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SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO - EVOLUÇÃO E CARACTERÍSTICAS ATUAIS 

GERALDO ATALIBA  Professor Titular das Faculdades de Direito da USP e da PUC  PARTE I 

Os Senhores estão com um espelho na mão, então acompanhem o espelho de um desencadear absolutamente lógico de idéias a partir da Constituição, para demonstrar que a Constituição cria um sistema. Vou pedir para fazerem cada um um quadrinho, colocando as diversas Constituições que o Brasil já teve: 1824; 1891; Reforma de 1926; Constituição de 1934; Constituição de 1946; a Carta de 1967; a Emenda nº 01, de 1969; e a Constituição de 1988. E, com estas faixas, nós já vamos ver como preencher isto daqui. O tema hoje é "Sistema Constitucional Tributário". Uma noção de sistema, rapidamente. Sei que vamos voltar muitas vezes, isto já é uma volta, porque quem é bacharel em Direito sabe que o Direito é um sistema. Significa isto dizer que é um conjunto ordenado, harmônico e organizado de princípios e regras ou -- como quer Paulo Barros de Carvalho -- de regras. Algumas, simples regras; outras, regras -- princípios que têm em vista regular a vida social. Portanto, o Direito forma sistema. O Direito se apresenta como sistema. O sistema, por definição, é organizado; o sistema é harmônico; o sistema, por definição, é uno. A idéia de sistema se aplica a qualquer objeto do conhecimento, muito especialmente ao Direito.  APARÊNCIA CAÓTICA DO DIREITO POSITIVO  A dificuldade que o Direito oferece é que só o jurista percebe que o Direito é sistema. Os leigos, os que não conhecem a ciência do Direito não sabem que o Direito é sistema. E não sabem porque a aparência do Direito é caótica. O leigo pensa que aquilo é um amontoado de regras jurídicas, que os legisladores diariamente vão produzindo aos pedaços e vão amontoando ou jogando, como que num balaio, onde vão se amontoando todas as regras. E o leigo também pensa que os interessados vão ao balaio, catam a regrinha, o preceito, a norminha que lhes interessa e usam, exibem e esgrimem esta regrinha que lhe interessa para satisfação de um determinado problema. 

FUNÇÃO DOS PRINCÍPIOS  O jurista, embora reconheça que a aparência é de balbúrdia, é de amontoado caótico, põe ordem nisto. E põe ordem nisto em função dos princípios que foram consagrados pelo próprio sistema jurídico, dentre eles os princípios que estão constantes na própria Constituição. A primeira conseqüência do reconhecimento de que o Direito é um sistema é a de que não há norma jurídica avulsa, sozinha, isolada. Nenhum jurista pode pretender trabalhar com um preceito isolado, avulso, como se ele existisse em si mesmo. Seria tão absurdo fazer isto, quanto absurdo seria alguém supor que o olho humano é algo de isolado do restante do corpo humano, como sistema. O contínuo, o varredor, o limpador do prédio da faculdade de Medicina todo dia vai a uma sala onde está escrito "Departamento de Oftalmologia". Numa parede só há livros que tratam dos olhos, noutra parede há gráficos, fotografias, esquemas do olho humano; no meio da sala há um globo ocular enorme, de plástico, com todos os ingredientes do olho humano. E aquele varredor humilde e destituído de cultura, de conhecimento científico, sabe que -- embora naquele lugar se concentram os médicos, professores, estudantes para estudar o olho humano -- não existe olho humano sozinho; ele sabe que aquilo é parte de um sistema maior que é o corpo humano. Assim, o jurista, diante de um preceito qualquer, jurídico, de qualquer norma, pode até tratá-la, mas jamais se esquece de que está tratando de uma parte de um todo maior, de um todo global que é o sistema. Sistema que, por definição, tem as características de ser uno. É um só, incindível, não dá para partir, quebrar. É harmônico e, portanto, todas as suas partes se conjugam entre si e devem ser compreendidas dentro dessa harmonia. E o critério para harmonizar as partes está nos princípios que são, por assim dizer, os alicerces do sistema. Vamos estudar durante este curso o Sistema Constitucional Tributário. Portanto, vamos fazer como os médicos. Fingem que o olho pode ser e existe sozinho. Fingem, só para uma aproximação metodológica, didática, mas sabem e têm consciência sempre de que aquilo faz parte de um todo maior. Nós, então, de todo o sistema jurídico, vamos isolar o Sistema Constitucional, mas sem esquecer que ele faz parte de um todo maior. Dentro do imenso contingente de princípios e regras que formam o Sistema Constitucional, vamos ficar com a parte Tributária, ou seja, dos princípios e regras constitucionais que influem diretamente na compreensão da atividade tributária do Estado e das relações tributárias que emergem do exercício da atividade tributária do Estado. Então, embora metodologicamente estejamos fazendo um corte, não deixamos nenhum instante de ter consciência de que isto que isolamos faz parte de um todo incindível na sua inteireza. Para compreender o Sistema Constitucional Tributário brasileiro atual -- porque é isto que nós vamos estudar -- temos que penetrar nos seus princípios, porque eles é que dão a definição, ou seja, a feição, os contornos e o conteúdo desse próprio sistema. Antes de chegarmos a isto -- e muitas das coisas que aqui vão sendo ditas vão ser desdobradas, revisadas, reiteradas e sublinhadas ao longo das próximas aulas -- lembramos que é um instrumental tão normal, que é usado pela nossa literatura, usado pela nossa jurisprudência com grande utilidade para compreensão do material legislativo, o recurso ao Direito, a evolução do nosso Direito, como foi o nosso Direito e como ele é. No trato de determinados temas fica mais clara, às vezes, a compreensão de um princípio ou de uma norma, se considerarmos que feição teve esse princípio ou essa norma, no passado, dentro do nosso Direito. Hoje, não vamos fazer isto. Vamos tomar o sistema globalmente e fazer algumas observações para ver se elas podem ser úteis para compreendermos na sua globalidade este sistema.  EVOLUÇÃO DO SISTEMA  Então, vamos nos lembrar de que, em 1824, a primeira Constituição -- a Constituição do Império -- continha dois princípios em matéria tributária ou que exerciam direta influência na formação do regime tributário: o princípio da igualdade e o princípio da legalidade. Depois vamos nos aprofundar no exame do conteúdo desses princípios. Vamos só assinalar isto: na Constituição do Império, em matéria tributária, havia dois grandes princípios, igualdade e legalidade. Na Constituição de 1891, com a adoção do esquema federal do Estado e uma mais precisa separação de Poderes, foi sublinhada a legalidade, acentuada a igualdade e ainda se estabeleceram alguns princípios tendentes a assegurar, de um lado, a autonomia dos Estados que integravam a Federação e, de outro lado, alguns princípios que tendiam a evitar conflitos legislativos entre Estados e União. Assim, a Constituição de 1891 tratava da matéria tributária, dando, portanto, ao legislador ordinário uma grande liberdade para preencher os claros e vazios que deixava. Em 1926, sobrevém uma emenda constitucional importantíssima, sobretudo em matéria tributária, que repete os princípios existentes e acrescenta uma série de regras para dar garantia aos Municípios em matéria de autonomia tributária. Os grandes conflitos que se deram entre 1891 e 1926 levaram o Congresso a acrescentar uma série de princípios e regras no texto constitucional para assegurar a autonomia dos Municípios. E, mais ainda, acrescentou-se uma ou outra regra para melhor precisar os critérios evitadores de conflitos entre União e Estados. Em 1934, sobrevém uma Assembléia Nacional Constituinte, que reorganiza o País inteiro e repete tudo que estava já no texto com a Reforma de 1926, e o constituinte de 1934 acrescenta uma série de regras, à luz da experiência, de aplicação da Emenda de 1926 e dá resposta a problemas que existiam até antes disso e que não tiveram adequada resposta, nem na jurisprudência e nem na legislação. Então, no juízo do constituinte de 1934, acrescentaram-se mais regras e princípios ao próprio texto magno. Em 1937, houve um golpe de estado, uma ditadura. Não vou perder tempo com isto. Já vou para a Constituição democrática de 1946. Em 1946, reproduz-se essencialmente o esquema de 1934. Já os princípios constitucionais -- ou seja, que dizem respeito às relações entre o Estado, via legislador, e os contribuintes -- são aumentados. Estes preceitos são materialmente aumentados, aperfeiçoa-se o mecanismo de evitação de conflitos entre a União e os Estados e aperfeiçoam-se mais os instrumentos de autonomia tributária dos Municípios, e começa uma preocupação social-democrática que leva o legislador constituinte a introduzir alguns princípios e normas que dizem respeito à condução da legislação tributária tendo em vista o alcance de finalidades não tributárias, mas formulando princípios e regras de cunho constitucional tributário. Em 1967, o Congresso Nacional -- a toque de caixa, com prazo marcado, militar na porta, com metralhadora e outras coisas, porque vivíamos um clima totalitário -- aprova uma "chamada" Constituição que, na verdade, é uma carta constitucional porque não veio da