A arbitrabilidade de
controvérsias nos contratos com o estado e empresas estatais
As recentes decisões administrativas e
judiciais envolvendo a arbitragem como mecanismo de solução de controvérsias em
contratos celebrados por empresas estatais indicam uma tendência de repúdio à
utilização do instituto naqueles casos. Essa posição coloca em risco não apenas
a construção correta dos princípios gerais de Direito Administrativo, dos
princípios a que se sujeita a Administração Pública, os diversos dispositivos
legais aplicáveis assim como a estruturação de parcerias e associações entre o
Estado, suas entidades da Administração Indireta e o Setor Privado.
A realidade nos mostra que, a par de suas
funções típicas, o Estado, a cada momento, está mais presente na vida econômica
e social, em muito como decorrência de princípios constitucionais. O surgimento
e fortalecimento do Estado empresário, mediante a inclusão da atuação na área
econômica dentre as suas diversas funções, não teve por efeito diminuir o papel
atribuído à iniciativa privada, mas o de criar um ambiente de atuação paralela
e, mais recentemente, de interação e conjugação de esforços para superar
desafios e arregimentar recursos e capacitação empresarial.
Na perspectiva de atuação, o Estado se
defronta com uma realidade insofismável - a escassez de dotações orçamentárias
para a implantação de projetos de grande porte e a magnitude de recursos
necessários à satisfação das necessidades dos cidadãos e das comunidades. Em
países como o Brasil, há uma urgência premente em se desenvolver a área de
infraestrutura, condição essencial para que se propicie o desenvolvimento
econômico e, por conseqüência, o atendimento adequado das necessidades sociais.
O desenvolvimento industrial e comercial dependem de uma infraestrutura
adequada; a criação de empregos dependerá de que se evolua para a plenitude da
atividade econômica.
Instrumentos como a concessão de serviços
públicos e privatização exerceram, na década de 90, importante papel na
aceleração do processo de atendimento das necessidades de infraestrutura,
mediante a exploração pelo setor privado de recursos de propriedade do Estado e
prestação de serviços públicos essenciais. A partir de agora, no entanto, o
Estado se aproxima do setor privado para, em conjunto, desenvolverem projetos
essenciais ao desenvolvimento do País. Essas associações são conhecidas como
parcerias público-privadas, identificadas pelo acrônimo PPP, e haverão de
conviver com as concessões outorgadas pelo Estado e com as empresas privatizadas,
exerçam elas atividades econômicas ou se dediquem à prestação de serviços
públicos.
Em qualquer dessas circunstâncias, assim como
nos casos em que o Estado, diretamente ou por meio de sua Administração
Indireta, figure como contratante, certo é que cresce o volume de negócios
entre este e o setor privado, propiciando uma vasta gama de arranjos
contratuais, desenhados especialmente para regular as relações entre as partes.
Exemplos desses contratos encontramos nos contratos de concessão, estes
tipicamente contratos administrativos, nos contratos de construção de obras de
grande porte, nos instrumentos relativos à compra e venda de bens e serviços,
assim como nos arranjos contratuais destinados a regular as relações das partes
no capital de empresas e sociedades de propósito específico relativas a
projetos de grande porte.
Basta que existam interesses em confronto
para que se possa admitir o surgimento de controvérsias da mais variada
natureza, desde questões relativas à interpretação de textos contratuais à
ocorrência de eventos de inadimplemento; isso sem falarmos no impacto de fatos
e circunstâncias em cadeias contratuais complexas, dando lugar a efeitos
patrimoniais decorrentes de contratos que se situem a montante e a jusante da
relação contratual controversa, dada a complexidade e integração da respectiva
cadeia contratual.
A arbitragem se revela, portanto, como o
mecanismo adequado para a solução de controvérsias em relações contratuais da
natureza das anteriormente mencionadas.
