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A PENA DE PERDIMENTO DE BENS IMPORTADOS

Hugo de Brito Machado
Professor Titular de Direito Tributário da UFC
Juiz do Tribunal Regional Federal da 5ª Região

 
 
 
 

A autoridade da Administração Tributária tem aplicado a pena de perdimento dos bens importados em casos nos quais, ao proceder a conferência física das mercadorias, constata diferença entre o declarado pelo importador e o efetivamente encontrado nos volumes submetidos à conferência. Incidiria nesses casos a norma do art. 514, inciso XVIII, do Regulamento Aduaneiro, que comina a pena de perdimento quando se trate de mercadoria "estrangeira, acondicionada sob fundo falso, ou de qualquer modo oculta."

Seria correto, em tais casos, o desembaraço das mercadorias constantes do documento de importação, e a simultânea apreensão, para aplicação da pena de perdimento, das mercadorias não constantes daquele documento.

À primeira vista pode parecer que em se tratando de mercadorias acondicionadas em caixas ou quaisquer outras embalagens destinadas ao transporte estaria caracterizada a ocultação a que se refere a norma definidora da infração.

Trata-se, porém, de mais um entendimento incorreto, resultante de interpretação na qual não se leva em conta o elemento sistêmico, absolutamente indispensável na hermenêutica jurídica. O exame mais cuidadoso do caso, em face de outras normas do próprio Regulamento Aduaneiro, e do Código Tributário Nacional, desautoriza tal entendimento, como se passa a demonstrar.

Realmente, nos termos do art. 524 do Regulamento Aduaneiro, que reproduz norma do art. 108, do Decreto-lei nº 37/66), "aplica-se a multa de cinqüenta por cento (50%) da diferença de imposto apurada em razão de declaração indevida de mercadoria, ou atribuição de valor ou quantidade diferente do real, quando a diferença do imposto for superior a dez por cento (10%) quanto ao preço e a cinco por cento (5%) quanto à quantidade em relação ao declarado pelo importador".

Poder-se-á argumentar que essa norma somente se aplica aos casos em que as mercadorias importadas sejam aquelas efetivamente constantes do documento correspondente, e a diferença relativa à quantidade seja apenas atinente ao número de unidades que seria maior. Ocorre que o parágrafo único daquele artigo 524, reproduzindo norma do parágrafo único do art. 108, do citado Decreto-lei, diz que será de cem por cento (100%) a multa relativa a falsa declaração correspondente ao valor, à natureza e à quantidade. E isto, evidentemente, afasta definitivamente aquele argumento.

Resta, assim, determinar-se o alcance da expressão acondicionada em fundo falso, ou de qualquer modo oculta, constante do dispositivo que comina a pena de perdimento.

Dificuldade não há em saber-se o que significa acondicionada em fundo falso. Tal expressão tem sentido muito claro, a abranger as mercadorias que são colocadas em recipiente no qual há um fundo simulado. Um fundo nele colocado com o propósito induvidoso de ocultar as mercadorias colocadas abaixo dele, de sorte que mesmo esvaziado o recipiente tais mercadorias não são vistas, escapando assim à conferência. Nenhum questionamento razoável quanto a isto pode haver, porque se trata de conceito de todos conhecido, fazendo parte do conhecimento de todos quantos lidam com o assunto.

Dúvida poderia ser suscitada quanto à expressão ou de qualquer modo oculta, que a norma definidora da infração equipara à ocultação em fundo falso.

Ressalta-se desde logo que a equiparação legal há de referir-se a situações similares, situações de fato capazes de produzir o mesmo resultado prático. O resultado de subtrair as mercadorias à constatação do fisco, com eficiência equivalente à colocação destas em um fundo falso. Oculta, na norma em tela, está apenas a mercadoria que não pode ser vista mesmo pelo fiscal mais atento. Mercadoria colocada de tal forma que a fiscalização, mesmo diligente, não possa constatar sua presença ao fazer a conferência que lhe cabe normalmente realizar.

