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A audiência dos interessados no procedimento administrativo

 

Nuno Luís Barros - Assessor da carreira de jurista do Centro de Estudos e Formação Desportiva

 

 

 

1 – O nº 5 do artigo 267º da Constituição da República Portuguesa, com o título Estrutura da Administração, determina que "o processamento da actividade administrativa será objecto de lei especial, a qual assegurará (...) a participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito".
Assim, está constitucionalmente estabelecida a garantia da participação dos interessados na formação das decisões ou deliberações administrativas, a qual implica a sua intervenção no processo de formação das mesmas, ou seja, antes de serem tomadas, nomeadamente, através da audição sobre o respectivo projecto. São inválidas as decisões tomadas sem que os interessados tenham sido chamados a pronunciarem-se sobre elas (1).
2 – Em cumprimento daquele preceito constitucional é estabelecido no artigo 8º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), o princípio da participação, nos seguintes termos:
"Os órgãos da Administração Pública devem assegurar a participação dos particulares, bem como das associações que tenham por objecto a defesa dos seus interesses, na formação das decisões que lhes disserem respeito, designadamente, através da respectiva audiência nos termos deste Código".
O direito de participação regulado neste preceito constitui uma figura genérica, extensiva a todos os procedimentos administrativos. Entre outras manifestações, este direito de participação revela-se no direito de audiência prévia dos particulares relativamente à tomada de qualquer decisão administrativa que lhes diga respeito (2).
3 – Nos artigos 100º a 105º do CPA é regulada a participação dos cidadãos no procedimento administrativo, consubstanciada na audiência dos interessados.
A consagração genérica do direito de audiência dos interessados é inovadora no Direito Administrativo português, pois, só no âmbito dos procedimentos sancionadores, nomeadamente, no procedimento disciplinar, é que a audiência prévia dos interessados era obrigatória (3).
3.1 – No nº 1 do artigo 100º determina-se que, após a conclusão da instrução, os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados, nomeadamente, sobre o sentido provável desta, salvo o estabelecido no artigo 103º, referente aos casos de inexistência e de dispensa da audiência dos interessados.
Este direito de participação altera profundamente a tramitação tradicional do procedimento administrativo que seguia o esquema do "requerimento do particular ou iniciativa da Administração > informação dos serviços > decisão" (4).
Assim, depois da instrução e antes da decisão, não se convocava o particular para o ouvir sobre a matéria e, agora, por aplicação do referido normativo (em consequência do preceito constitucional citado no nº 1 deste artigo), o esquema típico de funcionamento da Administração será "requerimento do particular ou iniciativa da Administração > instrução pelos serviços > audiência do interessado > decisão final" (5).
Nesta conformidade, as fases do procedimento serão, em regra, as seguintes (6):
a) Início do procedimento;
b) Instrução;
c) Concluída a instrução, o órgão instrutor (ou, na sua falta, o órgão competente para a decisão final) informa o interessado do sentido provável da decisão e respectivas razões, sendo suspensa a contagem do prazo no procedimento enquanto se realiza a audiência do interessado (nº 3 do artigo 100º);
d) O órgão instrutor decide se o interessado deve ser ouvido por escrito ou oralmente, dependendo essa decisão exclusivamente do instrutor, tratando-se, por isso, de uma decisão discricionária (nº 2 do artigo 100º);
e) O interessado é ouvido;
f) O órgão instrutor elabora um relatório final, em que pondera, além do mais, as razões invocadas pelo interessado na respectiva audiência;
g) O órgão competente toma a decisão final, devidamente fundamentada.
3.2 – Apesar da redacção do referido nº 1 do artigo 100º, nem sempre a audiência dos interessados antecederá imediatamente a tomada de decisão final. O artigo 104º prevê que possam ser efectuadas após a audiência, oficiosamente ou a pedido dos interessados, diligências complementares. E do artigo 105º decorre, por seu turno, que, quando o instrutor não for o órgão competente para a decisão final, elaborará, após a audiência e as eventuais diligências complementares, um relatório, no qual indicará o pedido do interessado, resumirá o conteúdo do procedimento e formulará uma proposta fundamentada de decisão (7).
3.3 – No artigo 103º, como atrás ficou dito, estabelecem-se os casos de inexistência e de dispensa da audiência dos interessados:
3.3.1 – Não há lugar a audiência dos interessados quando a decisão seja urgente, quando seja razoavelmente de prever que a diligência possa comprometer a execução ou a utilidade da decisão (havendo, em ambos os casos, que fundamentar as respectivas razões) e quando o número de interessados a ouvir seja de tal forma elevado que a audiência se torne impraticável, devendo, nesse caso, proceder-se a consulta pública, pela forma mais adequada (alíneas a), b) e c), respectivamente, do nº 1 do supracitado preceito legal).
Ainda sobre o disposto na citada alínea c) do nº 1 deste artigo, há a referir que, sob pena de ilegalmente inviabilizar a participação dos interessados, a impossibilidade de realizar a consulta pública deve ser fundamentada. Não bastará invocar o elevado número de interessados que são a própria razão do recurso à consulta pública. Assim, a impossibilidade tem de ser explicada, nomeadamente, esclarecendo porque é que não é a forma mais adequada a utilização de anúncios no Diário da República ou em jornais de grande circulação. A expressão quando possível tem de ser interpretada em sentido restritivo e de forma a só considerar juntamente a inexistência de consulta pública nas situações reguladas nas mencionadas alíneas a) e b) do nº 1 daquele artigo (8).
3.3.2 – O órgão instrutor, nos termos do nº 2 do artigo em apreço, tem a possibilidade de dispensar a audiência dos interessados nos seguintes casos:
a) Se os interessados já se tiverem pronunciado no procedimento sobre as questões que importem à decisão e sobre as provas produzidas;
b) Se os elementos constantes do procedimento conduzirem a uma decisão favorável aos mesmos.
3.4 – Como já foi anteriormente referido, de acordo com o disposto pelo nº 2 do artigo 100º, é o órgão instrutor a decidir, caso a caso, se a audiência dos interessados reveste forma escrita ou oral (9).
3.4.1 – Em caso de audiência escrita, a notificação feita aos interessados para, em prazo não inferior a 10 dias, dizerem o que se lhes oferecer, deverá fornecer "os elementos necessários para que os interessados fiquem a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, indicando também as horas e o local onde o processo poderá ser consultado" (artigo 101º, nos 1 e 2).
Dispõe, por seu turno, o nº 3 do referido artigo que "na resposta, os interessados podem pronunciar-se sobre as questões que constituem o objecto do procedimento, bem como requerer diligências complementares e juntar documentos".
3.4.2 – Nos termos do nº 2 do artigo 102º, "na audiência oral podem ser apreciadas todas as questões com interesse para a decisão, nas matérias de facto e de direito". O nº 4 do mesmo artigo determina que se lavre acta da audiência "da qual consta o extracto das alegações feitas pelos interessados, podendo estes juntar quaisquer alegações escritas, durante a diligência ou posteriormente"

