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A lei de recuperação de empresas dá sobrevida à antiga lei falimentar
Sebastião José Roque*
*Sebastião José Roque – Bacharel,
mestre e doutor em direito pela Universidade de São Paulo. Professor da
Universidade São Francisco – Autor do anteprojeto inicial, de que resultou a
Lei de Recuperação de Empresas.
Nota: o autor deste artigo estará à disposição dos interessados, para
quaisquer esclarecimentos gratuitos sobre a Lei de Recuperação de Empresas,
podendo os leitores dirigir-se à Saraivajur, ou pelo email: sebasroque@ajato.com.br
Em 9 de
fevereiro de 2005 surgiu a Lei de Recuperação de Empresas, a Lei 11.101/05,
sepultando um monstrengo que há décadas atormentava o direito brasileiro, ao
dizer que fica revogado o Decreto-lei 7.661, de 21.6.1945, vale dizer, a antiga
Lei Falimentar. Todavia, o art.192 abre uma ressalva: “Esta lei não se aplica
aos processos de falência ou concordata ajuizados anteriormente ao início de
sua vigência que serão concluídos nos termos do Decreto-lei 7.661/45”.
Permanece então em vigor, temporária-mente, a Lei Falimentar.
Enquanto
tramitava o projeto da Lei de Recuperação de Empresas no Congresso Nacional,
muitos lutaram para que não ocorresse a sobrevida da velha lei e nem mesmo
houvesse “vacatio legis” no novo diploma concursal. Nós todos estamos mudando
de opinião e achando acertada a decisão do Congresso Nacional. A Lei de
Recuperação de Empresas não está totalmente sedimentada e não revelou ainda
plena eficácia e aceitação. Foram constituídas em São Paulo duas varas
especializadas, que não formaram ainda carteira de processos capaz de apontar
experiência sugestiva sobre a aplicação da nova lei. Muitos advogados
revelam-se meio perplexos com a novidade.
Ao mesmo tempo
em que a Lei de Recuperação de Empresas vai-se consolidando, será possível
aliviar aos poucos nosso Judiciário de processos incômodos. A concordata foi
abolida, substituída pela recuperação judicial e pela recuperação
extrajudicial. O prazo máximo da dilação do pagamento permitido pela concordata
é de dois anos, o que nos leva a crer que em 10.6.2007 devam estar encerrados
os processos de concordata, visto que, após a “vacatio legis” a LRE adquiriu
eficácia em 10.6.2005. Enquanto isso, será possível transformar o processo de
concordata em recuperação judicial, o que irá abreviar ainda mais a resolução
desses processos. Digamos então que logo após o dia 10.6.2007 não haverá mais
os processos de concordata que estejam agora em andamento.
Vejamos então os
processos de falência iniciados antes de 10.6.2005. Normalmente os processos de
falência demoram dez anos ou mais para seu deslinde. Acreditamos então que
pelos anos 2020 a antiga Lei Falimentar estará ainda em aplicação. Esses anos
nos darão fôlego para alguns projetos que possam resolver o problema dos
antigos processos falimentares. Esses processos são de difícil extinção, em
vista de vários fatores, já superados pela nova lei, mas que devem ser
analisados.
Em primeiro
lugar, deveremos mencionar o grande número de processos em andamento. Não havia
limite de valor para o débito cobrado, o que acarretava alto volume de pedidos
de falência, às vezes por ínfima importância e contra empresas insignificantes.
Outra causa era a concepção dada ao procedimento falimentar, transformado em
execução individual e violenta de cobrança. Ao ter um crédito insatisfeito, o
credor tinha duas opções: poderia exercer execução individual contra o devedor
inadimplente ou a execução coletiva, ou seja, o pedido de falência.
Sob o critério
técnico a execução individual oferecia mais garantias, pois o devedor
continuaria solvente e poderia ter bens penhorados; se não tivesse bens a
penhorar, seria também inócua a execução coletiva. Entretanto, o pedido de
falência é um processo de cobrança violento e virulento; causa comoção. Sai
publicado nos jornais e coloca a empresa devedora na berlinda. Por isso é
discutível a eficácia desse processo como método de cobrança de dívida. Lançada
na rua da amargura, a devedora prefere dissolver-se a lutar pela difícil
reabilitação; seus dirigentes preferem constituir nova empresa e recomeçar do
marco zero, fazendo nome sem contar com as manchas do passado.
Quando se
estudava o projeto da Lei de Recuperação de Empresas, a comissão elaboradora da
nova lei, presidida pelo combativo deputado Osvaldo Biolcchi, bateu muito nesse
ponto: na transformação dos feitos concursais em métodos virulentos de
cobrança, o que veio transfigurar ainda mais o espírito da Lei Falimentar, que
não era esse a princípio.
