® BuscaLegis.ccj.ufsc.br
A percepção de risco nas Parcerias Público-Privadas e a Lei nº 11.079/2004 e seus mitigantes
José Emilio Nunes Pinto*
Ao apagar das luzes do ano de 2004, o Congresso
Nacional outorga à sociedade civil um instrumento importante para o
desenvolvimento econômico e social do País – a possibilidade de se
estabelecerem as denominadas parcerias público-privadas ou, simplesmente, as
PPPs, nos termos da Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004.
Mais
de um ano se passou desde que o Executivo encaminhou ao Congresso Nacional o
Projeto de Lei das PPPs. Mas foi nesse período de tempo que, em conjunto com o
Executivo, os Parlamentares trouxeram uma contribuição efetiva para o
aprimoramento do texto legal, encarando as dificuldades efetivas e buscando
soluções que permitissem a implementação efetiva de projetos. Nessa tarefa,
puderam eles contar com o apoio de especialistas e de potenciais participantes
em operações dessa natureza, sem deixarmos de mencionar a colaboração aportada
pelas entidades de classe da indústria e do setor de serviços.
Superada
essa fase complexa, o País e a sociedade civil contam agora com um marco legal
claro e definido para a implementação de parcerias. Cabe-nos agora arregaçar as
mangas e lançar-nos ao trabalho efetivo, em busca de resultados concretos.
Do
ponto de vista legal, o texto de lei aprovado, e ora submetido à sanção
presidencial, joga uma lufada de oxigênio na estrutura do direito
administrativo brasileiro. Arraigado a conceitos vigentes no pré-Segunda
Guerra, o direito administrativo ainda reflete, em muitos de seus aspectos, a
noção superada do Estado provedor. Hoje, e as PPPs são uma manifestação
inequívoca disso, há uma convergência na ação do Estado e das entidades
privadas, no contexto do conceito de responsabilidade social. O desenvolvimento
do País requer mais do que uma ação isolada do Estado. Este deve buscar no
setor privado o apoio a projetos estruturantes, capazes de abrir uma avenida
propícia ao desenvolvimento econômico e social.
Bastante
conhecidas são as limitações orçamentárias com que se defronta o Estado. Os
recursos arrecadados, apesar de serem vultosos, são insuficientes para permitir
a implementação de todos os projetos de que o País necessita nesta quadra de
seu desenvolvimento. O desempenho econômico do Brasil não pode se dar de forma
cíclica, ou seja, a alternância entre ciclos virtuosos e ciclos de depressão.
Necessitamos estar seguros de que há sustentabilidade e permanência em cada
etapa do processo desenvolvimentista para que possamos planejar e encarar a
fase subsequente.
Projetos
de infra-estrutura assumem papel fundamental no complexo processo de
desenvolvimento sustentável. Os gargalos detectados nessa área põem em risco a
continuidade do processo produtivo e das exportações. Os recursos disponíveis
se dirigem, em grande parte, para programas de cunho social, exigindo soluções
criativas para que não interrompamos o processo de crescimento recém retomado
pelo País.
Se
bem que não se deva jamais perceber as PPPs como uma panacéia, um "remédio
para todos os males", nem mesmo "uma redenção de todos os
nossos problemas", certo é que essa modalidade operacional poderá
trazer resultados positivos para o País, como ocorreu em outros países, desde o
Reino Unido, onde surgiu o primeiro programa, passando pelos países da Europa,
especialmente os do Leste Europeu, e chegando ao continente americano através
de programas importantes implantados no Canadá, como os de cunho social na
Província de Alberta, Ontario, Quebec e British Columbia onde se pode
testemunhar um aumento, por exemplo, de oferta de leitos hospitalares disponibilizados
nessa modalidade, além de outros projetos como estradas, ferrovias e escolas,
não nos esquecendo das experiências de sucesso no vizinho Chile.
As
PPPs se inserem num processo de evolução que se iniciou com as privatizações,
se seguiu com a outorga de concessões tradicionais para desenvolvimento de
projetos de infra-estrutura e culmina, neste momento, com um esforço e
engajamento conjuntos do Estado e do setor privado.
O
primeiro passo já foi dado. Contamos com um marco legal aplicável às PPPs. A
Lei define claramente as PPPs como uma modalidade de contrato de concessão,
seja a patrocinada, seja a administrativa. O grande mérito deste texto legal é
definir as concessões que se enquadram no âmbito das PPPs, mantendo íntegras as
concessões ordinárias. Na verdade, o que irá dar o contorno de uma PPP à
concessão é o aporte de recursos pelo parceiro público, seja ele adicional à
tarifa paga pelo usuário (concessão patrocinada), seja em decorrência de
ser a Administração Pública a usuária direta ou indireta dos serviços prestados
(concessão administrativa).
