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A constitucionalidade de leis estaduais restritivas do consumo de bebidas alcoólicas
Paulo Roberto Fernandes Pinto Júnior *
Em primeiro lugar, deve-se observar que a questão ora
abordada – possibilidade de edição de lei estadual restringindo o consumo de
bebidas alcoólicas – encontra-se dentro do chamado poder de polícia administrativa,
que, conforme leciona Hely Lopes Meirelles, consiste na "faculdade de que
dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de
bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do
próprio Estado" (Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro,
Ed. Revista dos Tribunais, 16ª edição, p. 110).
Este conceito doutrinário há muito foi positivado na
legislação brasileira. De fato, o Código Tributário Nacional, em texto amplo e
explicativo, dispõe:
"Art. 78. Considera-se poder de polícia a
atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito,
interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão
de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes,
à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas
dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade
pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou
coletivos."
O poder de polícia administrativa manifesta-se tanto
através de atos normativos e de alcance geral quanto de atos concretos e
específicos, aptos a condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades
e direitos individuais, em benefício da coletividade.
Neste sentido a lição do professor Celso Antônio
Bandeira de Mello:
"A polícia administrativa manifesta-se tanto
através de atos normativos e de alcance geral quanto de atos concretos e
específicos. Regulamentos ou portarias – como as que regulam o uso de fogos de
artifício ou proíbem soltar balões em épocas de festas juninas -, bem como as
normas administrativas que disciplinem horário e condições de vendas de bebidas
alcoólicas em certos locais, são disposições genéricas próprias da atividade de
polícia administrativa." (Curso de Direito Administrativo, 13ª ed., Ed.
Malheiros, págs. 695/696)
O poder de polícia é inerente a toda Administração
Pública e se reparte entre as esferas administrativas da União, dos Estados,
dos Municípios e do Distrito Federal. Todavia, segundo a técnica de repartição
de competências adotada pela Constituição de 1988, há competências que são
deferidas com exclusividade a determinada unidade federativa, enquanto outras
são exercidas concorrentemente.
Como adverte Hely Lopes Meirelles:
"Em princípio tem competência para policiar a
entidade que dispõe do poder de regular a matéria. Assim sendo, os assuntos de
interesse nacional ficam sujeitos à regulamentação e policiamento da União; as
matérias de interesse regional sujeitam-se às normas e à polícia estadual; e os
assuntos de interesse local subordinam-se aos regulamentos edilícios e ao
policiamento administrativo municipal.
Todavia, como certas atividades interessam
simultaneamente às três entidades estatais, pela sua extensão a todo o território
nacional (v. g. saúde pública, trânsito, transportes, etc.), o poder de regular
e de policiar se difunde entre todas as Administrações interessadas, provendo
cada qual nos limites de sua competência territorial. A regra, entretanto, é a
exclusividade do policiamento administrativo; a exceção é a concorrência desse
policiamento." (Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro,
Ed. Revista dos Tribunais, 16ª edição)
A matéria ora tratada – restrição do uso de bebidas
alcoólicas - situa-se dentre aquelas cuja competência, em razão do simultâneo
interesse, pode ser exercida concorrentemente entre as unidades da federação.
De fato, como assinala José Afonso da Silva, "há,
contudo, uma repartição de competências nessa matéria (organização da segurança
pública) entre a União e os Estados, de tal sorte que o princípio que rege é o
de que o problema da segurança pública é de competência e responsabilidade de
cada unidade da Federação, tendo em vista as peculiaridades regionais e o
fortalecimento do princípio federativo, como, aliás, é da tradição do sistema
brasileiro" (in Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª ed., 1994,
Malheiros Editores).
Em consonância com a supracitada lição doutrinária,
dispõe o art. 144 da Constituição Federal:
"Art. 144. A segurança pública, dever do Estado,
direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem
pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes
órgãos:
........................................"
Desta forma, indiscutível a possibilidade de
regulamentação da questão mediante a edição de lei estadual.
Ressalte-se, ainda, que não se pode enquadrar o tema em
discussão como de "predominante interesse local", razão pela qual,
não há qualquer invasão da esfera de competência legislativa privativa dos
Municípios (art. 30, I, da CF/88).
