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Brasil: campeão mundial dos impostos   

 

Benedicto Ferri de Barros

08.05.1999   

"Nosso primeiro sistema tributário só nasceu em 1534, portanto 34 anos depois das caravelas de Cabral terem dado nas costas brasileiras. A partir daí, porém, não parou de crescer e de se expandir, sempre em direção ao bolso do contribuinte. Nesta e nas páginas seguintes mostramos um pouco da história dos tributos e do fisco no País" 

 
 

 

Entre tantos originais valiosos, guardados no fundo das gavetas, ou de edições limitadas à circulação interna, o Catálogo das Repartições Fazendárias do Brasil – Período Colonial e O Pequeno Dicionário da História dos Impostos, de José Eduardo Pimentel de Godoy, auditor-fiscal do Tesouro Nacional (preparados para serem editados dentro do “Projeto Memória da Receita”, da Assessoria de Divulgação e Relações Externas da Secretaria da Receita Federal), estão aguardando a iniciativa de empresas editoriais para se tornarem acessíveis ao público, como merecem ser. Trata-se de trabalhos singulares, bem escritos, frutos de notável pesquisa de dezenas de anos em documentação absolutamente inédita e vasta fonte bibliográfica, que pela riqueza e originalidade de suas informações preenchem um vácuo em nossa historiografia e trazem valiosa contribuição ao estudo da História Administrativa do Brasil. Como informa o autor na apresentação do primeiro trabalho, à exceção da obra de Augusto Olympio Viveiros de Castro, História Tributária do Brasil, de 1910, que apareceu primeiramente na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sendo posteriormente reeditada pela Escola de Administração Fazendária (Esaf) nos anos 80, nada mais de sistematizado há sobre a matéria. 

 O Catálogo das Repartições Fazendárias do Brasil - Período Colonial é uma pesquisa com cerca de 180 páginas (cerca de 14 relativas à bibliografia utilizada), que arrola em centenas de verbetes, mais ou menos extensos segundo a importância do assunto, as talvez milhares de repartições em que se desdobrou historicamente a máquina arrecadadora do Brasil, nem todas elas fiscais, como esclarece o autor, pois a Casa da Moeda e a Mesa de Despachos Marítimos também arrecadaram tributos sem serem repartições da administração tributária. José Eduardo Pimentel de Godoy designa seu trabalho como “simples cadastro burocrático”. A penetração e amplitude que deu aos verbetes vai, entretanto, além disso, constituindo magnífico trabalho de historiografia, cujo estudo e análise acadêmicos proporcionarão luzes inéditas sobre nossa história. 

 Pois, realmente, uma detalhada e crítica leitura dessa específica atividade do Estado, a de taxar, elucida um dos pontos decisivos do que tem sido a incruenta guerra-civil do bolso do cidadão contra as garras do governo. Nem sempre assim incruenta, e guerra jamais terminada, posto que ainda agora este é um dos assuntos candentes das reformas cozidas em banho-maria pelo Congresso, a despeito de sua magna importância para a modernização e viabilização da economia brasileira no mundo globalizado. Ainda recentemente, o Secretário da Receita Federal, tão brasileiro e contribuinte quanto somos os demais, se declarava contrário à mentalidade de “derrama” que empolga nossos políticos, e que, já no período colonial, originaria Tiradentes, um dos poucos mártires da nossa independência civil. E essa reforma que chega a implicar, como querem alguns, a revisão do pacto federativo entre os Estados Unidos...do Brasil, (como jocosamente a Constituição republicana de 1891 veio a denominar o Estado brasileiro), conserva toda sua potência política explosiva. Até maior do que se pode imaginar. Pois a questão de saber como se fará a distribuição da arrecadação entre a União, os Estados e os Municípios é capaz de originar ameaças pueris de uma nova Inconfidência Mineira, e, transcendendo as fronteiras do país, desencadear um ataque histérico no pudibundo equilíbrio mundial do câmbio, como sucedeu. 

 Provavelmente, este é um daqueles famosos casos em que a discussão é quase interminável, pois o problema fiscal não parece ser tanto o do quanto arrecadar e como dividir o bolo, mas o de como disciplinar o uso que é feito do bolo posto sob a administração dos políticos. De fato, se como estimou o senhor Secretário da Receita, cerca de 42% da renda nacional escapa ao fisco pela economia informal privada, muito mais do que isso escoa pelo ralo da deseconomia formal pública, pelo malbaratamento e fraudes de toda a ordem praticados pelos governos e outros agentes do Estado, aí incluídos personalidades fiscais e do Judiciário. 