A
questão principal que se impõe a partir de agora é passar do texto legal para a
realidade da implementação dos projetos concebidos. Já tivemos a oportunidade
de mencionar que as PPPs, por mais estranho que isso possa soar, estão
ancoradas em dois "C", isto é, o "C" da Cultura e o
"C" da Criatividade (1). O desenvolvimento das PPPs
representa um profundo processo de mudança cultural nas relações entre o Estado
e o particular, assim como exige de todos os que com elas venham a se envolver
muita criatividade na forma de implantação. Além disso, as PPPs estarão a
exigir um esforço adicional e que está, de certa forma, ligado à criatividade,
ou seja, a "tropicalização" de modelos adotados em outros países que
nos precederam nesse esforço, ajustando-os à nossa cultura e realidade. Não
podemos imaginar que estaremos em condição de simplesmente transportar
experiências realizadas em outros países para o Brasil sem que nos dediquemos,
em primeiro lugar, a adaptá-las à nossa cultura e à nossa realidade. Nisso
reside o que denominamos de "tropicalização" (2).
No
entanto, o sucesso das PPPs está a depender do apetite que possam elas gerar no
investidor privado sem a participação do qual os esforços despendidos
dificilmente produzirão qualquer resultado prático. Esse apetite será maior ou
menor em função do resultado da equação remuneração versus risco, ou
seja, da forma como o grau de risco envolvido em cada projeto possa ser
percebido pelo investidor privado e que ele não venha a amesquinhar o retorno
do investimento previsto pelo parceiro privado. As PPPs somente terão cumprido
a sua função se, de um lado, assegurarem a disponibilidade de um serviço ou a
instalação de um ativo. Por outro, no entanto, há que se buscar um balanço para
que a satisfação do parceiro privado esteja alinhada com a do parceiro público,
ou seja, que aquele venha a auferir, no tempo e forma ajustados, a remuneração
que corresponde à contrapartida do investimento efetivado.
Os
riscos num projeto PPP são de várias naturezas e vamos analisá-los, neste
momento, de per se e examinar se, a despeito do que se possa vir a criar no
futuro, o texto legal, de alguma forma, buscou uma forma de mitigá-los por
antecipação, criando mecanismos que amenizem os riscos envolvidos. No entanto,
é importante que saibamos que, nesse campo, não há operação sem risco e que
este é inerente à natureza de cada projeto. Eliminar riscos é um esforço
inglório, o que desnaturaria a operação. No entanto, mitigar os riscos é dever
de todos os que se lançarem em operações no âmbito das PPPs, e estará iludido o
que pensar que a mitigação é de interesse exclusivo do parceiro privado. O
parceiro público, de forma idêntica, tem interesse nessa mitigação, já que a
convivência com um grau de risco elevado se constitui em ameaça à implementação
das PPPs e ao adimplemento do projeto, seja quanto à sua conclusão, seja quanto
à sua operacionalização ao longo da vida do contrato de concessão.
O
primeiro e maior deles é o risco político. Risco soberano associado com o país
anfitrião, na visão do investidor externo e que, para o investidor local, não
assume os mesmos contornos, mas não deixará, assim mesmo, de existir. Mas o
risco político envolve ainda o denominado "fato do príncipe",
entendido este como o conjunto de medidas de natureza administrativa que, sendo
alheias ao contrato, sobre ele terão influência. Incluem-se nessa categoria as
alterações administrativas, expressas em mudança de lei, decisões judiciais
transitadas em julgado ou em atos administrativos.
A
Lei das PPPs, no entanto, não foi insensível a este aspecto fundamental. Muito
embora tenha preferido e, a nosso ver muito corretamente, não estabelecer de
antemão regras sobre o assunto, optou, no entanto, por deferir ao respectivo
contrato a tarefa de tratar da repartição entre as partes dos riscos referentes
ao fato do príncipe e à álea econômica extraordinária, assim como os efeitos do
caso fortuito e da força maior (3). Quando afirmamos que andou bem o
legislador ao deferir ao contrato a solução dessas questões, quisemos enfatizar
que, na área de PPPs, como nos projetos em geral, não há contratos-padrão.