Por outro lado, é importante que se tenha em
mente que projetos dessa natureza não se implantam exclusivamente com o aporte
de recursos próprios. Aos recursos aportados pelo grupo empreendedor se juntam
os recursos de terceiros, sejam os decorrentes de empréstimos de longo prazo
tradicionais, sejam os que decorram da emissões de títulos de dívida. Sob essa
modalidade de operações estruturadas, as denominadas garantias corporativas do
grupo empreendedor são substituídas pela integridade e estabilidade do fluxo de
caixa que o projeto seja capaz de gerar, permitindo que o próprio projeto, em
sua fase operacional, seja capaz de liquidar os empréstimos e demais obrigações
financeiras incorridos para a sua implementação. Na perspectiva dessa forma de
estruturação, o surgimento de controvérsias é fator que poderá afetar a
estabilidade e integridade do fluxo de caixa do projeto assim considerado,
razão pela qual os financiadores desejam ver presente, em todos os contratos
destinados a instrumentar o projeto em todas as suas fases, denominados
genericamente de contratos do projeto, cláusula compromissória que permita que
se venha a decidir por arbitragem qualquer controvérsia surgida entre as
diversas partes contratantes.
Ocorre, no entanto, que, neste momento,
questiona-se mais e mais se a arbitragem pode ser legalmente prevista em
contratos em que o Estado e/ou as empresas estatais sejam parte. Até então,
ainda que sujeitas a julgamento de recursos interpostos, as decisões
administrativas e judiciais se posicionam pela ilegalidade da arbitragem nesses
casos. O que pretendemos com este Artigo é analisar as razões alegadas para
ilegalidade da utilização da arbitragem nesses contratos e, em sendo possível,
apresentar uma construção capaz de permitir que se superem as dúvidas e
questionamentos e, consequentemente, que se traga à discussão um conjunto de
argumentos fundados na lei e nos princípios de Direito Administrativo que
sirvam de suporte.
Em linhas gerais, as decisões que negam
validade às cláusulas compromissórias se fundam (i) na violação do princípio da
legalidade, (ii) na violação do princípio da publicidade e (iii) na violação do
princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Por todos
esses argumentos, as decisões existentes inquinam de nulidade a cláusula
compromissória e, como conseqüência, determinam a substituição da arbitragem
pela submissão aos tribunais estatais ou determinam a suspensão de
procedimentos arbitrais instaurados com base em cláusula compromissória com
efeito vinculante.
Questão paralela à discutida anteriormente,
mas sempre inserida no âmbito da violação do princípio da legalidade, é o
cabimento ou não da arbitragem em contratos oriundos de procedimentos
licitatórios em face da linguagem contida no artigo 55, § 2º da Lei de
Licitações, o qual analisaremos a seu tempo.
Costuma-se afirmar, nas relações entre partes
privadas, que o que não for proibido por lei, seja expressamente, seja em
decorrência da análise do conjunto de normas legais e regulamentares
aplicáveis, será permitido e lícito praticar. No campo do Direito
Administrativo, no entanto, essa afirmação perde sentido por aplicação do
princípio da legalidade. Segundo esse princípio, a Administração somente poderá
atuar se o fizer em estrita observância às disposições legais a ela aplicáveis
e às quais deve se sujeitar. Do ponto de vista doutrinário, há vários
significados atribuídos ao princípio da legalidade, mas, no que tange à questão
objeto deste Artigo, entendemos que nos bastará enfocar a noção de habilitação
legal. Assim sendo, para que o Estado ou empresas estatais prevejam a arbitragem
em seus contratos, necessário será que sejam detentores de habilitação legal,
ou seja, que a lei os permita utilizar a arbitragem como meio de solução de
controvérsias contratuais.
Muito se tem dito que, a despeito de
inexistir uma autorização legal genérica, inclusive que permitisse a adoção da
arbitragem em contratos oriundos de procedimentos licitatórios, há leis
especiais que contêm essa autorização, como é o caso das regras relativas a
cláusulas essenciais de contratos de concessão nas áreas de energia elétrica,
gás e petróleo, telecomunicações, transporte aquaviário e rodoviário que
dispõem, ainda que utilizando linguagem diferente, sobre a utilização da
arbitragem na solução de controvérsias decorrentes dos contratos de concessão.
No início deste Artigo, nos referimos a ser o contrato de concessão o contrato
administrativo típico no universo de contratos tidos como desse tipo. Por isso
mesmo, nos questionamos quais as razões que determinariam que o Estado,
enquanto Poder Concedente, pudesse prever a arbitragem para solução de
controvérsias, enquanto ele ou qualquer de suas empresas, no desempenho de
relações comerciais típicas do setor privado, não o poderiam fazer. Parece
existir nisso uma inconsistência, pois na concessão de seus direitos a
terceiros pode o Estado ajustar que as controvérsias sejam solucionadas por
arbitragem, enquanto que em contratos comerciais esse direito não encontraria
suporte. Esta questão intrigante deverá ser analisada sob o prisma da
arbitrabilidade.
