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A suspensão da
prestação do serviço público quando o utente é o Poder Público
Flávio Mota Morais Silveira
1. Introdução
O presente artigo tem o desígnio de analisar a suspensão da prestação do
serviço público pelo seu não pagamento quando o usuário deste serviço é o Poder
Público. Trata-se, no caso, de serviços individuais ou uti singuli, que
tem natureza divisível e podem ser mensurados objetivamente, como, v. g.,
o serviço de energia elétrica. Tal questão se mostra relevante, atual e
polêmica, pois há defensores, na doutrina e na jurisprudência, tanto da tese da
admissibilidade, quanto da impossibilidade da interrupção da prestação do
serviço público.
Ressalte-se, todavia, que quando o Estado realiza seus negócios
jurídicos, ele nunca se despe totalmente de sua potestade, isto é, de uma
maneira ou de outra sempre se sujeitará ao regime jurídico de direito público,
que lhe garante uma série de prerrogativas [1],
ou, no mais das vezes, a um regime jurídico de direito público temperado, de
natureza híbrida [2]. No entanto, quando
a Administração age como contratante, ela deve respeitar as normas inseridas no
instrumento contratual, sob pena de subverter a equação econômico-financeira
que deve nortear os contratos administrativos. As prerrogativas que lhe são
conferidas não podem se configurar em privilégios, abusos de poder, no caso a
possibilidade de desobrigar-se de sua contraprestação sem o pagamento, o que
configuraria uma afronta ao princípio da moralidade administrativa.
Temos que ter em mente, ainda, em relação à possibilidade ou não da
suspensão da prestação do serviço quando o usuário é o Estado, que esta é uma
relação jurídica complexa, posto que envolve três sujeitos em duas relações
jurídicas distintas, quais sejam, o Estado-Contratante e a prestadora de
serviço público e o Estado-Administração e os cidadãos-administrados.
Qualquer decisão que importe a suspensão do serviço para o Estado poderá
surtir efeitos na esfera jurídica dos administrados. Por isso, o juiz deve
ficar atento e realizar um exercício de ponderação dos valores em jogo,
valendo-se do princípio da proporcionalidade como critério de harmonização
entre os interesses da prestadora de serviço e dos administrados com os do
Estado.
2. Inexecução dos contratos administrativos, o princípio da continuidade e o
princípio da supremacia do poder público sobre o particular
A celeuma doutrinária e jurisprudencial instaura-se por conta do
princípio da continuidade, o qual impõe ao serviço público um caráter contínuo,
sucessivo, sem interrupções Os contratos administrativos são regulados pela Lei
nº. 8.666/93 e a doutrina, a lei e a jurisprudência reconhecem em favor da
Administração Pública contratante a existência de certas cláusulas não
existentes no direito comum; são, por isso, chamadas de cláusulas exorbitantes,
verdadeiras prerrogativas que garantem sua supremacia sobre o particular.
A alteração unilateral do contrato, imposição de sanções, previamente
estabelecidas no instrumento contratual e a rescisão, por mérito ou
ilegalidade, o contrato são alguns privilégios gozados pela Administração
Pública contratante, que consubstanciam as cláusulas exorbitantes.
Outra cláusula exorbitante é a impossibilidade da entidade particular
prestadora de serviço público ao Estado invocar a exceção do contrato não
cumprido (art. 476, do Código Civil). A exceptio non adimplementi contractus
significa que uma parte contratante não pode exigir o cumprimento de sua
obrigação sem que ela mesma tenha cumprido a sua. No campo do Direito Público,
onde imperam os princípios da supremacia do interesse público sobre o
particular e o princípio da continuidade, a suspensão da prestação do serviço
público ao Estado inadimplente é inconcebível.
Porém, essa prerrogativa da Administração é criticada pelos estudiosos do
direito e mitigada em algumas decisões judiciais, nos casos onde a
inadimplência da administração gera um ônus insuportável para a empresa
prestadora do serviço, tornando impossível a continuidade da prestação do serviço
pelo particular.