Dentro dos limites previstos em lei, cada contrato há de convir, apenas e tão
somente, à operação a que se refira. Pensar em padronizar um contrato para toda
e qualquer operação é tarefa que tende a demonstrar-se inútil ou, pelo menos,
com efeitos bastante duvidosos. Cada caso conterá aspectos próprios que deverão
ser levados em conta pelas partes. Para tanto, um dos pressupostos da Lei é que
haja uma repartição objetiva de riscos entre as partes. E isso parece
suficiente.
Um
outro risco muito importante é o risco ambiental, ou seja, a previsibilidade de
se obterem as licenças ambientais necessárias a cada uma das fases do projeto.
A história recente de projetos de infra-estrutura de grande porte vem sendo
afetada pela dificuldade na obtenção das licenças ambientais. Anteriormente,
quando da aprovação do novo marco regulatório para o setor elétrico, o
legislador estabeleceu que a licitação de novos empreendimentos hidrelétricos
deveria contar com a licença prévia expedida (4). No caso das PPPs,
a legislação buscou mitigar de antemão esse risco ao determinar que a abertura
do procedimento licitatório para a outorga de concessão no âmbito das PPPs
estará condicionada, dentre outros requisitos, a que o projeto conte com
licença ambiental prévia expedida pelo órgão competente ou, em sendo o caso, que
sejam conhecidas as diretrizes para o licenciamento ambiental do empreendimento
(5). É importante que se tenha em mente que a Lei buscou uma forma de
mitigação do risco ambiental. Longe de eliminá-lo, atenua ela o risco, cabendo
ao parceiro privado no empreendimento seguir fielmente as diretrizes para o
licenciamento, sabendo a priori as dificuldades que poderá vir a
encontrar. Vale lembrar que, em muitas oportunidades, o risco não pode ser
medido por antecipação, já que não é impossível que venham a ser descobertos,
ao longo da construção do empreendimento, tais como sítios arqueológicos e
paleontológicos de grande impacto. Não é desconhecida a história da construção
de um gasoduto no centro-oeste que teve a sua implementação retardada pela
descoberta de cavernas de morcegos. Até que se encontrasse uma solução que, a
um só tempo, preservasse o habitat da espécie e fosse compatível com o traçado
do gasoduto, a obra sofreu um atraso considerável. Fatos como este, poderão
sempre ocorrer e afetarão o prazo de conclusão do empreendimento. Questões como
essa devem ser reguladas nos instrumentos contratuais respectivos,
especialmente as conseqüências daí decorrentes. A tarefa das partes será
regulamentar o que possa vir a surgir, estabelecendo quem deverá suportar e em
que medida os efeitos daí decorrentes.
O
risco regulatório, por sua vez, assume, em determinados setores, uma
importância muito grande. Vimos afirmando há algum tempo que precisamos contar,
no que tange às atividades reguladas, com um marco legal claro e estável. Além
disso, não podemos nos esquecer de que o risco regulatório abrange, ainda, a
forma de aplicação do marco estabelecido. É o risco associado à intervenção do
regulador. Não basta que o marco exista, que seja ele claro e estável,
necessário será que o regulador setorial aplique o marco e busque as soluções
na forma nele previstas. O risco decorre da necessidade de que se aplique o
marco previsto sem dele se afastar, evitando-se decisões em que o subjetivismo
tome o espaço das soluções objetivas, o que geraria insegurança e nos levaria
para o campo das suposições e incertezas. Essa mesma ressalva valerá para
aquelas áreas de atividade e setores onde o caráter regulatório decorre de
normas e regras contratuais. É muito importante que os parceiros dediquem tempo
e exerçam a criatividade para o estabelecimento dessas regras, ao mesmo tempo
em que é importante que se estabeleçam os parâmetros que hão de reger a atuação
das agências reguladoras e dos Ministérios (6). O contrato básico
das PPPs é, por usa natureza, um contrato administrativo (7), e
contrato de concessão, revestindo-se, portanto, da natureza de contrato
administrativo por excelência. Diante disso, pode a Administração Pública
valer-se das cláusulas exorbitantes inerentes ao contrato administrativo e que
não necessitam estar previstas no instrumento contratual para se aplicarem.
Resulta disso que, à vista do interesse público, a Administração poderá
servir-se dessas cláusulas e invocá-las para alterar unilateralmente ou rescindir
também unilateralmente o contrato. O risco, neste caso, estará no eventual
abuso no exercício dessas prerrogativas com invocação do interesse público.
Vale sempre lembrar que, dada a sua excepcionalidade, a invocação do interesse
público pela Administração há de ser exercida de forma parcimoniosa. É muito
importante que se tenha em mente que há uma distinção bastante clara entre
interesse público e o interesse privado da Administração Pública. A mitigação
desse risco somente será alcançada se a Administração limitar a sua ação ao que
seja realmente o interesse público, não cedendo à tentação de qualificar como
tal o que, na realidade, não passa de um interesse privado da Administração.
