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A adoção de softwares livres pelas
diversas esferas da administração pública. Alguns aspectos jurídicos de um
ambiente de disputas econômicas
Marcelo Andrade Féres
mestrando
em Direito Comercial pela UFMG
Resumo: Partindo de algumas
notícias sobre o surgimento e a evolução do software livre, bem assim de sua
classificação como um negócio jurídico peculiar, que concede ao usuário de um
programa de computador o direito de alterá-lo, reproduzi-lo e redistribuí-lo, o
presente estudo tem por objeto a análise da prioridade que as diversas esferas
da Administração Pública devem dar a tal sorte de negócio, quando da
contratação de programas informáticos.
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Sumário: 1.
Introdução; 2. Algumas notícias sobre o software livre no mundo e no Brasil:
surgimento, evolução e relacionamento com a Administração Pública; 3. Da
correta situação do negócio do software livre no âmbito da concretização dos
princípios fundamentais da República Federativa do Brasil; 4. Da prescindibilidade de lei da União para que os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios possam disciplinar a adoção de free softwares; 5. Da não violação ao princípio da isonomia
dos licitantes; 6. Do software livre como principal meio de concretização do
princípio constitucional da eficiência.
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1. Introdução
A revolução tecnológica que
avassala o espírito dos sujeitos da sociedade contemporânea alastra-se não
apenas sobre o cenário privado, mas também sobre o público. Se o modo de agir
individual modifica-se e, de certa maneira, codifica-se pelas formatações
binárias dos computadores e da web, é certo que o
Estado não pode orientar sua atuação à margem dessa realidade.
Não se discute mais se a
Administração Pública deve ou não se valer dos meios tecnológicos; se deve ou não se informatizar. O debate atual refere-se,
sim, à escolha que o Estado, em qualquer de suas esferas, deve fazer entre as
várias opções existentes no mercado.
Nesse contexto, com atenção
especial à forma de contratação de softwares pela Administração, surge a
disputa entre os programas livres e os proprietários. Trata-se, entretanto, de
tema cuja difusão se notabiliza em diversas searas do
saber, como, v.g., na economia, na administração, na política, na sociologia e,
naquilo que interessa ao presente estudo, no direito.
Os debates têm sido tão acirrados
que até o Supremo Tribunal Federal foi convocado a se pronunciar. Cuida-se da
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.059, proposta pelo Partido da Frente
Liberal – PFL, tendo por objeto a Lei no 11.871 [01], de 19 de dezembro de
2002, que "Dispõe sobre a utilização de programas de computador no Estado
do Rio Grande do Sul", e na qual houve concessão de medida liminar.
Naquele feito, sustenta o partido
requerente que o mencionado diploma violaria os arts.
22, XXVII (necessidade de normas gerais de licitação e
contratação editadas pela União), art. 37, caput e inciso XXI (princípio da
impessoalidade e garantia de igualdade de condições dos concorrentes em
licitações), 37, caput (princípios da eficiência e da economicidade),
e 2o e 61, II, b (princípio da separação de poderes e vício de iniciativa),
todos da Constituição da República. Com a petição inicial, juntou-se aos autos
parecer elaborado por Miguel Reale Júnior, Professor
Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, dando suporte a
parte das alegações do autor.
A argumentação expendida pelo PFL é
aquela normalmente utilizada pelos adversários dos softwares livres, mas, com a
devida vênia, sem o correto conhecimento de causa.
O presente texto, assim, objetiva
trazer ao conhecimento do leitor algumas notícias sobre a evolução dos programas
abertos, as vantagens que oferecem, bem como demonstrar, juridicamente, a sua
idoneidade perante os objetivos da Administração Pública, tudo conforme se
desenvolve nas linhas que seguem.
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2. Algumas notícias sobre o
software livre no mundo e no Brasil: surgimento, evolução e relacionamento com
a Administração Pública
O software livre,
decorrente do inglês free software, revela-se
na liberdade que sua licença confere ao respectivo usuário. A origem
estrangeira da expressão, em que se poderia colher uma ambivalência, tanto
programa livre, quanto programa grátis, tem levado algumas pessoas a se
confundirem, adotando a segunda tradução, o que é incorreto. Essa modalidade de
software, também conhecida por aberto ou não proprietário, e em oposição ao
fechado ou proprietário, não é necessariamente gratuito. [02] Seu nome, assim,
evidencia as liberdades dela decorrentes, pois a sua licença, aliada ao
conhecimento de seu código fonte, além de permitir o uso para qualquer
propósito, autoriza a reprodução, a alteração e a redistribuição.
No início, os softwares não eram
comercializados; eram entregues pelos fabricantes juntamente com os poucos
computadores que existiam. Com a evolução dos sistemas e o surgimento da
diversidade de hardwares, os programas ingressaram no âmbito de tutela do
direito autoral e, por conseqüência, passaram a ser negociados no mercado, que
muitas vezes é monopolista.
O aparecimento do software livre
está vinculado a uma relativização dos direitos autorais, em prol do
desenvolvimento da sociedade. Ao lado da internet, os
programas abertos concorrem para a disseminação da informação. Por seu
intermédio, busca-se a tão almejada inclusão digital dos cidadãos. O
conhecimento do código fonte dos programas, socialmente compartilhado, gera
idôneas possibilidades de concreta participação do indivíduo no mundo
contemporâneo da informática.
A adoção de software livre acarreta
uma capilarização do desenvolvimento tecnológico,
pois pequenas e médias empresas, além de indivíduos, conhecedores dos
respectivos códigos, podem concorrer para a melhoria e o incremento da
diversidade de programas disponíveis no mercado.
Com efeito, essa possibilidade de
agregação de novas funcionalidades e, portanto, de novos valores aos softwares
não proprietários, aquece o cenário econômico doméstico dos países em
desenvolvimento, uma vez que se criam oportunas alternativas de trabalho.
