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Juliana Balbinot Lucian
Bacharel
em Direito na Faculdade de Direito do Recife-UFPE
1. A delimitação da
discricionariedade administrativa
Umbilicalmente interligados estão os conceitos de legalidade e de
discricionariedade, de modo que a delimitação desta depende do conteúdo, e do
alcance daquela.
Desse modo, a partir da maior abrangência do Princípio
da Legalidade no Estado Democrático de Direito, menor será a delimitação da
discricionariedade administrativa. Será sob essa perspectiva que o presente
artigo se delineará.
Um dos triunfos do Estado de Direito foi submeter a
Administração, tal como os administrados, ao império da lei. Ocorre que, enquanto
esses têm suas relações marcadas pela autonomia da vontade, a Administração não
tem a liberdade de querer, ao contrário, seu fim já se encontra preestabelecido
em lei, e o sujeito não pode esquivar-se de alcançá-lo (1).
A finalidade de todo e qualquer ato administrativo é o
interesse público, não se confundindo este com o interesse da pessoa estatal,
mas com o interesse de toda a coletividade, dos administrados em geral. Como
bem anotou Alessi (apud MELLO, 1979, p. 31), pode haver interesse da pessoa
governamental descoincidente com o interesse primário, como por exemplo,
"o Estado teria interesse em pagar o mínimo possível a seus servidores,
mantendo-os apenas no limite indispensável à sobrevivência, pois, destarte,
pouco sangraria seus recursos".
Além do mais, não se exige tão-somente o atendimento
ao interesse público em geral, mas, de igual maneira, ao interesse específico
para qual o ato foi previsto. Nessa acepção "o ato administrativo está
preso a uma tipicidade própria, pois só pode ser expedido para atingir o fim
que, legalmente, lhe foi previsto como inerente" (MELLO, 1979, p. 32).
Estando a Administração jungida aos interesses
públicos geral e específico, todos os poderes a ela conferidos representam,
senão instrumentos à consecução de seu fim legal. Não são privilégios, nem
muito menos favorecimentos, mas tão-somente ferramentas necessárias para que
seu dever seja cumprido.
Com isso quer-se imprimir uma noção de
discricionariedade desvinculada da idéia de poder, de autoridade da
Administração Pública, liberta de quaisquer fins, mas, ao contrário, enfatizar
que a lei quando confere tal "poder" ao ente estatal, assim o faz
para que, no caso concreto, reste plenamente satisfeito o fim legal.
Autores como Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón
Fernández (2), Marcelo Caetano (3), Martin Bullinger (4), Walter Campaz (5),
entre outros, concebem a discricionariedade sob um "critério formal ou
negativo" (6), ou seja, como um poder conferido à Administração para que
esta opte por uma dentre várias soluções igualmente válidas perante à lei, sem
que essa liberdade esteja condicionada a qualquer fim legal.
Não mais
prospera em nosso ordenamento jurídico-constitucional tais expedientes. Há de
ser compreendida a discricionariedade inserindo-a num sistema jurídico
representado por um conjunto de princípios, e regras jurídicas vinculantes.
Desse modo, a
liberdade conferida ao administrador só se torna lícita e legítima desde que
compatíveis com os princípios constitucionais do sistema. Como bem adverte
Juarez Freitas (1997, p. 142/143):
Só existe discricionariedade vinculada aos princípios,
e, portanto, a antiga distinção forçosamente haverá de ser reformulada, sem se
deixar de classificar os atos administrativos consoante uma maior ou menor
liberdade do agente na consecução, tendo presente que tal distinção somente se
explicará pela maior ou menor vinculação ao princípio da legalidade estrita,
compreendida como um dos princípios relevantes e autônomos, porém que reclama
ser devidamente relativizado ou nuançado pelos demais.
Há casos em que o legislador está em condições de
prever o comportamento ótimo a ser adotado pelo administrador, de modo que a
este não reste nenhuma margem de discrição, ou seja, os pressupostos fáticos e
jurídicos vêm objetivamente estipulados, e o mandamento legal só admite uma
sorte de decisão, quando concretizados aqueles. Nessas hipóteses, como leciona
Queiró (1944, p. 258), o legislador considera desnecessário que se leve em
consideração as particularidades de cada caso, restando atendido o bem tutelado
pela norma, o único comportamento estipulado para a generalidade dos casos.
Haverá, por conseguinte, uma maior vinculação do administrador ao Princípio da
Legalidade.
Ao invés, em outras situações, o interesse público só
restará plenamente atendido se o legislador conferir certa margem de liberdade
ao administrador que se encontra numa melhor posição frente às particularidades
do caso concreto. Nesse caso, essas são relevantes para o atendimento do fim
legal (7).
É de observar-se, portanto, que o norte das competências
discricionárias ou vinculadas é o interesse público a ser alcançado.
Caso se adotasse como critério de definição da
discricionariedade a simples liberdade de opção entre soluções abstratamente
previstas em lei, sem vinculação com os princípios próprios da Administração
Pública, dentre eles, o princípio do interesse público, não haveria razão para
que o legislador, em determinados casos, conferisse discrição à Administração,
já que esta, ao seu bel prazer, poderia escolher uma determinada solução que
evidentemente não atenderia ao fim legal, ainda que abstratamente prevista em
lei.
Seria menos ofensivo aos direitos dos administrados a
prévia regulação do ato administrativo, embora, diante das peculiaridades do
caso concreto, a Administração tivesse melhores condições de otimizar o
interesse público.
Desse modo, é de acatar-se os ensinamentos de Celso
Antônio Bandeira de Mello (2003, p. 822), quando afirma que:
Se a lei, nos casos de discrição, comporta medidas
diferentes só pode ser porque pretende que se dê uma certa solução para um dado
tipo de casos e outra solução para outra espécie de casos, de modo a que sempre
seja adotada a solução pertinente, adequada à fisionomia própria de cada
situação, a fim de que seja atendida a finalidade da regra em cujo nome é
praticado o ato.
O legislador, então, só confere um "poder
discricionário" à Administração, quando convicto que esta elegerá as
melhores soluções, e os melhores meios a satisfazer o interesse público, caso
contrário, teria preferido, ele próprio, regular por inteiro tais relações.
Estabelecidas essas premissas necessárias à construção
de um conceito de discricionariedade condizente com a realidade jurídica,
passamos a analisar a norma jurídica que confere tal "poder" ao
Administrador, para que seja possível a sua real delimitação.
Com relação ao sujeito, a norma jurídica não confere
qualquer discricionariedade à Administração Pública, de sorte que a competência
vem sempre descrita objetivamente, não restando qualquer dúvida quanto a quem
dispõe de poder para a prática do ato. Dessa forma, fica consignado a
organização das atividades administrativas, bem como resguardado os direitos
dos particulares contra eventuais excessos praticados pelos agentes estatais.
(8)
O mesmo não se pode dizer do pressuposto fático
descrito pela norma. Isso porque tal componente normativo pode vir expresso
através de "conceitos práticos" (QUEIRÓ, 1989, p. 113), suscetíveis de
uma série limitada de significações, exigindo um juízo subjetivo do
administrador para auferir se a hipótese abstrata da norma (motivo) se
concretizou no caso concreto, ensejando, dessa feita, a prática do ato
administrativo.
A utilização de conceitos vagos, indeterminados é uma
decorrência das peculiaridades dos casos concretos, impossibilitadas de
prender-se a "conceitos teoréticos", válidos universalmente, próprios
das "ciências empírico-matemáticas" (QUEIRÓ, 1989, p. 112).
Um exemplo muito elucidativo dessa necessidade é o que
nos é fornecido por Celso Antônio Bandeira de Mello (2001, p. 34). Propõe o
autor duas normas hipotéticas: a primeira, estabelecendo que "terão
direito à internamento gratuito nos hospitais públicos, os doentes que ganharem
apenas um salário mínimo", e a segunda dando o seguinte tratamento –
"terão internamento gratuito nos hospitais públicos, as pessoas doentes
que forem pobres". Podemos observar que, na primeira hipótese normativa, o
motivo veio estipulado de forma a não deixar à Administração qualquer margem de
discricionariedade, de modo que, comprovada a enfermidade, e a renda mensal de
um salário mínimo, a Administração não teria outra opção a não ser internar o
paciente, ao passo que, na segunda, restaria à Administração, diante de cada
caso concreto, um juízo subjetivo do que venha a ser "pobre" para
realizar ou não o comando da norma.