O
risco contratual nas PPPs é, a exemplo do que acontece em projetos em geral, da
maior importância. A Lei das PPPs nos indica a necessidade de que seja
disponibilizada, juntamente com o edital de licitação, a minuta do contrato
(8). É muito importante que não se pense ou se admita que uma operação no
âmbito das PPPs se implementará com apenas um instrumento contratual. É certo
que a Lei quer se referir ao contrato de concessão. No entanto, um projeto da
natureza dos pretendidos por PPPs exige o estabelecimento de uma complexa
cadeia contratual, capitaneada esta pelo contrato de concessão. Portanto, desse
contrato ou em relação a ele, outros contratos irão ser desenvolvidos no âmbito
da parceria, tais como o contrato de construção na modalidade chave na mão,
contratos de operação e manutenção, sem mencionar os contratos de financiamento
e aqueles que visam a criar um pacote de garantias que assegure a amortização
dos financiamentos e outras modalidades de aporte de recursos ao projeto, sejam
essas garantias outorgadas pelos patrocinadores dos projetos, sejam elas uma
cessão de direitos sobre garantias de desempenho pelo parceiro público.
Cada
um desses contratos envolvendo, no todo ou em parte, os mesmos signatários,
estará encadeado com os demais. Em razão disso, muitos deles somente serão
negociados ou terão a sua negociação concluída após a assinatura de outros que
com eles se relacionam. O elemento fundamental neste caso é que haja uma
compatibilização entre o tratamento dado a cada evento ou série de eventos em
cada um desses contratos, harmonizando-se as respectivas disposições
contratuais. Se eles não existem sem ter, ainda que parcialmente, um vínculo
com um ou alguns dos demais, na parte em que estejam vinculados, necessário e
recomendável será que estejam alinhados quanto à solução ajustada. O conflito
no tratamento contratual de situações correlatas representa um risco efetivo e
agrega maior custo ao empreendimento, especialmente no que tange ao custo de
captação de recursos de terceiros. Na cadeia contratual, por exemplo,
dificilmente se poderá conviver com instrumentos correlatos em que num deles
determinado evento seja tratado como de força maior e com as conseqüências daí
decorrentes e, em outro, esse mesmo evento não se beneficie do mesmo
tratamento. Situações como essa fazem com que uma das partes assuma um risco
maior sem que possa se proteger adequadamente na cadeia contratual.
Todos
aqueles que, em algum momento, se dedicaram à negociação de contratos de
projetos de infra-estrutura sabem muito bem as conseqüências que se podem prever
em situações que estejam fora do controle de uma das partes e que, por
característica da própria negociação contratual, não encontrem elas tratamento
similar no âmbito de contratos que estejam a montante ou a jusante daquele
então considerado. A palavra de ordem, nesse aspecto, é, sem dúvida alguma, a
harmonização da cadeia contratual. Trabalho extenuante, é certo, mas de
importância capital para a condução do empreendimento. O exercício dessa
harmonização há de representar um enorme benefício para o projeto como um todo,
evitando-se o surgimento de situações para as quais as partes deixaram de
contemplar regras de solução. Ainda aqui deve-se prestigiar o adimplemento das
obrigações como forma de se atingir o objetivo pretendido.
Uma
das grandes conquistas obtidas com o exercício da implementação, via concessão,
de projetos de infra-estrutura de grande porte foi a conscientização do Poder
Concedente de que há um fator da maior relevância que se sobrepõe ao desejo de
se ver um projeto implementado. Referimo-nos à viabilidade econômico-financeira
de projetos dessa natureza. O Poder Concedente está consciente de que cada
projeto seja viável, o que evita o que ocorreu no passado onde volumes
importantes de recursos foram "enterrados" em projetos que eram
sabidamente inviáveis. Esses tempos ficaram para trás e a Lei não ignora esses
novos tempos e estabelece padrões de atuação com eles compatíveis para a
Administração Pública (9).
Muito
embora se pudesse qualificá-lo como parte do risco político ou soberano,
optou-se por dar destaque especial ao risco de inadimplemento no contexto de um
empreendimento qualificado como PPP. Em primeiro lugar e a título de introdução
a essa discussão, nos socorremos da cultura existente entre o setor público e o
setor privado, ou seja, a cultura da desconfiança mútua. O setor privado
desconfia do cumprimento da obrigação de pagamento pelo setor público e este,
por sua vez, da observância dos prazos e custos contratuais pelo setor privado.
