioradas pela lei as condições de aposentadoria, se permitirá que aqueles eventualmente atingidos por ela, mas já então com os requisitos para se aposentar de acordo com a lei anterior, em vez de o fazerem imediatamente, em massa, como costuma ocorrer, com graves ônus para os cofres públicos, continuem trabalhando, sem que o Tesouro tenha de pagar, em cada caso, a dois: ao novo servidor em atividade e ao inativo.’’

A nosso ver, no rigor jurídico, as alterações introduzidas em qualquer instituição, quando desfavoráveis a seus filiados, só deveriam alcançar aqueles que a ela se associassem posteriormente às modificações. Pois, ao ingressarem na entidade, já o fizeram sob um regime jurídico diverso, que lhes garantia um conjunto de direitos e vantagens inalteráveis unilateralmente.
 
 

Benedito Calheiros Bomfim
Ex-presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros
 


Retirado do site: www.neofito.com.br