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 A proibição de fumar por lei municipal

João Bosco Maciel Junior
Advogado em Ribeirão Preto, Estado de São Paulo, e especialista em diritto processuale civile comparato e diritto processuale civile base pela Università di Pavia-Itália

Sumário: 1. Introdução – 2. A lei municipal n.º 10.016, de 09 de março de 2004 - 3. A lei federal n.º 9.294, de 15 de julho de 1996 – 4. O posicionamento do Supremo Tribunal Federal - 5. Limitações aos direitos fundamentais - 6. A incompetência do município para legislar sobre a matéria – 7. O estabelecimento de sanções e interdições aos estabelecimentos comerciais e o desrespeito ao princípio da proporcionalidade - 8. Considerações finais


1. Introdução

            Trata-se de análise e patrocínio de apaixonante caso concreto em que tivemos a honrosa oportunidade de advogar interesses de alguns clientes contra lei municipal que proibiu totalmente o fumo no Município de Ribeirão Preto, Estado de São Paulo.

            O patrocínio de tais interesses nos levou, sobretudo, a indagar se seria permitido ao legislador ou ao poder executivo municipal editar novas regras sobre o assunto (restrições ao consumo de produtos de tabacos) estabelecendo restrições diferentes daquelas contidas no artigo 2º da Lei Federal nº 9.294, de 15 de julho de 1.996 e do Decreto nº 2.018, de 1º de outubro de 1.996, que estabelecem exaustivamente as restrições para o consumo de cigarros, prevendo inclusive a possibilidade de uso desses produtos em áreas destinadas a esse fim.

            Quando concluímos as consultas aos clientes pela impossibilidade de restrição da legislação federal pelas normas municipais, algumas semanas depois tivemos a honra de receber parecer da lavra do Ilustre Prof. TÉRCIO SAMPAIO FERRAR JUNIOR, Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em questão idêntica formulada pela empresa Souza Cruz S.A, que, para nossa felicidade e tranqüilidade, concluiu no mesmo sentido, porém com muito mais maestria e sabedoria.

            Esse é o enfoque do presente estudo que ora levamos à crítica construtiva da comunidade científica brasileira.


2. A lei municipal n.º 10.016, de 09 de março de 2004

            A lei do município de Ribeirão Preto n.º 10.016, de 09 de março de 2004 (devidamente regulamentada pelo decreto municipal n.º 251, de 16 de julho de 2004) instituiu a proibição de fumar em qualquer tipo de ambiente, em estabelecimentos públicos e privados, sendo vedada a criação dos chamados "fumódromos".

            Pela presente lei fica proibido fumar cigarros, cigarrilhas, charutos e outros produtos derivados do tabaco e congêneres em supermercados, lojas, restaurantes, shoppings, igrejas, bares, bingos, padarias, teatros, cinemas, escolas, hotéis, clubes recreativos, casas de diversão, hospitais, escritórios, elevadores, bibliotecas, indústrias, edifícios e demais recintos de trabalho coletivo. A presente lei municipal proibiu o uso de tabaco nas áreas delimitadas em seus contornos, situadas ao ar livre, em parques, nas calçadas, em pontos de ônibus e, sobretudo, nos estabelecimentos que possuem área destinada exclusivamente a esse fim, devidamente isolada e com arejamento conveniente.

            Acontece que, sem atentar para a regulamentação da matéria na esfera federal (art. 2º, da lei federal 9.294, de 15 de julho de 1996), a presente lei municipal – da noite para o dia – passou a não mais admitir a existência das tradicionais áreas de fumantes nos estabelecimentos indicados, nem mesmo em locais situados ao ar livre. Em outras palavras, a atividade de fumar está completamente proibida na chamada "Califórnia Brasileira", sob pena de multa (às pessoas físicas e jurídicas) e interdição do estabelecimento por até noventa dias.

            Em conseqüência disso, os hotéis, bares, restaurantes e similares do Município de Ribeirão Preto obtiveram uma drástica redução em seu movimento, aproximadamente da ordem de 30%, conforme nos informou o presidente do Sindicato da classe patronal, requerendo a tomada de medidas cabíveis em favor dos sindicalizados.

            Apenas para indicar um dado fático local, a situação se reveste ainda de maior gravidade levando-se em conta que os donos desses estabelecimentos – em sua maioria pequenos e médios empresários – foram pegos de surpresa pela referida proibição, que contradiz frontalmente da posição há muito adotada pela União Federal, a exemplo do que ocorre em todo o país.