Estabelecendo a hipótese normativa o "conceito
teorético", salário mínimo, como um dos motivos para a Administração
proceder ao comando da norma, torna rígida a ação desse ente estatal, pois este
pode colocar-se diante de um caso em que, embora o particular receba um pouco
acima do salário mínimo, não tenha a mínima condição de custear um internamento
em hospitais particulares, levando em consideração dependerem desse mísero
salário seus doze filhos. Não há dúvidas, portanto, que a finalidade da norma
não seria alcançada caso a Administração estivesse presa à esse pressuposto
fático. Daí a necessidade da utilização de conceitos indeterminados como uma forma
de abarcar todas as situações condizentes com o fim legal.
A discricionariedade reside, portanto, na apreciação
valorativa dos motivos por parte do administrador, quando esses vêm expressos
por meio dos chamados "conceitos práticos".
Há de atentar-se ainda
para a hipótese de a norma não descrever antecipadamente os pressupostos
fáticos sobre os quais a Administração determinaria a sua conduta. Seria o caso
de uma lei que fosse ditada nos seguintes termos: "O Presidente da República
poderá mudar a Capital do País" (MELLO, 2003, p. 397).
O "terreno próprio" (9) da
discricionariedade é, entretanto, o mandamento da norma. Isso porque a norma,
ainda que utilizando conceitos precisos, determinados, pode facultar, ao invés
de impor, um comportamento ao administrador, ou pode exigir uma conduta desse,
mas cabendo-lhe eleger uma dentre duas ou mais alternativas. Pode, até mesmo,
mostrar-se lacunosa quanto aos seus efeitos jurídicos, exigindo do
administrador que "invente o conteúdo completo do ato". Trata-se da
"discricionariedade criativa" que é definida por Germana de Oliveira
Moraes (1999, p. 41) como sendo a escolha de uma conduta por parte do
administrador diante de um "série ilimitadas de opções, que se faz
mediante um processo de criação de efeitos jurídicos, contornado tão-somente
pelo interesse público a realizar".
Como já foi dito, a finalidade da norma constitui o
elemento norteador da discrição administrativa. Não basta que o agente tenha
boas intenções, e pratique um ato visando a um interesse louvável, mas que não
se comporta dentre de suas atribuições legais, e muito menos que se guie por
interesses pessoais. É que para cada ato administrativo, conforme explanamos no
início, há um bem, uma necessidade a tutelar (10).
Pois bem, autores como Caio Tácito (11), Roger Bonnard
(12), e Hely Lopes Meirelles (13) entendem que a finalidade legal não
comportaria nenhum juízo discricionário por parte do administrador o qual deve
pautar a sua conduta de acordo com as finalidades públicas geral, e específica
de cada ato a ser praticado.
Estão, portanto, todos concordes que o interesse
público é um elemento sempre vinculado na norma que confere certa margem de
livre apreciação ao agente público, não podendo este exercer o seu poder
discricionário quanto à esse aspecto. Indaga-se: não seria interesse público um
conceito indeterminado, fluido, passível de variação no tempo e no espaço? Ou,
ao contrário, seria suficiente a norma atribuir determinado comportamento com o
fito de atender ao interesse público, para que este, sendo previsto implícito
ou explicitamente na redação normativa, não pudesse sofrer qualquer juízo
valorativo por parte do administrador?
Ao nosso ver está com a razão Celso Antônio Bandeira
de Mello (2001, p. 19), quando afirma que poderá haver discrição resultante da
finalidade da norma. Assim como os pressupostos fáticos, quando vêm expressos
por meio de conceitos plurissignificativos, conferem ao administrador certa
margem de discrição quanto ao sentido a ser dado a esses diante de cada caso
concreto, da mesma forma ocorre com a finalidade legal.
Assim se uma norma determina que sejam "expulsas
da praia, a bem da moralidade pública, as pessoas que estejam trajando vestes
de banhos indecorosas" (14), a finalidade da norma é a proteção da
moralidade pública. E ninguém duvida que o conceito de moralidade pública é
variável no tempo e no espaço, cabendo ao "aplicador da lei de ofício"
(15) definir a noção a ser dada a esse conceito, para averiguar-se se o motivo
– vestes de banho indecorosas – ofende ou não a moral comum. Nesse caso, não é
o pressuposto fático que precisa ser definido, mas como bem adverte Mello
(2001, p. 20), "dependendo da noção que se tenha de moralidade pública,
determinado traje será pouco decoroso ou será decoroso".
Com isso não se pretende negar a construção, até
então, defendida de vincular a atividade do administrador ao interesse público,
mas tão-somente ressaltar que, em alguns casos, a imprecisão do conceito
atribuído à finalidade legal pode resultar numa discrição quanto à determinação
desse conceito, exigindo do agente público sua fixação perante o caso concreto
para proceder-se ao comando da norma.
Nesse passo, é
necessário distinguir três aspectos: o "princípio da supremacia do
interesse público", destacado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2001b,
p. 68) que serve como fonte de inspiração ao legislador no momento da
elaboração das leis, bem como vincula a Administração quando as aplica; a
finalidade prevista especificamente na lei, expressada por meio de conceitos
indeterminados de carga valorativa, tais como moralidade pública, bem comum,
ordem pública, etc; e, a finalidade específica de cada ato administrativo, que
decorre implícita ou explicitamente da lei.
No tocante ao primeiro aspecto, obviamente não se há
de falar que a Administração não está vinculada a fins de interesse público.
Tal desiderato é a própria razão de ser do ente público, tanto que, como já
afirmamos, são conferidos poderes, como a discricionariedade, para que seja
possível o cumprimento de tal mister.
Com relação ao terceiro aspecto, também não se olvide
afirmar que a Administração está livre para praticar um ato em desacordo com a
sua finalidade específica, em decorrência da tipicidade que reveste os atos
administrativos. Então, se a Administração, visando punir um servidor, promove
a sua remoção ex officio, está claramente configurada a hipótese de desvio de
poder, já que tal ato administrativo é previsto para fins de conveniência do
serviço público, e não para satisfazer interesses particulares da autoridade
administrativa.
A discrição que, ora é defendida, é com relação ao
segundo aspecto, ou seja, quando a lei, ao determinar o fim a ser perseguido
pela Administração diante da ocorrência de certas circunstâncias fáticas, assim
o faz mediante o uso de "conceitos práticos" que exige, por parte da
Administração, um juízo valorativo. Não se justificaria a defesa da
discricionariedade na valoração dos conceitos indeterminados expressados no
motivo do ato, enquanto que a negasse quando os mesmos conceitos fossem
utilizados em sua finalidade.
A discricionariedade seria, então, uma margem de
liberdade conferida à Administração, seja a partir da fluidez que se revestem
os pressupostos fáticos, ou a finalidade legal, seja a encontrada no mandamento
legal, para que o administrador, diante de cada caso concreto, possa, norteado
pelos critérios positivados, tais como as regras jurídicas, e os princípios
constitucionais, e pelos não positivados, a oportunidade e a conveniência,
adotar a providência que melhor atenda ao interesse público geral e o
específico de cada norma.
Não resulta a discricionariedade, como bem afirma o
Prof. Queiró ( apud MELLO, 1986, p. 239/240), uma deficiência do trabalho
legislativo, suprível através de um processo interpretativo a ser realizado
pelo administrador, mas da "impossibilidade da mente humana de saber com
precisão, em inúmeros casos, qual a solução que atende com precisão capilar a
finalidade da regra de direito" (MELLO, 1985, p. 107).
1.1. O mérito da discricionariedade administrativa
É assente na doutrina administrativista que o mérito
do ato administrativo é insidicável pelo Poder Judiciário, o qual só deve
analisar se a Administração, no exercício de apreciação discricionária com
relação a alguns elementos do ato administrativo, observou os mandamentos
legais, não cabendo perquirir sobre a conveniência e a oportunidade do ato, sob
pena de ofensa ao princípio da separação de poderes.
Seabra Fagundes (1967, p. 149) localiza o mérito no
"sentido político do ato administrativo", o qual consiste no
"procedimento que atende ao interesse público e, ao mesmo tempo, o ajusta
aos interesses privados, que toda a medida administrativa tem de levar em
conta". O mérito, nesse sentido, compreenderia "os aspectos, nem
sempre de fácil percepção, atinentes ao acerto, à justiça, utilidade, eqüidade,
razoabilidade, moralidade etc. de cada procedimento administrativo". E
mais adiante prossegue (1967, p. 150):
o mérito do ato administrativo constitui um aspecto do
procedimento da Administração, de tal modo relacionado com circunstâncias e
apreciações só perceptíveis ao administrador, dados os processos de indagação
de que dispõe e a índole da função por ele exercida, que ao juiz é vedado
penetrar no seu conhecimento. Se o fizesse exorbitaria, ultrapassando o campo
da apreciação jurídica (legalidade ou legitimidade), que lhe é reservado como
órgão específico de preservação da ordem legal para incursionar no terreno da
gestão política (discricionariedade), próprio dos órgãos executivos.
