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A inconstitucionalidade do tribunal do júri

 

 

Daniza Maria Haye Biazevic*

 

 

I) Origem histórica da instituição do Tribunal do Júri

Alguns autores buscam a origem do tribunal popular nos heliastas gregos, nas quaestiones perpetuae romanas ou no tribunal de assises de Luís, o Gordo, na França, do ano de 1137; outros historiadores defendem que a origem do júri remonta à mesma época do common law, na segunda metade do século XII, sob o comando de Henrique II, em 1166.

Entretanto, é possível afirmar que, com as feições atuais, o júri teve suas primeiras referências na Inglaterra, no século XIII. Desse país, após o ano de 1215, com a edição da Magna Carta do Rei João Sem Terra, o tribunal popular se espalhou pela Europa, primeiro para a França em 1791, e depois para outros países, como Espanha, Suíça, Suécia, Romênia, Grécia, Rússia e Portugal e também para os Estados Unidos, ganhando contornos mais modernos, sendo que cada país adotou um modelo peculiar de júri.

É importante destacar ainda que o júri em matéria criminal, envolvendo a liberdade individual do acusado, somente se consolidou muito depois do júri que analisava questões de natureza civil. Surgiu com a missão de retirar das mãos do déspota o poder de decidir contrariamente aos interesses da sociedade da época, nascendo, da regra mencionada, o hoje precioso princípio do "devido processo legal" (due process of law), ainda que em determinado momento histórico tenha sido usado como instrumento de manipulação de massa (já que houve época em que os jurados chegavam a ser escolhidos dentre pessoas que integravam determinada classe da sociedade). O Tribunal Popular, assim, aflorou e se fortaleceu quando o Poder Judiciário não era todavia independente do Poder Executivo e a sociedade precisava se libertar dos mandamentos desarrazoados dos monarcas absolutos.

No Brasil, o Tribunal do Júri encontrou sua primeira previsão legal no ano de 1822, tendo por finalidade o julgamento dos crimes de imprensa, e ganhou status constitucional com a Constituição do Império datada de 1824, possuindo, nesse primeiro instante, competência para julgar tanto ações penais quanto cíveis.

Das Constituições brasileiras, foi a de 1946 a que deu maior amplitude à instituição do júri, ao proclamar a sua manutenção, "com a organização que lhe der a lei, contanto que seja sempre ímpar o número dos seus membros e garantido o sigilo das votações, a plenitude da defesa e a soberania dos veredictos. Será obrigatoriamente da sua competência o julgamento dos crimes dolosos contra a vida" (art. 141, §28).

Somente com a Constituição de 1891 esse tribunal foi erigido ao nível de garantia individual, sendo, ainda, deslocado do capítulo do Poder Judiciário para o capítulo das garantias e direitos individuais.

A atual Carta Magna o manteve no rol das garantias fundamentais, seguindo posicionamento já outrora adotado pela Constituição de 1946, com guarida no artigo 5º, inciso XXXVIII, segundo o qual:

XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

a) a plenitude de defesa;

b) o sigilo das votações;

c) a soberania dos veredictos;

d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.


II) Da possibilidade de normas constitucionais serem inconstitucionais

As conclusões que serão apresentadas no presente texto partem da premissa de que é possível que normas que integram o texto originário de uma Constituição sejam eivadas de inconstitucionalidade em face do direito supralegal ou natural ou do próprio consenso social acerca das idéias fundamentais da justiça, devendo assim ser declaradas pela Corte Suprema, teoria esta defendida arduamente pelo renomado jurista alemão Otto Bachof.

Debate-se esse doutrinador afirmando que há princípios constitucionais tão elementares, sendo expressão tão evidente de um direito anterior mesmo à Constituição, que tais situações limitam o legislador constitucional. Assim, seria possível admitir que o próprio poder constituinte originário também fosse em um determinado ponto falho, criando contradições ou antagonismos que somente posteriormente serão identificados.

Aprofundando-nos no tema, é imprescindível distinguir, dentro do gênero "norma constitucional", o que é regra e o que é um princípio constitucional. Os princípios são expressões normativas consolidadas a partir dos valores ou fins predeterminados constitucionalmente, que se destinam a dar o máximo de coerência e harmonia ao ordenamento jurídico criado por uma dada Constituição. Já as regras constitucionais estatuem preceitos normativos, da mesma maneira que as regras jurídicas infraconstitucionais estabelecem um padrão de conduta a ser seguido pelo cidadão diante de uma situação jurídica individual concreta, que pode determinar uma permissão, obrigação ou proibição.