            Portanto, a lei e o decreto municipais em enfoque violaram frontalmente o direito líquido e certo dos restaurantes, bares, hotéis e similares de Ribeirão Preto, restringindo igualmente direitos individuais consagrados em nossa Carta Federal e criando uma inadmissível insegurança jurídica no mundo fenomênico, sobretudo quando vedaram a criação dos chamados "fumódromos" nos estabelecimentos que especifica, fato que enseja a escrevermos esse modesto ensaio, sem qualquer pretensão de inovar.


3. A lei federal n.º 9.294, de 15 de julho de 1996

            A Lei Federal n.º 9.294, de 15 de julho de 1996, determina, em seu artigo 2º, que é proibido o uso de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou de qualquer outro produto fumígero, derivado ou não do tabaco, em recinto coletivo, privado ou público – salvo em área destinada exclusivamente a esse fim, devidamente isolada e com arejamento conveniente.

            Todavia, o art. 3º, da lei do município de Ribeirão Preto n.º 10.016, de 09 de março de 2004, restringiu a supramencionada lei federal, determinando que os fumantes que se utilizarem dos estabelecimentos a que se refere esta lei (do município) somente poderão fumar retirando-se do respectivo estabelecimento, utilizando-se para tanto a via pública, sendo vedada a criação dos chamados "fumódromos".

            Tal legislação feriu veementemente a Constituição Federal, sobretudo quando vedou a possibilidade de criação pelos bares, hotéis, restaurantes e similares dos locais apropriados para que seus usuários fumem, os ditos "fumódromos", sob pena de multa ou interdição do estabelecimento.

            Com a devida vênia, qualquer pessoa dotada de patrimônio vocabular medíocre vê que essa lei do município de Ribeirão Preto é manifestamente delirante, pois ao mesmo tempo em que estabelece ser proibido fumar em qualquer tipo de estabelecimentos, veda a criação dos locais apropriados para tal, penalizando os bares, hotéis, restaurantes e similares com a cassação do alvará de funcionamento do estabelecimento pelo prazo de até noventa dias. Em outras palavras, as sanções previstas não se limitam aos fumantes (obrigados à cessação do consumo destes produtos, sob pena de multa ou saída forçada), estendendo-se também aos proprietários dos estabelecimentos (ameaçados com multas, interdições e cassação do alvará de funcionamento, dependendo da recidiva). Isso quer dizer que os bares, hotéis, restaurantes e similares do município de Ribeirão Preto não poderão destinar área devidamente isolada das demais e com arejamento conveniente às pessoas fumantes.

            Com efeito. Considerando o plano da legislação federal, a lei nº 9.294/96, dispõe, in verbis: "Art. 2° É proibido o uso de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou de qualquer outro produto fumígero, derivado ou não do tabaco, em recinto coletivo, privado ou público, salvo em área destinada exclusivamente a esse fim, devidamente isolada e com arejamento conveniente".

            Por outro lado, não menos importante é o decreto exarado pelo do Poder Executivo Federal nº 2.018/96 (que regulamenta a lei federal nº 9.294/96). Os incisos I e IV, do artigo 2º, deste referido decreto, a seu turno, definem os conceitos de "recinto coletivo" e "área devidamente isolada e destinada exclusivamente a esse fim".

            Confira-se no quadro abaixo – utilizado sobretudo para apresentação esquemática de informações textuais – como se deu a absurda construção dessa lei municipal, que invadiu área sobre a competência legislativa estabelecida pela Constituição Federal, confrontando-a com os dispositivos legais da lei e do decreto federais.

 

            lei federal n.º 9.294/96

            lei municipal n.º 10.016/04

            Art. 2º. É proibido o uso de cigarros, cigarrilha, charutos, cachimbos, ou de qualquer outro produto fumígero, derivado ou não de tabaco, em recinto coletivo, privado ou público, salvo em área destinada exclusivamente a esse fim, devidamente isolada e com arejamento conveniente.

            Art. 1º. Pela presente lei, fica proibido fumar cigarros, cigarrilhas, charutos e outros produtos derivados do tabaco e congêneres em supermercados, lojas, restaurantes, shoppings, igrejas, bares, bingos, padarias, teatros, cinemas, escolas, hotéis, clubes recreativos, casas de diversão, hospitais, escritórios, elevadores, bibliotecas, indústrias, edifícios e demais recintos de trabalho coletivo

            Art. 3º. Os fumantes que se utilizarem dos estabelecimentos a que se refere esta lei, somente poderão fumar retirando-se do respectivo estabelecimento, utilizando-se para tanto a via pública, sendo vedada a criação dos chamados "fumódromos".

            decreto federal nº 2.018/96

            decreto municipal n.º 251/04

            Art. 3º É proibido o uso de produtos fumígenos em recinto coletivo, salvo em área destinada exclusivamente a seus usuários, devidamente isolada e com arejamento conveniente.

