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PENSANDO NO ESTADO E O GOVERNO ELETRÔNICO

Jerônimo Duarte Ayala

"As massas nunca se revoltarão espontaneamente, e nunca se revoltarão apenas por serem oprimidas. Com efeito, se não se lhes permite ter padrões de comparação nem ao menos se darão conta que são oprimidas". (George Orwell, 1984)

Trabalhar com Ciências Humanas ‚ realmente uma tarefa árdua, como o trabalho de Penélope, se é que podemos nos permitir a utilização do mito para representar a Ciência. É necessário fazer um exercício de hermenêutica, onde as idéias são a verdadeira ferramenta. Esta constatação se justifica quando pegamos conceitos como linguagem, poder, polítca, identidade, produção de sub-jetividades. Para que se possa falar de poder, temos que recorrer, na Ciência Política, aos conceitos de Aristóteles, Hobbes, Locke, Maquiavel, Focault, Deleuze e Guattari . Na Filosofia , Husserl, Wittgenstein, Chomsky - a definição de Linguagem, na Psicologia da Educação a gênese da aquisição do conhecimento de Vigotsky e Piaget, somente para citarmos o elementar - ou que julgamos elementar. Isso demonstra que, para trabalharmos de forma interdisciplinar, necessitamos de grandes conhecimentos em áreas que não se mostram completamente no desenvolvimento de um trabalho despretensioso.

Hobbes, quando coloca as idéias de que a turbe necessita de um governante que através de leis possa assegurar o bem-estar de todos, está traçando as linhas mestras do poder representativo, o indivíduo delega sua cota de controle a outros para poder usufruir da liberdade deste momento em diante surge o Estado e seus aparelhos ideológicos. Para os Gregos a democracia poderia comportar duas formas de exercício do poder, um de domínio público-político e outro da esfera privada da administração doméstica. O primeiro chamavam tirânia , onde quem governa tem que possuir um exército para se defender de seus cidadão. O segundo déspotismo, é o governo do pai, das casas grandes e senzalas descritas por Gilberto Freire.

Durante os primeiros cincoenta anos do século passado as ideologias dominaram o mundo. Facismo, nazismo, fundamentalismo, Monarquismo, populismo, o mundo esteve divido entre dois grandes blocos econômicos e seus poderes de influência. Eram os tempos da querra fria, da espionagem da querra psicológica aberta. Após a Segunda querra mundial surge a necessidade de controlar o desenvolvimento dos paises comunistas que propagavam a união da classe trabalhadora para por fim a exploração do Capital. Para os países capitalistas surge um problema como juntar duas coisas antagônicas. Como poderiam ser democráticos e capitalistas ao mesmo tempo. A democracia prega a igualdade entre os homens (isonomia) e o capitalismo em si contem o germe da desigualdade, pois nem todos podem deter os meios de produção. Devem vender suas forças de trabalho.

As idéias Keinesianas de um Estado de Bem estar significaram uma trégua, pois com o controle do Estado se esperaria o bolo crescer para assim depois poder dividí-lo. . Segundo Bowles, citados por Clauss Offe, “O acordo representou, por parte da mão-de-obra, a aceitação da lógica do lucro e dos mercados como princípios orientadores da alocação dos recursos, das trocas internacionais, da mudança tecnológica, do desenvolvimento do produto e da alocação industrial, em troca de uma garantia de que seriam defendidos os padrões mínimos de vida, os direitos sindicais e os direitos democráticos liberais, seria evitado o desemprego em massa e a renda real subiria aproximadamente de acordo com a produtividade do trabalho, tudo isto através da intervenção do Estado, se necessário”.

Nos países da América Latina esta intervenção sempre foi necessária e ocorreu com um Estado centralizador e cerceador das liberdades individuais. Não podemos esquecer das "forças ocultas" que levaram Jânio Quadros a renunciar da Presidência da República e dos constrangimentos que a posse do vice, João Goulart, acarretou. Os Regimes militares impuseram a força os mecanismos que garantiram a implantação de um modelo de democracia na qual a participação popular somente poderia ser acolhida a partir de movimentos sociais organizados.

A história dos movimentos sociais no Brasil é rica e, certamente, teve seu começo com os anarquistas italianos. Nossos índios e negros já estavam totalmente domesticados e salvo em alguns quilombos, como palmares ou comunidades como Canudos, poderia se dizer que havia uma certa organização não baseada no racionalismo legal.