 O mínimo que se pode dizer antes de qualquer análise é que nesses trezentos anos de repartições fiscais o contribuinte já se achava perdido, como hoje, na “selva escura” da verdadeira floresta amazônica que não deixou nunca de ser o sistema tributário, onde a obscuridade faz a confusão dos juízes, a delícia dos advogados tributaristas e a marginal confusão mafiosa dos fiscais. Lembro-me de ver há mais de uma dezena de anos as estantes de uma livraria especializada que cogitava de lançar obras completas sobre apenas um dos nossos mais de 50 impostos – o de renda – em volumes cujo número ultrapassariam numerosas vezes a coleção da Enciclopédia Britânica. O “revogam-se as disposições em contrário” dos nossos instrumentos legais supõe que continue a se acumular toda a legislação anterior a fim de que se possa, por confronto, saber o que é “o contrário”.  

É até de se estudar a sério se a tradicional “informalidade fiscal” em que desde os tempos coloniais se refugiou a atividade econômica privada não tem sido a explicação para nossa implausível sobrevivência e desenvolvimento econômico, uma espécie calada, passiva, obscura e macunaímica de “desobediência civil” em resposta à opressiva “mentalidade de derrama” e à criminosa deseconomia formal que tem sido impunemente praticada pelo Estado. 

 Já vê o leitor a fecundidade de especulações e análises que a leitura do Catálogo das Repartições é capaz de despertar. Na mesma linha, vem o manuseio da segunda obra, Pequeno Dicionário da História dos Impostos, com 193 páginas de texto respaldado em oito de bibliografia utilizada. 

 Este trabalho, terminado três anos após o primeiro (1993 e1996 respectivamente), segue a mesma metodologia e se apresenta com o mesmo formato de verbetes, mas enquanto o primeiro se oferece como simples “catálogo burocrático”, este se amplia e aprofunda nas informações e dá-se, como o anterior, ao valioso luxo acadêmico de citar as fontes de cada verbete. Poder-se-ia repetir a respeito de sua utilidade para a historiografia brasileira o mesmo que já se disse sobre o anterior. Seria ocioso. Vale a pena, entretanto, dar destaque a algumas observações constantes da Introdução do livro e transcrever algumas de suas passagens que constituem expressiva amostra de sua qualidade intelectual. Por exemplo: 

 “A História Tributária do Brasil é uma das mais ricas do mundo, em eventos marcantes, em interesse técnico e abundância de fontes e documentos. Realmente, nenhuma nação teve, nos últimos cinco séculos, tantos ciclos econômicos, tantas mudanças de política tributária e tantos regimes fiscais. Começamos pelo pau-brasil e pelo monopólio, passamos para o nascente capitalismo açucareiro do Nordeste, enveredamos pela economia de subsistência do sul-sudeste que desembocou no Ciclo do Ouro, entramos no século 19 em plena decadência, mas saímos dele em plena prosperidade, graças ao café e à borracha. No século 20 assistimos ao fim da borracha e à agonia do café, mas nos transformamos em nação quase industrializada e redescobrimos a mineração, a agricultura e a pecuária.” 

 José Eduardo Pimentel de Godoy acredita que “o imposto é apenas a cota com que cada um deve contribuir para o sustento da própria sociedade”, o que corresponde, perfeitamente, à concepção arquetípica que legitima o fisco, mas lucidamente reconhece que “qualquer reforma tributária deve recorrer a outras fontes de conhecimento humano além da mera ideologia política, ou da técnica fiscal, para que as diretrizes adotadas se aproximem das idéias”, dado a que sabe, perfeitamente, as vastas conseqüências econômicas, sociais e políticas maléficas que podem decorrer de um sistema tributário mal-estruturado e mal-aplicado. 

 Ao terminar a Introdução, designando modestamente seu trabalho como “arremedo de dicionário”, este que é hoje, certamente, um dos maiores – se não o maior – estudioso e erudito do assunto, não oculta a esperança de que ele atue como obra seminal para o ambicioso projeto ao qual se dedica há várias décadas, de nos dar ao menos um quadro historiográfico completo dos impostos e do fisco brasileiro. 

 

Extraído do site http://www.secrel.com.br/tributos/bfbarros.htm