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A contratação direta de cursos de capacitação por
inexigibilidade de licitação
André Pataro Myrrha de Paula e Silva*
O Tribunal de
Contas da União, chamado a se manifestar acerca do tema, assim se manifestou,
na Decisão n. 439/1998, do Plenário, referente ao Processo nº TC 000.830/98-4:
O Tribunal Pleno,
diante das razões expostas pelo Relator, decide:
1. considerar que
as contratações de professores, conferencistas ou instrutores para ministrar
cursos de treinamento ou aperfeiçoamento de pessoal, bem como a inscrição de
servidores para participação de cursos abertos a terceiros, enquadram-se na
hipótese de inexigibilidade de licitação prevista no inciso II do art. 25,
combinado com o inciso VI do art. 13 da Lei nº 8.666/93;
2. retirar o
sigilo dos autos e ordenar sua publicação em Ata; e
3. arquivar o
presente processo.
Devido à sua
clareza, pedimos vênia para transpor trechos da referida decisão, do Ministro
Adhemar Paladini Ghisi, relator do Processo, que ensina:
É notoriamente
sabido que na maioria das vezes, no caso concreto, é difícil estabelecer
padrões adequados de competição para escolher isentamente entre diferentes
professores ou cursos, tornando-se complicado comparar o talento e a capacidade
didática dos diversos mestres (...) Aliás, essa realidade já foi reconhecida
pela doutrina do direito administrativo. O mestre Ivan Barbosa Rigolin, ao
discorrer sobre o enquadramento legal de natureza singular empregado pela
legislação ao treinamento e aperfeiçoamento de pessoal, ainda quanto à
aplicação do art. 23, inciso II, do Dec.-lei nº 2.300/86, defendia que:
"A
metodologia empregada, o sistema pedagógico, o material e os recursos
didáticos, os diferentes instrutores, o enfoque das matérias, a preocupação
ideológica, assim como todas as demais questões fundamentais, relacionadas com
a prestação final do serviço e com os seus resultados - que são o que afinal
importa obter -, nada disso pode ser predeterminado ou adrede escolhido pela
Administração contratante. Aí reside a marca inconfundível do autor dos
serviços de natureza singular, que não executa projeto prévio e conhecido de
todos mas desenvolve técnica apenas sua, que pode inclusive variar a cada novo
trabalho, aperfeiçoando-se continuadamente.
Por todas essas
razões, entendeu a lei de licitações de classificar na categoria de serviço
técnico profissional especializado, o trabalho de treinamento e aperfeiçoamento
de pessoal da Administração, por particulares (pessoas físicas ou jurídicas);
sendo de natureza singular o serviço, será fatalmente diferente um treinamento
de outro, ainda que sobre os mesmos temas, quando ministrado por particulares
diversos. E, desse modo, sendo desiguais os produtos que os variados
profissionais oferecem, torna-se inexigível a licitação por imperativo lógico
que consta do art. 23, inciso II, do Dec.-lei nº 2.300/86." (
"Treinamento de Pessoal - Natureza da Contratação" "in"
Boletim de Direito Administrativo - Março de 1993, págs. 176/79- grifo nosso)
(...) Nessa mesma linha de raciocínio, destaco pensamento do administrativista
Antônio Carlos Cintra do Amaral, que ao discorrer sobre a contratação de
profissional para realização de treinamento de pessoal, assevera que:
"Treinamento
e aperfeiçoamento de pessoal é serviço técnico profissional especializado,
previsto no art. 13, VI, da mesma Lei nº 8.666/93. Em princípio, é de natureza
singular, porque é conduzido por uma ou mais pessoas físicas, mesmo quando a
contratada é pessoa jurídica. A singularidade reside em que dessa ou dessas
pessoas físicas (instrutores ou docentes) requer-se: a) experiência;
b) domínio do
assunto; c) didática;
d) experiência e
habilidade na condução de grupos, freqüentemente heterogêneos inclusive no que
se refere à formação profissional; e) capacidade de comunicação.
Como não se pode
dissociar o treinamento do instrutor ou docente, essa singularidade subjetiva é
também objetiva. Vale dizer: também o serviço por ele prestado é
singular..." ( "Ato Administrativo, Licitações e Contratos
Administrativos", Malheiros Editores, 1995, pág. 110) (...) A aplicação da
lei deve ser compatível com a realidade em que está inserida, só assim o
direito atinge seus fins de assegurar a justiça e a equidade social. Nesse
sentido, defendo o posicionamento de que a inexigibilidade de licitação, na
atual realidade brasileira, estende-se a todos os cursos de treinamento e
aperfeiçoamento de pessoal, fato que pode e deve evoluir no ritmo das mudanças
que certamente ocorrerão no mercado, com o aperfeiçoamento das técnicas de
elaboração de manuais padronizados de ensino. Essa evolução deve ser
acompanhada tanto pelos gestores como pelos órgãos de controle, no âmbito de
suas atuações. Assim, desponta, a meu ver, com clareza que a inexigibilidade de
licitação para contratação de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal, na
atualidade, é regra geral, sendo a licitação exceção que deve ser averiguada
caso a caso pelo administrador.