A Lei 8.666/93, em seu artigo 78, XV, acolhendo essa orientação da
jurisprudência, prevê como causa de resolução do contrato o atraso superior a
90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração. Saliente que o
particular deve recorrer ao Poder Judiciário, posto que ele não pode paralisar
a execução do contrato, nem resilir o contrato unilateralmente.
A celeuma doutrinária e jurisprudencial instaura-se por conta do
princípio da continuidade, o qual impõe ao serviço público um caráter contínuo,
sucessivo, sem interrupções.
Segundo Diógenes Gasparini, não descaracteriza a continuidade da
prestação do serviço público quando interrompido em face de falta de pagamento
dos utentes, conforme estabelece o art. 6º, § 3º, da Lei nº 8.987/95 - Lei
Federal das Concessões e Permissões. Resta saber se é válida a suspensão por
falta de pagamento quando o inadimplente é o Estado, pois este, na execução de
seus misteres, também presta serviço público, e, por conseguinte, não pode ser
descontínuo.
3. A remuneração do serviço público por tarifa/preço público e por taxas
Os serviços públicos são classificados segundo vários critérios, que
variam para cada autor. Os mais relevantes para esta ocasião levam em conta os
usuários a que são prestados.
Assim, quanto aos usuários, os serviços públicos podem ser gerais, uti
universi ou indivisíveis e específicos, uti singuli ou
divisíveis. Os primeiros são aqueles onde a Administração presta sem ter
utentes determinados, para atender a coletividade administrada. São dessa
natureza os serviços de segurança pública. Já os segundos, satisfazem usuários
certos, cuja fruição do serviço é particularizada e pode ser mensurada
objetivamente, a exemplo dos serviços de energia elétrica.
Os serviços de fruição coletiva, sem usuários determinados são suportados
por impostos e, por isso, nem se cogita a sua suspensão. É de se imaginar o
caos que ocorreria com a suspensão do serviço de segurança pública.
Por seu turno, Diógenes Gasparini afirma que os serviços de fruição
individual, com usuários determinados são remunerados por taxa ou tarifa [3]. Serão remunerados por taxa sempre que o
serviço for prestado diretamente pelo Estado, onde a utilização do serviço for
obrigatória, não importando se há ou não efetiva utilização. Bastará que
estejam à disposição do administrado-usuário (art. 145, II, da CF). Por tarifa
ou preço público [4] são remunerados os
serviços públicos facultativos, isto é, os postos à disposição dos utentes para
que estes o utilizem quando e se desejarem. O que determina a
forma de remuneração, se se remunera por taxa ou tarifa, é o termo de contrato
ajustado entre a Administração e a delegatária de serviço público.
Destarte, a suspensão do serviço público somente será admissível se for
remunerado por preço público (tarifa) [5],
ainda que tenha natureza compulsória, estabelecida em lei. Normalmente, o
trespasse da prestação do serviço público para entidades particulares recai
sobre serviços não-essenciais, o que autoriza a sua suspensão.
4. Suspensão do serviço público e o princípio da proporcionalidade
Apesar dessa posição razoavelmente pacificada pelos tribunais, qual seja,
a possibilidade da suspensão do serviço público somente ser admissível quando
for remunerado por preço público ou tarifa, há decisões que entenderam
inadmissível a suspensão do serviço, mesmo pago por tarifa, quando o usuário é
o poder público. Em litígio entre a CEMIG [6]
e determinado Município, assentou o Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais
que “a concessionário dos serviços de energia elétrica não pode interromper
o fornecimento aos prédios público, mesmo que o município esteja em débito,
sobrelevando o interesse público ao da empresa”. (ApCiv nº 110283/9,
4ª CCiv, Rel. Des. Reynaldo Ximenes Carneiro, pub.no DO em 10/03/1999) [7].