A ampla propagação dos programas
abertos deu vida a diversas organizações, cuja função é justamente estudar,
desenvolver e difundir os conhecimentos sobre o assunto. Nessa linha,
destacam-se a Free Software Foundation
– FSF e suas ramificações espalhadas pelo mundo, como, por exemplo, a Free Software Foundation Europa e
a Free Software Foundation France – FSF France. Merecem
referência também a Association Francophone
des utilisateurs de Linux et des
logiciels libres – AFUL e a
Associação Nacional para o Software Livre – ANSOL, esta última de Portugal. A
par delas, no Brasil, há também diversas outras.
Várias entidades estrangeiras e
nacionais têm migrado seus sistemas tecnológicos para softwares livres. A esse
respeito, Luciano Alberto Rocho, em trabalho de
conclusão do Curso de Especialização em Desenvolvimento Gerencial, do
Departamento de Administração da Universidade de Brasília, escreve, in verbis:
"Hoje grandes corporações,
tais como a General Motors e a Boeing, ou mesmo
órgãos governamentais como a Nasa ou grande parte do governo francês são
usuários de software livre, tendo em vista não só a economia, mas também total
domínio na tecnologia envolvida, possibilitando a auditoria sobre todos os
passos realizados por determinado programa que por muitas vezes é impossível
quando se adquire um software vendido comercialmente." [03]
Com respeito à propagação dos
softwares livres entre as empresas nacionais, recente matéria divulgada pela
Revista Info, da Editora Abril,
noticia que "De 2001 para cá, a área de internet
da Varig deu vários vôos no mundo livre. Adotou o SAP DB como banco de dados; o
Nagios, o Ntop e o NMIS no
gerenciamento da rede; o Apache nos servidores web; o
Firewall Builder como firewall; o software de atendimento de chamados RT (Request Tracker) no call center; o Jabber nas mensagens instantâneas; o Mozilla
em parte dos desktops. ‘Em três anos, queremos ser
100% software livre na área de internet. Já temos
pelo menos 30 sistemas rodando em cima desse tipo de programa’, afirma
Pinho." [04] A mesma fonte informa que a companhia de aviação estima
economizar cerca R$ 12.000.000,00 (doze milhões de reais) por ano em virtude da
medida.
Além da VARIG, a reportagem elenca outras empresas que utilizam programas livres, como,
v. g., a EMBRAPA, os sucos Mais e a Petrobrás.
O papel do governo no cenário do
software livre também é fundamental. Como assinala Roberto A. Hexsel, do Departamento de Informática da Universidade
Federal do Paraná, litteris:
"Para que se
desfrute das vantagens da utilização do software livre e se alcance os
objetivos já enumerados, os governos devem executar as ações listadas abaixo.
As três primeiras ações estabelecerão um mercado fornecedor e consumidor de
software livre, a quarta e a quinta eliminarão a dependência do governo de
práticas monopolistas, e as três últimas reforçarão os efeitos das outras
ações.
1.Incentivo
e recomendação ao uso de software livre em todas as situações em que seu uso
não seja inviável;
2.uso do
poder de compra para criar padrões de fato;
3.implantação
de mecanismos de financiamento e incentivos fiscais ao uso e desenvolvimento;
4.adoção
prioritária de protocolos abertos de comunicação;
5.retenção
de direitos sobre o código fonte de todo o software adquirido pelo governo;
6.implantação
de mecanismos de capacitação ao uso;
7.criação
de agência para facilitar a adoção e desenvolvimento de software livre; e
8.avaliação
do impacto econômico e social da produção e utilização de software livre no
país." [05]
Nessa linha, especificamente quanto
ao emprego de programas abertos no setor público, vários são os ordenamentos
que o contemplam ou, ao menos, intencionam
contemplar, o que se constata pelo infinito número de leis e de projetos
legislativos em tramitação no mundo contemporâneo. A título ilustrativo,
mencionem-se, entre outros, os Projetos de Lei no 5613-D-00 (Dragan) e no 904-D-02 (Dragan, Becerra & Bertone), ambos da
Argentina; a Lei no 1416-D-02 (Caram), da cidade de
Buenos Aires; a Proposition d’ordennance
relative à l’utilisation de
logiciels libres dans les administrations
régionales de Bruxelle-Capitale,
na Bélgica; o Projeto de Lei no 122/000217 (Puigcercós
et Boixassa), da Espanha; a
Proposition de Loi 117 (Laffitte, Trégouet, Cabanel), a Proposition de Loi 2437 (Le Déaut,
Paul, Cohen) e o Decrét 2001-737 (Premier Ministre Jospin), todos três da França; o Projeto de Lei S.1188 (Cortiana), da Itália; a Motion approuvée le 11/07/2001 (papini, Basosi, Menci, Pettini, Malavolti), de Florença, e a Motion
approuvée le 18/3/2002 (Ugetti), de Lodi, ambas cidades
italianas; os Projetos de Lei no 1609/2001 (Villanueva
Nuñez), no 2344/2002 (Estrada Perez), e no 2485/2002
(Villanueva Nuñez, Rodrich Ackerman), todos três do
Peru; e o Projeto de Lei no 126/IX (Drago, Louçã,
Teixeira Lopes), de Portugal. [06] No site chileno
sobre software libre, em data recente, estampou-se
notícia a respeito também da Venezuela, segundo a qual "o Presidente da
República, Hugo Chávez Frías,
anunciou que emitirá um decreto mediante o qual se estabelecerá a utilização de
software livre para todos os organismos e dependências da administração pública." [07]
Com relação às razões que levam a
Administração Pública à adoção de softwares não proprietários,
comporta assinalar alguns trechos da exposição de motivos que acompanhou
o projeto de lei sobre sua utilização pelas instituições do Peru, em que o
congressista Edgar Villanueva Núñez
explica:
"Para
garantir o livre acesso dos cidadãos à informação pública, resulta
indispensável que a codificação dos dados não esteja ligada a um único provedor
e menos a formatos não standard que alguns provedores
impõem em virtude de suposto ‘domínio’ no mercado. O uso de formatos standard e abertos permite garantir este livre acesso à
informação independentemente se o provedor deseja ou não continuar os serviços,
logrando se fosse necessário a criação de programa compatível com todo software
que repete o standard mundial da indústria.