Entretanto, ainda
que o Tribunal de Contas entenda ser permitida a inexigibilidade de licitação
para contratação direta de professor para ministrar curso de aperfeiçoamento,
devem ser feitas algumas ressalvas.
O artigo 25, II,
da Lei de Licitações dispõe que a inexigibilidade de licitação deve estar
restrita às hipóteses de prestação de serviço técnico, singular e realizado por
profissionais de notória especialização.
Para Marçal Justen
Filho [01], "a inexigibilidade apenas se configura diante da
presença cumulativa dos três requisitos. Ou seja, não basta configurar-se um
serviço técnico profissional especializado, mas a contratação direta dependerá
de constatar-se a existência de objeto singular. Ademais disso, apenas poderá
ser contratado um sujeito titular de notória especialização" [02].
No alusivo à
notória especialização Hely Lopes Meirelles a conceitua da seguinte forma:
... é o
reconhecimento público da alta capacidade profissional. Notoriedade
profissional é algo mais que habilitação profissional. Esta é a autorização
legal para o exercício da profissão; aquela é a proclamação da clientela e dos
colegas sobre o indiscutível valor do profissional na sua especialidade
[03].
Celso Antônio
Bandeira de Mello observa que a notória especialização "diz respeito a
trabalho marcado por características individualizadoras" [04].
Para Adilson Abreu Dallari tal notoriedade não se confunde com a popularidade,
"não é necessário que o contratado seja tido como reconhecidamente capaz
pelo povo, pela massa, pelo conjunto dos cidadãos, pela coletividade. Basta que
isto aconteça no âmbito daquelas pessoas que operam na área correspondente ao
objeto do contrato" [05].
Em relação à natureza
singular do serviço, a doutrina a define de forma variada. Para Diógenes
Gasparini deve se entender como "aquele que é portador de uma tal
complexidade que o individualiza" [06]. Por sua vez, Celso
Antônio Bandeira de Mello sustenta que "serviços singulares são os que se
revestem de análogas características. De modo geral são singulares todas as
produções intelectuais, realizadas isolada ou conjuntamente – por equipe –
sempre que o trabalho a ser produzido se defina pela marca pessoal (ou
coletiva), expressada em características científicas, técnicas e/ou
artísticas." [07].
Devemos
estabelecer, também, a diferença existente entre singularidade e
especificidade, sendo aquela um adicional em relação à essa. O objeto singular,
assim, importa em uma atividade complexa, que requer conhecimento e experiência
específica e reputada fora do padrão. Implica situação que, fosse realizada
licitação, provavelmente acarretaria a contratação de profissional não
habilitado à execução do serviço. No entender de Justen Filho (in Comentários à
Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 11ª ed., Dialética, 2.005, p.
282), a singularidade do objeto é caracterizada por se tratar de situação
anômala, incomum, impossível de ser enfrentada satisfatoriamente por todo e qualquer profissional especializado, envolvendo casos que
demandam mais do que simples especialização, pois apresentam complexidades que
impedem obtenção de solução satisfatória a partir da contratação de qualquer
profissional, ainda que especializado. E completa, informando que "a
fórmula natureza singular destina-se a evitar a generalização da contratação
direta para todos os casos enquadráveis no artigo 13" [08].
Rigolin assim se
posiciona: "Natureza singular de
um serviço, um trabalho, uma obra autoral, uma qualquer produção, é a
característica de personalismo inconfundível que possua; é a qualidade autoral
que a distingue de qualquer outra; é a sua feição própria, particular,
peculiar, dada por uma e apenas uma pessoa – física ou jurídica -, impossível de substituição pelo serviço de
outra pessoa. É o serviço assinalado pelo cunho ou a chancela pessoal de
alguém, marcado pelo seu timbre inconfundível, dotado, por isso, de
características que lhe emprestem natureza de singularidade, de
inconfundibilidade com outro serviço de quem quer que seja." [09]
Carlos Ary,
[10] fundado em Celso Antônio, diz que o serviço singular, para tornar
inviável a licitação, deve, necessariamente, trazer a marca pessoal de seu executor. Celso Antônio também ensina a
respeito dos serviços singulares, que para o referido autor são os que "se revestem de análogas características. De
modo geral são singulares todas as produções intelectuais isolada ou
conjuntamente – por equipe – sempre que
o trabalho a ser produzido se defina pela marca pessoal (ou coletiva),
expressada em características científicas, técnicas ou artísticas importantes
para o preenchimento da necessidade administrativa a ser suportada."
[11]
Para Jacoby
[12], "é imperioso que o serviço a ser contratado apresente uma
singularidade que inviabilize a competição entre os diversos profissionais
técnicos especializados". Assim, percebe-se claramente que não é
suficiente a especialização do serviço, que pode ser prestado por diversos
profissionais da área, mas uma singularidade que inviabiliza completamente a
competição.
O TCU, no
TC-001.658/2001-6, definiu que:
Ocorre que não
basta que determinada empresa seja fornecedora exclusiva de um bem ou serviço
para que se dê guarida legal a sua contratação por inexigibilidade de licitação.