Nos filiamos ao entendimento de José dos Santos Carvalho Filho, ao
afirmar que o Poder Público, nessas hipóteses, age como mero contratante de
serviços, despindo-se de seu ius imperi. Aliás, em nossos dias é
outra a noção de serviço público, não consubstancia poder de império, mas sim
se sujeita ao Código de Defesa do Consumidor [8].
Esta característica, juntamente com o princípio da eficiência, inserido no caput
do art. 37 da Constituição Federal pela E.C. nº. 19, transmudou a qualidade
de potestade de um Estado Moderno para o Estado-Empresário Contemporâneo.
Caso o Estado seja inadimplente em tais relações negociais, é porque os
administradores são, no mínimo, maus gestores. Se a empresa for forçada a
prestar tal obrigação, estará subvertendo o equilíbrio econômico-financeiro que
deve estar presente nos contratos com a Administração Pública.
Mais acertada foi outra decisão do Superior Tribunal de Justiça no REsp
460.271-SP, 2ª T., cuja relatora foi a eminente Ministra Eliana Calmon, em
06/05/2004 (Jurisprudência do STJ nº 20, maio de 2004), onde se procurou
conciliar a situação de inadimplência e a natureza do devedor. Em sendo
inadimplente o Município na obrigação do pagamento de contas de energia
elétrica, ficou decidido que a suspensão do serviço poderá atingir certos
órgãos, como o ginásio de esportes, o depósito, almoxarifado, paço municipal, a
Câmara Municipal. Todavia não poderia alcançar os serviços essenciais como
escolas, hospitais, repartições públicas.
Deveras, utilizou-se no caso o princípio da proporcionalidade [9], em virtude do prejuízo que sofreria a
população. O princípio da proporcionalidade tem sede constitucional [10] e obedece a certos critérios, de modo a
evitar o excessivo subjetivismo do juiz. São eles: a) a adequação entre os
meios utilizados e os fins pretendidos; b) a proporcionalidade em sentido
estrito, como modo de ponderação dos valores em questão; e c) o menor
sacrifício possível ao bem considerado menos importante.
É a partir do princípio da proporcionalidade que se opera o a
“sopesamento” dos direito fundamentais (livre iniciativa vs. interesse
público), bem como de seus bens jurídicos quando se encontram em estado de
contradição, oferecendo ao caso concreto solução ajustadora de coordenação e
combinação dos bens em colisão.
Sylvia Marlene Castro de Figueiredo nos alerta que “por força do
princípio da proporcionalidade, no controle jurisdicional do ato administrativo
deve-se observar se a medida adotada não transbordou, na prática, os limites
necessários para a implementação daquela necessidade administrativa, pois o
sacrifício de direitos privados em excesso não é justificado para a
implementação do direito público”.
Não podemos olvidar que a atual fase do desenvolvimento do direito, na
qual vivemos, é o pós-positivismo, onde os princípios têm força normativa,
sendo equiparados às normas constitucionais.
Nesse diapasão, convém lembrar a sempre atual lição de Celso Antônio
Bandeira de Mello, na qual “violar um princípio é muito mais grave do que
transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um
específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos. É a mais
grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do
princípio atingido, porque representa ingerência contra todo o sistema,
subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço
lógico e corrosão de sua estrutura mestra”.
Buscando o fundamento constitucional do princípio da proporcionalidade,
Clèmerson Merlin Clève afirma que o referido princípio deriva do Estado de
Direito (art. 1º, CF), confundindo-se com o princípio do devido processo legal
substancial (art. 5º, LIV, CF). Paulo Bonavides considera o dito princípio como
“direito positivo em nosso ordenamento constitucional (...) flui do § 2º, do
artigo 5º, o qual abrange a parte não-escrita ou não expressa dos direitos e
garantias da Constituição, a saber, aqueles direitos e garantias cujo
fundamento decorre da natureza do regime, da essência impostergável do Estado
de Direito e dos princípios que este consagra e que fazem inviolável a unidade
da Constituição”.