Para garantir a perenidade dos
dados públicos, é indispensável que a utilização e a manutenção do software não
dependam da boa vontade dos provedores, nem das condições monopolistas,
impostas por estes. Necessita-se de sistemas cuja evolução natural possa ser
garantida graças à disponibilidade do código-fonte.
Para garantir a segurança nacional,
resulta indispensável contar com sistemas desprovidos de elementos que permitam
o controle a distância ou a transmissão não desejada
de informação a terceiros. Portanto, reclamam-se sistemas cujo código-fonte
seja livremente acessível ao público para permitir seu exame pelo próprio
Estado, por cidadãos e por um grande número de especialistas independentes no
mundo." [08]
Nas justificativas constantes do
Projeto de Lei no 126/IX, apresentado à Assembléia da
República Portuguesa pelos deputados Ana Drago, Francisco Louçã e João
Teixeira Lopes, referente à adoção de softwares abertos pela Administração
Pública, há menção à escravidão tecnológica experimentada pelos Estados
contemporâneos, cujos termos merecem ser transcritos a seguir:
"Hoje, apesar das
alternativas, o Estado mantém-se refém de relações contratuais que lhe são
desfavoráveis com as empresas de software. O software utilizado pela
generalidade dos serviços do Estado não permite o acesso ao código-fonte, tanto
do sistema operativo quanto das aplicações, implicando uma total
impossibilidade de controlo, por parte do Estado, sobre a tecnologia usada para
gerir a informação disponível em suporte digital. Os riscos de existência,
quando se trata de software não livre, de , no que
toca à segurança da informação, são hoje evidentes. O Estado não tem qualquer
garantia em relação ao possível reencaminhamento da
sua informação para outros. Mais: o Estado está dependente do seu fornecedor,
num sector cada vez mais monopolizado, para aceder à sua própria informação. A
situação actual põe em causa a própria soberania do
Estado. As constantes modificações e contratos de upgrade
feitas com os fornecedores acentuam e perpetuam a dependência tecnológica em
relação ao fabricante." [09]
Relativamente aos menores custos da
utilização dos programas abertos pelo Estado, cumpre, novamente, mencionar a
exposição de motivos do Projeto de Lei no 126/IX, de Portugal, in verbis:
"Apesar do
investimento inicial no processo migratório e na formação, os custos do
software livre prolongam a vida útil dos computadores em uso e exige menos actualizações (quantas vezes desnecessárias) que,
aumentando os custos, raramente correspondem às necessidades específicas dos
utilizadores.
(...)
O investimento na migração (mudança
de sistema) é o mais significativo. Mas se isto é verdade em relação à mudança
para o software livre, é igualmente verdade para a mudança de um software não
livre para outro." [10]
Além disso, a migração dos sistemas
de informação do setor público para softwares livres aumenta a demanda desses
programas, gerando, no âmbito dos Estados, especialmente daqueles em
desenvolvimento e que não detêm patentes tecnológicas, um incremento das
oportunidades de emprego para a população. Como já anotado, notabiliza-se
que pequenas e médias empresas passam a concorrer em igualdade de condições com
as grandes multinacionais, detentoras dos registros de programas proprietários.
No Brasil, a iniciativa do Estado
do Rio Grande do Sul, contestada pelo PFL na ADI nº 3.059, não é isolada. Anteriormente,
o Município de Campinas/SP já havia adotado a Lei no
11.113, de 27 de dezembro de 2001, que "Dispõe sobre a utilização de
programa e sistema de computador aberto pela prefeitura municipal", nos
mesmos moldes da legislação ora impugnada. Esse caminho também foi trilhado
pelo Município de Recife/PE, pela Lei no 16.639/2001.
Ademais, diversos projetos de lei encontram-se em tramitação no Congresso
Nacional, valendo destacar os de no 2.269/1999, no 3.051/2000, no 4.275/2001,
no 7.120/2002, no 2.152/2003, e no 3.280/2004.
Não fosse o
bastante, aquela normativa gaúcha vem atender os termos da Lei Federal
nº 7.232, de 29 de outubro de 1984, que "Dispõe sobre a Política Nacional
de Informática, e dá outras providências", e, em seu art. 2º, estabelece,
in verbis:
"Art. 2º A
Política Nacional de Informática tem por objetivo a capacitação nacional nas
atividades de informática, em proveito do desenvolvimento social, cultural,
político, tecnológico e econômico da sociedade brasileira, atendidos os
seguintes princípios:
I - ação governamental na
orientação, coordenação e estímulo das atividades de informática;
II - participação do Estado nos
setores produtivos de forma supletiva, quando ditada pelo interesse nacional, e
nos casos em que a iniciativa privada nacional não tiver condições de atuar ou
por eles não se interessar;
III - intervenção do Estado de modo
a assegurar equilibrada proteção à produção nacional de determinadas classes e
espécies de bens e serviços bem assim crescente
capacitação tecnológica;
IV - proibição à criação de
situações monopolísticas, de direito ou de fato;
V - ajuste continuado do processo
de informatização às peculiaridades da sociedade brasileira;
VI - orientação de cunho político
das atividades de informática, que leve em conta a necessidade de preservar e
aprimorar a identidade cultural do País, a natureza estratégica da informática
e a influência desta no esforço desenvolvido pela Nação, para alcançar melhores
estágios de bem-estar social;
VII - direcionamento de todo o
esforço nacional no setor, visando ao atendimento dos programas prioritários do
desenvolvimento econômico e social e ao fortalecimento do Poder Nacional, em
seus diversos campos de expressão;
VIII - estabelecimento de
mecanismos e instrumentos legais e técnicos para a proteção do sigilo dos dados
armazenados, processados e veiculados, do interesse da privacidade e de
segurança das pessoas físicas e jurídicas, privadas e públicas;
IX - estabelecimento de mecanismos
e instrumentos para assegurar a todo cidadão o direito ao acesso e à
retificação de informações sobre ele existentes em bases de dados públicas ou
privadas;
X - estabelecimento de mecanismos e
instrumentos para assegurar o equilíbrio entre os ganhos de produtividade e os
níveis de emprego na automação dos processos produtivos;
XI - fomento e proteção
governamentais dirigidos ao desenvolvimento de tecnologia nacional e ao
fortalecimento econômico-financeiro e comercial da empresa nacional, bem como
estímulo à redução de custos dos produtos e serviços, assegurando-lhes maior
competitividade internacional."