Com o esgotamento do Estado de Bem Estar Keinesiano (Welfare State) iniciado no governo de Margareth Tacher na Inglaterra e de Ronald Regan nos Estados Unidos surge a necessidade de enxugar o Estado. “Não podemos nos preocupar, aqui, em saber se essas acusações cada vez mais frequentes contra o WSK são inteiramente “verdadeiras”, ou se elas são também o resultado de exageros paranóicos ou uma representação tática consciente da realidade por parte do capital e das suas organizações políticas. Pois o que se aplica neste contexto ‚ uma versão especial de uma lei conhecida dos sociólogos como o “teorema de Thomas”: o que é real na mente e na percepção das pessoas ser  real nas suas conseqüências. A posição de poder estrutural dos proprietários, gerentes e representantes associados ao capital numa sociedade capitalista ‚ exatamente o poder que eles têm de definir a realidade de uma forma altamente conseqüêncial, de forma que o que ‚ percebido por eles como “real” pode ter um impacto muito real para as outras classes e para os atores políticos” (Claus Off, 1984)

Os representantes do Estado mínimo pregam a não intervenção do Estado como regulador. Bresser Pereira (1997) divide os Estados modernos em quatro setores:

  1. O núcleo estratégico, seria o centro no qual se definem a Lei e as políticas públicas e se garante seu cumprimento (Parlamento, tribunais, Ministros, Governadores, Secretariado e alto funcionalismo);
  2. Atividades exclusivas, atividades que garantem diretamente o que as Leis e as políticas sejam cumpridas e financiadas. (Forças Armadas, Polícia, Agência Arrecadadora de Impostos, Agências Reguladoras, Agências de Financia-mento, controle de serviços sociais e da seguridade social).
  3. Serviços não exclusivos são os serviços que o Estado provê, mas que, como não envolvem o exercício do poder extroverso, podem também se oferecidos pelo setor privado e pelo setor público não-estatal. Este setor compreende os serviços de educação, de saúde, culturais e de pesquisa científica.
  4. O setor de produção de bens e serviço é formado pelas estatais.
Ao Estado mínimo cabe o controle do núcleo estratégico e das atividades exclusivas os outros dois setores podem, segundo este pensamento, serem repassados ao domínio privado e, o que não for de interesse por ser oneroso, deve ser feito através de ONGs e de serviços voluntários. Isso é colocar pelo avesso as idéias propagadas pelo movimentos sociais da década de oitenta, para as quais o Estado deveria, simplesmente, ficar de fora, pois somente atrapalhava.

O problema é pensarmos nas conseqüências de um Estado mínimo, no tratamento individual de coisas que deveriam ser conquistadas coletivas. Não existe exemplo mais claro do que a cooptação do movimento dos sem-terra e propagandas que afirmam a necessidade de um cadastramento. Trata-se de forma individual um problema coletivo. Isso para que se possa burocratizar o acesso a terra.

A privatização de certos serviços, antes públicos, retirou a garantia da intervenção do Estado que funciona somente como regulador. O controle exercido não inibe o não investimento, o pensamento de lucro imediato ou a qualidade dos serviços. Vendeu-se, o que o Estado já não podia administrar, para quem quer utilizar o que já está feito, de preferência pagando pouco por isso e que, quando houver o esgotamento destes recursos, vai usufruir esse ganho em algum paraíso fiscal.

Houve uma certa vantagem com o acordo do Estado-de-Bem-Estar. Não houve uma distribuição igualitária, mas o enriquecimento cultural não pode ser questionado. O desenvolvimento da tecnologia aumentou a expectativa de vida, elevou o nível cultural. Não através dos aspectos formais da cultura, mas através da aquisição de inúmeros símbolos e acordos implícitos. A civilização humana está sobrevivendo como resíduo do lucro.

Concomitantemente as questões de cunho social e política não se pode ignorar que foi, também, durante o século passado que surgiram as grandes teorias sobre a psique humana. O comportamento passa a ser objeto de estudo de modo sistemático, das colméias de abelhas aos formigueiros e colônias de cúpims todos os tipos de organização são estudados até se chegar a idéia de sistemas abertos e organizações complexas.