Corroborando a lição de Seabra Fagundes, o
administrativista José Cretella Júnior (1965, p. 28/29) define o mérito do ato
administrativo como sendo "matiz político do ato, fundamentado em juízos
de valor emitidos antes da manifestação concreta da vontade da Administração,
expressa pelo ato".
Tanto um como outro justificam a impossibilidade de o
Poder Judiciário policiar o mérito do ato administrativo por este envolver
interesses e não direitos. Assim é que Seabra Fagundes (1967, p. 150) leciona:
"ao Judiciário não se submetem os interesses, que o ato administrativo contrarie,
mas apenas os direitos individuais, acaso feridos por ele". Da mesma forma
defende Cretella Júnior (1965, p. 28), afirmando que só o interesse protegido
pela norma jurídica seria passível de controle pelo Poder Judiciário, pois
nesse caso, o interesse se identificaria com o direito.
Essas lições continuam válidas perante a instauração
do Estado Democrático de Direito, porém faz-se necessário alguns ajustes
trazidos pelas modificações do princípio da legalidade que, com a ordem constitucional
de 1988, passou a abranger também os princípios implícitos e explícitos.
No tópico precedente foi analisada, no plano abstrato,
a estrutura da norma jurídica que confere o "poder" discricionário à
Administração. Ocorre que, como bem afirma Celso Antônio Bandeira de Mello
(1985, p. 102), é no momento da prática do ato que se expressa a
discricionariedade, sendo, portanto, necessário verificar se, diante do caso
concreto com as suas especificidades fáticas, ainda remanesceu alguma margem de
liberdade para que o administrador guie a sua conduta segundo critérios de
oportunidade e conveniência.
Com efeito, ainda segundo o administrativista (2003,
p. 822), "a existência de discricionariedade ao nível da norma não
significa, pois, que a discricionariedade existirá com a mesma amplitude
perante o caso concreto e nem sequer que existirá em face de qualquer situação
que ocorra (...)". E conclui afirmando que "a discrição suposta na
regra de Direito é condição necessária, mas não suficiente para que exista
discrição no caso concreto".
Pois bem, quando a norma jurídica expressa o motivo
ensejador da prática do ato através de "conceitos práticos", haverá
casos em que não restará dúvida que dada infração é grave, que dado comportamento
é obsceno, ou que dada aglomeração constitui tumulto, por exemplo. Nesses
casos, qualquer cidadão normal concluirá que dada situação prevista
abstratamente na norma se concretizou no mundo real sem que tenha, para tanto,
que utilizar qualquer juízo subjetivo. Não será necessário, portanto, utilizar
os critérios de oportunidade e conveniência, posto que a razoabilidade,
critério positivado, é que guiará o seu comportamento. Assim também ocorrerá
nos casos em que a norma jurídica tenha previsto a finalidade do ato a ser
praticado, utilizando esses expedientes (16).
Da mesma forma, se a norma tiver conferido, no
mandamento, uma faculdade, ao invés de uma imposição de conduta, bem como se
abrir a possibilidade ao administrador de escolher uma dentre ao menos duas opções,
poderá ocorrer que, diante das conjecturas do caso concreto, seja admissível
uma única conduta razoável a atingir o desiderato legal.
Desse modo, o juízo subjetivo do administrador só
incidirá naquelas casos em que não seja objetivamente possível apontar qual a
melhor solução a atender a finalidade legal, e, em se tratando de conceitos
indeterminados, nas chamadas "zonas cinzentas", onde permeiam as
incertezas.
Celso Antônio Bandeira de Mello (2001, p. 39) nos
fornece um exemplo bastante explicativo dessa situação. Trata-se de um pedido
de porte de arma (ato considerado discricionário) feito por um pai de família,
tendo em vista o elevado índice de criminalidade no bairro onde iria residir
com suas três filhas. Acrescenta-se que os crimes ali cometidos eram, em sua
grande maioria, de natureza sexual praticados contra jovens da mesma faixa
etária de suas filhas. Em face da insuficiência estatal de recursos humanos e
materiais para diminuir tal nível de criminalidade, seria o caso da
Administração Pública, sob o fundamento de conveniência e oportunidade, negar o
pedido feito? E se o negasse seria tal decisão insidicável pelo Poder
Judiciário por se tratar do mérito do ato administrativo?
Caso se adotasse inteiramente a doutrina clássica do
mérito do ato administrativo exposta no início do presente tópico, não há
dúvidas de que se estaria frente a uma questão de intimidade do ato
administrativo, tendo em vista que critérios como os da razoabilidade residia
nesse campo. Além do mais o autor do pedido só teria um interesse a defender, e
não um direito, o que o impediria de submetê-lo ao Poder Judiciário.
Não mais coaduna esse entendimento com a instauração
do Estado Democrático de Direito. Senão vejamos.
Na lição de Cretella Júnior (1965, p. 33), o
administrador, na prática do ato administrativo deve se fazer dois
questionamentos, antes de elaborar juízos de oportunidade e conveniência, quais
sejam: " é legal minha decisão? Sou obrigado a tomá-la?".
Na primeira indagação, o administrador deve analisar
se a decisão a ser tomada preenche os requisitos legais, ou seja, se os
elementos vinculados do ato estão de acordo com as prescrições legais, bem como
se os princípios constitucionais implícitos e explícitos foram observados,
sobretudo, no que concerne aos elementos discricionários do ato.
No caso acima descrito, a discricionariedade residia
justamente no objeto do ato, posto a norma jurídica facultar a concessão ou não
do porte de arma. É de se perguntar: nesse caso, ao negar o porte de arma,
ainda que concorrendo todos aqueles fatores, o administrador agiu em
conformidade com os princípios gerais do direito, sobretudo, no que pertine à
razoabilidade? Sua decisão poderia ser considerada razoável?
Parece-nos que
não, e sendo o princípio espécie da norma jurídica, de observância obrigatória,
tal como as regras jurídicas, é de se concluir que a decisão da situação
hipotética, denegando o porte de arma é ilegal (17). E sendo questão de
legalidade é suscetível de controle pelo Poder Judiciário.
Ademais, sendo um interesse protegido por uma norma
jurídica (os princípios), é de se entender que o administrado tem em face da
Administração um direito, suscetível de ser submetido ao Poder Judiciário para
que este, na condição de guardião da ordem jurídica, cesse a lesão causada por
aquela decisão.
Só após esse exame da legalidade, e se for positivo o
resultado, é possível passar para a segunda indagação. Nessa segunda etapa,
como bem observou Cretella Júnior (1965, p. 33), a resposta há de ser negativa,
posto que se positiva o ato seria vinculado e não discricionário.
Ultrapassado pelo agente esse exame, e persistindo a
dúvida quanto à aplicação dos conceitos indeterminados constantes quer no
motivo, quer na finalidade da norma, ou ainda houver duas ou mais soluções
igualmente razoáveis e suscetíveis de atender perfeitamente o interesse
público, é de se fazer o terceiro questionamento: "atenderei o melhor que
eu posso ao interesse público, se tomar tal decisão?". Somente nessa
questão estamos diante do mérito do ato administrativo, onde o administrador,
tal como acima afirmado por Seabra Fagundes irá, a partir de valorações
comparativas dos interesses em jogo, escolher uma decisão que, ao seu modo de
ver, é a mais conveniente e oportuna para o atendimento do interesse público.
Isso porque, nessa etapa de formação do ato administrativo, é o administrador
que se encontra em melhores condições de atender o fim legal, por estar mais
próximo das peculiaridades do caso concreto.
Com isso não se quer afirmar que a doutrina mais
clássica do mérito do ato administrativo não é mais condizente com a realidade
jurídico-constitucional, mas enfatizar que com a positivação dos princípios, e
com a consciência de sua normatividade, aspectos que antes pertenciam ao
mérito, passam a fazer parte do domínio da juridicidade. Então, a
razoabilidade, a proporcionalidade, a igualdade, a moralidade, a
impessoalidade, a eficiência que antes poderiam ser considerados aspectos do
juízo subjetivo do administrador, agora são aspectos objetivos, da legalidade.