            § único. A área destinada aos usuários de produtos fumígenos deverá apresentar adequadas condições de ventilação, natural ou artificial, e de renovação do ar, de forma a impedir o acúmulo de fumaça no ambiente".

            Art 2º, inciso I - RECINTO COLETIVO: local fechado destinado a permanente utilização simultânea por várias pessoas, tais como casas de espetáculos, bares, restaurantes e estabelecimentos similares. São excluídos do conceito os locais abertos ou ao ar livre, ainda que cercados ou de qualquer forma delimitados em seus contornos.

            Art 2º, inciso I – ÁREA DEVIDAMENTE ISOLADA E DESTINADA EXCLUSIVAM ENTE A ESSE FIM: a área que no recinto coletivo for exclusivamente destinada aos fumantes, separada da destinada aos não-fumantes por qualquer meio ou recurso eficiente que impeça a transposição da fumaça.

            Art. 1º. Fica proibido fumar cigarros, cigarrilhas, charutos e outros produtos derivados do tabaco e congêneres, em locais de ambientes fechados de uso coletivo de estabelecimentos públicos, privados e de economia mista no Município de Ribeirão Preto

            Art. 2º. Define-se por ambiente fechado de uso coletivo, toda a dependência de estabelecimentos públicos, privados e de economia mista descritos no artigo 1º, parágrafo único da lei municipal nº 10.016/04, independente deste local possuir cobertura (teto) ou ser fechado por paredes, portas divisórias, etc.

            Art. 5º, § único – A autoridade policial deverá, verificada a conduta do agente, comunicar o fato ao órgão responsável pela vigilância sanitária para lavratura de auto de infração, se for o caso, providenciando, ainda, a condução do infrator à Delegacia de Polícia da circunscrição para lavratura do termo circunstanciado de preservação de direitos, de acordo com a Lei Federal nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, além de outros delitos que eventualmente se configurem.

             


4. O posicionamento do Supremo Tribunal Federal

            A propósito, calha recordar ensinamento de CARLOS MAXIMILIANO sobre os princípios da exegese jurídica quando ensina que "deve o direito ser interpretado inteligentemente, não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniência, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis (1)".

            Seguindo os auspícios do mestre, a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal entende inconstitucional lei estadual ou municipal em temas de matéria concorrente, senão para atender suas peculiaridades locais e em sentido adaptativo e regulamentador, jamais modificativo ou restritivo à legislação federal (2).

            "Segundo o sistema concebido pelos §1º e 4º do artigo 24 da Constituição, em tema de competência concorrente, à União incumbe o estabelecimento de normas gerais, restando aos Estados a atribuição de complementar as lacunas da normatização federal, consideradas as situações regionais específicas. Assim, salvo em caso de ausência de lei editada pela União, não podem os Estados disciplinar matérias revestidas de generalidade tal que importe invasão das atribuições reservadas apenas à União (CF, artigo 24, §1º). Conforme assevera Alexandre de Moraes, ‘uma vez editadas as normas gerais pela União, as normas estaduais deverão ser particularizantes, no sentido de adaptação de princípios, bases, diretrizes e peculiaridades regionais (competência suplementar) (3)’". O eminente Ministro MAURÍCIO CORRÊA prossegue, afirmando que ao que se depreende da "redação da lei estadual, em nenhum momento opõe-se ela a que o Estado exerça a sua competência para legislar sobre a matéria (CF, art. 24, §2º), podendo fazê-lo, é óbvio, desde que não crie conflito com as normas gerais estabelecidas no plano nacional. O que quer, enfim, a lei local é que se cumpra estritamente a legislação federal, o que me soa óbvio (4)".

            Corrobora esse entendimento a doutrina quando afirma que "nem a União poderá descer às peculiaridades locais, determinando que, por exemplo, em Sergipe se proceda de um modo e, em São Paulo, de outro, nem cada um dos Estados-membros poderá editar leis gerais, diretrizes e bases que transcendam os limites locais, atingindo o sistema de educação de outra Unidade da Federação. Se assim ocorresse, as leis de Sergipe e de São Paulo é que quebrariam as leis federais; no segundo caso, as leis de cada Estado-membro ‘transgressor’ seriam inconstitucionais, dobrando-se à determinação legal da União (5)".