Se não lograrmos construir uma cultura sadia de relacionamento entre as partes,
dificilmente teremos sucesso nessa empreitada. A cultura sadia implica admitir
que cada uma das partes cumprirá com o ajustado e sempre imbuída de boa fé.
Isso, naturalmente, não exime que se estabeleçam penalidades, períodos para
remediar inadimplementos e garantias de parte a parte. Isso faz parte inerente
da dinâmica contratual.
O
Estado sempre se caracterizou por ser um mau pagador, no sentido de que as
obras e serviços devem ser concluídos no tempo e forma ajustados e os prazos
para pagamento podem ser dilatados em razão da conveniência administrativa. Não
se tome isso como ofensa, visto que foi essa constatação que levou o Conseil
d’Etat francês a criar, no passado, o mecanismo da manutenção do equilíbrio
econômico-financeiro, expurgando o risco da álea econômica extraordinária dos
preços ofertados pelos particulares em procedimentos licitatórios. Por isso se
pode afirmar que esse mecanismo representa uma proteção do interesse público e
do interesse particular. A contrapartida da invocação do interesse público para
uma alteração unilateral do contrato administrativo implica, por outro lado, a
restauração da forma que venha a ser julgada viável da equação de equilíbrio do
contrato, preservando-se, dessa forma, a situação do contratado e, além disso,
a satisfação do interesse da coletividade.
A
questão é muito clara ao ser analisada. O mesmo interesse público que
determinar a alteração unilateral do contrato, determinará, por conseguinte, a
preservação da situação do contratado, assegurando-se, dessa forma, a conclusão
de uma obra ou a continuidade na prestação de um serviço público.
Vale
lembrar que, na forma prevista na Lei, o pagamento de qualquer contraprestação
pela Administração Pública, seja na modalidade de concessão patrocinada, seja
na de concessão administrativa, dependerá sempre da conclusão do empreendimento
e de sua efetiva disponibilidade para o parceiro público (10).
Portanto, ao se credenciar para recebimento da contraprestação ajustada, o
parceiro privado deverá ter concluído o empreendimento e estar o mesmo em
condições de fruição pelo parceiro público ou de usuários do mesmo, o que faz
com que a maior e mais significativa parcela do investimento já tenha sido
efetivada e as obrigações de financiamento assumidas e vinculativas para ele.
Nesse
quadro, não pode o parceiro privado se ver impedido de receber efetivamente a
contraprestação que lhe cabe (11), na forma e prazos ajustados. Nesse
campo, a Lei tomou uma série de cautelas a serem introduzidas no contrato de
concessão e destinadas a minimizar o risco: fixação de penalidades
proporcionalmente à gravidade do inadimplemento e às obrigações assumidas e
fatos que caracterizem o inadimplemento pecuniário do parceiro público, modo de
corrigi-lo e forma de acesso a garantias (12); garantias prestadas,
dentre outras formas, por um Fundo Garantidor especialmente criado, de natureza
privada, e com limite de prestação de garantia atrelado ao valor total de seus
ativos, e cuja administração estará a cargo de uma instituição financeira sob
controle da União, mas supervisionada pelo Banco Central do Brasil (13).
Por outro lado, como forma de manter a atualização monetária dos valores
contratuais e evitar as demoras naturais em sua implementação, dispensa-se a
homologação prévia da Administração nos casos em que a atualização se basear em
índices e fórmulas matemáticas (14).
Se
bem que as penalidades se apliquem, da mesma forma, ao parceiro privado,
criando-se uma condição de equilíbrio contratual, este, por sua vez, deverá
prestar garantias de execução do empreendimento compatíveis com os ônus
assumidos e riscos envolvidos, sendo que o contrato deverá conter critérios
objetivos para avaliação de seu desempenho (15). Aliás, vale lembrar
que a contraprestação poderá ser efetivada até mesmo na forma de remuneração
variável atrelada, neste caso, a metas e padrões de qualidade (16).
Aqui reside uma questão importante: um projeto dessa natureza somente será
considerado prioritário se vier a atender necessidades da coletividade. Por
outro lado, há que se buscar um ponto realista quanto aos padrões de qualidade
e desempenho a serem demonstrados pelo parceiro privado em relação ao projeto e
que seja viável de ser atingido; da mesma forma, esse ponto ideal deve
responder aos anseios do parceiro público com vistas ao atendimento do
interesse coletivo. A canalização de recursos privados e/ou públicos somente
será justificável se, em nome da contraprestação a ser auferida, o parceiro
privado coloca à disposição um projeto compatível com os requisitos que tenham
sido estabelecidos. Portanto, aí se encontra outra área onde se deve investir
tempo e discernimento para que esses padrões de qualidade e desempenho se
situem nem acima, nem abaixo do que seja desejável, mas no ponto exato do
possível e desejável, do realista e atingível, o que exigirá criatividade e
investimento de tempo e esforços pelos parceiros.