Nesse sentido, seguindo a lição de Germana de Oliveira
Moraes (1999, p. 45), o controle jurisdicional se exerce em dois momentos: o
"controle da legalidade" que consiste na verificação da
correspondência dos elementos vinculados com a "a moldura previamente
fixada na norma", e o "controle da juridicidade stricto sensu"
que viria após o controle da legalidade, e corresponderia o "exame da
compatibilidade da valoração dos motivos e da definição do conteúdo do ato
administrativo predominantemente discricionário com os princípios jurídicos
outros que não o da legalidade, como por exemplo, com o princípio da
proporcionalidade".
Infenso ao controle jurisdicional restaria o controle
sobre as regras não positivadas da boa administração (18) que constitui o
mérito do ato administrativo.
O mérito seria, portanto, a valoração dos motivos e da
finalidade, quando expressados por meio de conceitos indeterminados, e a
definição do conteúdo do ato administrativo, seja porque a norma jurídica
conferiu mais de uma opção de escolha, seja porque facultou, ao invés de impor
um determinado comportamento, através de critérios não positivados da boa
administração, expressados através do binômio – oportunidade e conveniência.
1.2. O problema dos conceitos jurídicos indeterminados
O Direito, como ciência da conduta humana que é,
expressa-se através de uma linguagem natural, que deve ser inteligível a todos
os seus destinatários, e não tão-somente aos técnicos jurídicos. Isso se deve
ao fato de suas normas atingirem as relações privadas, a esfera íntima de cada
particular pertencente a uma dada ordem jurídica, o qual deve apreender o
conteúdo desta ordem para que seja possível o seu cumprimento.
Em assim sendo, as normas jurídicas devem trazer em
seu enunciado, tanto quanto possível, a mesma linguagem daqueles por ela
submetidos. Desse modo, a imprecisão, a vaguidade, a ambigüidade dos conceitos
encontráveis na linguagem cotidiana são transportados para o mundo jurídico.
Os conceitos jurídicos, entretanto, são dotados de uma
especificidade, ou seja, não se referem propriamente a uma coisa, um objeto,
mas a significações. Eros Roberto Grau (1985, p. 218) destaca que:
o objeto do conceito jurídico não existe "em
si"; dele não há representação concreta, nem mesmo gráfica. Tal objeto só
existe "para mim", de modo tal, porém, que sua existência abstrata
apenas tem validade, no mundo do jurídico, quando a este "para mim",
por força da convenção normativa, corresponde um – seja-me permitida a
expressão – "para nós".
Tal peculiaridade faz-se necessária em decorrência da
função dos conceitos jurídicos que é a de "permitir a aplicação das normas
jurídicas com um mínimo de segurança e certeza" (GRAU, 1985, p. 218).
Então, um conceito jurídico só pode ser reconhecido como tal quando possa ser
compreendido uniformemente por um grupo social, justificando a expressão
utilizada por Eros Roberto Grau – "para nós".
Embora se tenha essa exigência de uniformidade de
intelecção do conceito jurídico, persiste ainda, em alguns tipos de conceitos,
uma certa incerteza quanto ao conteúdo e extensão desses (19). São os chamados
conceitos jurídicos indeterminados.
A doutrina dos conceitos jurídicos indeterminados teve
a sua origem na Áustria, com a discussão se esses conceitos eram suscetíveis ou
não de controle jurisdicional.
Bernatzik defendia que a aplicação do direito exigia
um processo interpretativo complexo, não se resumindo a um mero silogismo, o
que o levou a concluir que os conceitos jurídicos indeterminados atribuíam
discricionariedade à autoridade administrativa.
Para esse autor a aplicação do direito exigia sempre
uma certa margem de apreciação subjetiva por parte de seu executor, e a
Administração, na qualidade de perito do interesse público, era quem cabia determinar,
segundo suas próprias convicções, quais situações, e medidas eram necessárias
para realização desse bem comum.
Isso porque, afirma Bernatzik (apud QUEIRÓ, 1944, p.
129):
na aplicação do direito, como também em qualquer outra
esfera de atividade lógica do espírito, há um limite além do qual terceiras
pessoas deixam de poder avaliar da justeza da conclusão obtida. Por
conseguinte, essas pessoas podem ser de outra opinião, mas não podem
legitimamente pretender que só elas tenham uma opinião justa e que a das outras
pessoas seja falsa: se o pretendessem, não teriam a generealidade a dar-lhes
razão.
Desse modo, o agente deveria se guiar, em seu juízo
discricionário, pelas suas convicções pessoais acerca do que venha a ser o
melhor para a realização do interesse público, assim como pelas concepções
sociais dominantes, só podendo o judiciário intervir caso restasse comprovado
que o agente dolosamente se afastou dessas duas sortes de juízos (QUEIRÓ, 1944,
p. 132/133).
Em contraposição à teoria de Bernatzik, tem-se a lição
de Tezner que defende ser a aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados um
problema interpretativo, por mais complexo que seja, de ordem estritamente
jurídica, plenamente suscetível de controle jurisdicional.
Tezner parte da seguinte premissa – a diferença entre
os conceitos legais determinados e os indeterminados consiste numa
"diferença de grau de segurança da palavra", numa diferença,
portanto, quantitativa, e não qualitativa (apud SOUSA, 1994, p. 35).
Isso posto, afirma que o trabalho a ser perseguido
pelo aplicador da lei é no sentido de determinar o sentido desses conceitos,
não constituindo óbice à apreciação judicial as dificuldades, e o caráter técnico,
porventura existente, dessa investigação.
Ressalta que quando o legislador utiliza conceitos
vagos como "interesse público, segurança, tranqüilidade, ordem pública,
perigo, necessidade, possibilidade", torna-se ainda mais urgente a intervenção
judicial para garantir a proteção dos direitos dos indivíduos "à segurança
jurídica" (apud QUEIRÓ, 1944:103).
Nesse sentido, a justiça administrativa só seria
competente para apreciar questões que envolvessem direitos e deveres dos particulares,
estando fora do controle judicial questões outras que não definissem ou
garantissem tais direitos e deveres. Nestas dominaria o poder discricionário
que, segundo Tezner, era sinônimo de "incompetência do juiz,
insidicabilidade, incontrolabilidade, ausência de um direito subjetivo"
(apud QUEIRÓ, 1944, p. 104).
Para Tezner, então, o que determinaria o controle
judicial seria a presença de direitos dos particulares, independentemente de
virem expressos através de conceitos jurídicos indeterminados. Nesse caso,
seria de afastar-se qualquer concepção pessoal do agente sobre o caminho melhor
para atingir o interesse público, pois somente haveria uma única solução a ser
tomada.
Ao contrário, se a norma não conferisse qualquer sorte
de direitos aos particulares, ainda que veiculada por meio de conceitos
indeterminados, os agentes estariam no domínio do poder discricionário, da
atividade livre.
Esse conflito entre Bernatzik e Tezner representa
justamente o confronto entre duas correntes: a "teoria da
multivalência", defendendo que, quando da aplicação dos conceitos
jurídicos indeterminados, é possível a existência de mais de uma decisão
correta perante o Direito (poder discricionário), e, por outro lado, a
"teoria da univocidade" que defende existir apenas uma única solução
correta diante da interpretação dos conceitos indeterminados, o que acarretaria
um poder vinculado (SOUSA, 1994, p. 36).
Na Alemanha foi onde mais se desenvolveu a doutrina
dos conceitos jurídicos indeterminados, encontrando-se expoente quer da teoria
da multivalência, quer da univocidade, sendo esta a que tem prevalecido.
Laun desloca o critério do direito subjetivo, como
decisivo à vinculação da Administração, para o da existência de preceito
normativo, regulando a conduta da Administração. Desde que esse exista, e
independentemente de conferir ou não um direito aos particulares, caberia aos
tribunais sindicar a conduta administrativa.
Para Laun somente a vontade do legislador é que
permitiria saber se um conceito indeterminado conduz à vinculação, sindicável,
portanto, pelo judiciário, ou à discricionariedade (SOUSA, 1994, p. 40).
Nesse sentido, quando o legislador estabelecesse os
fins a serem perseguidos pela autoridade administrativa, estar-se-ia diante de
um "poder ligado pela lei", e, ao contrário, quando deixasse à
Administração determinar o fim próximo a ser atingido, seria o caso de ter-se
conferido poder discricionário (QUEIRÓ, 1944, p. 114).