Em virtude de coexistir na Constituição uma série de princípios, sejam eles fundamentais, gerais ou específicos, poderíamos imaginar a presença de uma aparente (e somente aparente) colisão entre eles. Entretanto, é papel dos aplicadores do Direito, através do exercício interpretativo, sanar essas aparentes contradições entre os princípios constitucionais, de maneira a concretizar proporcionalmente os princípios nas situações jurídicas individuais e preservar a unidade do texto maior.

Assim, diante da afirmação supra transcrita, é inevitável concluir que não é possível encontrar princípios constitucionais inconstitucionais, já que a questão se resolveria através do labor interpretativo dos aplicadores da norma, sem que fosse necessário extirpar qualquer dos princípios do texto constitucional.

O que nos restaria analisar seria a possibilidade de existirem conflitos de regras entre si ou das regras para com os princípios, situações que entendemos juridicamente viáveis.

A conhecida divisão entre normas formalmente constitucionais e normas materialmente constitucionais é um dos argumentos para a defesa da possibilidade de existência de regras constitucionais enviadas do vício da inconstitucionalidade, sendo exeqüível reconhecer a superioridade das normas materialmente constitucionais em caso de choque, reconhecimento que deveria ser procedido pelo Supremo Tribunal Federal.

Defendemos no presente estudo possuir o Supremo Tribunal Federal a prerrogativa de declarar inconstitucionais normas do texto da Constituição Federal, tendo em vista o seu papel precípuo de guardião da Constituição em nosso ordenamento jurídico. É o Supremo Tribunal Federal que realiza o controle e a proteção dos preceitos estabelecidos pela Carta Magna, devendo coibir a inconstitucionalidade das leis e atos normativos, ou ainda ordenar que sejam resolvidas as lacunas, quando se tratar de omissão do legislador competente.

Discordamos, dessa maneira, inclusive do posicionamento tomado pelo próprio Supremo Tribunal Federal na ação direta de inconstitucionalidade (Adin) de nº 815-3, proposta pelo Estado do Rio Grande do Sul, relatada pelo Ministro Moreira Alves e publicada no Diário da Justiça, Seção 1, em 10/05/96, p. 15131, a qual pleiteava a declaração de inconstitucionalidade de dispositivo da Constituição Federal de 1988, ação que deixou de ser conhecida por entender o Tribunal Superior que não possuía jurisdição para julgá-la, por ausência de previsão no texto constitucional.

Assim, caso seja argüida a existência de antinomias internas entre regras ou entre regras e princípios, no âmbito da Constituição, estas devem ser solucionadas pelo Supremo Tribunal Federal, independentemente da natureza de tal conflito, seja este advindo do Poder Originário, seja oriundo do Poder Reformador.


III) Da inconstitucionalidade do Tribunal do Júri

O Tribunal do Júri é um órgão colegiado, heterogêneo e temporário, composto por um magistrado de carreira e vinte e um jurados que se sortearão dentre os alistados, dos quais apenas sete integrarão o Conselho de Sentença em cada sessão de julgamento.

É instituição que sempre levantou ódios e paixões, sendo envolta por muita polêmica principalmente nos tempos mais modernos. Cumpriu efetivamente papel histórico de destaque, mas o que ora se defende é que a realidade que o justificava como necessidade social já se exauriu.

Isso porque, conforme já exposto alhures, surgiu o tribunal popular como instrumento de combate a arbitrariedades por parte da monarquia absoluta e de sistemas judiciários fracos; entretanto, no Brasil que hoje se nos apresenta, o Poder Judiciário traz intrinsecamente as características da força e da imparcialidade, não sendo mais necessária a imposição do Tribunal do Júri como forma de participação direta do povo na administração da justiça.

Tampouco merece prosperar a afirmação de que o júri deve permanecer na nossa Constituição Federal em fundamento na tradição, pois a instituição não se encontra profundamente incrustada na consciência do povo brasileiro, ao contrário do que ocorre em outros países.