Não
se pode deixar de fazer menção especial à preocupação do legislador com a
financiabilidade e bancabilidade de projetos no âmbito das PPPs. Várias são as
medidas previstas para assegurar que se materializem efetivamente as parcerias
e se implementem os projetos, dando lugar ao financiamento dos mesmos. Em
primeiro lugar, atendendo aos princípios gerais das operações de "project
finance", a Lei determina que o empreendimento deverá ser
necessariamente conduzido por uma sociedade de propósito específico, cujo único
ativo será o próprio empreendimento, devendo esta implantá-lo e geri-lo
(17), visando a isolar o patrimônio constituído pelo projeto daquele de
seus patrocinadores. Mais do que isso, embora esteja preservado em mãos do
parceiro privado, durante toda a vida da parceria, o controle dessa sociedade,
já que qualquer alteração dependerá de prévia autorização do parceiro público,
a Lei permite, no entanto, que essa sociedade adote a forma de companhia
aberta, habilitando-a a listar suas ações em Bolsa, seja as ordinárias em
excesso ao número necessário para manter o controle, seja preferenciais, bem
como quaisquer outros valores mobiliários, como é o caso de emissão pública de
debêntures. Dessa forma, a legislação criou meios para que se busque
financiamento no Brasil, evitando-se, na medida do possível, o problemático
descasamento de moedas entre receitas em Reais e financiamentos em moeda
estrangeira, que tantos problemas criou na implantação de projetos de
infra-estrutura no passado, como foi o caso da usinas termelétricas. A
indexação de obrigações à moeda estrangeira que, no passado, sempre se
caracterizou como excepcional e aplicável apenas a um universo muito restrito
de casos, na forma prevista em legislação extravagante, sofreu com a
promulgação do Código Civil, em 2002, alteração substancial já que veio este a
limitar ainda mais o recurso a esse mecanismo (18), inserindo a
norma impeditiva na legislação civil codificada e assumindo o caráter de
princípio geral relativo ao pagamento.
Além
disso, a legislação recém editada cria os mecanismos necessários para
viabilizar o atendimento aos requisitos exigidos pelos financiadores em
projetos dessa natureza. Criou ela os meios para que se torne viável a
concessão de financiamentos. A Lei permite, em caráter excepcional, que o contrato
de concessão contenha regras claras para a transferência do controle acionário
da sociedade de propósito específico para os financiadores do parceiro privado
com a finalidade de promover a sua reestruturação financeira e assegurar a
continuidade na prestação dos serviços (19). Estamos, neste caso,
diante de um mecanismo contratual que viabiliza a intervenção dos financiadores
no projeto. O mais importante é que o parceiro privado e seus financiadores
poderão vir a conhecer de antemão os requisitos para que possam ter
transferidas para eles as ações representativas do controle acionário da
empresa do projeto, eliminando-se, mais uma vez, a incerteza. Na forma prevista
em Lei, não se insere esta dentre as cláusulas que devem necessariamente estar
contidas no contrato de concessão; trata-se de uma possibilidade aberta pela
legislação; na prática, no entanto, pode-se bem imaginar que os financiadores
haverão de requerer que ela venha a constar dos instrumentos contratuais
respectivos. Ao lado dessa possibilidade, a Lei cria mais duas e que são muito
importantes: a emissão de empenhos em nome dos financiadores para recebimento
da contraprestação devida pelo parceiro público (20) e, ainda, o
reconhecimento do direito dos financiadores de receberem diretamente
indenizações porventura devidas em razão da rescisão antecipada e pagamentos
pelos fundos garantidores (21). Todas essas disposições visam a
viabilizar a obtenção dos financiamentos necessários e criar meios para que os
tomadores estruturem adequadamente as suas operações, dispondo de autorização
legal para praticá-las livremente. Do lado dos financiadores, essas disposições
dão um quadro bastante claro da exequibilidade de mecanismos de garantia.
As
disposições mencionadas acima são da maior relevância para viabilizar a
estruturação de operações de financiamento a projetos de infra-estrutura, já
que estes não são desenvolvidos com recursos de capital aportados
exclusivamente pelos patrocinadores. Aliás, a Lei é clara ao admitir essa
realidade, estabelecendo os limites máximos para aporte de recursos públicos em
função do total das fontes de recursos financeiros (22), sendo que o
saldo remanescente deverá ser aportado pelo parceiro privado, equacionando-se,
assim, o fluxo de recursos necessários à implantação do projeto.