É, pois, nesse contexto do mundo
globalizado e da política nacional, que o debate acerca da adoção de softwares
livres pelas diversas esferas da Administração Pública deve ser analisado.
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3. Da correta situação do negócio
do software livre no âmbito da concretização dos princípios fundamentais da
República Federativa do Brasil
Nas linhas imediatamente
anteriores, percebeu-se o positivo e paulatino crescimento mundial da
utilização de programas abertos pelas diversas esferas nacionais e estrangeiras
da Administração Pública, o que gerou o atual fenômeno da efervescência legislativa
sobre a matéria. Diferentemente de outros assuntos jurídicos, cuja propagação
ou, por assim dizer, a tropicalização, demanda alguns
anos ou algumas dezenas deles, os temas referentes à sociedade da informação
desenvolvem-se em uma perspectiva globalizada e sincrônica, assumindo
importância ímpar o papel do operador do direito. A notória falta de
experiência legislativa dos Estados a respeito de determinados domínios jurídicos, decorrente desse assinalado progresso simultâneo
vivenciado por todo o mundo, reclama cautelas redobradas do intérprete
das normas.
A propósito, o alemão Karl Larenz, em sua conhecida obra intitulada "Metodologia
da Ciência do Direito", leciona que:
" é,
como tínhamos dito (cap. I, em 3a), . O texto da norma torna-se problemático
para quem a aplica atendendo à aplicabilidade da norma precisamente a uma
situação de facto dessa espécie. Que o significado
preciso de um texto legislativo seja problemático depende, em primeira linha,
do facto de a linguagem corrente, de que a lei se
serve em grande medida, não utilizar, ao contrário de uma lógica axiomatizada e da linguagem das ciências, conceitos cujo
âmbito esteja rigorosamente fixado, mas termos mais ou menos flexíveis, cujo
significado possível oscila dentro de uma larga faixa e que pode ser diferente
segundo as circunstâncias, a relação objectiva e o
contexto do discurso, a colocação da frase e entoação de uma palavra. Mesmo
quando se trata de conceitos em alguma medida fixos, estes contêm frequentemente notas distintivas que, por seu lado, carecem
de uma delimitação rigorosa." [11]
Com a intenção de aclarar o
conteúdo do que se entende sobre software livre, deve-se partir da Lei Federal
no 9.609/98, a qual "Dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de
programa de computador, sua comercialização no País, e dá outra
providências", e que, em seu art. 1o, estabelece:
"Art. 1º Programa de
computador é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem
natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de
emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação,
dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica
digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados."
Sob o prisma dessa disposição,
softwares livres e proprietários são, na essência, a mesma coisa; ambos são
programas de computadores, expressão de um conjunto organizado
de instruções em linguagem natural ou codificada.
Todavia, há distinções entre as
espécies. De fato, a diferença específica entre as modalidades mencionadas
reside num aspecto particular. Como anota o Guide de choix et d’usage
de licences de logiciels libres pour les
administrations, editado pela Agence
pour les Technologies de l’information et de la Communication das l’Administration – ATICA, da França, in verbis:
"De um ponto de vista
jurídico, um programa livre é antes de tudo um programa protegido pelo direito
autoral e submetido a uma licença que regulamenta e delimita os respectivos
direitos e obrigações. Freqüentemente oposto ao programa proprietário, que
habitualmente não comporta nada além que o direito de uso, o programa livre
dele se distingue pelos direitos mais importantes conferidos, pelo titular do
programa, aos beneficiários da licença. Um programa livre é, portanto, sujeito
ao direito do autor e ao código de propriedade intelectual. Sua licença
permite, assim, a utilização de um programa, mas ela permite igualmente, ao
beneficiário da licença, estudar o funcionamento do programa – o que é possível
em certos casos e sob certas condições com o programa proprietário –, modificar
o programa por sua própria conta e redistribuir as modificações por ele
efetuadas – o que é geralmente vedado com os programas proprietários." [12]
Portanto, programas fechados e
livres distinguem-se em razão direta dos direitos que conferem aos respectivos
usuários, ou seja, cuida-se de negócios distintos, e não propriamente de tipos
diversos de produtos ou de programas. Enquanto a licença do software
proprietário autoriza apenas sua utilização pelo contratante, a do programa
aberto permite, por meio do acesso ao correspondente código fonte, sua
utilização, sua cópia, sua alteração e sua redistribuição. Essa tônica negocial nota-se, por exemplo, na lei do Estado do Rio
Grande do Sul, questionada na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.059, in
verbis:
"Art. 1o
(...)
§ 1o Entende-se por programa aberto
aquele cuja licença de propriedade industrial ou intelectual não restrinja sob
nenhum aspecto da cessão, distribuição, utilização ou alteração de suas
características originais, assegurando ao usuário acesso irrestrito e sem
custos adicionais ao seu código fonte, permitindo a alteração parcial ou total
do programa para seu aperfeiçoamento ou adequação."
No entanto, quando a entidade
estatal elege o software livre como meio negocial
para consecução do interesse público, as distinções em face do programa fechado
fazem-se ainda mais nítidas. Ocorre que a forma particular de negócio, inerente
aos programas abertos, dá densidade aos fundamentos do Estado brasileiro (à
soberania, à cidadania e à dignidade da pessoa humana), bem como aproveita aos
seus objetivos de "construir uma sociedade livre, justa e solidária"
e "garantir o desenvolvimento nacional". É que a relativização do
direito de propriedade autoral consubstanciada no compartilhamento social do
código fonte dos programas de computadores, subjacente à noção de software
livre, ao fim e ao cabo, exprime o melhor e mais ostensivo atendimento ao
princípio constitucional da função social da propriedade.
