® BuscaLegis.ccj.ufsc.br
A banalização da cidadania
Fábio Luís Guimarães*
*Advogado eleitoralista
O
atributo da cidadania passou recentemente a ser relacionado no Brasil a ações
individuais e coletivas em que se exprima o ideal de solidariedade. Na mídia,
observa-se uma proliferação tão grande de significantes para este mesmo sentido
que se impõe a pergunta: quantas cidadanias existem?
Originariamente,
o dicionário Houaiss nos apresenta suas
acepções para cidadania a partir dos conceitos de cidadão. Daí termos
simplesmente
-
o habitante da cidade;
-
o indivíduo que, como membro de um Estado, usufrui de direitos civis e
políticos garantidos pelo mesmo Estado e desempenha os deveres que, nesta
condição, lhe são atribuídos;
-
aquele que goza de direitos constitucionais e respeita as liberdades
democráticas;
-
o título honorífico concedido por uma cidade (ou outra unidade de um país) a
alguém a ela vinculado por realizações, serviços, laços culturais ou afetivos
etc., e que é natural de outro lugar;
-
aquele que recebe esse título; na Grécia antiga, o indivíduo que desfrutava do
direito de participar da vida política da cidade, o que era vedado à mulher, ao
estrangeiro e ao escravo;
-
o indivíduo nascido em território romano e que gozava da condição de cidadania.
Afora
esses usos populares e históricos, o conceito jurídico usual para cidadania
pressupõe o político, na medida em que denota a
titularidade e o exercício do status civitatis,
a capacidade jurídica relativa aos direitos políticos ou, mais simplesmente, os
direitos de votar e de ser eleito para os cargos eletivos previstos na
Constituição de 1988.
No
Direito, portanto, surge uma tensão de significados possíveis para a cidadania.
De um lado, o entendimento de inspiração liberal, segundo o qual a cidadania é
prerrogativa de atuação dos direitos políticos; de outro, numa leitura
pós-moderna, a atuação política em si, para além das fronteiras dos direitos
políticos tradicionais, abarcando a organização e a atividade política da
sociedade civil em todos os espaços públicos.
Segundo
os pós-modernos, o modo liberal de pensar a cidadania a tornaria restrita aos
círculos de poder político, em desprezo ao recrudescimento das instâncias de
discussão política conquistadas pela sociedade civil. Significaria deslegitimar
o recuo do Estado sobre o espaço público em face de novas instituições
políticas, como, por exemplo, as audiências públicas, o orçamento participativo
e principalmente os conselhos populares para as políticas sociais. Assim,
qualquer ato que implicasse maior inclusão ou participação social
corresponderia a uma expressão da cidadania, ainda que indiretamente
relacionada à política (nalguns casos, até sem possuir qualquer relacionamento).
Justamente
neste ponto reside o maior desafio desta tese, para o exclusivo fim de explicar
a cidadania no Direito: pressupor um conceito de política derivado da idéia de
participação popular ao invés do poder. Para desafiar o "torpor" formado
em derredor desta criação da pós-modernidade, permitimo-nos lançar algumas
questões acerca de sua aplicabilidade em terra brasileira, não sem antes
resgatar alguns pressupostos indispensáveis d’uma satisfatória argüição.
De
certo, a origem da cidadania remonta à Grécia Antiga, como sendo a qualidade
daqueles gregos – homens livres – que se reuniriam em praça pública, a Ágora, para discutir e resolver os assuntos públicos, ou
melhor, aqueles considerados pelos cidadãos como sendo de interesse e relevo
para a cidade-estado.
De
lá para cá, surgiu na Era Moderna a democracia
indireta como meio do povo fazer-se representar na condução dos negócios
públicos, agora figurados no Estado de Direito. Esta passagem na digressão do
entendimento da cidadania é extremamente relevante, porque torna, neste
momento, legitimada a ação política a partir do princípio da legalidade: ou
pelas prerrogativas do voto, aceitando-se as regras do "jogo" posto,
ou por sua transgressão (donde advém o direito de resistência lato sensu).