Sempre
defendi, no marco das operações de "project finance" do setor
elétrico, a legitimidade de soluções dessa natureza, pois parece justo que,
estando a amortização do financiamento baseada no fluxo de caixa do empreendimento,
o financiador venha a ter acesso às receitas geradas por este, nas situações
críticas mencionadas, assim como o direito de ingresso no projeto (o denominado
"step-in right"), seja para assegurar a sua conclusão, seja
para garantir a sua continuidade. Não se tente enxergar nisso, situação com a
qual já me defrontei no passado, e em que se argüía um favorecimento aos
banqueiros e financiadores que passariam a gozar de uma situação mais
privilegiada em confronto com a aplicável ao Poder Concedente. Naquela ocasião,
como agora, sirvo-me dos mesmos argumentos. Os financiadores, dada a natureza
da operação e a dependência do ingresso de receitas decorrentes do projeto para
liquidação dos financiamentos concedidos, tornam-se grandes aliados da Administração
seja para assegurar a conclusão do projeto, já que, como é o caso das PPPs,
somente a partir dessa conclusão o parceiro privado fará jus à contraprestação,
seja na garantia de continuidade da operação de forma a assegurar que não haja
qualquer interrupção no fluxo de receita do projeto, o que afetaria a
capacidade do parceiro privado liquidar os financiamentos. Por mais que o
projeto conte com garantias que possam ser executadas, o que ambos pretendem é
que este siga o seu curso normal; por razões em parte diferentes, isso é certo,
mas a ruptura do curso operacional é o evento menos desejado por ambos, razão
pela qual ambos buscam de forma prioritária o adimplemento. Este é um bom
exemplo de solução negociada para eventos extraordinários. Com bastante sabedoria,
a Lei privilegia o adimplemento das obrigações em lugar de recorrer à ruptura
da normalidade operacional.
Mas
temos que levar em conta que, em contratos da duração daqueles a serem firmados
no contexto das PPPs, diversas questões e, até mesmo controvérsias, poderão
surgir ao longo do tempo, especialmente por serem eles contratos
administrativos em que o parceiro público continuará a ser titular de direitos
que o colocam numa situação de supremacia sobre o particular, sempre que possa usar
das cláusulas exorbitantes.
A
possibilidade prevista na Lei para que se utilize, para solução de
controvérsias, mecanismos privados, inclusive a arbitragem, assume, ainda aqui,
a função de mitigante para os riscos percebidos pelo parceiro privado, pelo
parceiro público e pelos financiadores. O recurso exclusivo ao Poder Judiciário
aumentaria a noção de risco, dada a realidade dos prazos envolvidos e as
obrigações assumidas pelas partes. A arbitragem, na medida em que confere
celeridade à solução e permite que a controvérsia seja dirimida por
especialistas, vem ao encontro do desejo de todos. A pendência de uma
controvérsia afeta a operacionalização e frustra os objetivos de todos os
envolvidos, inclusive dos potenciais usuários, sejam eles terceiros ou a
própria Administração Pública.
No
entanto, nem todas as questões surgidas em contratos dessa natureza poderão ser
objeto de arbitragem. Algumas haverá que se caracterizarão como direitos
indisponíveis (23), caso em que as partes deverão recorrer ao Poder
Judiciário (24). Mesmo assim, não se deve interpretar que a
utilização da arbitragem seria um elemento menor no conjunto dos mitigantes.
Não é assim. O universo de questões e controvérsias que, por sua natureza
própria, permite o uso da arbitragem é bastante grande em projetos dessa
natureza. E essa é a visão dos financiadores e investidores privados. As
cláusula exorbitantes da Administração, nos contratos administrativos, são, na
sua essência, excepcionais e, desde que invocadas e aplicadas com parcimônia,
restarão de incidência menos freqüente. No entanto, e não se veja nisso nenhuma
manifestação de pessimismo, operações dessa natureza geram controvérsias de
natureza mais variada e que podem, e devem, ser legítima e legalmente, dirimidas
por arbitragem.
A
escolha da arbitragem como meio extrajudicial de solução de controvérsias, nos
contratos de PPP, exigirá cuidado extremo na redação da respectiva cláusula
compromissória. É essencial que asseguremos a inserção de cláusulas que
permitam, quando do surgimento da controvérsia, a instauração da arbitragem
(25), evitando-se, dessa forma, que as partes vejam frustrada a sua
intenção. No mais, chama-se especial atenção para o cuidado que deva ser tomado
na elaboração de mecanismos escalonados ou multi-etapas de solução de
controvérsias, de vez que esses requerem precisão para que possam ser
integralmente implementados (26).