Ainda que os fins viessem expressados por meio de
conceitos indeterminados, não significaria que a Administração pudesse, no
processo interpretativo, exercer uma apreciação livre deles, mas sim uma "apreciação
vinculada", pois caberia à autoridade administrativa tão-somente averiguar
a vontade, a intenção do legislador, assim como a única decisão por ele
querida. Seria, por conseqüência, um exame vinculado (QUEIRÓ, 1944, p. 114).
Assim como Laun, W. Jellinek considera que o fator
decisivo para considerar a pluridimencionalidade de um conceito indeterminado é
a vontade do legislador. Isso porque se se pode dizer que "todo o conceito
legal indeterminado é pluridimensional, nem toda a pluridimensionalidade é
querida pela lei" (SOUSA, 1994, p. 41).
Adverte ainda que os conceitos de valor são os mais
suscetíveis de adquirir a qualidade de "conceitos discricionários"
(SOUSA, 1994, p. 41). Mas, mesmo nesses casos, o aplicador do direito se encontraria
limitado pela concepção social vigente a respeito desses conceitos.
Haveria situações em que "a sociedade, a ciência
ou a técnica já não aprovam, já não consideram incluído no conceito; e um
procedimento que a interpretação já considera incluída no conceito". A
discricionariedade residiria justamente no meio termo entre esses dois
extremos, e consistira, segundo W. Jellinek, na valoração pessoal do agente
administrativo acerca "do valor ou do desvalor íntimo de um
procedimento" (QUEIRÓ, 1944, p. 134).
Forsthoff distingue os conceitos de valor e os
conceitos empíricos. Na fixação do conteúdo desses, não haveria qualquer
apreciação subjetiva por parte do aplicador do direito, seria um processo
puramente lógico, o que não acarretaria o exercício do poder discricionário. Ao
contrário, quando se estivesse perante conceitos de valor, ou "conceitos
discricionários", necessariamente, independente da vontade do legislador,
tais conceitos apontariam para a pluridimensionalidade, e caberia ao
administrador exercer uma escolha na concretização de tais conceitos (SOUSA,
1994, p. 42).
Karl Engisch propõe a seguinte classificação dos modos
de expressão do legislador que conferem uma certa autonomia ao aplicador do
direito em face da lei: os "conceitos jurídicos indeterminados, os
conceitos normativos, os conceitos discricionários e as cláusulas gerais"
(20).
Os conceitos indeterminados seriam aqueles cujo
"conteúdo e extensão são em larga medida incertos" (ENGISCH, 2001, p.
208), e, aproveitando a lição de Philipp Heck, acrescenta que encontra-se
presente nesses conceitos um núcleo conceitual, e um halo conceitual. Quando se
tivesse uma noção clara do conteúdo, e da extensão do conceito, estar-se-ia na
zona do núcleo conceitual, e na medida em que as dúvidas fossem surgindo se
encaminharia para o halo conceitual.
Os conceitos normativos seriam, segundo Engisch,
aqueles "carecidos de um preenchimento valorativo", sendo exigido
para a sua concretização um processo valorativo diante de cada caso concreto
(2001, p. 213).
Os conceitos discricionários, por sua vez, seriam
caracterizados pela relevância do elemento pessoal, como critério decisivo,
daquele que é chamado a decidir diante de várias alternativas possíveis aquela
que se apresente como a melhor, e a mais justa.
Ressalta o autor que não se confundem as noções de
conceitos normativos com as de conceitos discricionários. Isso porque nem toda
a valoração exigida para a complementação dos conceitos normativos erige, como
critério decisivo, a concepção pessoal do agente da administração.
O preenchimento valorativo de tais conceitos
obedeceria a um processo de conhecimento. Neste, a autoridade administrativa
iria averiguar as concepções sociais vigentes, e a sua valoração pessoal
constituiria apenas "uma parte integrante do material do conhecimento, e
não o último critério de conhecimento" (ENGISCH, 2001, p. 239).
De modo diverso apresenta-se a hipótese dos conceitos
normativos – subjetivos (discricionários), onde, efetivamente, a valoração
pessoal seria o critério vinculante da decisão tomada. Nesse caso, o
administrador atuaria como o "legislador do caso concreto" (ENGISCH,
2001, p. 242).
Por fim, a cláusula geral representaria um expediente
utilizado pelo legislador, permitindo-o abarcar, em uma formulação em termos
genéricos, um expressivo número de casos a um determinado tratamento jurídico.
Numa posição diversa encontra-se a doutrina da margem
de apreciação de Bachof. Para este autor, poderia ocorrer que, através da
utilização de conceitos indeterminados, fosse atribuída à Administração um
certo espaço de atuação livre na "apreciação dos pressupostos de sua
conduta" (SOUSA, 1994, p. 47). Porém, isso não significava dizer que,
diante de todo o conceito indeterminado, a Administração gozaria dessa margem
de livre apreciação, e muito menos que tal liberdade fosse própria dos
conceitos de valor.
Segundo Bachof essa atribuição de espaço livre para a
Administração poderia ocorrer quer nos conceitos de valor, quer nos conceitos
de experiência, e não resultaria, automaticamente, da estrutura dos conceitos
indeterminados, mas, ao contrário, deveria revestir caráter excepcional,
determinável segundo a vontade legal.
Nos conceitos de valor, a margem de apreciação seria
necessária sempre que os tribunais não pudessem "sobrepor a sua opinião
subjetiva de valor à da Administração", e por outro lado, nos conceitos de
experiência tal espaço livre resultaria "das dificuldades práticas de
controlo da decisão técnica da autoridade administrativa" (SOUSA, 1994, p.
48).
Pode-se observar que, pela teoria de Bachof, a margem
de apreciação não resultaria da incerteza, indeterminação do conceito, mas da
própria relação da Administração, e de sua particular posição frente ao caso
concreto.
Atualmente, a orientação seguida na doutrina alemã é a
da negação de qualquer margem de liberdade, em especial, no enunciado da norma,
o que acarreta a total possibilidade de controle dos chamados conceitos
jurídicos indeterminados nele expressados.
Na senda da doutrina germânica, tem-se presente a
lição de Eduardo García de Enterría e Tomás – Ramón Fernández que defendem
decorrer da aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados, uma única solução
possível em cada caso concreto.
Afirmam os administrativistas espanhóis que, embora o
conceito se apresente indeterminado na estatuição legal, no momento de sua
aplicação, necessariamente, ele sofrerá uma determinação, uma concretização
precisa. É nesse sentido sua lição:
Pero
al estar referiéndose a supuestos concretos y no a vaguedades imprecisas o
contradictorias, es claro que la aplicación de tales conceptos o la
calificación de circunstancias concretas no admite nás que una solución: o se
da o no se da el concepto; o hay buena fe o no la hay; o el precio es justo o
no lo es; o se há faltado a la probidad o no se há faltado. Tertium non datur (1996, p. 446).
Tal fato se explica porque diferentemente da discricionariedade
que admite uma escolha entre indiferentes jurídicos, porque a lei remeteu a
decisão ao juízo subjetivo da Administração, a aplicação dos conceitos
jurídicos indeterminados é um processo interpretativo, regrado, portanto, e que
não admite qualquer sorte de juízo subjetivo por parte do Administrador.
Reconhecem os administrativistas que podem surgir
dificuldades na aplicação de tais conceitos, em virtude da presença neles da
chamada zona intermediária, do halo conceitual, mas que são superadas pelo controle
judicial que reconduzirá o caso concreto a uma das zonas de certeza, positiva
ou negativa (1996, p. 450).
Do mesmo modo Juan Carlos Cassagne (1997, p. 117)
entende que, em princípio, quando a Administração estiver frente a um conceito
jurídico indeterminado, ela estará obrigada a adotar a única decisão justa
possível. E mesmo que se aceite a existência de duas ou mais decisões justas,
sua atividade encontra-se limitada pela busca da solução que imponha a justiça.
Os conceitos jurídicos indeterminados, para esse autor argentino, representaria
uma técnica de redução da discricionariedade.
Na doutrina portuguesa, António Francisco de Sousa,
seguindo a tendência germânica, defende a total negação de qualquer margem de
apreciação na aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados, que
representaria uma atividade estritamente vinculada à lei.
Isso porque, afirma o autor (1994, p. 60) que, não
obstante ser compatível com o Estado Democrático de Direito, a
discricionariedade é um instrumento que "põe em perigo os direitos e
garantias dos particulares", não podendo, portanto, ser presumida. E, no
momento em que o legislador utiliza-se desses conceitos, ele não está nada mais
que legitimando o comportamento da Administração, cabendo a esta tão-somente
realizar um trabalho de constatação, plenamente subordinado ao controle
jurisdicional.