Ainda, não nos esqueçamos que nosso direito é codificado, de maneira que

(...) apesar da herança ter-se originado na Inglaterra e, depois, pela via da Revolução Francesa, ter-se espalhado pela Europa, chegando ao Brasil, o júri é um tribunal típico de países que adotam o sistema da common law, jamais da civil law, ou seja, não é crível que um país de direito codificado consiga conviver harmoniosamente com um tribunal de decisões meramente consuetudinárias [01].

Corroborando o posicionamento acatado, aponta Guilherme de Souza Nucci a respeito do Tribunal do Júri que:

(...) sua relevância histórica é inegável, mas tal força deixou de ser sua marca a partir do momento em que o Judiciário tornou-se independente e passou a ser constituído de homens probos e libertos do jugo governista. Atualmente, pois, não é instituição única e privilegiada na aplicação da lei ao caso concreto, não devendo ser esse o motivo de sua continuidade [02].

Vale registrar o posicionamento desfavorável à manutenção do júri em nosso ordenamento jurídico adotado por Walter Ceneviva, com o qual concordamos na íntegra:

(...) Elitista na origem, falso na premissa de julgamento do delinqüente pelos seus iguais, exigindo organização dispendiosa numa justiça que vive a reclamar da falta de meios, de destinação restritíssima (só para os crimes dolosos contra a vida), com benefício estatístico absolutório para os que podem defender-se, e destino menos feliz para os desprovidos de meios, é, ao meu ver, uma inutilidade, que só teria justificação ética se estendida, pelo menos, a todos os procedimentos penais [03]."

A previsão de competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida é outro ponto que merece ser atacado. Se os crimes dolosos contra a vida são daqueles que mais atormentam a sociedade e seu executor, quando deixamos que seja esse caso julgado por integrantes do povo é como se exigíssemos que todos os doentes sempre recebessem atendimento por equipe médica da mais alta qualificação, mas ao enfermo de maior gravidade, aquele que sofre de mal até mesmo em "fase terminal", não lhe déssemos essa opção, entregando sua vida a amadores.

Mas não são tão-somente esses pontos referentes ao Tribunal do Júri que merecem ser combatidos. A própria instituição precisa ser repensada, de maneira que se adeque ao restante de nosso ordenamento jurídico ou, caso isso não seja possível, simplesmente o abandone por absoluta incompatibilidade com os demais dispositivos do Texto Maior.

III.A) Da ofensa à organização do Poder Judiciário

Os detratores do instituto do Tribunal do Júri apontam o despreparo técnico dos jurados como motivo para questionar a sua legitimidade. É certo que o fato do juiz ter conhecimentos técnicos não faz com que profira automaticamente sentenças irretocáveis, mas o despreparo dos jurados traz mais insegurança ao réu (e a toda a sociedade), o qual aguarda – e tem isso como direito - um veredicto justo e correto, independentemente de seu subscritor.

Em países como o Brasil, em que o direito é codificado, o magistrado togado é discípulo da lei, não podendo inovar ou decidir contra ela, pois exatamente aí reside a garantia que sustenta o sistema. Existindo o Poder Legislativo, já que não cabe ao Judiciário o papel de elaborar a lei, devendo tão-somente fazer valer a vontade dos legisladores num caso concreto, promovendo, dessa maneira, a tão esperada justiça.

Outrossim, é importante destacar que um magistrado togado goza de garantias constitucionais que o protegem para bem exercer a sua função decisória, garantias essas que não se aplicam aos jurados. O Poder Judiciário cumpre importante missão como grande defensor dos cidadãos contra os eventuais abusos do Estado, sendo justamente por essa razão que o Texto Maior menciona que nenhuma lesão será excluída da apreciação do Poder Judiciário.

Os princípios que regem a atividade da magistratura encontram previsão no art. 93 da Constituição Federal, que traz diretrizes auto-aplicáveis de obediência compulsória pelo legislador infraconstitucional.

Como garantias institucionais, que dizem respeito ao Poder Judiciário como um todo, podemos citar a autonomia orgânico-administrativa (previsão constitucional de competência privativa aos órgãos integrantes do Poder Judiciário, bem como de sua estrutura e funcionamento) e a autonomia financeira (através da elaboração e execução de orçamento próprio). Já como garantias funcionais, concedidas aos magistrados para preservar a sua imparcialidade e independência, citamos as garantias de liberdade (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos) e as de imparcialidade (existência de vedações legais a que são submetidos os membros da magistratura).