O
trabalho que todos teremos diante de nós é bastante complexo. A realidade é que
não se pode pensar que contratos dessa natureza possam ser negociados em tempo
recorde. As autoridades governamentais, em suas recentes manifestações, são
claras ao admitir que há um tempo envolvido até que consigamos celebrar o
primeiro contrato. Mas o importante é que não se pense que, a partir daí, será
possível encontrar um modelo de contrato a ser seguido e replicado
indistintamente. Isso é muito pouco provável, se bem que algumas cláusulas
tenham uma natureza padrão, mas não nos enganemos pois os desvios do padrão
tendem a ser em número muito maior e de enorme complexidade. Mas é melhor que
as coisas se passem dessa forma, já que o tempo envolvido na discussão e
negociação dos diversos aspectos da operação é, ele mesmo, um mitigante de
riscos, na medida em que estaremos forçados a buscar soluções que, a um só
tempo, resolvam eventos que venham a ocorrer e que preservem a operacionalidade
dos projetos. Que estejamos todos preparados para melhor usufruir em prol da operação
e do projeto o tempo a ser despendido na mesa de negociação e a todo tempo,
exerçamos a criatividade e forjemos uma verdadeira mudança cultural nas
relações entre o parceiro privado e o parceiro público. Somente dessa maneira
lograremos criar uma carteira saudável e realmente operacional para os projetos
PPP no Brasil. Somente assim estaremos contribuindo para a sustentabilidade de
nosso processo de desenvolvimento.
Notas
1
Cf. nosso artigo "Os dois "C" das PPPs" publicado em
www1.jus.com.br/doutrina
2
Cf. nosso artigo "A Tropicalização das PPPs – Uma Necessidade
Fundamental" publicado, em 12 de julho de 2004, em
www.aefinanceiro.com.br/artigos
3
Cf. art. 5º, inciso III da Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004
4
Cf. art. 20, inciso (iv), alíneas (b) e (c) do Decreto nº 5.163, de 30 de julho
de 2004
5
Cf. art. 10, inciso (vii) da Lei nº 11.079
6
Cf. art. 15 da Lei nº 11.079 quanto ao papel das agências reguladoras e
ministérios
7
Cf. art. 2º da Lei nº 11.079
8
Cf. art. 10, inciso (vi) e art. 11 caput da Lei nº 11.079
9
Cf. art. 10, inciso (i), alínea (a) da Lei nº 11.079
10
Cf. art. 7º e seu § único da Lei nº 11.079
11
Cf. art. 6º da Lei nº 11.079 quanto às formas de pagamento da contraprestação
pelo parceiro público.
12
Cf. art. 5º, incisos (ii) e (vi) da Lei nº 11.079
13 Cf. art. 8º e arts. 16 a 22 da Lei nº
11.079
14
Cf. art. 5º § 1º da Lei nº 11.079
15
Cf. art. 5º incisos (vii) e (viii) da Lei nº 11.079
16
Cf. art. 6º § único da Lei nº 11.079
17
Cf. art. 9º da Lei nº 11.079
18
Cf. art. 318 do Código Civil
19
Cf. art. 5º § 2º inciso (i) da Lei nº 11.079
20
Cf. art. 5º § 2º inciso (ii) da Lei nº 11.079
21
Cf. art. 5º § 2º inciso (iii) da Lei nº 11.079
22
Cf. art. 27 e §§ 1º e 2º da Lei nº 11.079
23
Cf. nosso artigo "A Arbitrabilidade de Controvérsias nos Contratos com o
Estado e Empresas Estatais", publicado em www.jusvi.com,
sobre o alcance da arbitragem nesses contratos
24
Cf. art. 1º da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996
25Cf.
nossos artigos "A Cláusula Compromissória à Luz do Código Civil",
publicado em www.camarb.com.br e
"As Vantagens da Cláusula Compromissória Clara e Precisa para a Condução
da Arbitragem" e "Cláusulas Arbitrais Patológicas – Esse Mal tem
Cura" publicados em www.jusvi.com
26
Cf. nosso artigo "O Mecanismo Multi-Etapas de Solução de
Controvérsias" publicado em www.camarb.com.br
*Advogado em São Paulo do José Emilio Nunes Pinto Advogados
Disponível em: http://jus2.uol.com.br/ Acesso em: 22 fev. 2007.