Os desejos e vontades humanas saem do reino do imaginário e passam a constituir a motivação do homem. Cada vez mais nos vemos como seres que estão em relação. Indivíduos em um mundo não singular que desenvolveram uma ciência para controlar a natureza e não para interagir com ela.

O Governo Eletrônico surge do avanço da técnologia da informação e com a incumbência de aproximar o cidadão dos serviços que podem ser prestados pelo Estado. Segundo Olívio (2001) "O principal desafio do Direito Administrativo Brasileiro diante do Estado informatizado, em rede, é sem dúvida contribuir para que os princípios da transparência e da eficiência resultem na democratização da máquina pública e da sociedade, possibilitando que todos tenham o mais amplo acesso aos bens, serviços e informações, para que deles possam se utilizar na defesa de direitos ou na fundamentação de reivindicações".

O Estado, mesmo se desobrigando de certas atividades, talvez por isso mesmo, procura mostrar que ficou mais ágil, que acabou com as grandes filas, pois hoje se pode buscar informações, pegar formulários, preenchê-los e até mesmo encaminhá-los sem sair de casa. Brevemente estaremos com a figura do "big brother" estampada em nossos monitores sem que isso nos cause o menor espanto.

Para finalizarmos ficam algumas dúvidas e algumas certezas. Temos dúvidas quanto ao funcionamento de homepages como mecânismos ou interfaces do usuário e dos prestadores de serviço. Quanto mais avança o número de usuários de computadores domésticos, mais o sigilo e a segurança passam a ser objeto de preocupação. A informatização dos bancos vai aos poucos acabando com a figura do gerente e do caixa e se torna cada vez mais normal fazer inúmeros serviços sem intervenção humana. Este atendimento on-line, seria ideal se já houvesse uma democratização da informação pois, atualmente, somente os hackers é que estão se beneficiando ao descobrir maneiras de lesar o pequeno correntista que não tem acesso a estes serviços.

É oportuno lembrar, também, o acesso a informações telefônicas prestadas por concecionárias de telefonia. Você é atendido por uma gravação que lhe informa que, para cada tipo de atendimento, existe um número, as tais fitas gravadas que, quando e esgotam as possibilidades, você verifica que não conseguiu falar com uma pessoa que pudesse ouvir e esclarecer suas dúvidas.

A certeza que temos é que por trás do Estado está uma camada densa de burocratas. Referimo-nos aos pequenos burocratas os que incorporaram a cultura, a submissão e um certo ar arrogante herdado de quando podia existir um certo orgulho da função. As repartições públicas continuam sendo lugares insalubres, onde quem manda não o faz por competência, eficiência ou eficácia e sim por apadrinhamento ou por usufruto político. A informatização do setor geralmente é feita por terceiros que, simplesmente elaboram um esquema da rotina impressa na mente de um servidor. Este, geralmente, com muito tempo na repartição, detêm conhecimentos sobre trâmites e encaminhamentos, são os especialistas em rotinas visto que, qualquer vestígio de um curso superior, quando concluído, já está morto e enterrado pelo seu total abandono. Ao auxiliarem o técnico da área de computação perdem uma habilidade, pois o conhecimento que tinham era considerado o suficiente para o desempenho da tarefa, após a informação passar para um terminal de computador se torna necessário um período de treinamento da nova ferramenta. Os técnicos não podem treinar devidamente o servidor para exercer a "nova tarefa" e por questões de controle, os cursos ministrados são de curta duração para evitar a ausência do funcionário por longos períodos.

As repartições são lugares onde, para manter o seu emprego ou para galgar pequenos postos ou favores, certos funcionários, podem até mesmo cometer perjúrio ou violar informações sigilosas como aconteceu, recentemente, com a funcionária do PRODASEN. Que, certamente, no inquérito administrativo que deve estar respondendo, vai alegar que não teve como se furtar ao pedido que considerou como uma ordem. Somente uma metáfora ampla pode abarcar o que queremos dizer, na mesma sala onde exista um computador, certamente, em algum canto, ainda reina a velha máquina de escrever.

A necessidade de disponibilizar serviços a população é evidente, mas a preocupação deste pequeno estudo foi somente questionar quais o serviços que serão ofertados e quem estará prestando a informação do outro lado do aparelho. Como democratizar a informação se a democratização do saber e da cultura ainda está na mão de uns poucos privilegiados?

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