É que, em matéria de competência legislativa, rege o
princípio da predominância do interesse, sendo da União o tratamento de
questões nas quais predominam o interesse nacional e da generalidade dos
cidadãos, dos Estados o tratamento das matérias relativas a interesses
essencialmente regionais e por fim aos Municípios competem os assuntos de
interesse predominantemente locais.
Confira-se, a respeito, a lição de José Afonso da Silva
e Hely Lopes Meirelles, in verbis:
"O princípio geral que norteia a repartição de
competência entre as entidades componentes do Estado Federal é o da
predominância do interesse, segundo o qual à União caberão aquelas matérias e
questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados
tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional, e aos
Municípios conhecerem os assuntos de interesse local, tendo a Constituição
vigente desprezado o velho conceito do peculiar interesse local que não lograra
conceituação satisfatória num século de vigência." (José Afonso da Silva,
Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª ed., São Paulo, Malheiros, 1993,
p.418)
"O interesse local caracteriza-se pela
predominância (e não pela exclusividade) do interesse para o Município, em
relação ao do Estado a da União. Isso porque não há assunto municipal que não
seja reflexamente de interesse estadual e nacional. A diferença é apenas de
grau e não de substância". (Hely Lopes Meirelles, Direito de Construir, 6ª
ed., Malheiros, 1993, p. 120)
Portanto, se o interesse ultrapassar os limites do
Município, afastada estará sua competência privativa, legitimando-se, assim, a
edição de normas estaduais e federais sobre a questão, conforme estejam em
jogo, respectivamente, necessidades regionais ou nacionais.
No caso presente, o interesse em jogo (melhoria da
segurança pública mediante a restrição da venda de bebidas alcoólicas) não pode
ser considerado predominante no âmbito municipal. Trata-se, na verdade, de
assunto onde predomina o interesse regional, em face da necessidade de
disciplinamento uniforme da questão em todo o território estadual.
Por outro lado, inexiste violação aos princípios
constitucionais do livre exercício da atividade econômica e da livre
iniciativa, previstos nos arts. 1º, 4º e 170, parágrafo único, da Constituição
Federal.
Essas liberdades constitucionais não afastam a
possibilidade regramento restritivo estatal com o objetivo de assegurar o bem-estar
da coletividade, uma vez que não escapa ao crivo fiscalizador e normativo do
Estado (art. 174 da CF/88).
Se é certo que o Estado brasileiro adotou um modelo
econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção, na iniciativa
privada e na livre concorrência, não menos correto é concluir que isto não
implica dizer que não cabe ao Estado intervir nos casos em que seja necessária
sua atuação na defesa dos interesses públicos.
Neste sentido, as seguintes decisões do Tribunal de
Justiça do Distrito Federal:
"DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO - MANDADO
DE SEGURANÇA COLETIVO - SINDICATO - LEGITIMIDADE - MEDIDA PROVISÓRIA N.
2.180-35, DE 24/08/2001 - ESTABELECIMENTO COMERCIAL - VENDA DE BEBIDAS ALCOÓLICAS
- HORÁRIO DE FUNCIONAMENTO - LIMITAÇÃO - LEGALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO -
MANDAMUS DENEGADO. I - PRELIMINARES: O "MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO É
DESTINADO TÃO-SÓ À PROTEÇÃO DO DIREITO LÍQUIDO E CERTO E INCONTESTÁVEL DE TODA
UMA CATEGORIA - OU DA MAIORIA DOS MEMBROS DESSA CATEGORIA" (JOSÉ CRETELLA
JÚNIOR). NESSA ESTEIRA, NÃO SE DESNATURA ESSA ESPÉCIE DE AÇÃO MANDAMENTAL
APENAS PORQUE, EVENTUALMENTE, EM SEU ÂMBITO DE TUTELA NÃO SE ALCANÇARÁ TODA A
COMUNIDADE RESPECTIVA. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. II - PRESENTES OS
REQUISITOS INCLUÍDOS PELA MEDIDA PROVISÓRIA N. 2.180-35, DE 24/08/2001, AO ART.