Aliás, de acordo com o que já se
mencionou, o Estado tem um papel relevante na formação do ambiente de
desenvolvimento dos softwares abertos. Ao elegê-los como instrumento de suporte
à sua atuação, a entidade estatal vale-se de seu poder de compra para o incremento
do correspondente mercado consumidor, o que, claramente, insere-se no âmbito do
planejamento econômico. Mais precisamente, trata-se de uma intervenção do ente
público no domínio econômico para fomentar determinada sorte de atividade.
Finalmente, reduzir o debate da
adoção do software aberto pelo setor público aos estreitos limites da licitação
como pretendem os opositores – ainda que, no campo léxico, as sistemáticas
normativas a ela se refira – significa desprezar a real dimensão do tema, consistente
na democrática atuação da Administração Pública. Renegar essa perspectiva maior
traduziria um desrespeito aos valores fundamentais da República Federativa do
Brasil, quais sejam, a soberania, a cidadania, a dignidade da
pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, que
apenas têm a ganhar concretude e densidade, em
razão da preferência estabelecida por algumas normas estatais – como, por
exemplo, a Lei no 11.871, de 19 de dezembro de 2002, do Estado do Rio Grande do
Sul. Não fosse o bastante, tal redução significaria uma interdição sobre a
faculdade que tem o Governo de ditar suas políticas econômicas.
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4. Da prescindibilidade
de lei da União para que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios possam
disciplinar a adoção de free softwares
Situado o negócio do software livre
no contexto de realização dos princípios e objetivos da República Federativa do
Brasil, cabe analisar o argumento normalmente suscitado pelos seus adversários,
no sentido de que eventuais normas dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios afrontariam o disposto no art. 22, XXVII, da Carta Política
("Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...) XXVII –
normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as
administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais
da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o
disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia
mista, nos termos do art. 173, § 1o, III;"), isso é, elas careceriam da
prévia existência de lei federal sobre a matéria.
De início, note-se que a
Administração Pública sequer necessita de lei para optar preferencialmente pela
adoção dos programas livres. Basta que, nos editais licitatórios,
oriente-se pela forma de negócio de tais softwares.
De qualquer forma, eventual
legislação dos Estados, dos Distrito Federal e dos
Municípios não deve ser apreciada sob a perspectiva única das normas
constitucionais da licitação, mas sim sob o enfoque de se tratar de diploma que
revela a escolha estatal de perseguir os interesses públicos primários e
secundários, bem como, consoante já assinalado – pedindo-se vênia ao leitor
para insistir –, a atribuição de concretude aos
princípios e aos objetivos da República.
Consoante destacado, a eleição de
uma ou outra forma de negócio, programas livres ou proprietários, constitui
opção única do Estado, que revela seu planejamento econômico. Insista-se: ao
estabelecer a prioridade legal pelos softwares livres, o ente público emprega o
seu poder aquisitivo para criar e fomentar o mercado consumidor desses
programas. Cuida-se de típica matéria de intervenção do Estado na seara
econômica, ou seja, de Direito Econômico (art. 174 e 24, I, ambos da
Constituição da República), cuja legislação compete concorrentemente à União,
aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, acarretando, no ambiente da
questão em exame, a prescindibilidade de prévia
edição de lei federal.
Entretanto, caso se opte por
examinar a controvérsia sob aquele aspecto limitado, deve-se salientar, desde
logo, que não existe a inconstitucionalidade sugerida pelos opositores dos free softwares.
A preferência pelos direitos
emergentes do software livre há de ser orientada pelo interesse local, ou seja,
não se exige nem se pode exigir que ela conste de norma geral editada pela
União. A adoção de programas abertos pela Administração Pública norteia-se por
uma série de fatores contingenciais e muito
particulares, como, por exemplo, a existência e os limites de disponibilidades
financeiras, o tempo, os recursos humanos, a proximidade do suporte
tecnológico, tudo apontando para predominância do interesse local, o que força
concluir que compete ao Estado, ao Distrito Federal e aos Municípios
disciplinarem a matéria, independentemente de prévia legislação da União.
Ratificando esse entendimento, vale
a lembrança de que parte significativa dos projetos relacionados ao emprego de
softwares livres pelo setor público e que se encontram em tramitação no
Congresso Nacional não se referem aos Estados nem ao Distrito Federal, tampouco
aos Municípios, mas apenas à União. Para ilustrar, mencionem-se o Projeto de
Lei no 3.051/2000, que "Determina a preferência a sistemas e programas
abertos na aquisição e uso de programas de computadores pelos órgãos da
Administração Pública Federal", de autoria do Deputado Werner
Wanderer; o Projeto de Lei no 4.275/2001, que
"Dispõe sobre a adoção de sistemas e programas de computador abertos pelos
órgãos da Administração Pública Federal", elaborado pelo Deputado Luiz Bittencourt; e o Projeto de Lei no 2.152/2003,
"Determina a adoção de software livre em todos os órgãos e entidades
públicas federais", apresentado pelo Deputado Coronel Alves.
Aliás, leis estaduais, distritais
ou municipais, nos estritos limites das respectivas competências apenas viriam
a dar densidade ao princípio da padronização das compras, estatuído pelo art.
15, I, da Lei no 8.666/93.
Dessa maneira, resta patente que
quaisquer normas estaduais, distritais ou municipais que venham a fixar a
preferência, nos correlatos âmbitos administrativos, pelo negócio do software
aberto, não carece de prévia legislação da União sobre o tema, sendo, portanto,
plenamente conforme a Carta da República.
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5. Da não violação ao princípio
da isonomia dos licitantes
Ao lado de outras argumentações, os
adversários da adoção do software livre pela Administração, suscitam que
eventuais preferências legais não respeitariam o princípio da isonomia entre os
licitantes, previsto no art. 37, XXI, da Constituição da República, o que
também não procede.