À evidência, aos jurados não se aplicam tais garantias, de maneira que é inevitável que restem dúvidas quanto a idoneidade ao final de sua atuação. A própria existência do júri, cada vez que profere em seu veredicto uma solução extralegal, desprestigia a Justiça e o Poder Judiciário, não trazendo a tranqüilidade pela dissolução de um conflito judicial (trazendo, ao contrário, impunidade).

A função de julgar deve possuir a característica do profissionalismo, devendo ser desenvolvida por técnicos preparados para processar e julgar questões muitas vezes complexas, sob pena de assumirmos o aumento dos chamados erros judiciários, os quais são realidade inclusive nos casos levados a julgamento perante magistrados de longa experiência e conhecimento técnico-jurídico.

Conforme bem apontado por Enrico Ferri, em sempre oportuna colocação acerca do tema,

(...) o júri é apaixonado e míope; o sentimento domina-lhe a inteligência; não há necessidade para convencer o júri de estudos jurídicos e sociológicos; basta a declamação, e que declamação!" [04]

Outro ponto imprescindível a destacar é que os juízes leigos estão, sem dúvida, expostos às influências das partes, não gozando, portanto, da mesma imparcialidade da magistratura togada, embora tenham a mesma grande responsabilidade desta.

É possível afirmar, assim, que o Júri aufere prestígio somente entre aqueles que sabem que não têm razão, pois essa seria a única maneira de conseguirem aquilo que, normalmente, não obteriam perante a justiça togada.

Não se pode exigir do jurado o conhecimento jurídico que ele não possui, obrigando-o a decidir nos exatos termos em que decidiria um juiz togado. Tal como posto, e enquanto puder decidir se distanciando da legalidade e das provas dos autos, o Tribunal do Júri não pode funcionar, devendo ser retirado de nosso ordenamento através de ação direta de inconstitucionalidade a ser proposta perante o Supremo Tribunal Federal.

III.B) Falta de motivação e publicidade nas decisões proferidas pelo Tribunal do Júri

De acordo com o inciso IX do art. 93 da CF, com redação dada pela EC nº 45/2004, dispositivo que ao mesmo tempo buscou preservar o direito à intimidade e o interesse público à informação,

IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.

O constituinte, assim, especificou o princípio da publicidade no preceito em epígrafe, dirigindo-o a todos os órgãos integrantes do Poder Judiciário, por ser ele decorrência lógica do devido processo legal.

Conforme defendido por ilustre doutrina, significa dizer que, à luz desse consectário do devido processo legal, as sessões secretas dos tribunais foram banidas, bem como todas as formas de se vedar o acesso ao conhecimento das decisões judiciais, respeitadas as ressalvas legais relativas à salvaguarda do interesse público; assim, o que era antes uma garantia prevista em sede processual transformou-se, a partir da promulgação da Carta de 1988, numa prerrogativa de índole constitucional [05].

A publicidade pode ser considerada um vetor para os integrantes da Administração Pública, de qualquer dos Poderes, e diz respeito à obrigação de levar ao conhecimento de todos os seus atos e em todos os seus termos, a fim de dar transparência aos padrões de conduta tomados e conferir a possibilidade de qualquer pessoa questionar e controlar a atividade exercida pelo Poder Público, que deve sempre estar pautada no interesse público.

O mencionado princípio é profundamente desrespeitado no Tribunal do Júri, sem que exista justificativa plausível para tanto, no que toca ao "sigilo das votações".

Em contrapartida ao disposto no artigo supra transcrito, através do sigilo das votações aplicado ao Tribunal do Júri, temos que a opinião dos jurados fica imune a interferências externas, protegendo-se a livre manifestação de pensamento. Na sala secreta, através da distribuição de cédulas para coletar os votos, o vetor constitucional processual penal do sigilo das votações é alvo de observância rigorosa, a fim de resguardar a decisão dos jurados, tudo sempre sob pena de nulidade de toda a sessão de julgamento, sem que exista intimidade de interessados a proteger.

O princípio da motivação das decisões judiciais é igualmente uma conseqüência lógica do devido processo legal, já que em um Estado Democrático de Direito não se admite que os atos do Poder Público sejam expedidos em desapreço às garantias constitucionais, dentre elas a imparcialidade do magistrado.