legitimidade de um poder constituinte, mas veio da combinação das forças políticas daquele instante. Nesta, de 1967, aproveita-se uma série de regras que foram introduzidas em 1965 -- depois estudaremos melhor a chamada "Reforma Tributária" de 1965 -- e reproduz-se a arrumação que havia sido feita em 1946 e que era mais ou menos uma continuidade da arrumação anterior, que estava na nossa tradição. Ainda se acrescenta uma série de outras regras. Basta os Senhores sublinharem no seu texto constitucional o que é princípio ou regra que influi na legislação tributária, para verem a quantidade de princípios e regras que estão na Constituição sobre esta matéria. Em 1969, sobrevém a Emenda Constitucional nº 01, que foi praticamente o diploma constitucional que regeu nossa vida até 1988. O que se fez? Manteve-se tudo o que estava no texto de 1967 e acrescentou-se mais umas tantas regrinhas, tendo em vista as conveniências ou necessidade de enfrentar certos problemas que o legislador -- no caso, foram três militares -- "constituinte" de 1969 resolveu. Esta Emenda nº 01, de 1969, por sua vez, recebeu sobre ela mesma mais vinte e seis emendas, das quais quatro com matéria tributária, todas elas acrescentando princípios e normas. Não houve nenhum caso de supressão de princípios ou normas; sempre se acrescentou mais. Sobrevém a Constituição de 1988, sob a qual estamos. Que faz o constituinte de 1988? Mudando o tom, a tônica, o modo ou o jeito, ele mantém, embora não a direção, mas mantém o conteúdo de tudo o que já existia em 1969 e ainda acrescenta uma quantidade outra de preceitos nesta matéria. Que conclusão se pode tirar deste rápido exame formal da evolução do nosso sistema? Quero lembrar uma lição do Prof. Tércio Sampaio Ferraz que é -- a meu ver, e tenho certeza de que sou acompanhado pelos professores aqui presentes -- uma das maiores presenças do Direito no Brasil, um dos homens dedicados ao estudo do Direito. Tércio Sampaio Ferraz diz que o sistema se faz pelos ingredientes e, pelo conteúdo -- conteúdos que estão aí -- mas também pelo modo de arranjar os conteúdos. O modo pelo qual o constituinte arruma as coisas tem influência na determinação do teor, da natureza e da direção do sistema, diz ele. Vamos fazer uma comparação. Se qualquer um de nós entrasse em uma sala numa hora em que ela esteja arrumada de uma outra maneira, ou até desarrumada - vamos supor, com todas as poltronas amontoadas num canto e a mesa encostada noutro - em um segundo, à pergunta "o que é esta sala?" poder-se-á responder: "isto é um depósito de móveis". Dali a pouco, na mesma sala, com os mesmos elementos, mas arrumada de outra maneira, qualquer pessoa entra e se pergunta: "o que é isto?". "Isto é uma sala de aula." Como, se os elementos são os mesmos? É, mas a arrumação foi diferente. Então, o fato de princípios e regras serem iguais não importa necessariamente na igualdade do sistema. O modo de arrumar os princípios e as regras influi na natureza do sistema e determina, portanto, a dimensão de determinados princípios, a altura e a colocação de determinadas regras e as suas implicações normativas.  REGISTRO IMPORTANTE  Qual a conclusão que tiro desta consideração que faço da evolução do sistema constitucional tributário brasileiro? Toda vez que o constituinte teve a oportunidade de se pronunciar -- seja o constituinte democrático, como foi o caso do reformador de 1926; seja o caso do constituinte de 1934; seja o constituinte de 1946; seja o constituinte de 1988 -- toda vez que o constituinte plenamente democrático ou autoritário -- que são os outros casos, porque esta aqui foi uma Constituição outorgada pelo Imperador, não tinha nada de democrática na sua origem; a de 1891 tinha dois marechais brigando em torno do poder e os Senhores sabem a história da Constituição de 1891, não se pode chamá-la de democrática de origem - mas, seja qual for o constituinte, quando ele vai se pronunciar, no Brasil, (isto é um reflexo da nossa cultura, não adianta querer brigar com isto) não simplifica coisa alguma, não suprime nada. Ele avalia o problema surgido nos últimos tempos e diz: "Vou fazer uma norma para resolver este problema". E, bem ou mal, faz. Ou diz: "Vou estabelecer um novo princípio para dar solução a tal problema". E foi esta atitude que sempre viemos tomando. Se os Senhores virem muitos dos projetos que hoje estamos discutindo para uma reforma constitucional, verão que pouca gente está propondo suprimir qualquer coisa. Todo mundo está propondo acrescentar mais uma vírgula e mais uma palavra no artigo tal, acrescentar mais dois parágrafos no artigo tal. Quer-se resolver tudo na norma. Isto é fenômeno da nossa cultura. Vamos só registrar, como juristas, que o sistema sofreu esta evolução. Qual é a conclusão que disto se pode tirar?  DIREITO COMPARADO  Antes, vamos fazer uma pequena meditação de Direito Comparado: Alemanha, Itália, Estados Unidos, Espanha, França. Tomei os países cuja cultura jurídica, especialmente a publicística e muito especialmente a tributária, influi no nosso pensamento, no nosso legislador, no nosso doutrinador e influi na nossa jurisprudência, direta ou indiretamente. Tomamos os sistemas constitucionais destes países para fazer uma meditação em torno disso. Isto mostra a utilidade do Direito Comparado. Já vamos fazer referência, mas antes vamos examinar o conteúdo. Constituição da Alemanha: tem o princípio da igualdade, o princípio da legalidade, o princípio de que a tributação do comércio exterior pertence exclusivamente à União e mais poucas regras de natureza absolutamente secundária em matéria tributária. Temos os arts. 23 e 53 da Constituição italiana. O princípio que trata da proporcionalidade na distribuição dos encargos públicos (art. 53) e o princípio da legalidade (art. 23): o Estado não pode exigir nada de ninguém, inclusive tributos, a não ser por meio de lei. A Constituição dos Estados Unidos tem um famoso artigo que diz: "A tributação do comércio exterior pertence à União". Não tem, a rigor, um princípio de legalidade, mas tem um princípio que diz: "Congresso, faça as leis Tributárias, crie tributos para o bem estar da Nação". Quer dizer, o Congresso faz o que quiser, o que achar bom em matéria tributária. A Constituição espanhola vigente, essa sim, tem alguns princípios: o princípio da legalidade, o princípio da igualdade, o princípio de irretroatividade e alguns princípios e regras dando um mínimo de critérios para assegurar alguma autonomia tributária às Províncias, e um ou outro princípio ou regra para evitar conflitos mais evidentes entre o Estado espanhol e as suas Províncias. A Constituição da França tem o princípio da legalidade e o princípio da igualdade formulados exatamente como o foram já na primeira Constituição da Revolução Francesa: cada um será chamado a contribuir para o bem estar da Nação de acordo com suas "faculdades". O que, aliás, depois foi repetido pela nossa Constituição do Império e, é evidente, entendida esta palavra no seu sentido econômico: faculdades econômicas. E agora podemos considerar a Constituição do Brasil atual. Temos que colocar o que há de princípio e norma em matéria constitucional tributária na Constituição brasileira. Só sobre ICM, o Prof. Cléber Jardino -- que é um jurista que todos respeitam -- no sistema passado encontrou dezesseis princípios explícitos, dezessete princípios implícitos, e mais umas vinte e três ou vinte e quatro normas, simples normas. Há um artigo dele, publicado na Revista de Direito Tributário, só sobre esse imposto. Vamos meditar sobre isto que acabamos de ver, esta consideração geral sobre o Sistema Constitucional tributário brasileiro, usando uma imagem que uso muito com meus alunos. Muitas vezes nós sabemos uma coisa, estamos diante desta coisa, contemplamos este objeto, mas não percebemos adequadamente suas características por falta de oportunidade, de ensejo, ou adequada provocação. Imaginem que qualquer um de nós vá ao interior da China e encontre um menino de dez ou quinze anos de idade, inteligente. Ele mora no interior de um país que tem um bilhão e trezentos milhões de habitantes, país que é maior que o Brasil e que tem uma cultura muito fechada, com cinco mil anos; e pergunta-lhe: "Menino, quais são as características do chinês?" E o menino vai dizer: "Ora, chinês tem olho, nariz, boca, braço, perna..." Insiste-se: "Não! Quero as características, aquilo que é peculiar ao chinês". E o menino, vivo, inteligente, até preparado, não saberá responder quais são as peculiaridades do chinês. Ele é chinês, vive dentro da China e não saberá responder. Então, damos uma rápida volta com este menino pela Europa e pela África -- não precisa mais do que isso -- e voltamos a perguntar quais são as características do Chinês. Ele dirá: "Ah, chinês tem pele amarela, cabelo liso bem preto, olho puxado". Só então ele dá as características do chinês. Mas ele já sabia. Vivia no meio dos chineses, mas nunca havia visto; olhava e não via, porque não comparou. Não teve oportunidade de comparar. O Direito Comparado nos permite esta grande primeira utilidade: conhecer melhor o nosso Direito. Vivemos dentro do nosso Direito, mas só vamos conhecê-lo melhor se compararmos com o de outros países. A Constituição da Alemanha tem pouco mais que dez preceitos que interessam para reger a matéria tributária. A Itália tem dois; Estados Unidos tem dois; a Espanha tem doze; a França tem dois; o Brasil tem, no mínimo, trezentos ou quatrocentos. Aliomar Baleeiro chegou a arrolar, ainda em 1946, mais de trezentos e cinqüenta, e ele não era rigoroso na decomposição das normas, nem se dedicou a isto. Fazendo esta comparação, ficamos surpresos de ver como o Brasil é diferente de todos os outros países do mundo. E esta é uma característica da nossa Constituição, característica que vem se acentuando ao longo dos tempos.  