Outro aspecto do
Direito Falimentar, que o colocou em confronto com a evolução geral, jurídica,
econômica e social era seu nítido conteúdo criminal. A própria origem
etimológica do termo dava essa impressão: falir vem do verbo latino
“fallere”=falhar, enganar, trair. Era o anátema que recaía sobre o empreendedor
pelo fenômeno que a Consolidação das Leis do Trabalho chama de “riscos da
atividade econômica”. Nem sempre a falência era fraudulenta; o falido poderia
ter sido apenas um “homem infeliz nos negócios”.
Contudo, não era
essa a concepção popular e geral da falência. Essa mentalidade foi retratada
muito bem no romance mundialmente famoso de Honoré de Balzac, “Eugenie
Grandet”, em que um conceituado e próspero homem de negócios se viu envolvido
pela álea dos mutações econômicas e sua falência tornou-se iminente. Escreveu
uma carta lacrada a seu irmão no interior do país, a ser entregue por seu
filho; tão logo o filho entrou na estada o pai suicidou-se. Mais tarde o tio
teve de contar a realidade a seu sobrinho:
“Seu pai cometeu
o mais nefando dos crimes e sentiu-se indigno de continuar neste mundo. Traiu a
confiança de centenas de pessoas que com ele contavam, dando prejuízos gerais e
à sua nação. Deixou um mau exemplo para aventureiros que se vão sentir animados
para enveredar pelo mesmo caminho de seu pai, de tal forma que a morte não
diminuirá os efeitos de seu ato.”
Não será preciso
recorrer à literatura universal para se encontrar exemplos, pois em São Paulo
temos muitos casos de honrados cidadãos que se viram compelidos ao suicídio ao
serem levados á falência. Essa excessiva conotação penal da falência implica a
intervenção constante do Ministério Público, praticamente em quase todos os
passos do processo. Às vezes, pedidos de esclarecimentos ou novas diligências
são pedidos, fazendo o processo voltar a passos já superados, mas revigorados
por fatores aleatórios. A circulação dos autos entre os vários órgãos faz
dobrar o tempo de circulação. As providências aventadas pelo Representante do
Ministério Público muitas vezes exigem cartas precatórias demoradas. Nesse
ínterim, podem falecer algumas pessoas envolvidas no procedimento falimentar,
implicando consultas ao seu inventário.
Importante
aspecto responsável pelo retardamento das ações concursais foi o do Inquérito
Judicial, felizmente abolido pelo novo sistema. Os possíveis crimes
falimentares, que acontecem quase sempre, deviam ser apurados no próprio juízo
falimentar, em processo paralelo, eternizando todos os feitos. É mais uma das
muitas razões causadoras da eternização dos procedimentos concursais, não
havendo necessidade de se mencionar outras.
Toda essa série
de entraves ao andamento dos feitos nos deixa perplexos ante o futuro que nos
aguarda. Que medidas poderemos tomar para a solução desse problema? Acreditamos
que a única medida que nos resta seria a aplicação da Lei de Recuperação de
empresas a eles; seria oferecida aos dirigentes das empresas falidas a
oportunidade de transformar o processo de falência em novo processo, agora de recuperação
judicial. Não acreditamos que muitas empresas possam socorrer-se desse “favor
legis”. Entretanto, o processo falimentar passaria a ser regido pela Lei de
Recuperação de Empresas, que oferece vasto leque de soluções para a liquidação
da massa falida e da própria empresa. Essa seria a solução ideal para o
problema, mas outro problema surge: qual será o momento ideal para a aplicação
desse remédio?
Em nossa
opinião, seria a partir do início de 2008. No presente momento, julgamos
precipitada essa medida. A Lei de Recuperação de Empresas não está ainda bem
sedimentada e consolidada e a primeira luta do direito brasileiro deve ser
nesse sentido. Sessenta anos de vigência do sistema estabelecido pelo
Decreto-lei 7.661/45 condicionaram o Brasil à sua aplicação. Existe farta
jurisprudência orientando os feitos concursais no espírito da Lei Falimentar, e
nenhuma na nova lei. A estrutura judiciária já se adaptou e acostumou ao
esquema traçado há muitos anos.
Será preferível aprimorar o sistema recém criado, transformando os novos processos em rotina e depois, pouco a pouco, o Judiciário ir assimilando os antigos processos. Haverá necessidade de nova lei regulamentando essa assimilação, ou então modificando a Lei 11.101/05, para que ela permita a mudança de sistema, que não deverá ser abrupta, mas suasória. Destarte, poderemos abreviar o fim do Decreto-lei 7.661/45, pois caso contrário, sua sobrevida ameaça varar o século XXI, principalmente tendo-se em vista que se trata de lei revogada, e provocará o desinteresse das partes por ela e pelos processos que ela rege.
ROQUE, Sebastião José. A lei de recuperação de empresas dá sobrevida à antiga lei falimentar. Disponível em: http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/22676. Acesso em: 10 out. 2006