Fundamentar uma decisão judicial significa dar as razões, de fato e de direito, pelas quais se justifica a procedência ou a improcedência do pedido. Nossa Carta Maior inadmite a chamada motivação implícita, que seria aquela em que o julgado não evidencia um raciocínio lógico, direto, explicativo e convincente da postura adotada.

A motivação das decisões proferidas pelo Poder Judiciário, sejam jurisdicionais ou administrativas, corrobora um princípio tão basilar do ordenamento que o legislador constituinte considerou, no inciso IX do art. 93, nulas, completamente ineficazes, aquelas decisões eivadas do vício.

Modernamente, o princípio da motivação das decisões do Poder Judiciário é concebido como garantia da ordem política ou garantia da própria jurisdição, já que o mandamento constitucional não mais se dirige apenas às partes, mas também à comunidade como um todo, que, tomando conhecimento do teor da decisão proferida, terá condições de verificar se o magistrado agiu de maneira própria e imparcial em sua sentença.

Nesse contexto, o vetusto sistema da íntima convicção do júri apresenta-se como uma verdadeira afronta ao princípio constitucional da motivação das decisões judiciais. No sistema da íntima convicção, o julgador não precisa fundamentar sua decisão e muito menos obedecer critérios de avaliação das provas, e a intuição da verdade adquire grande prestígio, fazendo desmoronar a segurança jurídica que se espera das decisões judiciais.

Se decisão de mérito há, deve esta ser motivada, pois a motivação tem a finalidade de estabelecer limites ao exercício do poder jurisdicional, sendo, portanto, uma garantia do cidadão contra o arbítrio do poder estatal.

Não faz sentido que o poder emane do povo e seja exercido em seu nome, por intermédio dos seus representantes legais, mas quando diretamente o exerça não o fundamente para que possa lhe dar transparência. Todos os atos do Poder Judiciário devem ser motivados, e o júri não pode fugir dessa responsabilidade ética.

O sistema da íntima convicção é o que há de mais retrógrado no júri, pois o acusado e a sociedade não sabem os motivos daquele ato de império, seja absolvendo ou condenando aquele que se submete a julgamento.

Em verdade, é sabido que a razão de ser desse sistema é histórica, pois no tribunal do júri, quando do seu surgimento, todos conheciam o caso que estava sendo levado a julgamento, logo não havia o que fundamentar. Contudo, na sociedade atual, não mais há espaço para uma decisão sem arrimo e justificativa em meios idôneos de prova, sendo esta uma garantia das partes sob o contraditório, razão pela qual se deve refutar por completo o sistema da íntima convicção.

Outrossim, possibilitar que os jurados se afastem da legislação ao julgar – e ainda mais sem qualquer tipo de fiscalização efetiva sobre essa decisão - é permitir que se tornem legisladores, usurpando atribuição dos exercentes de cargo eletivo no Poder correspondente.

III.C) Da ofensa à garantia de razoável duração do processo e dos meios que garantam a celeridade de sua tramitação (CF, art. 5º, inciso LXXVIII)

Atendendo a anseios da população brasileira que lança mão do Poder Judiciário para solucionar contendas, a EC nº 45/2004 acrescentou o inciso LXXVIII ao artigo 5º da Constituição Federal, a fim impedir que a justiça tardia não se converta em injustiça, pregando que: "LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação".

É certo que o dispositivo não representa nenhuma inovação concreta, pois já se encontrava positivado enquanto princípio constitucional implícito; entretanto, toda e qualquer norma jurídica que evoque ou garanta direitos fundamentais constitui redundância benéfica.

Relevante, ao menos, o aspecto pedagógico do novo dispositivo: o cidadão não só tem direito ao processo administrativo e judicial, mas também tem direito a sua razoável duração e conseqüente celeridade de tramitação. O direito à celeridade da decisão nas instâncias judicial e administrativa alcança as pessoas físicas ou naturais, as pessoas jurídicas ou morais e também as fundações e os entes despersonalizados.

O artigo constitucional contribui para a efetividade do princípio da duração razoável do processo, não só no processo penal, mas em todas as dimensões em que a dignidade humana necessite ser tutelada. Conduz o leitor aos desdobramentos necessários à aplicação do princípio inserido no texto da Constituição Federal como um dos direitos fundamentais do cidadão, o que, iniludivelmente, servirá de estímulo a sua efetividade.