Estará em tal situação, por exemplo, certa quantidade de canetas, ou de relógios, ou de outros objetos pequenos colocados dentro de um aparelho de televisão. Ou nos forros das portas de um automóvel. Evidentemente em tais situações não se pode falar em fundo falso, e por isto o legislador utilizou-se da expressão de qualquer modo oculta para alcança-las.

Não pode, outrossim, o intérprete de uma norma da legislação tributária, desconsiderar o que estabelece o Código Tributário Nacional. E no caso específico da norma de que se cuida, não pode o intérprete desconsiderar a diretriz fixada no Código, especificamente dirigida ao intérprete da norma punitiva:
 
 

  • "Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhes comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:

  • I - à capitulação legal do fato;

    II - à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos;

    III - à autoria, imputabilidade ou punibilidade;

    IV - à natureza da penalidade aplicável ou à sua graduação."

    Em caso de dúvida, portanto, em matéria de infrações e de penalidades, a regra é a da interpretação benigna. Prevalece o princípio originário do Direito Penal de que na dúvida se deve interpretar a favor do réu. Mas o intérprete não pode alterar o sentido da lei. O favorecimento ao acusado só há de haver em caso de dúvida. Mas, a rigor, sempre haverá dúvida. A interpretação cognoscitiva não pode oferecer um resultado que seja o único correto. Assim, o órgão aplicador do Direito sempre contribuirá com a sua concepção ético-política.

    A dúvida pode situar-se na própria capitulação legal do fato. Este é certo, é conhecido plenamente, mas se tem dúvida quanto ao direito aplicável. O fato é certo, mas é incerta sua capitulação legal.

    Pode também ser o fato conhecido e certo, mas haver dúvida quanto a sua natureza, ou quanto às circunstâncias materiais em que se verificou. Ou pode a dúvida situar-se no que pertine à natureza, ou à extensão dos efeitos do fato. O fato é certo e também é certa sua natureza. Incerta é a natureza de seus efeitos, ou a extensão destes.

    Dúvida quanto à autoria é a incerteza quanto a quem tenha praticado a infração. Dúvida quanto à imputabilidade é incerteza quanto à qualidade de imputável ou inimputável do autor da infração, pois este, sendo certo, pode não ter qualidade para responder pela infração. Finalmente, dúvida quanto à punibilidade é incerteza quanto à condição de ser punível ou não o autor que seja certo e imputável.

    Dúvida quanto à natureza da penalidade aplicável haverá quando não se tiver certeza se a pena cabível deve ser multa, ou perdimento da mercadoria, ou interdição do estabelecimento, ou qualquer outra prevista em lei. Mas a dúvida pode residir não na natureza da pena, mas em sua graduação. Em qualquer destes casos é invocável a interpretação benigna.

    Em se tratando, pois, de mercadorias encontradas juntamente com aquelas constantes do documento de importação, sem ocultação porque submetidas de pronto à conferência, dúvida não pode haver quanto à impertinência absoluta da pena de perdimento. Dúvida, porém, poderá haver quanto à aplicação da multa, se a prevista no caput, vale dizer, de cinco por cento, ou a prevista no parágrafo único, do art. 524 do Regulamento Aduaneiro, vale dizer, de cem por cento da diferença do imposto devido. Essa dúvida há de ser resolvida a favor do importador, sob pena de se estar violando o preceito do Código.

    A multa de cem por cento somente é cabível quanto, pelas circunstâncias do caso, reste evidenciada a má-fé, o intuito de fraude, pois é isto que se mostra capaz de distinguir as hipóteses de declaração indevida, daquelas de declaração falsa. Evidentemente tudo o que é falso, é indevido. Entretanto, se a lei utiliza as duas expressões, como fez no caso, evidentemente não deve o intérprete considerar o indevido como incluído no conceito de falso, porque isto anularia a distinção feita pela lei.
     

    Retirado de:

    http://www.hugomachado.adv.br/artigos/