A arbitrabilidade comporta dois aspectos: a
arbitrabilidade subjetiva, ou seja, quem poderá ser parte num procedimento
arbitral, e a arbitrabilidade objetiva, equivalendo dizer quais as questões e
matérias que possam ser objeto de solução por arbitragem.
As decisões administrativa e judicial a que
nos referimos no início deste Artigo se fundamentam em argumentos relacionados,
a um só tempo, à falta de cumprimento de requisitos necessários a assegurar a
arbitrabilidade subjetiva e objetiva, decidindo-se pela ilegalidade nos casos
examinados, chegando-se à suspensão de procedimentos existentes. Na medida em
que inexista lei que autorize expressamente o Estado e as empresas estatais a
se utilizar da arbitragem, estes não poderiam ser legítima e legalmente partes
em procedimentos dessa natureza - inarbitrabilidade subjetiva - enquanto que a
predominância do interesse público sobre o particular, elemento típico do
Estado e inerente à natureza das sociedades que controla, acarretaria a
indisponibilidade dos direitos - inarbitrabilidade objetiva.
Será realmente que é correto se afirmar que,
salvo os casos mencionados nas leis relativas a setores de infraestrutura e de
gás e petróleo, o Estado e suas empresas não dispõem de autorização legal para
submeter litígios e controvérsias à arbitragem? São o Estado e, em nível
hierárquico inferior a ele, as empresas por ele controladas, detentores de
status tal que os impeça de ser parte num procedimento arbitral? Qual seria o
fundamento do dispositivo legal contido em cada uma das leis mencionadas que
permitiria a arbitragem nos contratos de concessão? Parece-nos evidente que a
questão relativa à inarbitrabilidade subjetiva nos contratos com o Estado não
seja de natureza a permitir que se possa superá-la para determinadas áreas em
detrimento de outras. A prevalecer o entendimento corrente, somos obrigados a
admitir a inconsistência lógica, já que o sujeito da arbitragem seria o mesmo
Estado ou qualquer de suas empresas controladas. Além disso, se impossibilidade
existe à luz dos argumentos discutidos, essa impossibilidade decorre de
princípios estruturais de Direito Administrativo e que não podem ser resolvidos
por uma disposição legal autorizativa. A lei administrativa se baseia em
princípios consagrados pelo Direito Administrativo e não poderá ela permitir,
por seu texto, o que com eles seja incompatível e não possa subsistir, já que
esses princípios desempenham importante papel no desenvolvimento e sedimentação
dos respectivos institutos. Os princípios gerais, e é sempre útil que se
relembre, exercem influência quando da elaboração das leis e são elemento
valioso para a integração do direito.
Portanto, entendemos que, a despeito de
respeitáveis opiniões, não se possa tratar como exceção a matéria da
arbitrabilidade subjetiva nos contratos com o Estado. Assim sendo, somos de
opinião que inexiste qualquer princípio geral que, per se, impeça o Estado e
suas empresas de participar de procedimentos arbitrais. Superado este
obstáculo, entendemos, entretanto, que, por força do princípio da legalidade, a
arbitrabilidade subjetiva esteja a depender de autorização legal. Finalmente,
entendemos que essa autorização geral existe e está presente no texto do artigo
1º da Lei de Arbitragem.
O artigo 1º antes mencionado estatui que:
"Art. 1º
As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir
litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis."
Na verdade, a
Lei de Arbitragem optou por cingir a arbitrabilidade subjetiva às pessoas
capazes de contratar. Inexiste, a nosso ver, no texto de lei, qualquer traço ou
sinal que permita excluir do conceito de arbitrabilidade subjetiva o Estado e
as empresas por ele controladas e que integram a Administração Indireta. O
sentido da palavra "pessoas", na forma utilizada pela lei, abrange,
com recurso às disposições contidas no Código Civil, inclusive e além das
pessoas físicas e jurídicas de direito privado, as pessoas jurídicas de direito
público interno e, em especial, o Estado (União, Estados e Municípios), as autarquias,
assim como as empresas estatais. Portanto, o Estado e empresas por ele
controladas estão devidamente autorizados a utilizar-se da arbitragem, sendo
que essa autorização tem caráter geral e está inserida no texto legal que
regula, no Brasil, o instituto da arbitragem.
