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Ricardo Wey Rodrigues
Funcionário do TRF da
4ª Região – Graduado em Direito pela UFRGS
Para a
análise da dominialidade das ilhas costeiras brasileiras, faz-se necessário ter
presente a história da propriedade pública e privada no Brasil. Confiro.
Quando
o Brasil foi descoberto, o Rei de Portugal, como descobridor, adquiriu sobre
todo o território o título originário de propriedade. Investido deste senhorio,
o descobridor, mediante cartas de sesmaria expedidas pelos donatários das
capitanias hereditárias, capitães-mores e vice-reis, passou a doar terras,
constituindo o domínio privado no território nacional.
Esse
regime de sesmarias vigeu da Descoberta até a Independência do Brasil em 1822,
momento em que foi extinto e abriu-se um hiato na legislação sobre terras que
se prolongou até 1850, desenvolvendo-se no intervalo a progressiva ocupação do
solo sem qualquer título, mediante a simples tomada de posse.
Em
18 de março de 1850, adveio a Lei n° 601, e, posteriormente, seu Regulamento n°
1.318, de 30 de janeiro de 1854, os quais legitimaram todas as aquisições pela
posse efetivadas até então sobre terras de domínio público, desde que
estivessem devidamente registradas no livro da Paróquia Católica, o chamado
"registro do vigário". Outrossim, estabeleceram que, a partir de
então, quaisquer terras públicas só poderiam ser adquiridas por particular
através da compra.
Analisando
esse breve histórico, a primeira conclusão a que se chega é que não há
propriedade imóvel privada no Brasil que não tenha origem em desmembramento do
patrimônio público.
Levando
em conta uma tal afirmação, passo à análise do contexto legal em que as ilhas
marítimas de nosso país estão inseridas.
Partindo
do pressuposto que todas as terras brasileiras eram públicas em sua origem,
assim eram as ilhas do nosso território. A primeira norma que se tem
conhecimento a viger no Brasil tratando especificamente sobre a propriedade das
ilhas brasileiras são as Ordenações Filipinas (1603-1916). Estas trazem em seu
Livro II, que trata "Dos Direitos Reaes", em seu Título XXVI, n° 10,
que era propriedade do Patrimônio Real as ilhas "adjacentes mais chegadas
ao Reino" (note-se que "Dos Direitos Reaes" não refere-se ao que
se entende hoje por "direitos reais", como pode parecer a primeira
vista, mas, sim, refere-se aos direitos imperiais, do rei).
As
Constituições Brasileiras foram inconstantes no tratamento do assunto. Enquanto
a Carta Magna de 1824 silenciou sobre o assunto, este veio à tona, por via
indireta, quando da promulgação da Lei Maior de 1891, que distava - Art 64.
Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos
territórios, cabendo à União somente a porção do território que for
indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções
militares e estradas de ferro federais. Parágrafo único. Os próprios nacionais,
que não forem necessários para o serviço da União, passarão ao domínio dos
Estados, em cujo território estiverem situados.
Ou
seja, ao instituir uma república federativa no Brasil (em contraposição ao
anterior Estado monárquico e unitário), a Carta Constitucional de 1981
estabeleceu que as terras nacionais que eram indispensáveis para a defesa das
fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais
seriam de domínio da União, restando todas as demais à dominialidade dos
Estados recém-criados. Contudo, tal regra não foi nada clara quanto aos
critérios para determinação da dispensabilidade das terras para os referidos
fins. Dessa forma, surgiu grande divergência à época da promulgação da Carta
acerca do domínio de certas terras, dentre elas, notadamente, as ilhas
marítimas. A meu ver, por maior que pareça a importância e as conseqüências
trazidas por tal regra, tem-se que, na sua aplicação, ela acabou se apresentando
inócua, permanecendo indefinidos quais eram os bens de cada ente federativo.
Contudo, havia uma certeza - como permaneciam em vigor as Ordenações Filipinas,
as ilhas marítimas, que antes eram do Patrimônio Real, agora passavam a compor
o patrimônio público, seja federal, seja estadual.
Em
1916, com o advento do Código Civil, foram revogadas expressamente as Ordenação
referidas, não havendo qualquer disposição nessa nova lei a substituir a ordem
anterior acerca da propriedade das ilhas. Contudo, não há razão para se
entender que, então, as ilhas marítimas deixaram de compor o patrimônio
público.
Pelo
contrário, embora as Constituições de 1934, 1937 e 1946 tenham restado
totalmente silentes acerca das ilhas marítimas, apenas tratando das ilhas
fluviais e lacustres, advieram, em 17 de setembro de 1938, o Decreto-Lei n°
710, dispondo sobre a reorganização da Diretoria de Domínio da União, e em 5 de
setembro de 1946, o Decreto-Lei n° 9.740, dispondo sobre os bens imóveis da
União, os quais não só foram claros em manter no patrimônio público as ilhas
marítimas que antes eram do Patrimônio Real, como ainda acabaram
definitivamente com a celeuma de décadas acerca de à qual ente federativo
caberia a sua dominialidade. Dista o artigo 1° do Decreto-Lei n° 9.740/46-
Art.