2º DA LEI N. 9.494/97, QUAIS SEJAM, A ATA DA ASSEMBLÉIA QUE AUTORIZOU A
INICIATIVA POSTULATÓRIA DO IMPETRANTE, COMO TAMBÉM A IDENTIFICAÇÃO DOS
SINDICALIZADOS, INCLUSIVE, COM A INDICAÇÃO DO ENDEREÇO, HÁ DE SE CONCLUIR POR
SATISFEITO O PRESSUPOSTO LEGAL PARA A REGULAR IMPETRAÇÃO DO MANDADO DE
SEGURANÇA COLETIVO. III - MÉRITO: SE É CERTO QUE A ATIVIDADE ECONÔMICA É
ASSEGURADA A TODOS, INDEPENDENTEMENTE DE AUTORIZAÇÃO DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS, SALVO
OS CASOS PREVISTOS EM LEI, NÃO MENOS CORRETO É QUE TAL ATUAÇÃO NÃO ESCAPA AO
CRIVO FISCALIZADOR E NORMATIVO DO ESTADO. SOB ESSA ÓTICA, AS AUTORIDADES
COATORAS, ESCORADAS EM BASE LEGAL, E NO EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍCIA,
LEGITIMAMENTE EXPEDIRAM A PORTARIA CONJUNTA DE N. 06/SESP/SUCAR, DE 14 DE MARÇO
DE 2002, PARA ESTABELECER, CONFORME CERTOS CRITÉRIOS, OS HORÁRIOS DE PERMISSÃO
DE VENDA DE BEBIDAS ALCOÓLICAS PELOS ESTABELECIMENTOS COMERCIAIS E SIMILARES DE
BRASÍLIA. IV - SALIENTE-SE QUE O PODER PÚBLICO À VISTA DO INTERESSE PÚBLICO E
DIANTE DE IRREGULARIDADES, OU ATÉ MESMO ILÍCITO, POR VEZES, PENAL, NO
EXERCÍCIO, POR EXEMPLO, DO COMÉRCIO, DA INDÚSTRIA, EM ÁREAS SANITÁRIAS, PODE,
NA DESINCUMBÊNCIA DO SEU PODER DE POLÍCIA, INTERDITAR, SUSPENDER E, INCLUSIVE,
FECHAR O ESTABELECIMENTO COM O ENCERRAMENTO DAS ATIVIDADES, COMO NÃO PODERIA, O
MENOS, DISCIPLINAR O HORÁRIO DE FUNCIONAMENTO DE TAIS ATIVIDADES? V - MANDADO
DE SEGURANÇA DENEGADO." (TJDF, Conselho Especial, Mandado de Segurança nº
2002.00.2.0039261, rel. Des. Jeronymo de Souza, pub. no DJ de 09.07.2003)
"CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE
SEGURANÇA. PRETENSÃO DO APELANTE DE VER CASSADA A SENTENÇA POR FATO
SUPERVENIENTE OCORRIDO A CONFIRMAR A TESE ESPOSADA POR ELE NA PRESENTE DEMANDA,
CONSISTENTE NA DECISÃO PROFERIDA EM QUE SE CONCEDEU LIMINAR EM AÇÃO PROPOSTA
PELO SINDICATO DOS HOTÉIS, BARES E RESTAURANTES DO DISTRITO FEDERAL.
INACOLHIMENTO. MÉRITO: A) NÃO PODERIA A ADMINISTRAÇÃO SE VALER DAS PORTARIAS
CONJUNTAS N. 2 E 3 OU POSTERIORES POSTARIAS, POR NÃO SEREM LEIS EM SENTIDO
FORMAL, QUE NÃO TÊM O CONDÃO DE OBSTAR A VENDA DE BEBIDAS APÓS DETERMINADO
HORÁRIO, SOB PENA DE MALFERIR O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. B) A PROIBIÇÃO
RESULTOU EM OFENSA AO PRINCÍPIO DO LIVRE EXERCÍCIO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E DA
LIVRE INICIATIVA. C) AS PORTARIAS SÃO DESPROPORCIONAIS, POIS NÃO FAZEM
QUAISQUER ACEPÇÕES NO TOCANTE AO TIPO DE TRAILLERS E QUIOSQUES, LOCALIZAÇÃO....