É justamente por essa razão que entendemos
que as disposições relativas à arbitragem e inseridas nas leis especiais que
regulamentam determinados setores e atividades não se constituem em exceção a
um princípio que teoricamente impediria que o Estado e suas empresas se
sujeitassem à arbitragem. Essas leis, por não serem específicas em relação à
arbitragem, estão alinhadas com a autorização geral contida na Lei de
Arbitragem. Se examinarmos o conteúdo dessas disposições, constataremos que não
têm elas o objetivo precípuo de autorizar que as controvérsias surgidas nos
contratos por elas regulados sejam dirimidas por arbitragem. O foco central
dessas disposições é determinar as cláusulas contratuais que são tidas como
essenciais em contratos da natureza daqueles por ela regulados para assegurar a
validade e legalidade dos mesmos. Assim sendo, baseadas na autorização geral
contida na Lei de Arbitragem e requerida pelo princípio da legalidade, outorgam
elas à cláusula que regule a utilização da arbitragem nesses contratos o
caráter de essencialidade. É claro que, por serem leis de mesma hierarquia, a
declaração do caráter de essencialidade reitera (mas, sublinhe-se, não cria)
qualquer tipo de autorização legal, até porque esta já existe.
No entanto, o fato de haver autorização legal
para que se assegure a arbitrabilidade subjetiva nos contratos com o Estado e
empresas por ele controladas não é suficiente para que se afirme que, em todos
os casos, a arbitragem será aplicável. Resta-nos, portanto, examinar a questão
da arbitrabilidade objetiva nos contratos com o Estado. A Lei de Arbitragem
limitou o escopo de sua aplicação a litígios relativos a direitos patrimoniais
disponíveis. Se, a exemplo das pessoas físicas e pessoas jurídicas de direito
privado, onde nem todos os direitos em relação aos quais possam surgir
controvérsias são passíveis de solução por arbitragem, o mesmo acontece com o
Estado e com empresas por ele controladas. Em vários e valiosos estudos
doutrinários recentes, afirma-se que a arbitragem em contratos com o Estado e
suas empresas é cabível, mas conclui-se afirmando que isso somente será
verdadeiro em relação a direitos patrimoniais disponíveis. E, em geral, para-se
nessa afirmação. A preocupação deste Artigo, a partir de então, é determinar
que direitos estão sob a titularidade do Estado e das empresas por ele
controladas que são, por sua natureza mesma, indisponíveis e que,
consequentemente, não dariam lugar à instauração de procedimento arbitral caso
surgissem controvérsias em relação aos mesmos.
No encaminhamento da discussão da questão
central deste Artigo, vimos insistindo na importância da arbitragem para a
solução de controvérsias decorrentes de arranjos contratuais em que o Estado e
suas empresas controladas são parte. Estamos focando no campo contratual. Se
olharmos para o período em que ocorreu o desenvolvimento da teoria do contrato
administrativo, constataremos que logo se concluiu que as regras de direito
aplicáveis aos contratos privados, se tomadas em sua integralidade, não
atenderiam aos pressupostos do Direito Administrativo. Cotejando as regras
aplicáveis àqueles contratos com as peculiaridades do papel desempenhado pelo
Estado, essas regras deixavam de acomodar a questão relativa à preponderância
do interesse público sobre o particular. O papel do Estado deve ser
desempenhado em prol da coletividade e essa regra se sobreporá a qualquer
interesse particular. Dessa forma, o equilíbrio das partes ao longo de toda a
relação contratual e a imutabilidade dos ajustes contratuais seriam
incompatíveis com a prevalência do interesse público. Assim sendo, muito embora
se tenham tomado de empréstimo regras aplicáveis aos contratos entre
particulares, criou-se em favor do Estado, e porque não dizer, da Administração
Pública, determinadas regras que refletem a prevalência do interesse público
sobre o particular colocando-a em situação privilegiada sobre o contratante
particular o que, numa relação contratual exclusivamente entre partes privadas,
seria considerado ilícito. A essas regras ou, melhor dizendo, a essas
peculiaridades do contrato administrativo que o diferem do contrato entre
particulares denominamos de cláusulas exorbitantes. E quais são essas cláusulas
exorbitantes?
