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A CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA DOS SERVIDORES

Vera Carla Nelson de Oliveira Cruz
Juíza federal em Brasília e professora de Direito Tributário


 
 

Deparamo-nos, mais uma vez, com um novo agravamento da carga tributária. Chamados a contribuir com o novo pacote fiscal do governo, os servidores públicos federais, os aposentados e os pensionistas, com rendas já tão comprimidas, passarão, segundo o disposto na Lei nº 9.783, de 28 de janeiro de 1999, a ter descontada, em seus vencimentos e proventos, contribuição previdenciária em alíquotas que, de forma escalonada, alcançam o percentual de 25% (vinte e cinco por cento).

A injustiça da medida fiscal não conhece precedentes. Elegeu-se uma parcela diminuta da sociedade, há muito apenada, para participar da restauração das finanças públicas. Entendo, contudo, que a exigência é inconstitucional ou, pelo menos, não pode realizar-se com as autoridades do Executivo vêm sustentando.

Em primeiro lugar, porque, embora o tema não seja usual na Lex Magna, a sujeição à contribuição em tela está formatada no ‘‘art. 40 — Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.

Não são necessários maiores exercícios exegéticos para concluir que têm competência para instituí-la a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios e são seus sujeitos passivos os servidores públicos ocupantes de cargo efetivo. Portanto, sem receio de incorrer em erro, afirmo que a Constituição não autoriza a cobrança da exigência a aposentados e pensionistas.

Alega-se que os aposentados e pensionistas estão abrangidos pela expressão servidores. Não é verdade. Os destinatários da contribuição são os servidores e não os titulares de aposentadorias e pensões. Consagra essa distinção a própria Carta Constitucional, no parágrafo 3º do seu art. 40.

Em segundo lugar, porque o regime constitucional da aposentadoria do servidor público baseia-se na premissa de que ele é co-patrocinador da sua inatividade, enquanto permaneça em plena atividade funcional. Por essa razão, o art. 40, § 1º, do Estatuto Constitucional prevê que o servidor deve implementar determinados lapsos temporais para colimar sua aposentadoria.

Em terceiro lugar, porque os atuais aposentados e pensionistas têm direito adquirido à situação em que se encontram na forma preconizada na própria Emenda Constitucional 20/98 (art. 3º, § 3º).

Com essas rápidas considerações, já é possível antecipar a conclusão de que o dispositivo legal em tela, no tocante aos aposentados e pensionistas, é manifestante inconstitucional.

Mas os defeitos da Lei nº 9.783/99 não se limitam a esses aspectos.

Como sabemos, por construção da jurisprudência do c. STF, as contribuições sociais são tributos parafiscais (RE 138.284), o que equivale a dizer que, dentre outras características, são tributos com receita afetada a uma determinada finalidade.

No caso das contribuições previdenciárias, essa vinculação está expressa no texto dos arts. 149 e 40, como exações destinadas ao custeio da contribuição previdenciária dos servidores, acrescendo este último artigo que, para o cumprimento desse mister, deve ser preservado o equilíbrio financeiro e atuarial.

Os art. 1º e 2º, caput e parágrafo único, da Lei nº 9.783/99 tornam, no entanto, inócuas essas prescrições, estatuindo:

Art. 1º A contribuição social do servidor público civil, ativo e inativo, e dos pensionistas dos três Poderes da União, para a manutenção do regime de previdência social dos seus servidores, será de onze por cento, incidente sobre a totalidade da remuneração de contribuição, do provento ou da pensão.

Art. 2º A contribuição de que trata o artigo anterior fica acrescida dos seguintes adicionais:

I — nove pontos percentuais incidentes sobre a parcela da remuneração do provento ou da pensão que exceder a R$ 1.200,00 (hum mil e duzentos reais), até o limite de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais);

II — catorze pontos percentuais incidentes sobre a parcela da remuneração, do provento ou da pensão que exceder a R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais).

Parágrafo único. Os adicionais de que trata o ‘‘caput’’ tem caráter temporário, vigorando até 31 de dezembro de 2002.

Com efeito, o legislador, em vez de exigir a contribuição com base em parâmetros que assegurem a correspondência entre o custeio e a cobertura do seguro social, resguardando um equilíbrio na equação econômico-financeira correspondente, ocupou-se, simplesmente, de agravar a tributação sobre a remuneração, adotando uma única alíquota e dois adicionais.

Se existisse, de fato, a feição atuarial no critério quantitativo adotado na lei, as alíquotas da exigência seriam variadas e a distribuição do ônus não se efetivaria em caráter temporário, mas nos lapsos de contribuição previstos na própria Constituição.

Assim como delineado, o aumento da contribuição previdenciária nada mais é do que uma forma oblíqua e espúria de aumentar o imposto de renda de um único segmento da sociedade e de se escamotear vergonhosa violação aos princípios da adequação à capacidade econômica e da vedação de confisco.

Sob a nova roupagem da contribuição, servidores com maior e menor capacidade de contribuir para o patrocínio da seguridade social estarão suportando o mesmo ônus fiscal. E, a mais, aqueles, com remuneração superior a R$ 2.500,00, estarão sujeitos, além da incidência do IR na alíquota de 27,5%, à retenção da contribuição no percentual de 11%, com adicional de quatorze pontos percentuais sobre a parcela excedente ao referido valor. Isso é, insofismavelmente, um confisco, que, pela exorbitância, não pode ser negado mesmo por aqueles que atribuem caráter programático a essa garantia constitucional.

Afirma-se que o princípio da capacidade econômica tem como destinatários somente os impostos. Mas, como defende Sacha Calmon, as contribuições parafiscais, em função do seu fato gerador, assumem a feição de impostos ou taxas. Na espécie, não obstante o caráter autônomo da contribuição previdenciária, obedece ela no regime jurídico dos impostos, ja que incide sobre manifestação de capacidade econômica: remuneração.

Por fim, anoto que, ainda que essas normas legais fossem válidas, a sua eficácia não se poderia dar com o mero cumprimento do lapso temporal de 90 dias.

Assim entendo porque o princípio da anterioridade nonagesimal tem como destinatária tão-somente as contribuições previstas no art. 195 da Constituição Federal, como prescreve o § 6º do referido dispositivo:

§ 6º As contribuições sociais de que trata este artigo só poderão ser exigidas após decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado, não se lhes aplicando o disposto no art. 150, III, b.

No caso das contribuições dos servidores públicos federais, porque previstas em outro dispositivo da Carta, o caput do art. 40, o princípio que as rege é outro, o da anterioridade, capitulado no art. 150, III, b, da Carta, cujo comando posterga a aplicação da tributação agravada para o primeiro dia do exercício seguinte.

É verdade que o referido precedente veio a lume antes da reforma constitucional levada a efeito pela Emenda Constitucional 20, mas tal fato não modifica o raciocínio antes exposto, já que, no seu bojo, a contribuição dos servidores continuou disciplinada no art. 40. Apenas foi transposta do § 6º para o caput.

No art. 195, diversamente, estão as demais fontes de custeio.

Em suma, entendo que, sob o prisma da aplicação e interpretação sistêmica das normas constitucionais, os comandos da Lei nº 9.738, de 28 de janeiro de 1999, não são válidos. Mas, se diferentemente entenderem os tribunais, sua aplicação, de qualquer sorte, não poderá ocorrer dentro deste exercício.

*Transcrito do Correio Braziliense, edição de 17.05.99, coluna Direito e Justiça

Retirado do site: www.infojus.com.br