Jorge Miranda, de Portugal, ao
abordar o princípio da igualdade, leciona:
"Existe uma tensão insuprimível entre liberdade e igualdade (conforme, de
resto, já salientámos): assim como a liberdade
radical de certo individualismo, levada às últimas conseqüências, ignora a
igualdade (pelo menos, a igualdade de exercício de direitos), a igualdade
igualitária conduz à destruição da liberdade (pelo menos, da liberdade
política). E torna-se recorrente nas sociedades pluralistas contemporâneas a
procura de um equilíbrio tanto entre igualdade e aquilo a que se vem chamando
direito à diferença como entre bens e interesses de grupo."
[13]
É esse direito à diferença,
decorrente necessário do princípio da isonomia, que aproveita à compreensão do
caso dos autos. No infinito universo da tecnologia informática,
diferem-se radicalmente e, portanto, ostentam direito a tratamentos
distintos os negócios de softwares livres e os de proprietários.
Com efeito, no ambiente normativo
peculiar da licitação, no qual se prega a igualdade de
condições entre os concorrentes, não viola a isonomia norma que estipula
preferência por uma determinada forma negocial. Como
já referido, a distinção levada a efeito por eventual norma de semelhante
conteúdo não se direciona a um produto ou a um tipo de produto específico, mas
sim a uma forma de contratação, revelando a vontade estatal de atribuir
densidade a certos valores constitucionais.
Celso Antônio Bandeira de Mello, em
sua clássica monografia sobre o "Conteúdo Jurídico do Princípio da
Igualdade", arrola critérios para que uma discriminação feita por lei não
infrinja o princípio constitucional da isonomia, valendo a pena transcrever
excerto de suas lições, in verbis:
"Para que um
discrímen legal seja convivente
com a isonomia, consoante visto até agora, impende que concorram quatro
elementos:
a)que a desequiparação
não atinja de modo atual e absoluto, um só indivíduo;
b)que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de direito sejam efetivamente
distintas entre si, vale dizer, possuam características, traços, nelas
residentes, diferençados;
c)que exista, em abstrato, uma
correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de
regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica;
d)que, in concreto, o vínculo de
correlação supra-referido seja pertinente em função dos interesses
constitucionalmente protegidos, isto é, resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto
constitucional – para o bem público." [14]
Partindo desses parâmetros,
primeiramente, cumpre apontar que a adoção preferencial dos programas abertos
pela Administração Pública, não restringe as possibilidades de concorrência,
nas respectivas licitações, a um único produto ou a um fornecedor singular.
Para se ter uma idéia da diversidade de softwares livres existentes no mercado
e, portanto, da variedade de produtos aptos a participarem dos certames,
mencione-se o ranking apresentado na matéria "O fenômeno do Software
Livre", da Revista Info, relativo aos principais
programas de códigos abertos utilizados pelas grandes empresas, quais sejam,
LINUX, APACHE, TOMCAT, BIBLIOTECAS JAVA, PERL/PHP,
JBOSS, APACHE STRUTS, MYSQL, ECLIPSE e outros. [15] Ademais, é importante,
neste particular, perceber que a distinção se trava entre as formas de negócios
e não propriamente entre os programas. A rigor, ambos os programas negociados
em regra distintamente, seja o proprietário, seja o não proprietário, são
idôneos a concorrerem perante a Administração Pública, bastando para tanto que
o titular daquele primeiro revele o seu código fonte e admita a respectiva
reprodução, modificação e distribuição. Isso é, em termos práticos, todo e
qualquer software pode ser negociado sob a forma livre, inclusive os conhecidos
como proprietários.
Na seqüência dos parâmetros
arrolados por Celso Antônio Bandeira de Mello, cabe perceber que as modalidades
de programas em evidência são totalmente diferentes, não enquanto programas, mas
com respeito à forma negocial que são
disponibilizados aos usuários, ou seja, a diferença enquadra-se no plano da
realidade objetiva, perceptível por qualquer pessoa.
Quanto à correlação lógica entre os
fatores diferenciais existentes e a distinção de regimes, no caso, licitatórios, ela existe na hipótese em exame. O tratamento
diferenciado justifica-se por tudo quanto já se expôs neste trabalho.
Por fim, a diferenciação traçada
pela lei impugnada atende à concretização dos princípios e dos fundamentos da
República Federativa do Brasil, conforme também já se demonstrou.
A propósito, não se pode olvidar
que o debate do software livre também já chegou ao Tribunal de Contas da União,
o qual entendeu possível a preferência ora em questão, desde que devidamente
fundamentada (TC-004.193/01-1, In: Boletim de licitações e contratos, n. 2, fevereiro de 2004, p. 124 e ss.).
Dessa forma eventuais normas que
atribuam prioridade à contratação de softwares livres pelo Estado não incidem
em infringência ao princípio da isonomia entre os
licitantes.
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6. Do software livre como
principal meio de concretização do princípio constitucional da eficiência
Entre outros obstáculos,
normalmente se alega que a preferência legal pelo negócio do software livre
infringiria o princípio da eficiência (art. 37, caput, da Constituição da
República) e, também, o da economicidade.
Com efeito, desde a Emenda no
19/98, que carreou à Carta da República o princípio da eficiência,
especificamente no caput do art. 37, de sorte a integrá-lo ao bloco de controle
constitucional – de acordo com a linguagem portuguesa –, inaugurou-se uma nova
era da Administração Pública pátria. De uma gestão estatal que nasceu num
contexto patrimonialista e passou por outro, o
burocrático, chega-se ao cenário da eficiência, no qual se delineia um Estado
enxuto, ágil e dinâmico, próximo das texturas econômicas do
próprio setor privado.
Pois bem, se a opção pelos direitos
emergentes dos programas abertos não se apresentasse como a melhor otimização
de disponibilidades financeiras, bem como o meio mais seguro de desenvolvimento
de atividades, sejam econômicas ou não, o ambiente empresarial, em que a
correta alocação de recursos norteia a respectiva lógica, não os acolheria nem
os estimularia. Se assim é no contexto do mercado, parece acertada, também, a
preferência do Estado pelos softwares não proprietários.