II

1 – Um dos procedimentos em que o significado e a relevância do princípio da audiência dos interessados se manifestam é, inquestionavelmente, nos concursos de pessoal no âmbito da Administração Pública.

2 – Com a entrada em vigor do CPA, tornou-se necessário alterar o diploma que regulava o supramencionado procedimento, o Decreto-Lei nº 498/88, de 30 de Dezembro, adequando os seus normativos e as suas regras aos princípios emanados e estabelecidos no CPA, tendo sido, consequentemente, publicado o Decreto-Lei nº 215/95, de 22 de Agosto.

3 – Posteriormente, o Decreto-Lei nº 204/98, de 11 de Julho, veio revogar a legislação anteriormente citada, sendo agora o diploma que regula o concurso como forma de recrutamento e selecção de pessoal para os quadros da Administração Pública.

4 – Para o que não esteja especialmente regulado na Lei nº 49/99, de 22 de Junho, referente ao processo de concurso como forma de recrutamento para os cargos dirigentes de director de serviços e de chefe de divisão, aplica-se, como direito subsidiário, aquele regime geral relativo ao concurso interno geral.

5 – O princípio da audiência dos interessados, como decorre do que atrás ficou expresso, aplica-se antes de qualquer das fases decisórias do concurso, proporcionando aos interessados – candidatos – a possibilidade de, querendo, dizerem o que se lhes aprouver, de forma escrita ou oral num prazo determinado pelo órgão instrutor – o júri (10).