Mais adiante alerta que se entendesse ser a utilização
de conceitos indeterminados uma atribuição de discricionariedade, seria o mesmo
que a Administração, por exemplo, diante de um caso "de grave calamidade
pública pudesse escolher alguns pressupostos de atuação" ou "ter uma
certa liberdade para declarar uma dada situação como de grave calamidade
pública, ou seja, significa dizer que a grave calamidade pública à partida não
existe e será até certo ponto criada pela Administração" (1994, p. 98).
E, por fim, conclui o autor português que, com exceção
da atividade discricionária da Administração, todas as demais atividades
administrativas estão subordinadas ao controle jurisdicional.
Com isso, nos casos em que a lei autorizasse a
discricionariedade administrativa, faltaria legitimidade ao controle
jurisdicional, ao passo que, nas demais atividades administrativas, dentre elas
a aplicação de norma contendo conceitos indeterminados, o controle seria
legítimo, mas, por vezes, poderia ocorrer impossibilidade prática para a sua
realização.
Na doutrina brasileira, Germana de Oliveira Moraes
defende serem distintos o exercício da discricionariedade e a valoração dos
conceitos jurídicos indeterminados, atestando haver um ponto em comum entre
ambas as atividades – quando os conceitos indeterminados forem empregados
"no conseqüente (estatuição de efeitos) da norma jurídica, para expressar
uma indeterminação de efeitos" (1999, p. 73).
Assim também apresenta-se a doutrina alemã que, em sua
maioria, nega qualquer discricionariedade quando tais conceitos vêm expressos
no pressuposto da norma ("Tatbestand").
Eros Roberto Grau, por sua vez, sustenta a veracidade
da doutrina que atribui o caráter vinculativo à atividade de aplicação dos
conceitos jurídicos indeterminados do administrador, mas introduz uma inovação,
na medida em que defende não haver, após o processo interpretativo de tais
conceitos, uma única solução, mas soluções corretas.
Para tanto, formula uma doutrina real do direito onde
ressalta o caráter pluridimensional desse que, sendo produto cultural, não é
uma ciência, mas constitui "uma verdadeira prudência" (1982, p. 234).
Nesse sentido, o aplicador do direito, ao preencher os conceitos
indeterminados, deve valer-se dos elementos fornecidos pela realidade social,
buscando a solução aceitável, e não a verdadeira.
Isso porque,
como afirma Grau (1988, p. 34), "a doutrina real do Direito é
fundamentalmente – mas não exclusivamente – um sistema semiológico, ao passo
que a teoria jurídica formal é um sistema lógico".
Nessa esteira, defende que o "intérprete
autêntico" guia-se pela "lógica da preferência", porque, segundo
ele, "interpretar um texto normativo significa escolher uma entre várias
interpretações possíveis, de modo que a escolha seja apresentada como
adequada" (1995, p. 324). Está, portanto, implícita, nessa noção de
interpretação, um ato volitivo do órgão aplicador do direito.
A distinção entre a discricionariedade e a
interpretação residiria em que, na primeira, ocorreria a formulação de um
"juízo de oportunidade", e, na segunda, um "juízo de
legalidade" (1995, p. 329). No "juízo de oportunidade",
comportaria uma escolha entre "indiferentes jurídicos" feita através
de critérios pessoais do agente, sendo insindicável pelo Poder Judiciário que
só caberia analisar se houve abuso de poder ou desvio de finalidade, ao passo
que no "juízo de legalidade", o "intérprete autêntico"
estaria atado ao texto legal (1995, p. 326).
Desse modo, para esse autor, o critério que diferencia
uma e outra não é o número de soluções justas encontráveis, mas os juízos
formulados por cada qual, e sendo o juízo formulado pela segunda, o de
legalidade, de aplicação do direito, caberia ao poder judiciário ser o
"sujeito último do preenchimento do conceito, no que se coloca sob o seu
controle o exercício anterior dessa mesma atividade pela Administração"
(1988, p. 76).
Para reforçar a sua doutrina Eros Roberto Grau
fornece-nos um exemplo, mostrando que, caso a aplicação dos conceitos jurídicos
indeterminados levasse ao exercício da discricionariedade que, segundo ele
(1988, p. 178), é exercida "à margem da legalidade", muitos direitos
seriam lesados. Observa, então, que, se num concurso público se considerasse
que o seu fim, expressado por meio do conceito indeterminado "melhores
candidatos", fosse deixado ao juízo de oportunidade do administrador, tal
procedimento iria se transformar em "mero expediente de legitimação de
escolha pessoal da banca examinadora – escolha subjetiva, informada pela
empatia de seus membros em relação a um ou outro candidato – o que é adverso à
sua finalidade"
Esse é o panorama geral da doutrina dos conceitos
jurídicos indeterminados.
1.3 Apreciação crítica
Pela breve leitura das teorias de Laun, W. Jellinek, e
Bachof pode-se observar um ponto em comum entre ambas: o reconhecimento de que
a vontade do legislador é decisiva para auferir se determinado conceito
indeterminado leva ou não à pluridimensionalidade, à uma livre apreciação por
parte do legislador, em suma, à discricionariedade.
Ora, apresenta-se de difícil investigação saber quando
o legislador quis conferir certa margem de liberdade ao administrador. Se
parte-se da consideração que nem todos os conceitos jurídicos indeterminados
levam à discricionariedade, então, pergunta-se, quais seriam aqueles através
dos quais o legislador quis atribuir discricionariedade? Não é possível
chegar-se objetivamente a uma resposta, senão a meras especulações sem nenhum
rigor científico.
Nesse aspecto, António Francisco de Sousa fez uma
colocação muito pertinente. Senão vejamos:
(...) Os conceitos nunca devem ser desintegrados da
norma a que pertencem e muitas vezes do diploma ou mesmo do sistema jurídico de
que fazem parte. A vontade do legislador não pode resultar apenas de conceitos
isoladamente considerados. Daí que afirmações, tais como: o conceito de
"interesse público" atribui discricionariedade; o conceito
"pode" atribui discricionariedade; o conceito "idoneidade"
atribui mera margem de apreciação e o conceito "perigo" é totalmente
controlável pelo tribunal, sejam afirmações, quanto a nós, largamente fortuitas
e cientificamente infundadas (1994, p. 58).
De igual maneira Forsthoff, e Karl Engisch consideram
haver, a priori, uma classe específica de "conceitos
discricionários".
Não se discute a precisão da definição fornecida por
Engisch a respeito dos "conceitos discricionários". De fato, se
perante o caso concreto persistir dúvidas acerca da aplicação ou não do
conceito indeterminado será o elemento pessoal decisivo para a sua solução.
É de observar-se, entretanto, que não é possível
estabelecer-se, a priori, antes mesmo da ocorrência da situação fática a
ensejar ou não a aplicação de tais conceitos, a caracterização desses como "discricionários"
ou como "normativos". Tal conclusão há de ser chegada perante o caso
concreto com as suas especificidades, que poderão ser tais que dispensem, ainda
que se esteja perante "conceitos de valor", uma apreciação subjetiva
por parte do administrador.
Isso porque haverá casos em que dúvidas não terão os
agentes administrativos a respeito da aplicação ou não dos conceitos
indeterminados. Em outras inúmeras situações, ainda que utilizados todos os
esforços possíveis para chegar-se à uma única solução, restará mais de uma
intelecção razoável, não sendo possível afirmar que uma delas é tida como
incorreta. Aproveitando a lição já citada de Bernatzik, é de verificar-se que,
nessas situações, terceiros podem até ser de outra opinião, mas não podem impor
como verdade a sua própria intelecção, considerando as demais incorretas.
Um exemplo prático poderá comprovar tais
investigações. A Constituição Federal de 1988 dispõe, em seu art. 175,
parágrafo único, IV, a obrigatoriedade de as empresas concessionárias e
permissionárias de serviço público manter um "serviço adequado", sob
a fiscalização do Poder Público.
Pois bem, que medidas deverão ser tomadas por parte de
tais empresas para se alcançar a adequação do serviço, por exemplo, de
transporte? Ninguém duvida que medidas relacionadas com a segurança dos
usuários contribuem para a manutenção da segurança. Do mesmo modo, ninguém
duvida que, como observou Eros Roberto Grau (1988, p. 103), "a colocação,
nos veículos, à disposição dos usuários, de bebidas alcoólicas" não pode
ser tida como um requisito de adequação do serviço.