Ao tecer considerações sobre a
correlação entre o princípio da eficiência e o software livre, Ivo Teixeira Gico Júnior, mestre pela Columbia University
(USA), esclarece:
"Da própria
análise da definição de software livre podemos inferir suas vantagens sobre os
demais tipos de software, os programas proprietários. Primeiro, a administração
que o adota não se submete a qualquer condição ou restrição de uso que não
aquele ditado pelo interesse público. Segundo, como o acesso ao código-fonte é
permitido, ou seja, sabe-se o que está por trás do programa, qualquer um pode
estudá-lo, adaptá-lo a suas necessidades particulares e melhorá-lo em caso de
falhas. Sua adoção representa, em última análise, uma transferência de
tecnologia. Por último, mas não menos importante, como não se paga pela licença
do software livre, não só o custo de aquisição é nulo, como o de aquisição de
equipamentos (hardware) é muito menor, uma vez que tais programas exigem menor
capacidade de processamento. É aqui que o princípio da eficiência se faz sentir
de maneira mais forte.
O mercado brasileiro de software
movimentou mais de US$ 3,2 bilhões em 2000. Dessa quantia, US$ 1 bilhão refere-se à aquisição de licenças de software
proprietário, sendo o governo federal responsável por mais de R$ 200 milhões
por ano. Uma vez que a adoção do software livre representa real possibilidade
de redução de custos, da exegese do princípio da eficiência resta cogente sua
adoção pela administração, independentemente de outros fundamentos como a
democratização do conhecimento, desenvolvimento da indústria local,
independência tecnológica, soberania, segurança nacional (já que é o único
efetivamente auditável) e, com maior razão, se
levarmos em consideração o tão propalado princípio da razoabilidade." [16]
Não é, entretanto, apenas o
argumento econômico que orienta a eficiência da opção pelos softwares abertos.
Primeiramente, a segurança do armazenamento de informações e de dados públicos
reclama o domínio dos códigos dos programas, bem assim a plena ciência dos
trâmites correspondentes, sob pena de o Estado ver violados seus informes mais
íntimos pela sua própria rede de tecnologia, acessível por "portas
traseiras" – como fala o legislador português – unicamente pelo autor do
programa fechado.
A par disso, consoante já
mencionado, somente os softwares livres permitem a plena concretização do
princípio democrático e da cidadania, por meio do compartilhamento do código
fonte utilizado pelo ente estatal na consecução de certas tarefas, acarretando,
assim, a transparência que deve permear a Administração. Ademais, essa
socialização do código permite uma interação criativa entre o agente público e
o programa, de modo a permitir uma total adequação deste às necessidades
materiais do correlato órgão.
Vale apontar, ainda, que, em
eventual inadimplemento do contratado pela Administração – para exemplificar,
suponha-se que se negue a proceder à manutenção convencionada do programa
adquirido –, apenas o software livre permitiria a encampação de que cuida o
art. 58, V, da Lei no 8.666/93. O segredo que permeia o código dos programas
proprietários poderia comprometer, na hipótese, a continuidade do serviço
público, o que, por certo, não sucederia com aqueles abertos.
A propósito, um dos obstáculos que
alguns menos avisados levantam contra a economicidade
e a eficiência da utilização de softwares livres pela Administração refere-se a
uma suposta ausência de responsável por ocasionais vícios ou falhas dos
sistemas. Trata-se de premissa equivocada, pois, ao licitar a aquisição de
programas, o Estado poderá valer-se da faculdade de exigir do respectivo distribuidor
as garantias necessárias à plena execução do objeto, nos termos do art. 54, VI,
da Lei 8.666/93.
Com essas considerações, mostra-se
inegável o fato de o software livre ser, no universo informático, o principal
meio – e, talvez, até o único – capaz de atender tanto ao princípio da
eficiência, quanto ao da economicidade.
Não apenas isso: os programas
abertos, por todas as suas peculiaridades, constituem a necessária opção à qual
deve proceder o Poder Público, cujos agentes
efetivamente se pautam pela concretização dos valores estatuídos na Carta da
República.
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Notas
01 Veja-se o inteiro teor da lei
impugnada na ADI nº 3.059, in verbis:
"Art. 1o A administração pública direta, indireta, autárquica e fundacional do Rio Grande do Sul, assim como os órgãos
autônomos e empresas sob controle do Estado utilizarão preferencialmente em
seus sistemas e equipamentos de informática programas abertos, livres, de
restrições proprietárias quanto a sua cessão, alteração e distribuição.
§ 1o Entende-se por programa aberto
aquele cuja licença de propriedade industrial ou intelectual não restrinja sob
nenhum aspecto da cessão, distribuição, utilização ou alteração de suas
características originais, assegurando ao usuário acesso irrestrito e sem
custos adicionais ao seu código fonte, permitindo a alteração parcial ou total
do programa para seu aperfeiçoamento ou adequação.
§ 2o Para fins de caracterização do
programa aberto, o código fonte deve ser o recurso preferencial utilizado pelo
programador para modificar o programa, não sendo permitido ofuscar sua
acessibilidade, nem tampouco introduzir qualquer forma intermediária como saída
de um pré-processador ou tradutor.
§ 3o Quando da aquisição de
softwares proprietários, será dada preferência para aqueles que operem em
ambiente de multiplataforma, permitindo sua execução
sem restrições em sistemas operacionais baseados em software livre.
§ 4o A implantação da preferência
prevista nesta lei será feita de forma paulatina, baseada em estudos técnicos e
de forma a não gerar perda de qualidade nos serviços prestados pelo Estado.
Art. 2o As licenças de programas
abertos a serem utilizados pelo Estado deverão, expressamente, permitir
modificações e trabalhos derivados, assim como a livre distribuição destes nos
mesmos termos da licença do programa original.
Parágrafo único –
Não poderão ser utilizados programas cujas licenças:
I – impliquem qualquer forma de
discriminação a pessoas ou grupos;
II – sejam específica para
determinado produto, impossibilitando que programas derivados deste tenham a
mesma garantia de utilização, alteração, distribuição; e
III – que restrinjam outros
programas distribuídos conjuntamente.