            Na ADI nº 2.667-4 – DF, a Ementa do Acórdão relatado pelo Ministro CELSO DE MELLO é bastante clara: "A usurpação da competência legislativa, quando praticada por qualquer das pessoas estatais, qualifica-se como ato de transgressão constitucional. – A Constituição da República, nas hipóteses de competência concorrente (CF, art. 24), estabeleceu verdadeira situação de condomínio legislativo entre a União Federal, os Estados-membros e o Distrito Federal (RAUL MACHADO HORTA,"Estudos de Direito Constitucional", p. 366, item n. 2, 1995, Del Rey), daí resultando clara repartição vertical de competências normativas entre essas pessoas estatais, cabendo, à União, estabelecer normas gerais (CF, art. 24, §1º), e, aos Estados-membros e ao Distrito Federal, exercer competência suplementar (CF, art. 24, §2º). –- A Carta Política, por sua vez, ao instituir um sistema de condomínio legislativo nas matérias taxativamente indicadas no seu art. 24 – dentre as quais avulta, por sua importância, aquela concernente ao ensino (art. 24, IX) -, deferiu ao Estado-membro e ao Distrito Federal, em ‘inexistindo lei federal sobre normas gerais’, a possibilidade de exercer a competência legislativa plena, desde que "para atender a suas peculiaridades" (art. 24, §3º). – Os Estados-membros e o Distrito Federal não podem mediante legislação autônoma, agindo ‘ultra vires’, transgredir a legislação fundamental ou de princípios que a União Federal fez editar no desempenho legítimo de sua competência constitucional e de cujo exercício deriva o poder de fixar, validamente, diretrizes e bases gerais pertinentes a determinada matéria (educação e ensino, na espécie) (6)".

            Diga-se, desde logo, em consideração ao plano da legislação federal que regulamenta a matéria e do ponto de vista do Pretório Excelso, que sabe qualquer estudante de direito que, naquilo que especificamente tratou, a lei especial superveniente derroga a lei geral, assim como também se sabe que a lei especial não infirma o restante da lei geral.

            Como se vê, imediatamente salta aos olhos que a lei municipal infirmou a lei federal e seu respectivo decreto regulamentar, proibindo o fumo de cigarros, cigarrilhas, charutos e outros produtos derivados do tabaco no município.

            TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR (7) orienta que "a norma geral traz a seguinte disciplina jurídica para o ato de fumar, que será analisada mais detidamente abaixo, sob o ponto de vista do alcance sistemático e hermenêutico de seu conteúdo. Trata-se de ato proibido pela legislação federal apenas quando o fumante estiver: a) em recinto coletivo, público ou privado; e b) não haja nesse recinto coletivo área arejada destinada a esse fim (a ressalva- salvo...-, por ser expressa, refere-se ao recinto coletivo e não a qualquer outro recinto, fora dele, pois se assim fosse, a conclusão poderia ser obtida por mero argumento a contrario, o que tornaria inútil a ressalva). Não estando presentes quaisquer dessas condições, i.e. caso não se esteja em recinto coletivo, ou caso o recinto disponha de área destinada a fumantes, prevalece a regra constitucional de liberdade, pois nessas hipóteses o legislador entendeu que não há risco significativo à saúde dos não fumantes. Assim, ao prever que num mesmo local (recinto) é proibido e permitido fumar, a norma estatui um regime diferenciado no qual procura conciliar tanto os interesses dos fumantes quanto também os interesses dos não fumantes, visto que por tratar-se de produto lícito, embora não estimulado, seu consumo deve ser permitido. Além desta norma geral (pelos destinatários e pelo conteúdo), existe ampla regulamentação da mesma, como já ressaltado, no Decreto nº 2.018/96, de origem do Poder Executivo Federal, o qual define, por exemplo, o que é recinto coletivo e o que é área devidamente isolada e destinada exclusivamente a esse fim. Desta forma, no âmbito federal, a matéria já se encontra exaustivamente regulamentada. Para existir norma estadual [ou municipal] sobre o mesmo assunto, portanto, apenas se for o caso de norma que decorra da lei federal, pois do contrário será considerada inválida. Como o regime estabelecido pela norma federal é bastante claro, destacando a existência de área arejada e isolada destinada ao fumo como condição relevante, na qual é permitido fumar, mesmo em recinto coletivo, qualquer norma estadual ou municipal que pretenda regulamentar tal lei deverá ser compatível com essa hipótese. Ou seja, é impossível haver uma lei estadual ou municipal que queira suprimir essa hipótese relevante na qual fumar é permitido, reduzindo o regime a apenas duas possibilidades (permitido fumar em recinto não coletivo e proibido fumar em recinto coletivo), pois desta forma tal lei seria considerada inválida, por desrespeito a regra constitucional de competência (cf. infra item 3.1 (8), para uma interpretação mais detida da legislação anti-tabagismo que leva ao conflito aqui apontado). A única possibilidade de legislação concorrente seria, respeitada a norma federal, haver alguma peculiaridade, no Estado, a autorizar o exercício daquela competência".