Por
isso o espírito liberal concebeu a cidadania como um atributo daqueles a quem
se outorgaria o direito público subjetivo de votar (destacando-se sua origem
censitária, não obstante sua divulgada universalidade). Aos resistentes, o
Direito Penal se incumbiria de chamá-los criminosos.
Somente
no final do século XX, ocorre uma mudança qualitativa na atividade política:
percebe-se um reconhecimento dogmático de resgate da extinta Ágora nas novas arenas de discussão pública; a partir de
manifestações aclamadas como populares, viu-se o
surgimento de um espaço público "normativo", constituído pela
sociedade civil organizada, num claro movimento de "organizar" a
agenda do Estado quanto à prestação dos direitos fundamentais (a chamada
terceira geração de direitos, formada com a alcunha dos interesses coletivos e
difusos, em claro sinal de que as minorias democráticas, os excluídos das
benesses do Estado de Direito, passaram a conquistar uma legitimação jurídica
de seu estatuto político, qual seja de defesa de uma nova pauta de discussões e
de uma nova forma de atuar o poder).
No
Brasil, este panorama coincidiu exatamente com o surgimento dos chamados novos
movimentos sociais, articulados sob a égide da Constituição Cidadã, cujo
funcionamento culminou no aparecimento das políticas públicas geridas pelos
conselhos populares, em que se asseguraria ao "povo" seu assento nas
deliberações políticas. Doravante se reconheceu cidadania em quaisquer atos de
participação social, transformando toda ONG num Midas do paradigma da procedimentalidade: o que fizesse ou em que figurasse,
seriam seus partícipes cidadãos, seriam suas ações reconhecidas como sendo de
cidadania.
O
elemento cerne da cidadania, portanto, deixou de ser o poder político em si
para ser a participação popular, ou, como se preferir, tais elementos de
definição passariam a se confundir: seria a era de comando dos cidadãos! Mas
quem seriam eles? Que seu poder seria esse?
Não
existe aqui nenhuma pretensão de ir-se tão longe. Basta-nos saber quem seriam
os brasileiros cidadãos. Ou os brasileiros que, na acepção pós-moderna, seriam
os condutores da vida política. Para tanto, seria conveniente iniciar a procura
por eliminação. Com base nos dados estatísticos formulados pelo IBGE em relação
ao ativismo político-social no Brasil em 1996, verificou-se que 18% dos
brasileiros declararam-se partícipes de alguma atividade. A forma desta
participação foi redargüida na pesquisa:
GRÁFICO 1
Em
relação aos brasileiros que participam de alguma associação sindical, classista
ou comunitária, o IBGE obteve a seguinte composição:
GRÁFICO 2
A propósito, a Associação Brasileira de
Organizações Não Governamentais (ABONG) cita em seu site a pesquisa
realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em parceria com a
própria ABONG e o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife). De acordo com este estudo, em 2002 existiam 276 mil
entidades não governamentais no país, desempenhando atividades religiosas,
pias, educacionais, classistas, culturais, ambientais, cívicas etc.
Quaisquer
pesquisas estatísticas feitas no Brasil indicam uma verdadeira aversão do
brasileiro às atividades político-sociais. Se delas vier a participar, será
preferencialmente num nível muito baixo de comprometimento.
De acordo com o IBGE, a preferência temática dos brasileiros em sua iniciativa pela organização "cidadã" encontra-se assim distribuída:
GRÁFICO 3
Deste amálgama, a sociedade civil organizada em
forma de ONG pouco representa em vista do grau de organização e ação política
do total dos brasileiros. Certamente seria o ideal – e o discurso dos
"cidadãos" das ONG é esse mesmo – que todo brasileiro fizesse sua
mínima parte, inteirando-se e interessando-se sobre os assuntos de sua
comunidade, para que possa agir de algum modo pela inclusão social e pela
obtenção política de melhores condições de vida.