COMPARAÇÃO DIDÁTICA  Quais são as conclusões práticas que a este respeito podemos tirar? Primeira: quando encontrarmos a invocação de um autor estrangeiro - italiano, alemão, que é muito comum, espanhol, que agora está ficando comum - temos que parar e pensar: "Será que ele está escrevendo a respeito de um Direito produzido num clima igual ao nosso? Não, o clima é outro" Então, é com muito cuidado que se vai poder citar autor estrangeiro, ou lei, ou jurisprudência, e vou já dizer por quê. Vou dar um outro exemplo didático. Vamos supor que isto aqui seja um quartel e não o prédio do Tribunal. Sou o capitão e os Senhores são os soldados. Entra aqui um general e diz assim: "Capitão Geraldo, o Senhor vai preparar esta tropa para o desfile do dia 7 de setembro. Quero um belo desfile; que esta tropa me dê orgulho. O Senhor, por favor, faça de hoje a 7 de setembro duas horas de ginástica por dia". Vai embora, entra na sala ao lado, onde há um outro capitão igualzinho a mim e outros soldados iguaizinhos aos Senhores, e diz: "Capitão, quero que o Senhor prepare esta tropa para o desfile de 7 de setembro. Quero um belíssimo desfile. O Senhor fará duas horas de ginástica por dia; pela manhã, todo mundo vai usar uniforme de campanha; à tarde, uniforme de ginástica. Quero que faça ordem unida durante uma hora e meia por dia. Quero que faça corrida no campo, duas horas por dia. Quero prática de esportes, três horas por dia. Em 7 de setembro, quero um belo desfile! Quero me orgulhar do Senhor." E vai embora. O mesmo general -- portanto, a mesma fonte do Direito; fonte, dentro do exército, máxima -- deu a dois capitães a mesma finalidade: preparar a tropa para o dia 7 de setembro. Para um capitão ele diz: "Quero duas horas de ginástica por dia e, quanto ao resto, faça o que achar que é bom para chegar a um bom desfile". Para o outro capitão ele já deu um programa inteiro que, se formos somar, dá nove horas por dia. Logo, o primeiro capitão tem ampla liberdade para dizer: "Pessoal, hoje vamos fazer esporte, amanhã vamos nadar, depois vamos fazer isto, isso e aquilo outro", tudo o que for bom para preparar a tropa. E o segundo capitão não tem liberdade alguma. A máxima liberdade dele é fazer ginástica antes do esporte, ou esporte depois de ginástica. Ele não tem liberdade de dispor de mais hora alguma.  LIBERDADE DO LEGISLADOR  O fato de estes sistemas jurídicos comparados estabelecerem a mesma finalidade para o mesmo destinatário -- que é o legislador -- não quer dizer que o legislador receba a mesma liberdade da Constituição. No caso destes países todos, o legislador recebe uma finalidade, alguns parâmetros, e desenvolve sua tarefa como lhe parecer melhor. No Brasil, o legislador recebe a finalidade e todos os caminhos que levam a ela. A Constituição brasileira diz quais são os fatos que podem ficar na materialidade da hipótese de incidência de todos os tributos. A Constituição diz em que momentos estes fatos poderão ser exigíveis. A Constituição diz como nascerão as obrigações tributárias, quem serão seus sujeitos passivos. E isto é imodificável. A Constituição estabelece qual é o chamado aspecto temporal mínimo, quer dizer, só dali para adiante é que pode nascer a obrigação tributária. Enfim, a Constituição liqüida este assunto e deixa para o legislador ordinário uma função quase só regulamentar. Alguém dirá: "Mas há a lei complementar!". Acontece que a lei complementar deve obedecer a tudo. A liberdade do legislador complementar é praticamente nula em tudo que é imaginável. Em havendo tempo, vamos ver que só em uma ou outra coisinha o legislador complementar vai ter liberdade. No resto, ele vai dizer aquilo que o Prof. Saenz de Bujanda -- que foi o mestre de todos os professores de Direito Tributário atuais da Espanha -- ao examinar uma situação bem melhor do que esta, disse: "Esta lei" -- que seria o Código Tributário Nacional -- "é uma lei cheia de preceitos didáticos". Ou seja, não é norma, não manda, não determina por si mesma. Não cria, não extingue e não modifica direitos. Portanto, não é propriamente norma. É preceito didático. Tudo o que parece que ela está mandando está inferindo da própria Constituição, ou seja, está explicitando o que na Constituição já está implícito. Basta ver o artigo 146 da Constituição: "norma geral de Direito Tributário estabelecerá..." Tudo que está dito que estabelecerá a norma geral já está estabelecido na Constituição. Qual é a tarefa deste capitão que deve preparar este desfile? É cumprir o que está na Constituição: o programa. A Constituição tem um programa tributário praticamente completo, quase nada fica ao legislador complementar, quase nada fica ao legislador ordinário; quando muito, estabelecer alíquota e base de cálculo, e sem maiores liberdades porque, conforme a base que se estabeleça, já está invadindo a competência de um outro legislador.  SISTEMA RÍGIDO  A consideração conjunta do Direito Comparado e da evolução do nosso Direito -- que mostra uma quantidade arrasadora, uma quantidade abrumante de princípios e regras constitucionais em matéria tributária -- mostra que o nosso sistema constitucional tributário -- e aqui vamos dar a resposta do menino chinês, resposta que só podemos dar depois de comparar - é rígido, porque a Constituição é rígida, ou seja, não pode ser alterada por lei. Os esquemas, os princípios, as regras estão postos. São aqueles. Só reforma constitucional poderia mudá-los. A nossa Constituição é extremamente minuciosa. Há um tempo se escrevia -- e isto foi feito por Amilcar Falcão e por Rubens Gomes de Souza -- "a Constituição brasileira, em matéria tributária, é minuciosa". Falavam da Constituição de 1946. De 1946 para cá, veio a tal Emenda nº 18, que acrescentou coisas; veio a tal Carta de 1967; a Emenda nº 01, de 1969; as emendas à Emenda nº 01, de 1969; e o texto de 1988. Quer dizer, não sobrou praticamente mais nada que não esteja na própria Constituição. Enquanto estes grandes mestres diziam, qualificando a Constituição, "ela é minuciosa", temos que dizer: "ela é extremamente minuciosa, ela é rígida e minuciosa, em matéria tributária".  REDUZIDA LIBERDADE DO LEGISLADOR BRASILEIRO  Qual é a conseqüência prática disto? O legislador não tem liberdade ou, no mínimo, o nosso legislador não tem a liberdade que têm os legisladores dos outros países, até porque vivemos num esquema federal também rígido e fechado. A Alemanha adota o princípio federal, mas lá pode haver superposição de legislação tributária. Até alguns anos atrás, praticamente, só quem legislava em matéria tributária, na Alemanha, era o Congresso Nacional. Quer dizer, os Estados o que faziam era receber a legislação federal. E nos Estados Unidos? Embora a União e os Estados façam suas leis tributárias à vontade, não há limites para eles, a não ser aqueles poucos que estão na própria Constituição: o comércio exterior só é tributado pela União; há regra de imunidade do comércio interior. Fora desses dois obstáculos, o legislador ordinário faz o que quer nos Estados Unidos, inclusive há superposição de tributos. Sabem os Senhores que em muitos Estados há imposto de renda. Então, o cidadão paga imposto de renda para a União e imposto de renda para o Estado. E, assim, há uma série de outras situações de superposição tributária. Só no Brasil há esta rigidez, com a separação de esferas exclusivas de competência tributária. De todos os princípios constitucionais, alguns são princípios constitucionais gerais tão importantes que são aplicados em todos os setores, em todos os ramos do Direito. E alguns outros princípios são específicos da matéria tributária, são dirigidos ao legislador tributário.  REPÚBLICA  O art. 1º da Constituição consagra a República, consagra o Estado de Direito e consagra a Federação. Os três são princípios de tal tamanho que influem em toda a legislação. Não dá para estudar Direito Administrativo, sem levar em consideração República, Estado de Direito e Federação. Esses três princípios esbarram em todos os princípios chamados "Princípios do Direito Administrativo", e eles tolhem ou orientam toda a legislação administrativa federal, estadual ou municipal. República, Estado de Direito e Federação: não há ramo do Direito que não sofra a influência desses princípios. República implica igualdade. República é o regime político em que os cidadãos mandam. Os cidadãos são os donos da coisa pública, são donos, em igualdade de condições; ninguém é mais cidadão do que outro. A igualdade é a base pressuposta da República. Isto vem dito, depois vem repetido -- nem precisava -- no art. 5.