Em grande parte, as cláusulas exorbitantes
foram elevadas à categoria legal e se encontram elencadas no artigo 58 da Lei
de Licitações. O texto legal as trata como prerrogativas conferidas à
Administração, o que expressa a posição de supremacia da Administração sobre o
particular contratado. Dentre as cláusulas exorbitantes, podemos citar: o
direito de alteração unilateral do contrato, de sua rescisão unilateral, de
fiscalização de sua execução, de ocupação provisória dos bens, pessoal e
serviços objeto do contrato, do acréscimo e supressão limitado a 25% do objeto
do contrato, a imposição de penalidades e a inaplicabilidade da exceção de
contrato não cumprido ("exceptio non adimpleti contractus").
Evidentemente, em se tratando de cláusulas dessa natureza, certo é que a
aplicação das mesmas deverá estar motivada e, em muitos dos casos, a própria
lei indica as condições de aplicação ou caberá à Administração demonstrar a
existência de um interesse público a proteger.
Aspecto interessante é o relativo ao
tratamento das conseqüências patrimoniais da aplicação das cláusulas
exorbitantes pela Administração. Constitui esse tratamento um direito
indisponível? Tomemos, por exemplo, o caso da alteração unilateral do contrato
pela Administração. Ao permitir que a Administração assim proceda, a lei, no
entanto, estabelece que isso será possível para adequação do contrato às
finalidades do interesse público e ressalva que os direitos do contratado
deverão ser preservados. O texto legal indica, ainda, que, nesse caso, deve-se
proceder à revisão das cláusulas econômico-financeiras para a manutenção do
equilíbrio contratual (art. 58, § 2º da Lei de Licitações). Estamos diante do
denominado equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo, elevado
à categoria de garantia constitucional, na forma do art. 37 (xxi) da Constituição
Federal, o qual está regulado no art. 65, § 6º da lei de Licitações. De uma
forma ou de outra, podemos incluir o equilíbrio econômico-financeiro juntamente
com o fato do príncipe e o fato da Administração dentre os eventos que
determinam a mutabilidade da relação contratual, expressos em cláusulas
exorbitantes e caracterizando-se, portanto, como direitos indisponíveis. Pois
bem, somos de opinião que a determinação da existência ou não do direito de
invocar o equilíbrio econômico-financeiro se enquadra na categoria de direitos
indisponíveis não sujeitos à arbitragem, mas, ao mesmo tempo, entendemos que a
definição do mecanismo para que se restaure a equação inicial é direito
disponível e, portanto, quaisquer controvérsias a ele relativa são passíveis de
arbitragem, o que equivale dizer que o tratamento das conseqüências
patrimoniais é matéria, a nosso ver, arbitrável.
Em síntese, entendemos que, nos contratos com
o Estado e suas empresas, estes dispõem de autorização legal para submeter as
respectivas controvérsias à arbitragem, nos termos do art. 1º da Lei de
Arbitragem (arbitrabilidade subjetiva), mas as controvérsias relativas a
cláusulas exorbitantes não darão lugar à arbitragem por se caracterizarem como
direitos indisponíveis, estando excluídas, portanto, do escopo da
arbitrabilidade objetiva.
Esclarecidos esses aspectos fundamentais,
certamente questionará o leitor como essa construção se coaduna com a
disposição contida no art. 55, § 2º da Lei de Licitações que é, em geral,
interpretada como vedando a utilização da arbitragem e determinando o recurso
ao foro estatal. Somos forçados a concordar que, inexistindo uma forma de
harmonização desses dois entendimentos contraditórios, a construção
desenvolvida estará prejudicada. Mas não nos parece ser este o caso. Senão
vejamos.