1º Incluem-se entre os bens imóveis da União:
...................
d)
as ilhas situadas nos mares territoriais ou não, se por qualquer título
legítimo não pertencerem aos Estados, Municípios ou particulares;
...................
j)
os que foram do domínio da Coroa;
.........................................................................................................................
(grifei)
Seguindo,
a Lei Maior de 1967 foi a primeira Constituição brasileira a tratar
expressamente acerca das ilhas marítimas. Assim dispôs em seu artigo 4° -
Art
4º - Incluem-se entre os bens da União:
...................
II
- os lagos e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que
banhem mais de um Estado, que sirvam de limite com outros países ou se estendam
a território estrangeiro, as ilhas oceânicas, assim como as ilhas
fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países;
...................
V
- os que atualmente lhe pertencem.
......................................................................................................................
(grifei)
Note-se
que a Carta Magna de 1967 referiu-se a "ilhas oceânicas", em vez de
"ilhas marítimas". Por causa disso, instaurou-se, e ainda hoje há,
uma forte discussão sobre se a expressão "ilha oceânica"
encontrava-se no dispositivo supracitado no seu sentido técnico-geográfico, ou
apenas numa alusão genérica a todas as ilhas marítimas, posto que sinônimos os
termos "oceano" e "mar". Neste ponto, tem-se o entendimento
do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal firmando posição por aquele
primeiro sentido da expressão, conforme voto condutor do julgamento do RE
101.037/SP, de relatoria do Ministro FRANCISCO REZEK, acordado por unanimidade,
em 06/03/1985, que segue -
...................
A
tese ora prevalente na espécie tem apoio na abordagem técnica de um dos mais
conhecidos e respeitados geógrafos do Brasil neste século, Aroldo de Azevedo; a
quem se reporta, concordante, não menos ilustre expoente do direito administrativo,
Hely Lopes Meirelles, quando afirma:
"As
ilhas marítimas classificam-se em costeiras e oceânicas, Ilhas
costeiras são as que resultam do relevo continental ou da plataforma
submarina; ilhas oceânicas são as que se encontram afastadas da costa e
nada têm a ver com o relevo continental ou com a plataforma submarina."
(Direito
Administrativo Brasileiro; S. Paulo, RT, 1983, p. 451).
Observo
que essa distinção, fundada em critérios geográficos, tem trânsito na
literatura jurídica desde muito antes da promulgação da lei maior de 1967.
Sérgio de Andréa Ferreira revela que, já em 1899, Carlos de Carvalho, no seu Direito
Civil Recopilado, deixa ver a diferença entre ilhas costeiras e ilhas
afastadas do litoral, agregando as duas espécies no conceito genérico de ilhas
marítimas (S.A. Ferreira, O domínio das ilhas marítimas no direito
brasileiro; 59-60, R.D.P. (1981), p. 82).
.....................................................................................................................................
Ou
seja, no entendimento do voto condutor acima, a Constituição Federal de 1967
tratou o assunto em seus termos técnicos, sendo as ilhas marítimas gênero, do
qual as ilhas costeiras (ou adjacentes) e as ilhas oceânicas (ou pelágicas) são
espécie - aquelas são as ilhas que se situam na plataforma continental,
portanto dentro do mar territorial de 200 milhas; enquanto estas são as que
exsurgem do fundo do alto-mar, ampliando o mar territorial do continente ou
possuindo seu próprio mar territorial.
Contudo,
a meu ver tal, essa discussão acerca do nível de tecnicidade das expressões
utilizadas pela Constituição Federal de 1967 foi alvo de exagerada atenção. Isso
porque, conforme se percebe da redação do artigo 4° da Lei Maior de 1967, seu
inciso V determina claramente que seriam bens da União também os que já lhe
pertenciam. Dessa forma, tendo em vista que, conforme já exposto, todas as
ilhas marítimas (o que inclui tanto as costeiras como as oceânicas) já eram da
União quando da promulgação da Carta Magna de 1967, estas permaneceram o sendo.
Assim, para saber da propriedade da União sobre as ilhas marítimas,
desinteressa qual a extensão da expressão "ilhas oceânicas" no inciso
II do artigo mencionado, posto que, até na hipótese mais restrita do termo, tal
inciso traria apenas um reforço da dominialidade federal sobre essas ilhas já
garantida pelo inciso V do mesmo artigo.
Por
fim, a Constituição Federal de 1988 foi expressa, em seu artigo 20, inciso IV,
em manter no patrimônio da União todas as ilhas marítimas.