º, caput, da Constituição e em seu inciso I. Quer dizer, a igualdade domina toda a Constituição: dimensão política da igualdade, dimensão individual da igualdade. É evidente que vai ter reflexos no campo do Direito Tributário. Aliás, é o mais importante de todos os princípios constitucionais e, por isso mesmo, é o mais importante de todos os princípios tributários.  ESTADO DE DIREITO E JUDICIÁRIO  Quando se fala em Estado de Direito, está-se supondo tripartição do Poder, que é o que está no art. 2º da Constituição. Não há Estado de Direito sem Poder Judiciário objetiva e subjetivamente dotado de todas as condições de absoluta independência e com a atribuição de controlar o Legislativo e o Executivo, além de autocontrolar-se. É este o ingrediente do Estado de Direito. Sem isto, não há Estado de Direito; pode haver retórica, mas não haverá Estado de Direito. O Estado de Direito, a concepção do Estado de Direito domina tudo e domina também, portanto, o Direito Tributário. E, operacionalmente falando, a Federação -- que também está no art. 1º da Constituição -- entra no campo tributário, no Brasil, exercendo uma influência arrasadora, decisiva, porque a lei tributária será ou federal, ou estadual ou municipal. Cada legislador recebe a sua competência do próprio texto da Constituição clara e rigidamente demarcada. Logo não há logicamente -- no plano puramente jurídico -- possibilidade de conflitos, porque cada qual tem um campo já demarcado. Há a possibilidade fática de conflitos. Quer dizer, os legisladores fazem leis que extrapassam a sua competência e invadem, portanto, competência alheia. Ao invadir competência alheia, estão praticando inconstitucionalidade, e o único jeito de se coarctar essa inconstitucionalidade é a invocação do Judiciário para aplicar as repercussões do princípio federal. E nem é preciso -- como muitas vezes se é obrigado a fazer isso na Alemanha ou nos Estados Unidos -- deduzir do princípio federal conseqüências. Não! O próprio capítulo do Sistema Tributário, na Constituição, já se encarrega de deduzir, na medida em que o constituinte acha correto, todas as conseqüências do princípio federal sobre a matéria tributária.  IGUALDADE E TRIBUTAÇÃO  Então, destas considerações, ficou claríssimo que o princípio mais importante que existe é o da igualdade. Sem igualdade, não há República. Portanto, não há este Estado organizado pela nossa Constituição. E, por isso mesmo, o princípio da igualdade é o mais importante, em todos os ramos do Direito, porque ele domina toda a Constituição. Francisco Campos diz, e Pontes de Miranda repete: "A igualdade se impõe à própria Constituição". Quer dizer, ela abriga a igualdade de tal maneira que faz com que a igualdade seja o critério de interpretação e conhecimento do próprio diploma constitucional. Os franceses se preocuparam tanto com isto; na sua revolução, puseram lá: "igualité, fraternité e liberté". Liberdade é um bem inestimável do homem. Lutava-se pela liberdade, contra a tirania. Lutava-se pela fraternidade, este valor solidário que nos aproxima de todos e nos faz trabalhar em comum para construir uma comunidade. E o outro grande valor é a igualdade. Quer dizer, repudiava-se "l"ancien régime", naquilo que ele tinha de desigualdades. Não se falou em legalidade. Mas, no instante em que aquele ideário se implanta e se vai redigir a declaração de direitos e se vai estruturar o país constitucionalmente, surge o problema: "Como se garante a igualdade?". "Pelo princípio da legalidade". Sendo a lei uma pauta objetiva abstrata e genérica -- abstrata porque não está cuidando de caso concreto algum, (nem pode), e genérica, ou seja, geral, tem que valer para todos - está garantida a igualdade, porque, no regime democrático, quem vai fazer a lei é a maioria. É lógico! É a maioria que governa, a maioria é que tem o poder. Mas a maioria não pode fazer uma lei para si e outra para a minoria; ela é obrigada a fazer uma lei geral e abstrata, e essa lei vai se aplicar aos amigos e aos inimigos, vai se aplicar aos correligionários e aos adversários. A lei é igual para todos.  LEGALIDADE É INSTRUMENTO DA IGUALDADE  Esta garantia material da igualdade só se alcança pela legalidade. Daí a consagração, em todos os esquemas constitucionais, do princípio da legalidade. É muito importante lembrar disso, porque, em matéria tributária, hoje, no Brasil, as maiorias que têm governado ao longo dos tempos -- vamos dizer, nos últimos cem anos -- têm feito as leis a seu favor, têm violado a igualdade, desacatado as exigências do princípio da igualdade e, por falta de maior preparo, as partes prejudicadas com isto não têm sequer sabido disso. Sequer tínhamos instrumental processual -- agora temos -- para que as vítimas disso promovessem a igualdade e, com isto, defendessem os seus direitos. E nem havia uma boa compreensão em torno disso. Há o caso da isenção do Imposto sobre Operações Financeiras, sobre operações de câmbio. É uma isenção criada por uma lei, de uns quatro anos atrás, extremamente arbitrária, incompatível com a igualdade, feita por uma maioria de interessados, dando isenção de um imposto pesado para um grupo e deixando uma série de pessoas fora dessa isenção. E só o instrumental jurídico -- que leva em consideração as exigências dos princípios, muito especialmente o da igualdade - que permitiu que este Tribunal chegasse a dizer: "Não. Ou esta lei é aplicável a todos, ou não é aplicável a ninguém". O que não pode é o Judiciário engolir uma lei que desiguala arbitrariamente, sem nenhum critério objetivo, sem nenhuma razão objetiva, dando um privilégio, portanto, para alguns e violando aquilo que é básico em todo o sistema constitucional. Não foram todos os Tribunais Federais do País que decidiram assim, e esta questão ainda não foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, mas a expectativa é de que o Supremo Tribunal Federal termine por confirmar a jurisprudência predominante deste Tribunal, exatamente em consideração a este valor: a igualdade. A legalidade é um grande valor, mas é um valor instrumental. Ela é o meio de assegurar a igualdade. A legalidade não vale só como um valor em si, embora seja também um valor em si. Mas vale porque é o modo de se garantir o tratamento igual e, portanto, realizar-se na plenitude a República. Mais ou menos tudo que se pode dizer da Federação e, portanto, da autonomia recíproca da União e dos Estados -- quase tudo no plano da interpretação -- pode ser dito com relação aos Municípios e à autonomia municipal (embora o Município não integre a federação). Há, portanto, a legislação tributária municipal e a compreensão da existência - isto é interessante - dentro do sistema constitucional tributário, de um sistema federal, de um sistema estadual e de um sistema municipal como padrão constitucional. Na realidade, há cinco mil sistemas constitucionais tributários municipais, vinte e seis sistemas estaduais e um sistema federal, mas o mais importante para nós é compreender que englobando tudo isto -- e Kelsen, na explicação da teoria das três ordens jurídicas que coalescem na federação, mostra -- há um sistema nacional que transcende e compreende a todos. Está encerrada então a primeira parte, com esta colocação geral. Depois podemos tirar, na segunda parte, conseqüências específicas.  PARTE II ESTRITA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA  Qual é a primeira e maior conseqüência das exigências do princípio da igualdade em matéria tributária? O Estado é obrigado a tratar igualmente a todos. O único modo pelo qual o Estado pode nos obrigar é fazendo lei. Art. 5º da Constituição, inciso II: "ninguém é obrigado a fazer ou não fazer, senão em virtude de lei". Que quer dizer isto? Que o Executivo não nos obriga; decreto não nos obriga; regulamento, portaria ou ordem de serviço não obriga cidadão, obriga o funcionário, o subordinado do Executivo. Juiz e cidadão não têm nada a ver com estas ordens do Executivo. O Juiz aplica a lei, e o cidadão só é obrigado pela lei. E a lei é um instrumento da igualdade. O Estado é obrigado a nos tratar igualmente. Se ele for chamar pessoas para prestação de serviço militar, a Constituição já diz, chamará os homens acima de uma certa idade, com condições físicas; as mulheres, para prestar o chamado serviço civil, mas deve tratar a todos igualmente, na razão das suas desigualdades. Se o Estado nos quiser desapropriar um bem, ele é obrigado a pagar indenização. Se o Estado quiser que os cidadãos façam algo, deve manifestar sua vontade (de que os cidadãos o façam) por lei. E a lei deve ter um conteúdo tal que respeite as exigências da igualdade.  IGUALDADE TRIBUTÁRIA  Assim, também, quando o Estado quer contribuições financeiras do cidadão, ele é obrigado a fazer uma lei, e uma lei que seja geral e igual para todos. Qual o critério para se determinar a igualdade entre as pessoas para se exigir contribuições financeiras? Há duzentos anos que vem sendo elaborada e aperfeiçoada esta teoria, no mundo ocidental, que está muito clara na nossa Constituição: o Estado, em matéria tributária, é obrigado a tratar igualmente os cidadãos. Quer dizer, exigir de todos igualmente. Conforme o caso, a própria Constituição coloca o critério de igualdade. Sem necessidade, porque bastava afirmar a igualdade -- como está afirmado na Alemanha, na Espanha, na Itália, na França, nos Estados Unidos -- sem que a Constituição precisasse ir à minúcia, ao pormenor de dizer quais são os requisitos técnicos que o legislador deve observar ao fazê-lo. A postura do constituinte brasileiro foi diferente, minuciosa, extensa e rígida, pela preocupação de marcar claramente campos materiais de competência tributária, a fim de evitar conflitos de leis entre as pessoas tributárias.  