5. Conclusão
Desse modo, vemos que a inadimplência do Poder Público, quando este se
coloca na posição de mero contratante, não pode obrigar o prestador do serviço
a arcar com o pesado ônus de prestar o serviço sem remuneração, ou com o
pagamento feito em épocas escolhidas ao alvedrio da Administração. Entretanto,
os cidadãos, da mesma forma, não podem sofrer com a interrupção das atividades
essenciais desenvolvidas pelo Estado. Portanto, valendo-se do princípio da
proporcionalidade, em sua tripla acepção, o juiz deve conceder a suspensão dos
serviços não essenciais, isto é, os assim considerados por lei ou os que, pela
própria natureza, são havidos como de utilidade pública, cuja execução é
facultada aos particulares.
6. Referências
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo.
15ª. Edição. São Paulo, Malheiros Editores, 2003.
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do
Direito. Disponível em <<www.cad.ufam.edu.br>>. Acesso em 30 de
abril de 2006.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São
Paulo: Malheiros, 1996.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 12ª
ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
CLÈVE, Clèmerson Merlin & FREIRE, Alexandre Reis Siqueira. Algumas
notas sobre colisão de direitos fundamentais. Cadernos da Escola de Direito
e Relações Internacionais da Faculdade do Brasil. Março-agosto de 2002.
FIGUEIREDO, Sylvia Marlene de Castro. A interpretação constitucional e
o princípio da proporcionalidade. São Paulo: RCS, 2005.
GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 9ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2004.
7. Notas:
[1] São as chamadas cláusulas
exorbitantes nos contratos administrativos, adiante comentadas.
[2] Em outras palavras: sujeita-se
ao regime jurídico de Direito Privado, mas incidindo regras do Direito Público.
[3] Os serviços uti singuli remunerados
por tarifa (art. 175, parágrafo único, da CF) tem por finalidade remunerar o
serviço público delegado a terceiro mediante concessão ou permissão. A tarifa
engloba o custo do serviço mais o lucro do prestador.
[4] Gasparini lembra que existem autores
que ainda mencionam o preço privado, que é estabelecido em livre concorrência,
e o semiprivado, que é estabelecido pelo mercado, com a interferência da
Administração Pública.
[5] Entendemos, apesar de vozes em
contrário, que o preço público é o mesmo que tarifa. Para os que fazem
distinção, esta reside no fato de que a tarifa é o valor cobrado na hipótese de
delegação do serviço público, enquanto o preço público é o valor cobrado pelo
Estado quando da exploração econômica de seu patrimônio, quase sempre nas
atividades de monopólio.
[6] Sociedade de economia mista,
cujo seu maior acionista é o Estado de Minas Gerais, detentor de 50,96% das
ações ordinárias da Companhia.
[7] O STJ confirmou esse
entendimento, por maioria dos votos, no Resp 628.833-RS, 1ª T., cujo relator
foi o Min. JOSÉ DELGADO (Informativo STJ nº 214, jun /04).
[8] O artigo 3º do CDC equipara a
Administração Pública, direta e indireta, a fornecedores de serviço.
[9] Não faremos distinção entre
princípio da proporcionalidade, razoabilidade ou proibição do excesso, embora
exista entre eles uma relação de fungibilidade, de complementação,. Neste
trabalho consideraremos estes termos como sinônimos.
[10] Mesmo não estando explícito
na Carta de 1988, a doutrina constitucionalista entende que o princípio da
proporcionalidade é um princípio constitucional. Paulo Bonavides afirma que o
dito princípio existe como norma esparsa pelo texto constitucional, enquanto
Sylvia Marlene de Castro Figueiredo o entende como um princípio constitucional implícito
(porque não está expresso na Constituição) e pleno ou genérico (porque vincula
todos os agentes públicos). O STF, em diversos julgados, como na ADI n.
1753/DF, Min. Rel. Sepúlveda Pertence, D.J. de 12/06/98, também entende que
este princípio encontra forças na Constituição.
Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/x/26/12/2612/> Acesso em: 12 de mai. de 2006.