1. Não é razão bastante para se cassar a r. sentença, o
fato de em processo similar ter sido deferida liminar, já que o julgador é
livre para expressar o seu posicionamento, desde que fundamente a decisão.
2. As portarias, uma vez que exprimem a vontade e o
comando da lei, são também instrumentos legítimos através dos quais os agentes
públicos podem atuar no cumprimento de seus deveres e obrigações.
A autorização para a utilização da área pública não
exime o autorizado do cumprimento das normas de postura, saúde pública,
segurança pública, trânsito e outras estipuladas para cada tipo de atividade a
ser exercida.
3. A Administração encontra-se em situação de
supremacia sobre os administrados sempre que impuser uma limitação em benefício
do interesse público. Não havendo abuso, arbitrariedade ou ilegalidade, suas
ordens devem ser acolhidas pelos administrados.
4. A segurança pública deve prevalecer sobre o
interesse econômico.
5. Recurso improvido." (TJDF, Segunda Turma Cível,
Apelação Cível nº 2002.01.1.011054-2, rel. Des. Mário-Zam Belmiro, julg. em
26.06.2003)
"AGRAVO REGIMENTAL. LIMINAR INDEFERIDA EM MANDADO
DE SEGURANÇA. PODER DE POLÍCIA.
Não se mostra
plausível suspender, em liminar, as portarias que determinam o fechamento em
horários determinados de estabelecimentos comerciais que vendem bebidas
alcoólicas se não demonstrado amplamente o fumus boni iuris e o periculum in
mora, até porque tal ato encontra-se dentre aqueles que se encaixam no poder de
polícia da Administração Pública." (TJDF, Conselho Especial, Agravo
Regimental no Mandado de Segurança nº 2002.00.2.001592-2, rel. Des. Edson
Alfredo Smaniotto, julg. em 04.06.2002)
No que toca
especificamente à proibição de comercialização de bebidas alcoólicas às margens
das rodovias localizadas no território estadual, deve-se esclarecer que não
existe nenhuma inconstitucionalidade nesta medida.
De fato, o STF já declarou a constitucionalidade de
norma com tal objetivo, afirmando que não se trata de matéria de direito
comercial, mas sim de direito administrativo, para cuja disciplina têm
competência os Estados-Membros. Eis as ementas das seguintes decisões:
"CONSTITUCIONAL. TRÂNSITO. RODOVIAS ESTADUAIS: ACESSO
DIRETO. Lei 4.885, de 1985, do Estado de São Paulo. I. - A Lei 4.885, de 1985,
do Estado de São Paulo, art. 1º, não dispõe sobre matéria de direito comercial.
Dispõe, sim, sobre matéria de direito administrativo, já que disciplina a
autorização para dispor de acesso direto à rodovia estadual. A lei estadual
apenas estabelece que os estabelecimentos comerciais situados nos terrenos
contíguos às faixas de domínio do DER somente poderão obter autorização de
acesso direto às estradas estaduais se se comprometerem a não vender ou servir
bebida alcoólica. II. - Inocorrência de ofensa ao princípio da irretroatividade
das leis ou do respeito ao direito adquirido. III. - Constitucionalidade do
art. 1º da Lei paulista 4.855, de 1985, regulamentado pelo art. 1º do Decreto
estadual 28.761, de 26.08.88. IV. - R.E. não conhecido." (STF, Tribunal
Pleno, RE nº 148.260/SP, rel. Min.
Carlos Velloso, pub. no DJ de 14.11.1996)
"ESTADO DE SÃO PAULO. ESTABELECIMENTOS COMERCIAIS COM ACESSO DIRETO ÀS RODOVIAS ESTADUAIS. LEI Nº 4.885, DE 1985. Hipótese em que, na forma do diploma legal em referência, estão eles proibidos de vender e de servir bebidas alcoólicas. Recurso extraordinário conhecido, mas improvido." (STF, 1ª T., RE nº 183.882/SP, rel. Min. Ilmar Galvão, pub. no DJ de 25.06.1999).
* Advogado atuante; Procurador da Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco; Assessor da Comissão de Constituição, Legislação e Justiça da Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco e ex-Procurador do Banco Central