CLASSIFICAÇÃO DOS TRIBUTOS  A primeira implicação do princípio da igualdade, em matéria tributária, está na classificação dos tributos, fixada no art. 145 da Constituição. É o primeiro artigo da Constituição que cuida da parte tributária especificamente. Começa classificando os tributos. Diz a cabeça do art. 145, em outras palavras, "União, Estados e Municípios" -- (que são as pessoas políticas, as que têm legislador) -- "podem exigir: I- impostos; II- taxas; e, III"- a Constituição menciona "contribuição de melhoria", mas estamos autorizados, hermeneuticamente, a dizer também o que está no art. 149, as outras contribuições, obedecendo a igualdade. O parágrafo 1º do art. 145 coloca capacidade contributiva para se referir exclusivamente aos impostos. A capacidade contributiva, na própria expressão literal do parágrafo 1º, refere-se só aos impostos. E, quanto às taxas, a Constituição se encarrega de dizer quais são os fatos que o legislador pode colocar na hipótese de incidência da lei de taxa para garantir o tratamento igualitário em matéria de taxa. A mesma coisa faz quando trata das contribuições, da contribuição de melhoria e das demais contribuições. Vamos ver isto rapidamente. Observando este tratamento constitucional -- que é tradicional e vem desde 1891 sendo aperfeiçoado -- podemos tomar todos os tributos e classificá-los em tributos não vinculados e tributos vinculados. Tributos não vinculados são os impostos. O constituinte diz: "O legislador ordinário tomará um fato qualquer com conteúdo econômico, fato esse que revele riqueza da pessoa que produz o fato, ou da pessoa que tira proveito do fato, ou da pessoa que está relacionada com este fato, de tal maneira que seja uma expressão de uma riqueza deste fulano". Contrariamente a isso, então, o art. 145, II, da Constituição, estabelece: "Para que se exija taxa é preciso que haja uma ação do Estado, algo que o Estado faz". O Estado presta um serviço ou o Estado desempenha atividade de polícia relativamente a uma pessoa, e esta pessoa vai ser sujeito passivo da relação obrigacional que vai nascer quando o Estado praticar esta ação de "prestar serviço ou desempenhar atividade de polícia", individualmente relacionada com uma pessoa. Esta pessoa é que vai ser contribuinte. E a medida deste tributo -- que é taxa -- vai ser o custo que esta atividade do Estado, relativa a esta pessoa, teve. Este é o princípio geral. Quando se trata das contribuições, a Constituição exige que haja uma ação do Estado ou de alguém, por ele, em nome do Estado. Ação esta que produz uma determinada conseqüência. Portanto, não é a ação em si, mas é a ação do Estado que produz uma determinada conseqüência, conseqüência esta ligada ao patrimônio de uma determinada pessoa. Então, no caso de taxa (art. 145, II), diz-se que há materialidade da hipótese de incidência quando a atividade estatal está referida diretamente ao obrigado, ou seja, à pessoa que vai ser sujeito passivo da obrigação. No caso da contribuição, a ligação entre a ação estatal e a pessoa se dá por meio de um elemento intermediário: o Estado faz alguma coisa; esta coisa atinge um elemento; este, sim, ligado ao sujeito passivo. Daí, uma conexão indireta entre a ação do Estado e o sujeito passivo. Pode -- e é o caso do art. 149 da Constituição -- haver uma determinada situação, produzida pelo sujeito passivo, que requer uma ação do Estado, que vai se conectar com o sujeito passivo. A ação do Estado vai ser provocada por uma situação que é ligada ao sujeito passivo. Nestes dois casos, temos uma ligação (entre a ação do Estado e o sujeito passivo) indireta. Daí ser possível classificar os tributos vinculados em tributos de vinculação direta, tributos de vinculação indireta (taxas e contribuições). Esta é uma explicação lógica daquilo que está no art. 145 da Constituição, facilitadora da compreensão de hipóteses em que o legislador não é claro, hipóteses marginais, de má redação legislativa, hipóteses de má fé legislativa, que existem, infelizmente, e muitas. Este fato é sempre uma ação do Estado. Nos tributos vinculados, é posto (esse fato), por exigência da Constituição, na materialidade da hipótese de incidência. Em outras palavras, a Constituição está dizendo que o legislador poderá instituir taxa ou contribuição, desde que uma ação do Estado -- serviço público, poder de polícia e todas as atividades que dão ensejo às demais contribuições -- se ligue a uma pessoa determinada. Não havendo a conexão entre a ação do Estado e uma pessoa determinada, não pode ser estruturado o tributo. Mas, ainda que estruturado, não acontecendo de fato, não pode ser exigido o tributo. Dois momentos que sempre se deve considerar: uma lei pode ser constitucional, compatível com a Constituição e, num caso concreto, a sua aplicação ser incompatível com a Constituição; outras vezes, a lei já é em si mesma, no seu desenho, inconstitucional, como ensina Lucia Valle. Em todos os casos em que não há plena compatibilidade com a Constituição, afasta-se a aplicação da lei e declara-se inexigível o determinado tributo.  CAPACIDADE CONTRIBUTIVA  A capacidade contributiva -- que é a capacidade econômica que cada um de nós tem, para contribuir para os encargos públicos -- é o critério dos impostos (tributos não vinculados). Tanto é assim que, no mundo inteiro, o legislador é obrigado a adotar um fato, com conteúdo econômico revelador -- ou indiciador, como diz o nosso Becker -- de riqueza, como fato cujo acontecimento faz nascer a obrigação de pagar imposto. Lendo os autores alemães, italianos -- que são os melhores -- mas também os espanhóis, que são excelentes, os americanos e os franceses, veremos que isto enseja uma vastíssima discussão, belíssimas investigações e propostas extremamente inteligentes, que vão permitindo aperfeiçoar a legislação e a interpretaçaõ em todos esses países. No Brasil, o constituinte não ficou simplesmente nesta afirmação (que está no art. 53 da Constituição italiana, no art. 72 da Constituição alemã, no art. 12 da Constituição francesa ou no art. 31 da espanhola). Não. Isto está afirmado em todas as Constituições, mas o constituinte brasileiro foi adiante. É o caso do capitão que estava na outra sala. Ele diz: "Respeite a capacidade contributiva União. Você só pode tributar renda, importação, exportação, propriedade rural, operações financeiras, tal e tal. Estado, você só pode tributar operações mercantis, transmissões de bens, etc. Município, mediante imposto, você só pode tributar a prestação de serviços, propriedade imobiliária urbana, etc.". O próprio constituinte já disse quais são os fatos que têm conteúdo econômico e que podem ser adotados pelo legislador. Não deixou à imaginação dos legisladores, por razões históricas, essa escolha. Examinando a Constituição de 1891, a Reforma de 1926, a Constituição de 1934, de 1946, etc., vê-se que houve tanta briga que não soubemos resolver, tantos conflitos entre União, Estados e Municípios, tanta superposição de tributos, tantos, que o constituinte, a cada vez que se pronunciava, resolvia os problemas que via diante de si e, com isso, esgotou o trato da matéria, ao cabo dessa evolução que se inicia em 1891 e chega à Emenda nº 3/1993.  LEI ORDINÁRIA TEM CONTEÚDO CONSTITUCIONALMENTE PREDETERMINADO  O legislador infraconstitucional, no Brasil, não tem muito que fazer. O legislador constituinte já disse quais são os fatos que ele, legislador ordinário, pode pôr na materialidade da hipótese de incidência dos impostos. Já está dito pela Constituição. Entretanto, como a imaginosidade do legislador -- inspirado pelos economistas -- é grande, previu-se a possibilidade de haver (art. 154) impostos da chamada competência residual. Quer dizer, impostos que adotem como fatos imponíveis fatos que não estejam no rol dos arts. 153, 155 e 156. Mas é uma hipótese muito cerebrina, é muito difícil descobrir algum imposto que já não esteja nos arts. 153, 155, 156. A igualdade -- aquele princípio que tudo domina -- em matéria de impostos se realiza pela capacidade contributiva. Dino Jarach, professor italiano, que fez sua vida na Argentina -- um gênio -- diz assim: É inconstitucional a lei de imposto que diga "pagará imposto fulano porque tem nariz grande", porque o fato de ter nariz grande não fala da capacidade contributiva; o sujeito pode ser rico ou pobre e ter nariz grande. Seria discriminatório, tão discriminatório quanto a lei que dissesse: "Pagará imposto o sujeito que for preto, ou o sujeito que for branco, ou que for loiro, ou que for gordo ,ou que for magro, ou isto ou aquilo". Estas qualidades, que não dizem respeito à capacidade econômica de uma pessoa, não podem ser postas na materialidade da hipótese de incidência de tributos. Isto, que parece uma afirmação correta mas sem conseqüências, é gravíssimo, é importantíssimo, especialmente no momento em que se está falando em imposto sobre movimentação financeira. Quer dizer, tirar dinheiro de um bolso e pôr noutro, de uma conta e pôr noutra, passar um cheque de uma pessoa para outra não significa coisa alguma e, quando significa, já está tributado por um dos outros impostos da Constituição. Esta colocação, que a Constituição põe como princípio, é de importância capital.  