5. Limitações os direitos fundamentais

            Deve-se atentar, ainda, para os lindes da permissão constitucional de limitação aos direitos fundamentais, de extrema relevância por constituírem exceções à regra da liberdade, de maneira que toda restrição que não estiver claramente neles contida deverá ser considerada inconstitucional (in dubio pro libertate).

            Nesse contexto, as restrições (sempre excepcionais, ainda que também de sede constitucional) a direitos fundamentais (à liberdade, à dignidade, ao exercício da livre atividade econômica, à reunião pacífica em locais abertos ao público, a ir e vir) devem ser interpretadas restritivamente, já que fora do âmbito de sua incidência vige a norma geral pro libertate inerente aos direitos fundamentais.

            Mais uma vez afirma com maestria o Prof. TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR que "no caso dos direitos fundamentais e das normas excepcionais o intérprete deve interpretá-las restritivamente (9)".

            É sob este prisma que deve ser aferida a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei e do decreto municipais dada à referida vedação de se isolar uma área dos estabelecimentos comerciais privados para pessoas fumantes, sob pena de multa ou interdição do estabelecimento.

            Até que ponto se pode interferir no direito individual de ir e vir? Até que ponto se pode interferir no direito individual de se conviver com pessoas com hábitos diversos ou de zelar pela própria saúde? Qual o limite constitucionalmente admissível de restrição à livre atividade econômica em locais privados? A lei municipal pode dispor sobre a relação de proximidade entre os que querem fumar em detrimento da legislação federal?

            A par da relevância dos fundamentos que norteiam a atividade de vigilância sanitária, os quais se encontram muito em voga em nossos dias atuais, tais questionamentos não devem ser afastados na aplicação das medidas restritivas ao fumo, que permanecem tendo caráter excepcional, por inegavelmente restringirem direitos fundamentais dos indivíduos.

            Contudo, é preciso que se diga, por amor ao estudo – mas advertindo não ser esse o caso – que haverá questões em que, justamente por não poder escolher, a ação da pessoa não será livre. E nessa hipótese a solução tem de ser outra. O conceito é clássico: liberdade é o oposto de necessidade. Nesta não se pode ser livre: ninguém tem ação livre para não comer, não beber, para voar, etc. Aplicado o conceito à realidade social, o que se tem é o fato de que o objetivo constitucional da construção de uma sociedade livre significa que sempre que a situação real for de absoluta necessidade o Estado pode e deve intervir para garantir a dignidade e a saúde humana.

            Todavia, muito pelo contrário do afirmado acima, no caso da vedação do fumo, temos a constituição da república conferindo vários direitos e garantias ao cidadão e a lei federal 9.294/96 que representa a situação real de não-necessidade para que o município intervenha e considere ilícita a atividade de fumar.

            Pelo contrário, até hoje a ação de fumar cigarros, cigarrilhas, charutos e outros produtos derivados do tabaco e congêneres em supermercados, lojas, restaurantes, shoppings, bares, bingos, padarias, teatros, cinemas, escolas, hotéis, clubes recreativos, casas de diversão, hospitais, escritórios, bibliotecas, indústrias, edifícios e demais recintos de trabalho coletivo é absolutamente permitida pela supramencionada lei federal, desde que em área adequada.

            Portanto, em outras palavras, a ação de fumar é atividade até hoje considerada lícita e, repita-se, o município de Ribeirão Preto é absolutamente incompetente para ditar normas sobre a proximidade daqueles que querem fumar e dos que não o querem, não podendo vedar ameaçar os bares, hotéis, restaurantes e similares com multas ou interdições, pois aí não entra em pauta o tema do comportamento social em tese regulável pelo município.


6. A incompetência do município para legislar sobre a matéria

            O art. 22, inciso I, da Carta Magna, determina que compete privativamente à União legislar sobre direito civil, direito comercial, direito penal, etc, excluindo dessa concorrência legislativa qualquer outra pessoa política.