Agora, se atentarmos para a instalação de ar
refrigerado nos veículos, não se pode dizer com vezo de sabedoria que tal
medida mantém ou não um serviço adequado. Isso porque a adequação do serviço
não se restringe ao conforto, e à segurança, mas também deve-se levar em
consideração as tarifas a serem cobradas do usuário, e não resta a menor dúvida
que a adoção dessa medida acarretará um aumento nessas.
Nesse sentido, não nos afigura plausível a doutrina de
Enterría e Fernández quando afirmam que, diante do caso concreto, os conceitos
indeterminados só admitem uma única solução permitida pelo direito.
Agindo o administrador na margem do razoável,
reputando necessário que num dado caso concreto se aplique o conceito
indeterminado, ainda que outro entendimento também seja permitido, não se pode
dizer que tal comportamento violou a lei, sendo sindicável pelo poder
judiciário. A função deste é manter a ordem jurídica, corrigir situações
contrárias a ela, e agindo o administrador dentro de uma liberdade de
intelecção permitida pelo direito, não se há de falar em ordem jurídica
violada, em decisão contrária ao direito. Nesse caso, como adverte Celso
Antônio Bandeira de Mello (2001, p. 23), "não haveria título jurídico para
que qualquer controlador de legitimidade, ainda que fosse o judiciário, lhe
corrigisse a conduta (...)".
Um outro aspecto que pôde ser observado, de um modo
geral, nas doutrinas expostas no tópico precedente é o receio dos autores em
admitir haver discricionariedade na aplicação dos conceitos indeterminados,
levando em consideração a constante ameaça de lesão que haveria aos direitos
dos particulares.
Isso se deve ao fato do entendimento que se tem do
conceito de discricionariedade por esses autores. Tezner considerava a
discricionariedade como "sinônimo de incompetência do juiz,
insindicabilidade, incontrolabilidade, ausência de um direito subjetivo";
Enterría e Fernández atribuem ao poder discricionário uma escolha entre
indiferentes jurídicos, sem considerar a necessidade de o Poder Público buscar
sempre o melhor resultado; António Francisco de Sousa considera ilegítimo o
controle do poder judiciário nos casos de discricionaridade, e Eros Roberto
Grau chegou a afirmar que a discricionariedade está "à margem da
legalidade".
Com efeito, caso tivéssemos esse entendimento a
respeito da discricionariedade, despida de controle, à margem da legalidade
seria muito perigoso para os direitos dos particulares estender o exercício da
discricionariedade à aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados.
Levando em consideração, entretanto, o princípio da
juridicidade que sujeita toda e qualquer atividade administrativa, submetendo-a
desde os princípios explícitos e implícitos albergados na Constituição até os
atos normativos expedidos pela autoridade administrativa, não há porquê temer a
defesa da discricionariedade na aplicação dos conceitos indeterminados.
Além do mais, estando obrigada a Administração atuar
segundo tais parâmetros legais, cabe ao Poder Judiciário exercer o controle
sobre a atividade discricionária, anulando o ato desde que essa desobedeça aos
princípios, e às regras jurídicas.
Com um mecanismo forte de controle, diminui
sensivelmente o risco de serem cometidos abusos em detrimento dos particulares,
ao mesmo tempo em que é assegurada a autonomia administrativa.
Então, no exemplo fornecido por Eros Roberto Grau,
citado no tópico precedente, de que a Administração poderia transformar o
concurso público num "mero expediente de legitimação de escolha pessoal da
banca examinadora", não há dúvidas de que caso esse conflito fosse levado
ao Judiciário, e restando comprovado que houve preferência por um candidato em
detrimento dos demais, por critérios de empatia, caberia a anulação desse ato
de escolha.
Isso porque, estando a Administração submetida ao
princípio da juridicidade, essa deve atuar, de acordo com o art. 37, caput, da
Constituição de 1988, com impessoalidade, e ofendido este princípio, deve o
poder judiciário invalidar esse ato. Nesse caso, a ordem jurídica restou
frontalmente violada.
Observamos, nesse passo, a seguinte situação ilustrada
por José dos Santos Carvalho Filho (2001, p. 117/119): partindo da consideração
que tem o poder público a prerrogativa do poder de polícia sobre a conduta dos
particulares a fim de preservar os bons costumes, supõe o autor que, diante de
um trecho discreto, distante da via de trânsito, situado atrás de pequenas
encostas, poderia o administrador regulamentar esse trecho, admitindo-o como
área de nudismo. Nesse caso, não caberia ao agente administrativo, admitindo
tal prática, fixar alguns dias da semana, em determinados horários, permitir ou
não vendedores ambulantes? Ou, ao contrário, caberia ao poder judiciário, por
último, preencher o conceito vago, "bons costumes", estabelecendo
tais regras?
Parece-nos que, atuando a administração dentro do
razoavelmente aceitável, dentro das concepções sociais dominantes a respeito
dos bons costumes, não caberia ao poder judiciário substituir a decisão
administrativa por outra, por julgar mais conveniente. Isso porque, nesse caso,
diferentemente do exemplo fornecido por Grau, não se pode dizer que a decisão
da Administração está incorreta, viola a lei, necessitando ser corrigida (21).
Fazendo um paralelo entre a atividade discricionária
tal qual concebida pela generalidade dos autores (discricionariedade no
mandamento da norma), e a aplicação dos conceitos indeterminados, podemos observar
que entre ambas existe uma similitude de conseqüências o que impede sejam
dissociadas, e repelidas.
Com efeito, a discricionariedade e a aplicação dos
conceitos jurídicos indeterminados são realidades distintas. Enquanto na
primeira realiza-se um ato volitivo, segundo as regras da boa administração, na
segunda, está presente um ato de intelecção, de apreensão do significado dos
conceitos imprecisos.
Ocorre que, em ambas, a Administração desfruta de uma
certa liberdade de atuação, o que impede o Poder Judiciário de ir além de um
certo limite, reconhecendo que nesse espaço é competente a autoridade
administrativa. Não se perca de vista também, como afirma Mello (2001, p. 25),
que inexiste em ambas um "direito subjetivo de terceiro oponível
procedentemente contra o comportamento administrativo adotado".
Desse modo, os efeitos jurídicos produzidos por ambas
as atividades são os mesmos, não havendo razão lógica de aplicar-lhes
tratamento diverso (22).
Com isso não se propugna por conferir um ilimitado
poder à Administração de fixar, a seu bel prazer, um conteúdo a um dado
conceito indeterminado.
Todo conceito, por mais indeterminado que seja, possui
um conteúdo determinável. Assim é que se compreende no conceito uma zona de
certeza positiva, e uma zona de certeza negativa, permanecendo as dúvidas no
intervalo entre esses dois extremos.
Além do mais, como já foi destacado, procura-se trazer
para a órbita jurídica a linguagem cotidiana, apreensível pelos sujeitos às normas
jurídicas para que esses possam validamente saber de seus direitos e deveres.
Em sendo assim, o administrador, ao aplicar um
conceito indeterminado, não pode fixar o conteúdo desse segundo a sua própria
convicção, mas deve orientar-se pelo que é socialmente reconhecido, em
determinado tempo e lugar. Deve, outrossim, interpretá-lo contextualmente,
inserindo-o dentro de um sistema jurídico.
Quando o legislador fixa um pressuposto normativo,
demarca a competência da autoridade administrativa. Se fosse possível ao
administrador conferir ao conteúdo dos conceitos nela expressos de forma
indeterminada, sem qualquer limite, segundo sua concepção personalíssima, seu
"poder seria absoluto, ilimitado, ao invés de ser uma competência, pois
teria a extensão que a autoridade administrativa lhe quisesse dar" (Mello,
2001, p. 31).
Cabe, portanto, ao Poder Judiciário delimitar os
confins da discricionariedade administrativa, e invalidar seus atos, desde que
transbordem a significação possível comportada pela norma.
Desse modo, não tem qualquer fundamento a observação
de Sousa, mencionada linhas atrás, quando afirma que se considerasse haver
discricionariedade na aplicação dos conceitos indeterminados, equivaleria dizer
que a Administração pode "até certo ponto" criar o conceito de grave
calamidade pública.
Por fim, uma última observação ainda há de ser feita.
António Francisco de Sousa (1994, p. 60) reconhece haver casos de aplicação dos
conceitos indeterminados em que, embora o controle jurisdicional seja legítimo,
por estar-se frente à uma atividade vinculada, não poderá ocorrer "por
razões de fato, psicológicas e sociológicas, que impossibilitem por vezes a
repetição de situações", já que não existe o "juiz ideal".