IGUALDADE E TAXA  A mesma igualdade que, em matéria de impostos, se realiza pela capacidade contributiva, em matéria de taxas se realiza pela comutatividade. Se eu ponho uma carta no Correio, eu pago uma; se outro põe dez, paga dez; se outro põe cem, paga cem. Há empresas que põem mil cartas por dia no correio. O outro não põe nenhuma; não paga nada. Alguém gasta um litro de água, paga um; gasta dez, paga dez; gasta cem litros, paga cem. A igualdade em matéria de taxas não está na riqueza do sujeito, mas sim na objetividade mensurada da ação do Estado relativamente a uma determinada pessoa, que vai ser o devedor. Portanto, rico ou pobre, se gastou um litro d"água, paga um litro; rico ou pobre, se passou dez cartas no Correio, paga dez. Não cabe indagar da capacidade contributiva, quando se trata de taxa. O princípio da igualdade na taxa está na comutatividade. Isto não impede que o legislador tenha dó dos pobres e estabeleça isenção para fornecimento de água em bairro pobre, ou isenção até a quantidade de dez litros. Isto é outra coisa. O critério informador do tributo taxa é a comutatividade. Na contribuição, a igualdade se reflete por uma exigência diferente da capacidade contributiva e por uma exigência diferente da comutatividade. Na contribuição, o que vale é a proporcionalidade com que um sujeito se relaciona com uma determinada ação do Estado. As contribuições sociais oferecem um gravíssimo problema de interpretação, problema que até hoje o legislador não resolveu adequadamente, que a doutrina não tem sabido resolver no Brasil e que, por isso mesmo, a jurisprudência também continua perplexa. Como atender as exigências da igualdade em matéria de contribuição? Vamos dedicar uma boa parte de uma próxima aula a tratar disso, porque há a presença do art. 3º da Constituição com exigências tais, que todos os esforços da sociedade e do Estado no Brasil têm que ser feitos para "criar uma sociedade justa, solidária" e para "eliminar as desigualdades sociais". Num país que tem as brutais e gritantes desigualdades que temos, o legislador fica desesperado por ter um universo pequeno de pessoas de quem tirar dinheiro e um universo imenso de pessoas carentes desta atividade estatal de seguridade social, assistência à saúde, à velhice, à pobreza, à miséria, etc. Os destinatários da ação do Estado, em grande número de vezes, não têm nenhum dinheiro, e a Constituição impõe, não que eles dêem dinheiro, e sim que eles recebam da sociedade. Isto causa terríveis problemas constitucionais -- que ainda não resolvemos -- legislativos, doutrinários e jurisprudenciais.  REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS  Completando estas considerações, é importante chamar a atenção para o seguinte: em matéria de impostos a Constituição estabelece, no art. 153, os de competência da União; no art. 155, o de competência do Estado e, no art. 156, os de competência do Município. É como se fosse um imenso bolo de todas as competências tributárias que a Constituição reparte em três fatias, dando uma fatia à União, uma aos Estados e uma aos Municípios (arts. 153, 155, 156). As matérias passíveis de serem tributadas mediante impostos, todas, praticamente, estão aqui. O que não está aqui está no art. 154, que trata da competência residual. Não é fácil imaginar algum imposto "residual". Foi tão amplo e minucioso o constituinte, no designar as matérias destas fatias, que praticamente esgotou todas as manifestações de riqueza. É difícil imaginar alguma nova para entrar na competência residual, que também será da União, na forma do art. 154. O que é importante, muito importante, é assinalar isto: a lei tributária da União, que eventualmente tome total ou parcialmente um fato qualquer que esteja no campo material de competência do Estado e Município, será -- como dizia Amilcar Falcão -- "inconstitucional, por invasão de competência". Quer dizer, lei tributária da União que eventualmente tome um pedaço de um fato que seja do Estado ou do Município. Não é difícil encontrar isso. Dou um exemplo até que explicável; não justificável, mas explicável: a lei do IPI. Se os Senhores lerem qual é a hipótese de incidência na lei do IPI, os Senhores verão "restauração, reforma". Ora, restauração e reforma são serviços, portanto estão na competência tributária dos Municípios. Logo, estes itens da lei federal são claramente inconstitucionais. Explica-se. É que antes não havia -- até 1955 -- imposto sobre serviços. Então o IPI abrangia uma série de prestação de serviços, como restauração, reforma, recuperação de coisas, etc. Hoje, depois de 1955, criou-se no campo de competência dos Municípios esta materialidade que é a prestação de serviços; logo, reduziu-se a competência da União. E o legislador ordinário não percebeu isto, e continua aquele enunciado da lei. Então, é a doutrina que tem de denunciar, e a jurisprudência que tem de dizer:"Isto aqui passou a ser inconstitucional, após 1955". As competências tributárias, em matéria de impostos, são, em primeiro lugar, legislativas; não há competência que não seja legislativa. O Estado só pode dizer "quero tributar", fazendo lei; não há outro meio. Discurso de Ministro ou de Presidente não cria tributo, decreto não cria tributo, nenhuma medida cria tributo. E, como ensina Misabel Derzi, Professora de Direito Tributário da Universidade Federal de Minas Gerais, medida provisória não cria tributo, não aumenta tributo, não pode fazê-lo. E ela faz uma demonstração cabal disso, em trabalho doutrinário por todos respeitado. Competência tributária é uma competência legislativa. É só o legislador que manifesta esta competência; não há outro órgão do Estado que possa manifestar esta competência, só o Legislativo. Em segundo lugar, a competência é sempre privativa. Rui Barbosa dizia: "Competência privativa é aquela que, dada a uma pessoa, priva as demais; as outras ficam privadas". É sinônimo de competência exclusiva: dada a uma pessoa, exclui as demais. Quer dizer, a que recebe tem a competência, as que não recebem não têm, estão privadas, estão excluídas, não podem exercer. E é função do Judiciário dizer: "Essa lei aqui é manifestação de uma competência que esse legislador não tem. Logo, desconheço esta lei e aplico a daquele que tem". As competências são inderrogáveis, ou seja, não há como modificá-las, a não ser por emenda constitucional. As competências são irrenunciáveis, no sentido de que o legislador pode dizer: "Eu não uso a competência". Perfeito, mas não "renuncia" à competência; continua sendo competente. No instante em que quiser, vai poder usar a competência. As competências são improrrogáveis. O legislador não pode prorrogar a sua competência; se prorrogar, estará invadindo a fatia do outro. Não há como! Prorrogando sua competência, invade outro campo material da competência e, portanto, incide em inconstitucionalidade. As competências são imprescritíveis. A circunstância de não ser exercida, ou ser parcialmente exercida, não altera coisa alguma. E -- conseqüência prática -- a circunstância de um legislador não usar uma competência não autoriza outro a usá-la.  IMUNIDADES  Isso que se chama de imunidade é o fenômeno de não ter sido dada uma competência. Há quem pense, há quem exponha, quem sugira, quem queira explicar a imunidade como sendo uma vedação à lei tributária. Funciona assim, não há dúvida. Mas não há dois momentos na Constituição: um momento em que o constituinte cria uma competência e um momento posterior em que a corta. Não. Quando cria a competência, já cria com um determinado tamanho. Forstoff já dizia que "quem dá a competência dá as limitações". A Constituição deu a competência tributária, já deu as limitações, os limites da competência. E um dos limites da competência são as imunidades, todas as inúmeras imunidades que estão no art. 150, inc. VI, e em diversos outros preceitos constitucionais, como vamos ter oportunidade de ver. Isto é matéria constitucional -- Dr. Kallás, o Senhor vai me dar licença -- mais um exemplo de quartel. É que comecei a dar aula em 1964, o ano do golpe militar, junto com o Dr. Américo Lacombe, no tempo da ditadura militar, e era muito fácil explicar as coisas com exemplo militar. Todo mundo entendia na hora. Então, ficamos com este vício.  