            A propósito, ressalta o ilustre Prof. CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELO, em posicionamento absolutamente científico e irrefutável: "[O município] nada tem a ver com a relação de proximidade entre os que querem fumar – atividade até hoje considerada lícita – e os alimentos que eles mesmo vão consumir, maiormente se estes, como normalmente ocorre, justamente se deleitam com tal proximidade, pois é precisamente à mesa de refeições, imediatamente após a sobremesa ou o café, que estimam tirar baforadas de seus cigarros. [...] Estando em causa uma atividade lícita (mesmo os modismos norte-americanos não chegaram a proibi-la, o município é incompetente para ditar normas sobre a proximidade ou separação radical que os fumantes devam ter em relação à área onde ‘eles próprios’ querem consumir seus alimentos, pois aí não entra em pauta o tema do convívio social em tese regulável pelo Município, mediante lei, é claro (10)".

            A despeito da competência concorrente constitucionalmente conferida à União, aos Estados e ao Distrito Federal para legislar sobre a proteção e defesa da saúde (art. 24, XII, da CF), a competência dos Estados e do Distrito Federal não diz respeito a normas gerais, ainda que atinentes a um produto, devendo apenas focar-se sobre a adaptação ou especificação das normas federais no que tange às suas respectivas peculiaridades, conforme preceituam os §§ 1o e 4o, do art. 24, da Constituição Federal.

            Esse não é, com efeito, o caso da matéria tratada na lei e no decreto municipais em exame, uma vez que as definições gerais de "recinto coletivo", consoante disposto no artigo 2º, inciso I, do decreto federal nº 2.018/96 e "área devidamente isolada e destinada esse fim", nos termos do artigo 2º, inciso IV, do mesmo diploma federal, são aplicáveis em qualquer parte do território nacional por serem insuscetíveis de apresentarem peculiaridades regionais e não apenas no espaço territorial de cada um dos Estados ou do Distrito Federal.

            Trata-se de uma técnica de repartição de competência federativa – prevenindo a simetria constitucional – que os §§ 3º e 4º do art. 24 da Carta Magna complementam sua normatividade, estabelecendo, em primeiro lugar, que inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender as suas peculiaridades, e, em segundo lugar, que a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual no que lhe for contrária.

            Como se vê a Constituição Federal não situou os Municípios na área de competência concorrente do art. 24, mas lhes outorgou competência para suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (e não contrariá-la ou restringi-la), o que vale possibilitar-lhes disporem especificamente sobre as matérias ali arroladas e não àquelas a respeito das quais se reconheceu à União a normativa geral (cfr. menção expressa aos Municípios no art. 30, inciso II, da CF/88).

            Ora, diante do crescente aumento das lacunas do direito civil, nasceram as leis especiais, que disciplinaram de forma especializada e ampla determinados temas, afastando-se do caráter emergencial ou excepcional.

            Evidenciou-se a proliferação dos chamados microssistemas. Exemplo disso, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei do Direito Autoral, a Lei de Locações.

            O Código Civil assumiu o papel de fonte residual de legislação acerca de algumas matérias. A legislação especial se expandiu e o âmbito de abrangência do Código Civil se estreitou, foi o que se verificou ao longo dos anos.

            Essa fragmentação do sistema conduz à necessidade de uma atenta atividade interpretativa, merecendo ser realçada a afirmação de PIETRO PERLINGIERI quando afirma que: "as leis especiais não são mais consideradas atuativas dos princípios codicísticos, mas daqueles constitucionais, elas não podem ter lógicas de setor autônomas ou independentes das lógicas globais do quadro constitucional. Elas também devem ser sempre concebidas e conhecidas obrigatoriamente no âmbito do sistema unitariamente considerado (11)".

            Diante do exposto, percebe-se que jamais poderia o município ter regulamentado a disciplina de direitos e deveres de todos os munícipes enquanto pessoas e, muito menos, ter disciplinado a relação de proximidade entre os que querem fumar e aqueles que não o querem – atividade até hoje considerada lícita desde que respeitados os requisitos da lei 9.294/96.

            Contudo, se se consideramos ainda a matéria de pauta como o tema do convívio social em tese regulável pelo município, mediante lei, é claro, e pertinente à competência legislativa concorrente, ele poderia, tão-somente, suplementar a legislação federal e jamais restringi-la (cfr. novamente o art. 30, inciso II, da CF/88).

