® BuscaLegis.ccj.ufsc.br


SEGURIDADE SOCIAL E AUTONOMIA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS

Hugo de Brito Machado
Professor titular de Direito Tributário da Universidade Federal do Ceará,
Presidente do Instituto Cearense de Estudos Tributários e
Juiz aposentado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região



Quanto aos estados já há muito não se podia ter dúvidas. Quanto aos municípios, a Constituição Federal de 1988 superou a polêmica entre os que afirmavam e os que negavam ser este um ente integrante da Federação, pois em seu art. 1º refere-se à união indissolúvel de estados e municípios e do Distrito Federal. A autonomia dos estados está assegurada também, e de forma eloqüente, no dispositivo da Constituição Federal que, afirmando a não-intervenção da União, delimita as hipóteses excepcionais nas quais esta poderá ocorrer. O princípio ressalte-se, é o da não-intervenção.

A autonomia dos municípios está igualmente assegurada, por dispositivo que a afirma expressamente (ar. 18), além de ser também garantia pelo princípio da não-intervenção. A intervenção da União nos municípios está fora de qualquer cogitação, embora possa neste ocorrer a intervenção dos estados, em hipóteses excepcionais definidas, também, na Constituição Federal.

Ressalte-se que entre as hipóteses de intervenção federal nos estados está aquela em que a União deva assegurar o princípio constitucional da autonomia dos municípios (art. 34, inciso VIII, alínea ‘‘c’’). Tem-se, pois, reforçada assim a autonomia dos municípios, nos quais quase não pode intervir a União, tem esse esta o dever de não permitir a intervenção dos estados.

Ocorre que a Emenda Constitucional nº 20/98 introduziu no texto da Carta Magna dispositivo a dizer que ‘‘ao servidor, ocupante, exclusivamente, de cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração bem como de outro cargo temporário ou de emprego público, aplica-se o regime geral de previdência social.’’ Isso quer dizer que os servidores dos estados e dos municípios, na condição que o dispositivo define, estão por ele abrangidos, surgindo daí o conflito com dispositivos legais das entidades às quais servem, que os vinculam ao regime próprio de seguridade social de cada uma delas.

Coloca-se, então, a questão de saber se tal conflito deve ser resolvido pela prevalência da citada norma agora encartada na Constituição Federal, ou se, pelo contrário, deve prevalecer o princípio da autonomia federativa, vale dizer, se deve prevalecer a vinculação dos servidores estaduais e municipais ao regime de seguridade das entidades às quais servem.

À primeira vista pode parecer que esse conflito deve ser resolvido com a prevalência da norma recém-introduzida no sistema, pela aplicação do critério hierárquico de superação das antonomias. Ocorre que a Constituição alberga norma segundo a qual ‘‘os estados, o Distrito Federal e os municípios poderão instituir contribuição, cobrada de seus servidores, para o custeio, em benefício destes, de sistema de previdência e assistência social.’’ (art. 149, parágrafo único). Assim, tem-se que o conflito na verdade não se estabelece entre as leis dos estados e dos municípios, mas no seio da própria Constituição Federal. Com essa norma que atribui competência aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios para instituir contribuição de seguridade social contra seus servidores, não se concilia a questionada norma introduzida pela Emenda 20. Cuida-se, pois, de conflito entre uma norma emanada do Poder Constituinte, e outra, emanada do Poder Reformador.

As emendas à Constituição, sabemos todos, estão sujeitas aos limites que a própria Constituição estabelece, entre os quais o albergado pelo inciso I, do § 4º, do art. 60, segundo o qual não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado. Em outras palavras, nossa Constituição não admite emendas que afetem a autonomia dos estados e dos municípios.

Por outro lado, a interpretação constitucional, como ensina Arturo Hoyos, ‘‘em uma democracia liberal deve ter como meta o fortalecimento da liberdade política e evitar o despotismo.’’ E dúvida não pode haver de que a autonomia dos estados e dos municípios consubstancia o pluralismo político, com certeza o único caminho para o fortalecimento da liberdade política e o combate ao despotismo. Isso, porém, requer, além de estruturas adequadas, juízes capazes, honestos e decididos a enfrentar os formidáveis obstáculos que encontra a democracia na América Latina. (Arturo Hoyos, ‘‘La interpretación constitucional’’, Temis, Santa Fé de Bogotá (Colombia), 1998, p. 39, nossa a tradução).

Demonstrando que temos juízes com tais qualificações, o MM. Juiz federal da 8ªVara no Ceará, professor Napoleão Nunes Maia Filho, em despacho recente, proferido em mandado de segurança impetrado por municípios cearenses contra o superintendente do INSS (processo 99.11058-7) concedeu medida liminar contra a aplicação daquela mencionada norma da Emenda 20, asseverando, com inteira propriedade, que ‘‘a banalização do princípio da supremacia constitucional, através da subalternização de qualquer de seus dispositivos, pode levar à abolição da noção de rigidez da Carta Magna, daí se iniciando a insidiosa destruição de todas as garantias que ela assegura.’’

Resta aos brasileiros a esperança de que essa postura seja adotada, também, nas instâncias superiores do Poder Judiciário, pois na verdade estamos a presenciar, nos últimos anos, essa ‘‘insidiosa destruição’’ das garantias constitucionais.

Hugo de Brito Machado
 
 

Retirado de: http://www.neofito.com.br