SISTEMÁTICA CONSTITUCIONAL  Se vocês entrarem -- alguns aqui, espero, tenham entrado -- num quartel, vão ver a disciplina, neste ponto, admirável, que os militares sabem manter e que se reflete lá dentro do quartel. Mas, entre todas as coisas da disciplina, há uma notável: é que, quando há uma rodinha de oficiais conversando, sargento não entra. Ele não vai entrar na conversa, dizendo "também acho". Posso contar que você conhece um quartel por dentro, Américo? O Américo Lacombe ficou preso dentro do quartel um ano e tanto pela ditadura militar, de maneira que conheceu bem quartel, por dentro, nos tempos negros que vivemos. Há uma roda de generais conversando. O capitão fica ali, finge que nem ouviu. Mesmo que se conte uma piada, ele não dá risada. Ele não tem o atrevimento de se meter em conversa de general. Se houver capitães conversando, o sargento fica ali, também, quietinho. E é a mesma coisa. Se tiver sargento conversando, o soldado não se mete. Quer dizer, a hierarquia reflete-se até nisto. A Constituição estabelece uma claríssima hierarquia: ela mesma, como lei suprema, superior, sagrada, imodificável, rígida, ampla, minuciosa, tratando de matéria tributária, e o legislador lá embaixo, obedecendo, até as últimas conseqüências, as minuciosas prescrições que ele, legislador constituinte, fez. Quando se trata no Brasil de matéria tributária, quando se fala em sistema tributário, temos que dizer: "O sistema tributário do Brasil está na Constituição". O dos outros países -- vimos -- está na lei, está na legislação, é o legislador que faz o sistema. No Brasil, legislador não faz quase nada, o sistema já está pronto, acabado, até nas suas minúcias, pelo constituinte. Ao legislador ordinário, no Brasil, o que cabe é fazer pequenas complementações. O legislador ordinário não pode inventar hipótese de incidência, não pode inventar materialidade de hipótese de incidência, sujeito passivo, aspecto temporal -- a não ser para alargar; não para diminuir -- não pode inventar aspecto espacial, a não ser para favorecer o contribuinte. Enfim, tudo já sai das mãos do legislador constituinte. O legislador ordinário no Brasil é quase que só um "regulamentador", em completo flagrante contraste com o que acontece em todo o resto do mundo. O que, repito, leva a que tenhamos cuidado quando citar lei ou doutrina estrangeira, porque estão refletindo um clima em que o legislador é criativo, o legislador tem grande liberdade nesses lugares; aqui, no Brasil, não tem. Segundo lugar, há rigidez absoluta da Constituição. É tal a rigidez, que não dá margem para o legislador. Há uma série de assuntos em que os Senhores vêem as partes, seja o Estado, sejam os cidadãos dizerem: "A lei tal diz isso, porque o regulamento diz aquilo", etc. A postura higiênica e prática do Juiz deve dizer: "Isto aqui é matéria constitucional". Há matérias que são rigorosa e exaustivamente constitucionais como, por exemplo, competência. Logo não cabe falar em lei nesta matéria, muito menos em regulamento. "Em conversa de general, sargento não entra." Se a matéria é constitucional, quero princípios constitucionais, normas constitucionais, raciocínios constitucionais. Depois de acertado este quadro, se sobrar algo a ser decidido, vou ver a lei, e daí a primeira coisa que vejo é se a lei está de acordo com a Constituição. Nós aqui temos tido, os contribuintes de modo geral, os advogados que postulam na Justiça, os que escrevem, etc., a mania, o vezo de -- à semelhança do que se faz nos outros países -- misturar lei com Constituição, tratar Constituição e lei igualmente. Não pode ser tudo igual. Primeiro, porque há uma hierarquia e, em segundo lugar, porque a Constituição tratou exaustivamente de todas as matérias.  PARTE III  A Constituição é de 1988, uma Constituição que, bem ou mal, foi feita por representantes do povo, é legítima; isto ninguém pode questionar. Com todos os defeitos que ela tiver, é uma Constituição para valer, de verdade. E todos nós temos que ser fiéis a esta Constituição. Parece que ela continua o que havia antes. Não continua não. Juridicamente, o Estado brasileiro nasceu em 1988, dia 05 de outubro. Zero quilômetro. O Supremo Tribunal Federal nasceu nesse dia. O Parlamento, o Congresso Nacional que temos nasceu nesse dia. Todo o Judiciário nasceu nesse dia. Todas as leis nasceram nesse dia. É só ler a literatura abundante que há sobre isso. A forma da lei pode ser velha, mas o impulso vital e a base dela estão na Constituição atual e não na Constituição antiga.  PREÇO E TAXA  Todos os Senhores -- pelo menos os que são mais moços do que eu -- sempre ouviram falar em tarifa de telefone, tarifa do correio, tarifa de água. Tarifa é sinônimo de preço; preço é o que se paga numa relação contratual livre. Quero comprar, pago o preço; não gostei do preço, não quero comprar, não compro. Então, supõe-se um ato de Direito privado livre, em que adiro com a minha vontade, ou não, a uma proposta, e que aquela coisa está em comércio. Ora, como dizer que o serviço público está em comércio? Como dizer que, quando a Constituição diz telefone, correio -- implicitamente saneamento básico, energia elétrica -- isto é coisa "em comércio"? Quer dizer, o Estado, de modo geral, virou comerciante que vai vender estas coisas para quem quiser, colocar o preço que quiser e, se alguém gostar, paga; não gostando, não paga? Não! Quando a Constituição prevê, especialmente no art. 21, os serviços públicos da União -- e, implicitamente, prevê os do Estado e do Município -- está dizendo: "a União é obrigada a fazer estas coisas, isto é um dever da União para benefício público". Se não for para benefício público, não tem razão de estar na Constituição. Então, a União tem que ter correio, tem que ter serviço de telecomunicações, a União tem que produzir energia elétrica e dar ao povo. Isto tudo é condição que o constituinte achou básica; serviço público não é res in comercio; é um dever da União prestar. A lei administrativa vai dizer quais são as condições de acesso ao serviço público. "O senhor quer ter energia elétrica? Muito bem, então tenha ligações elétricas corretas, feitas por um eletricista, tenha lâmpadas adequadas, enfim, obedeça a tudo isto". Está na lei administrativa. Isto são condições para ter acesso ao serviço, condições de gozo, de uso do serviço. "O senhor tem que ter um medidor e o senhor vai ter que pagar o custo daquilo", que só o legislador pode fixar. É o Estado fazendo uma coisa que é remunerada necessariamente por tributo. Não fazia sentido o art. 145, II, da Constituição mencionar taxa se a taxa fosse uma faculdade do legislador, como muita gente pensa e como é na Itália, na Alemanha, nos Estados Unidos, mas não é no Brasil. Por isso, é preciso comparar para ver nossas peculiaridades. Quando a Constituição diz, art. 145, II: "União, Estados e Municípios podem exigir taxa pela prestação de serviços públicos", não está dizendo "legislador, escolha a taxa ou o preço como quiser"; está dizendo que, toda vez que houver prestação de um serviço público, caberá uma cobrança mediante taxa. E taxa é tributo, e tributo é sujeito ao princípio da legalidade. Portanto, só lei. É preciso distinguir taxa de preço, conscientes de que taxa é um tributo. O tributo está submetido ao regime tributário -- em primeiro lugar, legalidade -- e o preço não. Preço é só aquilo que está em comércio ( art. 170 da Constituição). São princípios da nossa Constituição: a livre iniciativa, a concorrência, a lei do mercado, a possibilidade de qualquer um fabricar coisas e vender. E vai vender por preços, não é exato? Está no art. 173 da Constituição, em reforço disto. O Estado não se mete a explorar atividade econômica. Se o fizer excepcionalmente, vai ter que se submeter ao mesmo regime da atividade privada, então vai ter o seu preço. Explorar atividade econômica, que não é prestar serviço público, é produzir qualquer coisa que as pessoas possam comprar, mas não aquilo que é essencial, tão essencial que o próprio constituinte tratou de dizer:"Isto aqui é encargo da União, ou encargo do Estado, ou encargo do Município". Onde houver serviço público, só pode caber taxa. Há quem sustente -- por causa dessa tradição que, enfim, veio de 1964 para cá, de inventar que é tudo tarifa, ou seja, preço, dizendo, em outras palavras, sem querer, mas está dizendo -- que a Constituição, no art. 145, II, tem uma sugestão ao legislador: "Olha, estou dando uma idéia, se quiser, cobra taxa; se não quiser, não precisa cobrar". É ridículo atribuir a um preceito constitucional, dentro do capítulo tributário, o caráter de uma sugestão e não de um comando, não de uma norma, num contexto em que a Constituição dá aos cidadãos uma série de direitos, o principal dos quais é a legalidade, que é a garantia da igualdade. A garantia de quê? Se o Estado prestar um serviço e eu quiser o serviço do Estado, haverá uma lei que dirá quais são as condições mediante as quais tenho, em igualdade de condições, acesso a este serviço. E se vou pagar? Vou, mas vou pagar o que todo mundo paga. Portanto, há regime tributário para as taxas, e taxa é exigível que houver prestação de serviço público ou desempenho de atividade de polícia. A taxa tem por princípio informador a comutatividade -- quer dizer, custou tanto, pagou tanto -- para que todos sejamos igualmente tratados. Isto decorre claramente da Constituição. Mas há, além do valor "igualdade" na Constituição, o art. 3º, que diz: temos que "construir uma sociedade livre, justa e solidária". "Solidária" significa "nós precisamos compartilhar um pouco aquilo que cada um de nós tem". Então, o todo pode ceder um bocadinho; uma parte do