Toda a celeuma em torno desse artigo decorre
do uso da expressão "...que declare competente o foro da sede da
Administração para dirimir qualquer questão contratual..." Com base nessa
linguagem, entendeu-se que a lei optara pelo recurso aos tribunais estatais,
vedando, consequentemente, o recurso à arbitragem. Se desvincularmos essa parte
do texto do que se lhe segue, certamente seremos levados a essa conclusão. No
entanto, o texto legal continua estabelecendo que "...salvo o disposto no
§ 6º do art. 32 desta Lei." O mencionado parágrafo, por sua vez, menciona
outras disposições da mesma lei que são excepcionadas de sua aplicação. O que é
importante reter, entretanto, é que todas essas disposições se referem a licitações
internacionais com características excepcionais (tais como, aquelas com
recursos de financiamento outorgado por organismo internacional, por agência de
cooperação, para entrega de bens no exterior, assim como nos casos de licitação
para aquisição de bens por unidade administrativa com sede no exterior), caso
em que a aplicação obrigatória da regra do foro da sede da Administração
estaria dispensada. Ora, se analisarmos a disposição em sua integralidade,
somos forçados a concluir que o uso da expressão "foro da sede da
Administração" é tomado em sua acepção geográfica, ou seja, do local onde
a entidade licitadora está localizada, e não no sentido de tribunal estatal.
Não faria o menor sentido a legislação permitir que, no exterior, as controvérsias
se dirimissem até mesmo por arbitragem, enquanto que, no Brasil, o recurso aos
tribunais estatais seria regra mandatória e inderrogável. Por essa razão,
entendemos inexistir, na Lei de Licitações, qualquer empecilho ou obstáculo à
utilização da arbitragem para a solução de controvérsias oriundas dos
respectivos contratos, sendo esta possível sempre e quando a controvérsia se
refira a direitos patrimoniais disponíveis não decorrentes de cláusulas
exorbitantes.
Muito embora a construção apresentada elimina
os demais argumentos que fundamentam as decisões referidas no início deste
Artigo, entendemos que devamos analisar a questão relativa ao interesse público
como inerente à natureza do papel desempenhado pelo Estado e por suas empresas
controladas. Reiteramos que, a nosso ver, a questão da supremacia do interesse
público sobre o particular é a razão mesma de ser da existência das cláusulas
exorbitantes e que, neste caso, desapareceria a razão para a sua análise em
separado. Entretanto, é importante que se examine a questão. Somos de opinião
que o interesse público é muito mais inerente à natureza da atividade
desenvolvida do que da natureza jurídica de quem a desenvolve. Se assim não
fosse, estaríamos diante de uma enorme contradição. Tomemos, por exemplo, o segmento
de geração de energia elétrica. No modelo hoje existente, esse segmento é
desenvolvido, na maior parte dos casos, por sociedades de economia mista
federais e estaduais, sendo que parcela minoritária está em mãos de empresas
privadas decorrentes de privatização. Por expressa disposição constitucional,
os serviços de energia elétrica, em qualquer de seus segmentos, são
considerados serviço público. Em assim sendo, há neles o componente da
supremacia do interesse público sobre o particular. Portanto, se vincularmos o
interesse público à natureza do capital social da empresa geradora, em nosso
exemplo, chegaremos à conclusão de que as que estejam sob o controle privado
poderão se utilizar da arbitragem para dirimir as respectivas controvérsias
contratuais enquanto que as empresas estatais estariam impedidas de fazê-lo.
Ora, a questão é lógica antes de ser jurídica. Como é que uma atividade
idêntica poderá ser tratada de forma distinta a depender da natureza do capital
social de quem a desenvolve? Portanto, invocar, nos casos de empresas sob
controle estatal no exercício de atividades de concessão igualmente
desempenhadas por empresas privadas, a impossibilidade de recurso à arbitragem
para solução de controvérsias, parece ser descabido e sem fundamento legal que
a suporte.
Outro aspecto levantado como obstáculo à
utilização da arbitragem é que esta representaria uma violação ao princípio da
publicidade, já que uma das características da arbitragem é ser um procedimento
sigiloso. Esta afirmação não é absoluta. É certo que as partes podem optar por
dar um tratamento sigiloso à arbitragem, mas isso dependerá do caso específico.