A atividade da sociedade civil no Brasil está, portanto, restrita a determinadas finalidades sociais, em geral não relacionadas à política institucional e limitada em sua eficácia espacial, sem que isso possa representar qualquer defeito ou prejuízo de sua organização ou de sua atuação. A cidadania, à qual se entronizam as ONG como titulares absolutas, possuiria uma repercussão social mínima, se comparada ao âmbito de sua atuação institucional. Porém, é comumente citado o crescimento dos conselhos populares como indicador da cidadania decorrente do associativismo não governamental. A seguinte tabela seria uma prova do fato:
TABELA 1
Não
obstante a proliferação dos conselhos, deve ser
ressaltado que sua instituição é feita por exigência legal e para fins de
transferência de receitas tributárias e sob iniciativa exclusiva do ente
federado. A presença de entidades em sua composição faz-se em deferência à
possibilidade de haver um controle social maior, mas sem que isso efetivamente
signifique maior organização e atuação não governamental.
Esta
demonstrada aversão do brasileiro à participação em eventos não governamentais,
pode ser visualizada também em sua ausência junto às instituições políticas
tradicionais. Segundo o IBGE, se 20% dos brasileiros afirmam ter
"simpatia" por algum partido político (cuja preferência seria pelo
PMDB, PFL, PDT, PSDB e PT), a filiação a eles alcança apenas 3% do universo da
pesquisa.
Resta,
no entanto, saber se este propagado clamor à participação social, com o qual se
confunde a cidadania, seria fruto espontâneo da sociedade civil brasileira ou
se constitui algum mecanismo de cooptação política. O primeiro indício
refere-se à natural – e famosa – "cordialidade" do brasileiro, cujo
desprendimento de seu mundo individual e familiar em direção a um convívio
social só se manifesta se presente algum benefício que lhe seja apropriado. Ou
seja, o brasileiro depende de alguma motivação pessoal "egoística"
para se envolver nalgum movimento extra-familiar.
O
segundo indício, que talvez derive diretamente do primeiro, diz respeito ao uso
político-partidário da participação social. Isso se deve à democratização do
Estado – que nunca deixou de ser em parte patrimonialista
– antes de organizada a sociedade civil. Significa reconhecer a possibilidade
de adesão de elementos dos movimentos sociais a algum ideário político, com o
fito de lograr êxitos particulares à sua própria pauta, o que, até então, não
pôde ser comprovado por estudos específicos.
Atribuir-se,
enfim, como cidadã toda e qualquer atividade social feita no
Brasil esvazia de sentido o sentido de cidadania como atividade política
relacionada ao poder, que é o conceito – ainda que do século XVIII – mais
apropriado aos brasileiros. O risco de insistência numa conceituação deveras
avançada, em busca de um brasileiro atuante e participativo, que, só por isso,
seja cidadão, contraria sua natureza antropológica, vocacionada
para o imediatismo e para o individualismo, e mantém a sociedade civil
brasileira numa confiança de avanço social e político
inexistentes. No entanto, o que talvez seja o pior resultado desta
compreensão é a mantença de todos os brasileiros no século XVIII: a esperar
gerações por um povo que saiba, pelo menos, dar valor à res
publica como algo de todos.
Um
dia, quem sabe?
Referências bibliográficas
ABRUCIO,
Luiz Fernando. O Impacto do Modelo Gerencial na Administração Pública: Um Breve
Estudo sobre a Experiência Internacional Recente. Cadernos ENAP, Brasília, nº 10, 1996.
HOLANDA,
Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
MORAES,
Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2005.
TORRES,
Marcelo Douglas de Figueiredo. Estado, Democracia e Administração Pública no
Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
GUIMARÃES, Fábio
Luís. A banalização da cidadania. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8827.
Acesso em 23 de ago. de 2006.