todo pode ceder um pouco para a outra parte do todo. A Constituição tem outros preceitos protetores dos hipossuficientes, dos pobres, dos miseráveis. Há postulações constitucionais. Todos temos que caminhar no sentido de acabar com a miséria, eliminar as desigualdades, etc. Então, a lei de taxa deve sofrer primeiro a influência do princípio da igualdade -- é a grande diretriz informadora -- mas pode sofrer a influência destes princípios sociais. Nada impede que o legislador venha a dizer: "nos bairros com características de pobreza, etc., não se cobrará taxa", ou "a taxa será reduzida" ou, ainda, descobrir um critério social -- judicialmente aprovado como não arbitrário -- um critério social para dizer: "o consumo até dez litros de água ou vinte litros é isento". Tendo em vista os pobres, pode perfeitamente. O que não significa mudança na natureza da taxa. A taxa continua sendo taxa, medida pela comutatividade, mas a influência de um princípio social vai excluir da taxa umas tantas pessoas, por razões sociais. É o que Canotilho diz, é uma função positiva do princípio da igualdade. O princípio da igualdade não é só negativo: é proibido. Não, ele também tem um lado positivo. O princípio da igualdade exorta o legislador a fazer algumas coisas para promover a igualdade. E a nossa Constituição, desde 1946, e hoje com requintes, não tem preceitos assim? Ao mesmo tempo em que há o princípio de que os Estados são todos iguais e os Municípios são todos iguais, não há preceitos que mandam favorecer as regiões menos desenvolvidas do País e que mandam favorecer os Municípios menos desenvolvidos? Há todo um mecanismo de compensação na Constituição. Tira-se dinheiro do Estado de São Paulo para dar para o Amazonas, para o Amapá, para o Piauí; tira-se dinheiro do Município de São Paulo para dar a outros Municípios. Mas isto infringe o princípio básico? Não, o princípio básico da Constituição é a igualdade e é temperado, ou moderado, pelo princípio que postula que essas regiões recebam compensações até para ficarem mais iguais, quer dizer, para crescerem, enriquecerem e ficarem mais iguais. No plano individual, também é perfeitamente possível. Importante é isto: o princípio informador da taxa é a comutatividade, a igualdade. Razões constitucionalmente amparadas, mas de inspiração social, podem estabelecer atenuações ou até exclusões tributárias. Isso não quer dizer que há alteração do princípio e do regime da taxa.  ISONOMIA E TRIBUTAÇÃO  Se o legislador quiser apanhar os mais ricos, tem que fazê-lo mediante imposto. Quer dizer, ir crescendo no tributar os mais ricos. Há todo um instrumental amplo de impostos na Constituição. Quando a Constituição designa um fim e dá os meios, o legislador não fica com liberdade de escolha dos meios. Está aqui a Profª. Lucia Valle, catedrática de Direito Administrativo, concordando comigo. Se nós estivéssemos na Alemanha, ou na Itália, ou na França, tudo isto seria lícito, porque a Constituição fixa diretrizes gerais e diz: "Legislador, seja prudente e vá em frente". Aqui, não disse nada disto. Aqui, disse cada coisa que ele tem que fazer; então ele, legislador, não tem liberdade. Em matéria de impostos, há todo um jogo de modulações que a Constituição permite para, crescentemente, ir atingindo os ricos. Não vai poder fazer isso por meio da taxa; por meio da taxa o que pode é excluir o miserável, isto sim. Na verdade, o princípio da igualdade tem todos esses desdobramentos mais ou menos nesta ordem. Ele está acima dos outros.  SEGURANÇA JURÍDICA  Há um trabalho de um professor alemão chamado Tipke -- que já foi juiz do Tribunal Constitucional, foi juiz do Tribunal Tributário Alemão e é um grande professor de Direito Tributário na Alemanha, um pensador, um homem de laboratório -- sobre conflito entre os princípios da igualdade e da segurança jurídica. Evidente que o princípio da segurança jurídica está na cabeça do art. 5º da Constituição; mas ele está em tudo. Quem olha para a Constituição inteirinha, o que vê? Segurança jurídica. Este é o maior valor. A igualdade é para servir à segurança jurídica. A legalidade, essa separação de Poderes, tudo é para servir à segurança jurídica. Se não houver segurança jurídica, todo o resto não vale mais nada. E a humanidade ganhou mais consciência disso depois do nazismo, fascismo e stalinismo. Ficou muito robusta essa consciência de que a legalidade, a igualdade e a separação de Poderes são muito valiosos, mas, se não levarem à segurança jurídica, podem ser mistificados. O Prof. Tipke mostra, em um trabalho, como o Tribunal Constitucional Alemão trabalha quando há casos de conflito entre igualdade e segurança jurídica, dando um valor maior à segurança jurídica. Lógico, não vai sacrificar a igualdade, mas termina por dar valor maior à segurança jurídica. Daí haver, na jurisprudência da Corte Alemã, a possibilidade daquilo que chama "apelo ao legislador": o Tribunal Constitucional Alemão dirige ao Congresso um apelo: "Faça uma lei assim, assim, assim". Isto, no Brasil, não há. Outra coisa que a jurisprudência da Corte Alemã prevê é que não se aplique lei inconstitucional só daqui para adiante: "Vamos manter os casos, as barbaridades até agora, e daqui para adiante é inconstitucional". Nós não temos isto. Aqui se declara: "É inconstitucional". Então, é desde o dia em que apareceu, com todas as conseqüências. Nós somos mais radicais e, neste ponto, acho que melhores sob esse aspecto.  REPÚBLICA  Mas há uma clara hierarquia de valores. O primeiro valor é a República -- está lá -- e a República assenta-se na igualdade. Se não for para ser igualdade, isso aqui é uma República igual à Hungria, à Tchecoslováquia de antigamente ou à República Socialista da Rússia, o que não interessa para nós. Isto não é padrão para nós. Então, a República é igualitária, a República é Estado de Direito, a República é representativa, a República é democrática. O conteúdo da palavra "república" é de uma riqueza total. Ela é que está encerrando todos os valores; o resto é desdobramento. Ao lado de República se pôs Federação, quer dizer, o poder popular. O que faz o poder político é o poder nacional, mas é o poder estadual também, de acordo com os critérios da Constituição. É evidente que República vai estar antes de Federação, mas é evidente que a Federação é tão importante que vai estar antes de uma série de outros princípios.  PRINCÍPIOS  Queria concluir, dizendo o seguinte. Os princípios são muito importantes, são diretrizes. O constituinte está dizendo: "Caminhe naquele rumo, vá para aquele lado". Vá, quem? "Todo mundo: Estado, Poder Legislativo, Poder Executivo, Administração Pública, Poder Judiciário". E todo mundo tem que caminhar naquele rumo, naquele sentido. Isso são os princípios. Quando, num caso isolado, trabalhando tecnicamente bem, com lei boa, corretinha, bonitinha, descobrimos que estamos caminhando para um lado contrário ao lado indicado pelos princípios, temos que parar e dizer: "Estou errando. Não sei em quê, mas estou errando. O princípio manda ir para o norte, e aqui no meu trabalho estou começando a caminhar para o sul. Deixe-me parar, porque estou errado". A palavra "sistema" aplica-se ao Direito, mas se aplica a tudo. Aplica-se a sistema viário também. Vamos fazer um exemplo, que é extremamente interessante. Se temos uma cidade qualquer na beira de um rio -- toda a boa cidade está na beira de um rio -- não conhecemos a cidade, estamos aqui e queremos ir a um prédio que está lá. Estamos andando a pé e perguntamos para um sujeito: "escute, como faço para ir para lá?" "É meio complicado, há ruas contramão mas, em todo o caso, o senhor vira aqui, vira lá, depois vira à esquerda, há uma praça..." "Espera aí, está muito complicado, não vou guardar. O senhor me dê uma diretriz. Esse negócio é onde?" Ele vai falar: "Ah, bom, é lá no norte". "Ah, é no norte? Muito bem". Posso pegar esta rua, vir para cá, virar para lá, etc., desde que sinta que estou indo para o norte. Se pego, por exemplo, um táxi, e o motorista começar a andar muito para o leste, depois começar a vir para o sul, digo: "Espera aí, o senhor está indo para o sul, o senhor não está me levando para o meu rumo". Quer dizer, admito que, por causa de rua contramão, conserto, obra e ponte, não consiga ir reto, tenha que dar umas voltas, mas não admito ir no rumo oposto ao que me deram; tenho que ir para o norte. Então, tudo que faça tem que me levar para o norte, porque é lá o meu objetivo. Os princípios apontam determinados nortes. Então, nos trabalhos exegéticos -- nós estamos trabalhando com lei, combinação de leis etc. -- estamos muitas vezes caminhando bastante para lá. Não quer dizer nada se, de repente, houver uma saída para o norte. Agora, não pode é caminhar sempre para o oeste, ou para o leste. Não pode caminhar sempre para o sul. Para o sul, jamais! Mas é possível ter que dar umas voltas para chegar no norte. Nem sempre se chega direto. O que não pode é ir para o sul querendo chegar no norte. A idéia de sistema vale para sistema hidráulico, vale para sistema viário e é de um esplendor para o sistema jurídico. E o princípio é o norte, os princípios são os nortes. 

Retirado de http://eu.ansp.br/~trfsinf/revista/doutri2f.htm