            E mais, em não se tratando de peculiaridade estadual ou municipal, a existência de legislação nacional afasta a possibilidade de edição de leis locais, conforme, inclusive, afirmou o Egrégio Supremo Tribunal Federal, pela lavra do voto do senhor Ministro Moreira Alves, nos seguintes termos: "tendo em vista o maior âmbito de competência concorrente e comum que os artigos 23 e 24 da atual Constituição deram aos estados-membros no que diz respeito ao cuidado da saúde, à proteção ao meio ambiente, ao combate à poluição, às normas sobre produção e consumo, bem como à proteção e defesa da saúde, para se verificar se a lei estadual em causa é, ou não, inconstitucional por invasão de competência da legislação federal, é mister que se faça o CONFRONTO entre as legislações infraconstitucionais (12)".


7. O estabelecimento de sanções e interdições aos estabelecimentos comerciais e o desrespeito ao princípio da proporcionalidade

            A lei municipal em enfoque considera como infratores os fumantes e os donos dos estabelecimentos nos limites da responsabilidade que lhes forem atribuídos.

            Por essa lei, a pessoa física infratora pagará uma multa no valor de R$ 240,00 na primeira incidência. Em caso de reincidência, caracterizada por três advertências, a pessoa infratora receberá outra multa, agora de R$ 480,00. Em caso de insistência na infração, o infrator poderá ser excluído do estabelecimento.

            Por sua vez, os bares, boites, hotéis, restaurantes, charutarias, tabacarias, casas de diversão, clubes, shoppings, etc (que não têm qualquer relação obrigacional com a fiscalização ou com a decisão do particular em querer fumar) nas primeiras incidências à lei municipal serão multados no valor de R$ 240,00 e R$ 480,00, conforme a prática de nova infração. Em caso de reincidência o estabelecimento estará sujeito à interdição de sua atividade por um dia, sendo esta penalidade dobrada a cada nova reincidência. E, por último, vem o delírio total: em reincidências superiores a três vezes os estabelecimentos serão punidos com a cassação do alvará de funcionamento por até noventa dias.

            Com isso, a presente lei viola frontalmente o princípio da proporcionalidade ao pretender onerar indevidamente os estabelecimentos comerciais, impondo diversas obrigações desnecessárias aos restaurantes, bares, hotéis, boites e similares no município de Ribeirão Preto.

            Conforme expõe LUÍS ROBERTO BARROSO o princípio da proporcionalidade possui os seguintes elementos: (a) adequação: relação racional entre os motivos, os meios e os fins; (b) necessidade: a restrição imposta deve ser a menos gravosa possível para a realização dos fins visados, não podendo a Administração Pública se valer de meios mais enérgicos que os estritamente necessários; e (c) proporcionalidade em sentido estrito: ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido de forma a justificar aquele (13)".

            É importante ressaltar que o dispositivo do art. 6º da lei municipal 10.016/04 (que impõe a sanção de cassação do alvará de funcionamento do estabelecimento pelo prazo máximo de até noventa dias) é absolutamente delirante e draconiano, de inconstitucionalidade manifesta, consoante as sombras da ditadura militar.

            Em primeiro lugar, pela questão da permissão de fumar estabelecida pela lei 9.294/96, desde que respeitados os requisitos estabelecidos.

            Em segundo lugar, pela incompetência do município em legislar sobre a proximidade ou separação radical que os fumantes devam ter em relação à área onde eles próprios querem consumir seus cigarros, pois aí não entra em pauta o tema do convívio social em tese regulável pelo município.

            Em terceiro lugar, pela afronta manifesta ao princípio da proporcionalidade porque não pode a legislação municipal ditar regras sobre a possibilidade de criação ou não dos locais destinados aos fumantes, áreas devidamente isoladas e com arejamento conveniente, restringindo a legislação federal.

            Sobre o tema, o juiz federal aposentado CARLOS DAVID ARÃO REIS, com fundamento nos auspícios de KARL LARENZ, indo além e considerando inconstitucional a própria lei federal 9.294/96, explica que: "tal princípio, como interdição de excessividade, significa que a intervenção em um bem jurídico e a limitação da liberdade [a liberdade de estar no estabelecimento e consumir o cigarro sem aplicação de multas ou interdições] não podem ir além do necessário para a proteção de outro bem [relação de proximidade entre os que não querem fumar] ou de um interesse de maior peso, que entre os vários meios possíveis deve escolher-se o mais moderado, que o meio empregado e os inconvenientes resultantes para o interessado não podem ser excessivos em relação aos fins justificados, aos quais se aspira (14)".