Art. 3o Será permitida a
contratação e utilização de programas de computador com restrições
proprietárias ou cujas licenças não estejam de acordo com esta Lei, nos
seguintes casos:
I – quando o software analisado
atender a contento o licitado ou contratado, com reconhecidas vantagens sobre
os demais softwares concorrentes, caracterizando um melhor investimento para o
setor público.
II – quando a utilização de
programa livre e/ou código de fonte aberto causar
incompatibilidade operacional com outros programas utilizados pela
administração.
Art. 4o O Estado regulamentará as
condições, prazos e formas em que fará a transição, se necessária, dos atuais
sistemas e programas de computador para aqueles previstos no art. 1o, quando
significar redução de custos a curto e médio prazo, e orientará as licitações e
contratações, realizadas a qualquer título, de programas de computador.
Parágrafo único – A falta de
regulamentação não impedirá a licitação ou contratação de programas de
computador na forma desta Lei.
Art. 5o Esta Lei entra em vigor na
data de sua publicação.
Art. 6o Revogam-se as disposições
em contrário."
02 Como assinala Joaquim Falcão,
Diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas e Professor de Direito
Constitucional da UERJ, in verbis: "Mas afinal o
que realmente que um software é livre? O que é software livre? Na verdade, essa
é a tradução de uma expressão americana: free
software. Acontece que, em inglês, a palavra free
pode significar tanto livre como grátis. Essa distinção é fundamental para
colocar um pouco de bom senso no crescente e saudável debate entre o software
livre e o software proprietário no Brasil e no mundo." (Livre
ou gratuito? Disponível em: www.femperj.org.br/jornal/05062004.htm; acesso em
12/11/2004).
03 ROCHO, Luciano Alberto. Software
livre como alternativa viável na câmara dos deputados. Brasília: 2003, p. 08.
04 O fenômeno do software livre.
In: Revista Info. Editora Abril:
fevereiro de 2004, p. 61.
05 HEXSEL, Roberto A. Software
livre: Propostas de ações de governo para incentivar o uso do software livre.
Curitiba, 2002, p.1.
06 Essas informações foram
retiradas do site da Association
Francophone des Utilisateurs de Linux et des Logiciels
Libres (Disponível em: www.aful.org/politique/references.html; acesso em: 21/11/04).
07 Tradução livre do original:
"El presidente de la
República, Hugo Chávez Frías,
anunció que el Gobierno emitirá un decreto
mediante el cual se establecerá la utilización de software libre
para todas los organismos y dependencias
de la administración
pública." (Disponível em:
www.softwarelibre.cl/modules.php?op=modload&name=News&file=article&sid=411;
acesso em: 21/11/2004).
08 Tradução livre do original:
"Para grantizar el libre acceso de los ciudadanos a la información pública, resulta indispensable que la codificación de los datos no esté ligada a un único proveedor y menos a
formatos no estándar que algunos
proveedores imponen por supuesto ‘dominio’ en el mercado. El uso de formatos estándar y abiertos permite garantizar este libre acceso a la información independentemente
de si el proveedor desea o no continuar brindando los
servicios, logrando si fuera
necessario la creación de software compatible a
todo software que respete el
estándar mundial de la
industria. Para garantizar la
perenidad de lod datos públicos, es indispensable
que la utilización y el mantenimiento del software no dependan de la buena voluntad de los proveedores, ni delas condiciones monopólicas, impuestas
por éstos. Se precisan
sistemas cuya evolución
natural pueda ser garantizada
gracias a la disponibilidad del código fuente. Para garantizar la seguridad nacional, resulta indispensable contar con sistemas desprovistos de
elementos que permitan el control a distancia o la transmisión no deseada de información a terceros. Por lo tanto, se requieren sistemas cuyo código fuente sea libremente accesible al público para permitir su
examen por el proprio Estado, los ciudadanos y un gran número de expertos independientes
en el mundo." (Disponível em:
www.softwarelibre.cl/modules.php?op=modload&name=Downloads&file=index&req=viewdownload&cid=17;
acessado em: 21/11/04).
09 Disponível em: http://www3.parlamento.pt/plc/iniciativa.aspx?id_ini=19247;
Acesso em: 20/11/04.
10 Disponível em:
http://www3.parlamento.pt/plc/iniciativa.aspx?id_ini=19247; Acesso em:
20/11/04.
11 LARENZ, Karl. Metodologia da
ciência do direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 439.
12 Tradução livre do original:
"D’un point de vue juridique, un logiciel libre
est avant tout un logiciel
protégé par le droit d’auter et
soumis à une licence qui le
réglemente et en délimite les
droits et obligations afférents. Souvent opposé au logiciel propriétaire,
qui habituellement ne comporte que des droits d’usage, le logiciel libre
s’en distingue par les droits plus importants
accordés par l’auter du logiciel aux
bénéficiaires de la licence. Un logiciel
libre est donc bien soumis
au droit d’auter et au
code de la propriété intellectuelle. Sa licence permet ainsi d’utiliser un logiciel, mais elle permet également
au bénéficiaire de la licence d’étudier
le fonctionnement du logiciel – ce qui est parfois
possible sous certaines conditions avec les logiciels
propriétaires – de modifier
le logiciel pour son usage
propre et de redistribuer les modifications qu’il a effectuées sur le logiciel
– ce qui est généralement interdit avec les logiciels
propriétaires." (Guide
de choix et d’usage de licences
de logiciels libres pour les administrations.
Disponível em: http://softwarelibre.cl/modules.php?op=modload&name=Downloads&file=index&req=viewdownload&cid=13;
Acesso em: 21/11/04).
13 MIRANDA, Jorge. Manual de
direito constitucional. Tomo IV. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, pp. 201/202.
14 MELLO, Celso Antônio Bandeira
de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 1999, p.
41.
15 O fenômeno do software livre.
In: Revista Info. Editora Abril:
fevereiro de 2004, p. 58.
16 Princípio
da eficiência e o software livre. Disponível em: www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2970; Acessado em: 11/11/04.
Retirado de: http://www.jus.com.br