6 – A primeira fase em que a lei prevê a manifestação do exercício do direito de participação dos interessados é a que corresponde, após terminado o prazo para apresentação de candidaturas e a consequente verificação dos requisitos de admissão ao concurso, à eventual exclusão de algum dos candidatos, sendo determinado que os candidatos que estejam naquela provável situação sejam notificados, no âmbito da audiência dos interessados, para, no prazo de 10 dias úteis, dizerem o que se lhes oferecer, nos termos estabelecidos no artigo 34º do Decreto-Lei nº 204/98, de 11 de Julho, e nº 3 do artigo 11º da Lei nº 49/99, de 22 de Junho.
Assim, o júri deverá elaborar um projecto de lista dos candidatos admitidos e excluídos ao concurso, com a necessária fundamentação para cada uma das situações que levará à referida exclusão, notificando os candidatos da provável decisão final.

7 – A segunda fase em que o júri deverá proceder à audiência dos interessados é a que se relaciona com a preparação da lista de classificação final do concurso.
Terminada a aplicação dos métodos de selecção, o júri deverá lavrar na respectiva acta o projecto de lista de classificação final, devidamente fundamentado, submetendo-a a despacho do dirigente máximo do serviço, ou do membro do Governo, quando aquele for membro do júri, com o sentido de se proceder à audição dos candidatos no âmbito do exercício do direito de participação dos interessados (11) .
Os candidatos serão notificados do projecto de lista de classificação final do concurso, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 38º do Decreto-Lei nº 204/98, de 11 de Julho, e no artigo 14º da Lei nº 49/99, de 22 de Junho, juntando-se cópias dos respectivos fundamentos, constantes das actas das reuniões do júri em que foram aplicados os métodos de selecção do concurso e que consubstanciaram o referido projecto de lista de classificação final.

8 – Uma última nota para as situações em que o júri pode dispensar a audiência dos interessados.
Como já anteriormente foi explicado, o órgão instrutor pode dispensar aquela audiência em dois casos. O que tem acontecido, com frequência, é a aplicação do caso referido na alínea b) do nº 2 do artigo 103º do CPA:
"Se os elementos constantes do procedimento conduzirem a uma decisão favorável aos interessados".
Este caso aplica-se, sobretudo, aquando da elaboração da lista dos candidatos admitidos e excluídos do concurso, se não houver lugar a qualquer exclusão. Poder-se-á, também, proceder à dispensa da audiência dos interessados, quando, após a aplicação dos métodos de selecção, o júri proceder à ordenação final dos candidatos (lista de classificação final), só houver um candidato ao concurso e tiver sido aprovado. Ao se proceder daquele modo, em ambos os casos referidos, pretende-se aproveitar o dever de celeridade previsto no artigo 57º do CPA, atendendo a que não se está a prejudicar os direitos e interesses legalmente protegidos dos candidatos, revelando-se aqueles procedimentos mais eficazes e rápidos (12).

(1) Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa – Anotada, 3º edição revista, Coimbra Editora, 1993, anotação XIII, pág. 931.
(2) Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, JOÃO CAUPERS, JOÃO MARTINS CLARO, JOÃO RAPOSO, MARIA DA GLÓRIA DIAS GARCIA, PEDRO SIZA VIEIRA E VASCO PEREIRA DA SILVA, Código do Procedimento Administrativo – Anotado, 3ª edição, Ed. Livraria Almedina Coimbra, 1999, anotação ao artigo 8º, pág. 50.
(3) Cfr. Ob. cit. na nota 2, pág. 188.
(4) Cfr. Ob. cit. na nota 2, pág. 189.
(5) Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, O Novo Código do Procedimento Administrativo, in "Código do Procedimento Administrativo", INA, 1992, pág. 33.
(6) Cfr. Ob. cit. na nota 2, pág. 189.
(7) Cfr. JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, O direito à informação e os direitos de participação dos particulares no procedimento administrativo e, em especial, na formação da decisão administrativa, "Estudos sobre o Código do Procedimento Administrativo", Legislação – Cadernos de Ciência de Legislação, nos 9/10, INA, Janeiro/Junho de 1994, pág. 153.
(8) Cfr. Ob. cit. na nota 2, págs. 195 e 196.
(9) Cfr. Ob. cit. na nota 7, págs. 153 e 154.
(10) Pela experiência já adquirida nestas situações e pelos resultados obtidos, tem-se optado pela audiência escrita e pelo prazo de 10 dias úteis, por se entender ser mais eficaz e precisa, representando uma maior celeridade no procedimento.
(11) Por norma, o órgão competente para a tomada da decisão final despacha no sentido de designar o júri do concurso para proceder à audiência dos interessados.
(12) Cfr. Ob. cit. na nota 2, pág. 120.


Justiça e Cidadania, Suplemento do Primeiro de Janeiro, 29-Jun-2000

 

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