É necessário mais que essa simples verificação. É imprescindível que o objeto a ser contratado seja o único a satisfazer
as necessidades da Administração, bem como não haja no mercado nenhum outro de
características similares, capaz de satisfazer as necessidades da Administração.
Deve o objeto ter características que o tornem singular para a Administração,
justificando dessa forma a exclusividade no fornecimento. Para a perfeita
caracterização da razão de escolha do fornecedor, no caso da existência de bens
ou serviços similares, é preciso que seja demonstrado no processo que tais
similares não atendem às necessidades da Administração, sob pena de nulidade do processo.
Este o
entendimento do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, no processo TC - 30.590/02/65,
relativamente à singularidade do objeto:
Inexigibilidade de
licitação. Notória especialização. Não evidenciada a singularidade dos
serviços. Ainda que a contratada
detenha conhecimentos técnicos necessários a caracterizá-la como notoriamente
especializada, tal aspecto isoladamente não autoriza a celebração direta do
ajuste, eis que a inexigibilidade licitatória só se justifica quando conjugado
a este requisito: o da singularidade dos serviços. (Grifo nosso).
O Tribunal de
Contas do Estado de Minas Gerais, em recurso de revisão contra decisão
prolatada nos autos de N. 612.508, na sessão do dia 07/05/03, assim tratou
acerca do tema:
Nesse sentido, a
classificação de um serviço como sendo de natureza singular esbarra, sempre,
nas especificações do caso concreto, demandando, assim, análise acurada do
serviço de que se pretende contratar. No caso específico dos autos, creio, em
face dos elementos até então coligidos, não há elementos suficientes que possam
comprovar que a empresa contratada possuía notória especialidade que
inviabilizasse a competição para a execução dos serviços (não há nos autos
documentação relativa à empresa contratada), nem tampouco restaram comprovadas a necessidade e a singularidade dos serviços prestados.
Assim, não é a
alegação de notória especialização, única e exclusivamente, capaz de autorizar
a inexigibilidade de licitação. O Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais,
na decisão citada, assim se
manifestou:
Inicialmente,
cumpre esclarecer que, para que se configure a hipótese de inexigibilidade de
licitação prevista nos dispositivos sob comento, necessário se faz conjugar os
elementos definitórios do serviço singularidade
e notória especialização. Vale dizer, a Administração somente poderá
justificar a contratação direta quando comprovar a capacidade notória do
contratado e a necessidade dessa especialização. Não ocorrendo esse binômio, a
licitação se impõe.
Cumpre ressaltar,
a especialização em determinada área de conhecimento não permite por si só a
inexigibilidade de licitação, devendo ser conjugada com outros requisitos,
dentre os quais a demonstração de que as características particulares do
profissional são as únicas que preenchem a necessidade da Administração.
Ponto também
merecedor de menção é o atinente ao valor cobrado pelo profissional para a
realização de cursos e palestras. É necessária a comprovação de que o valor
pedido pela contratada encontra-se em consonância com os valores normalmente
pedidos pela mesma para serviços similares em outras instituições públicas.
Nesse sentido se manifestou o Tribunal de Contas da União, no Acórdão 819/2005
do Plenário:
Quando contratar a
realização de cursos, palestras, apresentações, shows, espetáculos ou eventos
similares, demonstre, a título de justificativa de preços, que o fornecedor
cobra igual ou similar preço de outros com quem contrata para evento de mesmo
porte, ou apresente as devidas justificativas, de forma a atender ao inc. III
do parágrafo único do art. 26 da Lei 8.666/1993.
Portanto, não
estando presentes os três requisitos, não há que se falar em inexigibilidade de
licitação.
Notas
1.
FILHO, Marçal Justen. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos.
11.ed. São Paulo: Dialética, 2005.
2.
Art. 25. É inexigível a licitação
quando houver inviabilidade de competição, em especial: II - para a
contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza
singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a
inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação
3.
MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e
Contrato Administrativo. 11ª ed. São Paulo. Malheiros Editores. 1996. p. 50.
4.
MELLO, Celso Antônio Bandeira. Licitação. Editora
RT. 1980. p. 19.
5.
DALLARI, Adilson Abreu. Aspectos Jurídicos
da Licitação. São Paulo. Saraiva. 1992. 3º ed. P. 39.
6.
GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 1989.
p. 223.
7.
DE MELLO, Celso Antônio Bandeira. Licitação.
Editora RT. 1980. p.19.
8.
Art. 13. Para os fins desta Lei,
consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos
relativos a: VI - treinamento e aperfeiçoamento de pessoal.
9.
RIGOLIN, I.B. Manual prático das licitações: Lei n. 8.666/93, p. 120.
10.
SUNDFELD, C.A. Licitação e contrato administrativo de acordo com as leis 8.666/93 e
8.883/94, p. 44.
11.
MELLO, C.A.B. Curso de direito administrativo, p. 276.
12.
FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Vade-mécum
de Licitações e contratos. 2.ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2005.
* Assistente Jurídico do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11486
Acesso em: 22 ago.
2008.