As expressões "razoável duração do processo" e "celeridade na sua tramitação" caracterizam como processual o direito fundamental ora declarado, tendo caráter instrumental à realização do direito material, pois este será, se for o caso, reconhecido e implementado pela decisão que é o escopo do processo.

Assim, o julgamento levado a efeito pelo Tribunal do Júri, em comparação com o do juiz togado, é claramente mais moroso, já que possui duas fases pré-definidas (judicium accusationis e judicium causae) e apresenta um rendimento estatístico de resultados baixo para o tempo e pessoal desgastantemente despendidos, desrespeitando o tribunal popular mais um princípio constitucional.

Mesmo o advento da aprovação das novas leis atualmente em trâmite no Congresso Nacional não será suficiente para alterar o quadro que ora se apresenta, de maneira que pouco ou quase nada ajudarão esses novos diplomas a dar maior celeridade ao lento procedimento do júri.

É impossível fugir da conclusão de que o procedimento do júri se encontra na contramão de direção de um ordenamento jurídico moderno, que cada vez mais busca fundamento de validade na celeridade e prestação rápida da jurisdição, devendo ser alterada a triste realidade brasileira de possuir um Poder Judiciário que é um dos mais morosos do globo.


IV) Conclusões

O presente texto procurou abordar a questão da possibilidade de existência de normas constitucionais, oriundas do Poder Constituinte originário, serem inconstitucionais, usando a resposta positiva como premissa para defender a inconstitucionalidade da instituição do Tribunal do Júri no Brasil.

Isso porque no rígido sistema do direito codificado não há espaço para o Tribunal do Júri, que afronta drasticamente os ditames de organização do Poder Judiciário, principalmente no que toca à ausência de garantias institucionais e funcionais dos jurados, bem como desrespeita os princípios da publicidade, motivação e garantia de razoável duração do processo e dos meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

A figura do júri pode e deve ser extraída do capítulo que trata das garantias e direitos fundamentais individuais do cidadão, sem que, com isso, nosso país perca sua feição de Estado Democrático de Direito, já que a realidade do Poder Judiciário brasileiro não é a mesma da remota origem do instituto, sendo atualmente independente, forte e imparcial.

Em relação à competência para exercer o controle de constitucionalidade das normas aprovadas pelo Poder Constituinte Originário, conclui-se sem hesitação que esta cabe ao Supremo Tribunal Federal, enquanto guardião máximo da Constituição.

Há que se fomentar o debate doutrinário, tão escasso acerca do tema, e há que se provocar novamente o Supremo Tribunal Federal a considerar a possibilidade de declarar inconstitucionais normas integrantes da Constituição Federal, e fazer com que esse órgão do Poder Judiciário invada o mérito da questão, decidindo através de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelos legitimados de direito pela inconstitucionalidade do Tribunal do Júri, como forma de restabelecer a harmonia do ordenamento jurídico processual criminal brasileiro.

Dentro de um ordenamento jurídico extremamente lógico e seguro, como geralmente se apresenta o brasileiro, não há espaço para uma justiça que signifique mero jogo de sorte ou, como muitas vezes se verifica, de azar.


V – Bibliografia

BACHOF, Otto. Normas Constitucionais inconstitucionais? Coimbra: Editora Atlântida, 1977

BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 7ª ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional n. 53/2006. São Paulo: Saraiva, 2007.

CENEVIVA, Walter. Direito constitucional brasileiro. 2ª ed. ampl.. São Paulo: Saraiva, 1991.

MACIEIRA, Antonio. Do júri criminal. Lisboa: Imprensa Nacional, p.83.

NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1999.


Notas

1.                    NUCCI, Guilherme de Souza, Júri: Princípios constitucionais. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1999, p. 191.

2.                    Ibid, p. 187.

3.                    Direito constitucional brasileiro, 2ª ed. ampl., São Paulo, Saraiva, 1991, p.63.

4.                    Apud MACIEIRA, Antonio. Do júri criminal. Lisboa: Imprensa Nacional, p.83.

5.                  BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 7ª ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional n. 53/2006. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 944.

 

 

* Promotora de Justiça em Minas Gerais, pós-graduada em Direito Processual Penal pela Escola Paulista de Magistratura.

 

 

Disponível em:

http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11830

Acesso em: 08 out. 2008.