Esse
é o panorama da propriedade nas ilhas costeiras e oceânicas brasileiras.
Um
tema afeto a esse assunto, recorrente nos Tribunais Federais brasileiros, é a
usucapião de imóveis nas ilhas costeiras, mormente nas capitais brasileiras
situadas nesses locais –Florianópolis/SC, Vitória/ES e São Luís/MA (* Ver
Nota do Editor). A jurisprudência tem sido, em regra, favorável à concessão
da usucapião, tendo por base a idéia de que a Constituição de 1967 não previa
expressamente as ilhas costeiras como propriedade da União, nem de qualquer
outro ente federativo – assim, quem comprova a posse mansa e pacífica do bem
pelo prazo previsto no antigo Código Civil Brasileiro, até a promulgação da
Constituição de 1988, tem obtido êxito na demanda. Porém, como já referido,
tendo em vista que toda propriedade imóvel privada no Brasil tem origem em
desmembramento do patrimônio público, e que todas as ilhas marítimas (oceânicas
e costeiras) sempre fizeram parte do mesmo - antes pertencendo ao Patrimônio
Real, depois à União -, a conclusão a que se chega é a de que, inversamente à
tendência atual da jurisprudência pátria, não há qualquer possibilidade de
ocorrer usucapião sobre as ilhas marítimas brasileiras, sem a comprovação de
anterior desmembramento do imóvel pretendido do patrimônio público, face à
carência de um dos requisitos essenciais à usucapião - a res habilis.
Com
efeito, são requisitos necessários para a declaração da usucapião a posse ad
usucapionem e a res habilis. Em relação a este requisito, tem-se que
a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 183, parágrafo 3°, dispõe que não
podem ser adquiridos por usucapião os imóveis públicos. Anteriormente a ela, o
Código Civil já vedava a apropriação de bens públicos por usucapião, ao prever
em seu artigo 67 a inalienabilidade de tais bens, conforme pacífica
jurisprudência a respeito (Súmula STF n° 340). E antes mesmo desse Código, como
já referido, a Lei n° 601/1850 já estabelecia que quaisquer terras públicas só
poderiam ser adquiridas por particular através da compra. Ou seja, no mínimo
desde a Lei n° 601, de 18 de março de 1850, não é possível o usucapião de
terras públicas. Dessa forma, havendo carência de um dos requisitos essenciais
à usucapião - res habilis -, resta despicienda a análise do outro, sendo
as pretensões nesse sentido totalmente impróprias.
Em
conclusão a todo o explanado, é válido mencionar a grande dificuldade que se
tem na compreensão do fenômeno da propriedade pública e privada no Brasil e
suas implicações, não por qualquer outro motivo, senão pela enorme complexidade
e obscuridade da legislação brasileira, que, assim como no caso em tela, se
apresenta em tantas outras áreas do Direito pátrio.
RESUMO
1.
Quando o Brasil foi descoberto, o Rei de Portugal, como descobridor, adquiriu
sobre todo o território o título originário de propriedade. Dessa forma, não há
propriedade imóvel privada no Brasil que não tenha origem em desmembramento do
patrimônio público.
2.
A primeira norma que se tem conhecimento a viger no Brasil tratando
especificamente sobre a propriedade das ilhas brasileiras são as Ordenações
Filipinas (1603-1916), que trazem em seu Livro II, que trata "Dos Direitos
Reaes", em seu Título XXVI, n° 10, que era propriedade do Patrimônio Real
as ilhas "adjacentes mais chegadas ao Reino".
3.
O Decreto-Lei n° 710/38 e o Decreto-Lei n° 9.740/46 foram claros em manter no
patrimônio público federal as ilhas marítimas que antes eram do Patrimônio
Real.
4.
As Constituições Brasileiras foram inconstantes no tratamento das ilhas
marítimas, gênero que possui como espécies as ilhas oceânicas e as ilhas costeiras.
A Lei Maior de 1967 foi a primeira Constituição brasileira a tratar
expressamente do assunto (art. 4°, II), o que fez mantendo-as no patrimônio da
União, da mesma forma que procedeu em relação a todos os bens que já eram deste
ente (art. 4°, V). Hoje, a Carta Magna de 1988 é expressa preservar tais ilhas
no patrimônio da União (art. 20, IV), ressalvadas as que, por título legítimo,
já pertenciam aos Estados, Municípios ou particulares.
5.
Tendo em vista que toda propriedade imóvel privada no Brasil tem origem em
desmembramento do patrimônio público, e que todas as ilhas marítimas (oceânicas
e costeiras) sempre fizeram parte do mesmo - antes pertencendo ao Patrimônio
Real, depois à União -, não há qualquer possibilidade de ocorrer usucapião
sobre as ilhas marítimas brasileiras, sem a comprovação de anterior
desmembramento do imóvel pretendido do patrimônio público.
RETIRADO DE: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=6861