A Lei de Arbitragem, e a exemplo dela os regulamentos de entidades arbitrais, é
silente quanto a este ponto, deixando a definição às partes. Logo, à vista do
princípio da publicidade a que o Estado e suas empresas estão sujeitos, nada
impede que se elimine esse elemento dos respectivos procedimentos, razão pela
qual essa argumentação não procederia. Mas resta a questão de como se proceder
nas arbitragens em que o Estado e suas empresas sejam parte, ou melhor dizendo,
qual seria a extensão de aplicação do princípio da publicidade. Certamente, o
respeito a esse princípio não irá desaguar na abertura de audiências realizadas
no contexto da arbitragem a todo e qualquer cidadão. Não é isso, até porque a
Lei de Arbitragem designa o árbitro como o juiz de fato e de direito, estando
ele dotado dos poderes necessários para restringir o acesso à audiência às
partes, seus advogados e terceiros a eles vinculados e de interesse do
procedimento, em especial a reunião dos árbitros para decidir a questão e
elaboração da sentença arbitral, de cujo ato nem mesmo as partes participam. A
Administração e seus agentes, por expressa disposição constitucional (art. 70 e
seu § único da Constituição Federal), estão submetidos à obrigação de
fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial,
seja do Poder Legislativo, por meio dos Tribunais de Contas, seja pelo sistema
de controle interno de cada Poder. Entendemos que a aplicação do princípio da
publicidade estará satisfeita na medida em que as partes sujeitas a tal
obrigação reportem a esses órgãos de controle o andamento e resultados da
arbitragem. No entanto, somos de opinião, e vale ressaltar, que o fato da
arbitragem em contratos com o Estado e suas empresas não se beneficiar do
sigilo não exime os árbitros do cumprimento de seu dever de discrição, estando
impedidos de revelar quaisquer detalhes do procedimento arbitral, salvo para os
órgãos de controle externo e interno a que está sujeita a Administração e
sempre que por estes solicitado. Nos demais casos, prevalecerá o dever legal de
discrição do árbitro, que contempla o sigilo.
Um ponto relevante a se determinar é se a
arbitragem que envolva o Estado e suas empresas controladas poderá ser fundada
na equidade. Neste ponto, somos definitivos. Na medida em que o Estado e suas
empresas estão sujeitos ao princípio da legalidade, entendemos que somente
poderão prever na cláusula compromissória que a arbitragem será baseada na lei,
e jamais na equidade. A arbitragem fundada na equidade seria uma violação
flagrante, a nosso ver, ao princípio da legalidade.
A última questão relevante neste tema se
refere à escolha do árbitro por parte do Estado e de suas empresas controladas.
Pode o Estado ou qualquer de suas empresas controladas nomear como árbitro um
funcionário ou empregado público? Entendemos que isso não será possível. A Lei
de Arbitragem, em seu artigo 13, § 6º, estabelece que o árbitro deverá, ao
longo de todo o procedimento arbitral, desempenhar suas funções, dentre outras
características, com imparcialidade e independência, razão porque criou
declarações de independência quando de sua nomeação e criou o dever de revelar
fatos e circunstâncias que possam de qualquer forma afetá-la. Seja regido pelo
regime estatutário ou CLT, o funcionário ou empregado público, conforme o caso,
está adstrito ao dever de lealdade ou fidelidade à Administração e ao dever de
obediência às determinações hierárquicas. Entendemos que essa sujeição é
incompatível com a condição exigida por lei do árbitro de ser independente e
imparcial. Logo, nossa posição é a de não admitir o funcionário ou empregado
público como árbitro. No entanto, essa conclusão não afeta o direito do Estado
de eleger livremente o árbitro. Poderá a escolha recair em qualquer terceiro
que reúna as condições necessárias para integrar o Tribunal Arbitral, desde que
não seja ele funcionário ou empregado público, da mesma forma que o particular
poderá ver impugnado árbitro que indicar por não demonstrar independência ou
imparcialidade.
Estamos
cientes de que as conclusões contidas neste Artigo representam uma posição
ousada e inovadora. Nossa intenção é, apenas e tão somente, a de oferecer ao
debate um conjunto de argumentos coerentes e que decorrem da interpretação das
leis vigentes e dos princípios fundamentais de Direito Administrativo.
Acreditamos estar trazendo à discussão argumentos novos quanto à determinação
dos direitos indisponíveis do Estado e de suas empresas controladas. No mais,
caberá a nós esperar que a questão seja dirimida, em caráter definitivo, por
quem de direito e a quem a Constituição Federal atribui essa competência.
Retirado de: http://www.infojus.com.br/webnews/noticia.php?id_noticia=1879&. Acesso em: 25 maio 05.