Há de perguntar-se então: se se está em frente a uma
atividade vinculada, onde a Administração deverá necessariamente agir ou não
agir, aplicar dado conceito ou não aplicá-lo, não se poderia dizer que, havendo
direitos dos particulares envolvidos, estes seriam direitos subjetivos,
reclamáveis ao Poder Judiciário? E caso esses particulares fossem exigir certa
prestação por parte da Administração ao Poder Judiciário, este poderia
simplesmente alegar que, embora fosse legítima a sua atuação, nada poderia ser
feito em razão das dificuldades fáticas, psicológicas, e sociológicas? Nesse
caso, não estaríamos diante do non liquet (23)?
Não há, portanto, como deixar de reconhecer que,
diante de conceitos dotados de uma certa fluidez, e depois de percorrido todo
um percurso lógico, interpretativo na fixação de seu conteúdo, pode ainda
remanescer inelimináveis dúvidas acerca da aplicação ou não desses conceitos,
residindo aí a discricionariedade. Fora desses casos de verdadeira penumbra não
há que se falar em atividade discricionária, mas em vinculada.
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NOTAS
1 Seabra Fagundes, em sua obra
"O controle dos atos administrativos" afirma que administrar é
"aplicar a lei de ofício". Cirne Lima (apud MELLO, 1975, p. 2), por
sua vez, leciona: "jaz a atividade administrativa debaixo da lei que lhe
assinala uma finalidade a cumprir".
2 Enterría e Fernadez, na obra
"Curso de Derecho Administrativo", 1996, pág. 447, concebem a
discricionariedade como uma liberdade de eleição entre alternativas igualmente
justas, ou melhor, entre indiferentes jurídicos, porque a decisão se fundamenta
em critérios extrajurídicos (de oportunidade, econômicos), não incluídos na
lei, e remetidos ao juízo subjetivo da Administração.
3 Marcelo Caetano, por sua vez,
define a discricionariedade como "uma faculdade de livre apreciação sobre
a conveniência e a oportunidade da prática do ato, sua execução, sua forma, ou
seu conteúdo" (apud MORAES, 1999, p. 32).
4 Segundo Martin Bullinger,
"discricionariedade em sentido amplo é o espaço livre, que a administração
pública tem quando sua atuação não está predeterminada por uma lei, nem pode
ser controlada pelo tribunal. A discricionariedade administrativa
caracteriza-se, assim, por uma dupla independência; pela independência
relativamente aos outros dois poderes do Estado: o Poder Legislativo e o Poder
Judiciário".(1987, p. 3).
5 Walter Campaz refere-se à
discricionariedade como sendo "o poder do agente para a edição de ato
administrativo mediante opção por uma dentre duas ou mais hipóteses contidas no
preceito normativo, desde que todas previamente validadas pela hipótese
normativa que outorgue a regra de competência" (1978, p. 36).
6 Expressão adotada por Germana
de Oliveira Moraes (1999, p. 31).
7 Juarez Freitas (1997, p. 149)
nos fornece um conceito elucidativo dos atos administrativos discricionários,
como sendo, "aqueles atos que o agente público deve praticar mediante
juízos de adequação, conveniência e de oportunidade, na busca da melhor solução
para o caso concreto, cujos resultados devem subordinação à totalidade do
sistema de Direito Administrativo (...)".
8 Seabra Fagundes (1967, p. 69)
afirma que há incompetência "toda vez que o agente procede sem estar
legalmente investido no cargo, ou, embora investido legalmente, excede ao agir
o âmbito de atribuições que a lei lhe designa". No primeiro caso, seria
"usurpação de função", e, no segundo, "abuso de função".
9 Expressão utilizada por Caio
Tácito, em seu artigo "A Administração e o Controle da Legalidade".
10 Desse modo, como bem afirmou
Caio Tácito (1954, p. 5), "uma autoridade sanitária deve operar somente
com o fito de preservar a saúde pública. Uma autoridade policial deve atuar em
benefício da ordem e da tranqüilidade públicas".
11 Segundo Caio Tácito, o poder
administrativo está sempre adstrito a uma finalidade legal, constituindo esta
um elemento sempre vinculado (1954, p. 5).
12 Para Roger Bonnard ( apud
FAGUNDES, 1967, p. 79/80), com relação à finalidade, a Administração jamais
terá um poder discricionário, de sorte que o fim a alcançar deverá vim sempre
imposto nas leis, e ainda que não vier explicitamente, deve-se extraí-lo da
própria natureza do ato.
13 Hely Lopes Meirelles (1994, p.
135), por sua vez, afirma não ser conceptível ato administrativo sem um
objetivo público a atingir. Desse modo, a "finalidade é, assim, elemento
vinculado de todo ato administrativo – discricionário ou regrado – porque o
Direito Positivo não admite ato administrativo sem finalidade pública ou desviado
de sua finalidade específica".
14 Exemplo criado por Celso
Antônio Bandeira de Mello (2001, p. 20)
15 Expressão utilizada por Seabra
Fagundes para designar a atividade administrativa.
16 Isso se explica porque tais
conceitos valorativos, por mais fluídos e indeterminados que sejam, possuem,
como adverte Mello (2003, p. 398), "um núcleo significativo certo", e
uma área nebulosa, donde sempre haverá uma "zona de certeza positiva na
qual ninguém duvidará do cabimento da aplicação do conceito, uma zona
circundante, onde justamente proliferarão incertezas que não podem ser
eliminadas objetivamente, e, finalmente, uma zona de certeza negativa, onde
será indisputavelmente seguro que descabe a aplicação do conceito". Essa
tema será melhor desenvolvido no tópico seguinte.
17 Nas palavras de Celso Antônio
Bandeira de Mello (2003, p. 818), "violar um princípio é muito mais grave
que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa
não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de
comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade,
conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra
todo os sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia
irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra".
18 Tais regras se traduzem no
binômio oportunidade e conveniência. Por oportunidade, afirma Moraes (1999, p.
45), entende-se a ponderação dos múltiplos interesses "carecidos de
acomodação parcial", tendo em vista o fim legal. E a conveniência
consistiria, segundo Diogo Freitas do Amaral (apud MOARES, 1999, p. 45), a
adequação do ato com o interesse público que o justifica, bem como a
"harmonia entre esse interesse e os demais interesses públicos eventualmente
afectados pelo ato"
19 Definição dos conceitos
indeterminados fornecida por Karl Engisch (2001, p. 208).
20 A respeito confira a obra
"Introdução ao pensamento jurídico", 2001, págs. 205/255.
21 Segundo Queiró (1944, p. 131),
o controle judicial em tais situações corresponderia "no fundo a admissão
de um outro juízo técnico, materialmente administrativo, por parte de um órgão
judiciário, à substituição de um juízo administrativo por outro, e não à
admissão de um controle de direito. (...). Estamos nesses casos perante a
situação a que Bernatzik chamou de" Doppelverwatung", de dupla
administração: dois organismos diferentes, independentes um do outro,
autoridade administrativa e tribunal, decidem sobre a questão de saber se uma
certa medida é conforme ao interesse público (...)".
22 Embora, em muitos casos, o
juiz, ao aplicar uma norma jurídica ao caso concreto, tenha que realizar o
mesmo raciocínio lógico realizado pelo administrador quando no exercício de
discrição, não se pode confundir essas duas realidades jurídicas. Aproveitando
a lição de Mello (1989, p. 58), pode-se extrair as seguintes premissas: a
função do juiz é "exprimir aquilo que o direito é no caso concreto; não
aquilo que pode ou poderia ser", ao passo que o administrador, no uso da
discrição, "está tomando uma decisão que, ante o direito vigente, pode ser
de tal modo, tanto como poderia ser de outro modo". Desse modo, quando, em
grau de recurso, é modificada a decisão do juiz de 1° grau, o Tribunal não a
modifica por saber escolher a melhor decisão ou a mais conveniente, mas
contrário, por verificar que a decisão proferida pelo juízo a quo não
correspondia aquilo que o direito determinava para aquele caso concreto.
23 Trata-se do "princípio da
inafastabilidade que garante a todos o acesso ao Poder Judiciário, o qual não
pode deixar de atender a quem venha a juízo deduzir uma pretensão fundada no
direito e pedir solução para ela" (CINTRA, 1999, p. 137).
Retirado de: http://www.sadireito.com.br/index.asp. Acesso
em: 27 abr. 05.