            Com a devida vênia, o legislador do município de Ribeirão Preto – homem de pouquíssimas letras e muitíssimas intenções eleitorais – pretende punir o estabelecimento infrator, quando na verdade ele deveria ter compelido os bares, restaurantes, hotéis e similares a criar o local apropriado para tal, devidamente isolado e com arejamento conveniente ("fumódromos"), segundo as balizas da lei e do decreto federais, mediante talvez a regulamentação municipal das chamadas medidas de pressão psicológica (15), ao invés de colocar na vida dos direitos lei absolutamente repugnante e de inconstitucionalidade manifesta (16).


8. Considerações finais

            Enfim, goste-se ou não (há razões de sobre para não se gostar) com a devida vênia outra conclusão não pode ser a deste modesto ensaio. Produzir e comercializar legalmente cigarros é atividade lícita e talvez a missão dos grandes fabricantes seja fornecer produtos de qualidade a adultos que escolheram fumar, com o conhecimento dos riscos associados ao hábito.

            Portanto, como a legislação federal salvaguarda a possibilidade de fumar em locais isolados e arejados que se encontrem em recintos coletivos fechados, delimitados em seus contornos, não pode a legislação municipal eliminá-la em hipótese alguma, impondo multas e interdições aos estabelecimentos comerciais infratores, simplesmente proibindo sem exceções o fumo em locais coletivos.


Notas

            1 in Interpretação e aplicação do direito. 2 ed. São Paulo: O Globo 1933. p. 133.

            2 Nesse sentido é o Parecer do Prof. Titular TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, USP, que se posicionou pela impossibilidade de o legislador ou o poder executivo estadual ou municipal estabelecerem novas regras sobre o consumo de tabaco, inovando no tocante às restrições já estabelecidas pela lei federal. Tal estudo, elaborado em caso concreto, chaga às nossas mãos por intermédio do colega Eduardo Gil, Advogado da empresa consulente Souza Cruz S.A.

            3 Voto do Ministro Relator Maurício Corrêa na ADI nº 2.303-9 RS, julgada em 23.11.2000.

            4 Voto na ADI nº 2.656-9 SP julgada em 08.05.2003.

            5 JOSÉ CRETELLA JR. Comentários à Constituição de 1988. São Paulo: Forense Universitária , v. IV, arts. 23 a 37. p. 1776).

            6 Ementa da ADIMC nº 2.667-4 DF, julgada em 19 de junho de 2002.

            7 In Parecer cit. pp. 14 a 15.

            8 In Parecer cit. pp. 21 a 24: o item 3.1, mencionado pelo eminente professor da Universidade de São Paulo, diz respeito ao nítido objetivo do legislador em conciliar a liberdade dos fumantes com a dos não fumantes, no sentido de preservar sua opção de não se expor aos efeitos do cigarro.

            9 Cfr. TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR. Introdução ao Estudo do Direito. 2 ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 296.

            10 in Regulamentação – limites – proibição de fumar em restaurantes, Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo: Malheiros, 1994. pp. 61 e ss.

            11 Perfis do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 79.

            12 ADIn no 252-0/PR.

            13 Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 209

            14 in PROIBIÇÃO DE FUMAR – Inconstitucionalidade da lei 9.294, de 1996. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo: Malheiros, 1999. pp. 27 e ss. grifos nossos.

            15 Expressão utilizada por PIERO CALAMANDREI, elogiada pela inteligência do Prof. CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO e tantas vezes mencionada em sala de aula pelo Prof. MICHELE TARUFFO, em outubro de 2001, no curso de dirrito processuale civile base na Faculta di giurisprudenza dell’ Università di Pavia, Itália. Sobre uma noção geral do tema cfr. JOÃO BOSCO MACIEL JUNIOR. A sentença com reserva das exceções substanciais indiretas do Direito italiano. Revista de Direito Processual Civil n. 31. Ano VIII. Janeiro/Março. Curitiba: Genesis, 2004. pp 69 a 95.

            16 Diante de interpretação formulada por intermédio do Advogado autor deste modesto ensaio o Poder Judiciário em Ribeirão Preto concedeu diversas liminares em Mandados de Segurança Impetrados por Ilton Roberto Buosi (pessoa física), choperia Pingüim, restaurante Barbacoa e Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares de Ribeirão Preto e Região. Ao que nos consta outros não diferentes pedidos foram postulados por inúmeros estabelecimentos, tendo sido a medida liminar sempre indeferida, não havendo, até o momento (setembro de 2004), nenhuma sentença apreciando a questão de fundo.

Retirado de: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=6595