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Marcos Caires Luz*
I – Parte. O
jurado absolve o acusado?
O Tribunal
do Júri nunca foi unanimidade entre nós juízes, promotores e advogados. Está
previsto no petrificado artigo 5.º, inciso XXXVIII, [01] da
Constituição da República. É uma realidade constitucional cuja observância e
obediência obriga a todos.
Os jurados,
pessoas do povo, sabidamente são juízes de fato. [02] Ao comporem o
Conselho de Sentença, os jurados têm um único compromisso: apreciar os fatos e
julgá-los conforme sua consciência e ditames de justiça. Outro, aliás, não é o
conteúdo da solenidade de juramento estampado no antigo artigo 464 do Código de
Processo Penal, integralmente reproduzido no artigo 472 da recém publicada Lei
11.689, de 9 junho de 2008, norma federal que promoveu diversas modificações no
procedimento do Júri.
Avançando
no tema, importa dizer que a Constituição traça um quadro mínimo da
ritualística procedimental do Tribunal do Júri. Por si só, estabelece
competência do Tribunal Popular para apreciar e julgar os crimes dolosos contra
vida, [03] garantindo às partes, leia-se acusação e defesa, paridade
de armas, [04] respeitando-se sempre o devido processo legal, o
contraditório, a ampla defesa e a plenitude dela. Traz, implicitamente,
garantia ao não cerceamento da defesa nem tampouco da acusação. Veda a acusação
deficiente. Proíbe a defesa técnica deficiente. Como imperativo lógico, protege
os veredictos dos Senhores Jurados com o manto da soberania, [05]
que, numa visão didático constitucional, a) afirma a qualidade de juízes dos
jurados sorteados para formarem o Conselho de Sentença com a correspondente
obrigação de todos em respeitar o conteúdo de suas decisões; [06] b)
garantir uma metodologia eficiente, infalível, absolutamente fiel à convicção
dos jurados, livre de desembaraço, pressões e influências internas e/ou
externas, quer durante a tomada de decisão dos jurados, quer quando da aferição
ou reprodução das suas decisões. [07]
O Código de
Processo Penal, lei ordinária que é, deve estrita obediência ao desenho
constitucional conferido ao Tribunal Popular. Quer dizer que, no exercício da
organização procedimental do Tribunal do Júri, tem obrigação de respeitar as
balizas constitucionais sobre o tema, delas não podendo se furtar sequer por um
fugidio espaço de tempo ou limite. Tem o legislador infraconstitucional
obrigação de obedecer aos parâmetros principiológicos [08] da
Constituição, no lado norte e no lado sul, no leste e no oeste, sob pecha de
flagrante inconstitucionalidade.
Infelizmente,
esse quadro mínimo constitucional foi desrespeitado pelo legislador na Lei
11.689, de 9 junho de 2008, especialmente, no inciso III e no § 2.º do artigo
483 do Código de Processo Penal.
Esses
dispositivos criam a probabilidade da FALSA MAIORIA.
A
matemática, ciência divinamente exata, explica como a vontade de diferentes
jurados votando isoladamente, em franca minoria, pode virar dois, três ou
quatro votos, maioria, no resultado final do julgamento. O exemplo adiante
facilitará o entendimento.
João, num
caso fictício, policial militar, foi denunciado e pronunciado por ter no dia
09.06.2008 efetuado dois disparos contra a civil Maria, levando-a ao óbito.
Submetido a julgamento, a defesa sustentou quatro teses em plenário: a) Legítima
Defesa Real Própria, b) Legítima Defesa Real de Terceiro, c) Estrito
Cumprimento do Dever Legal e d) Obediência à Ordem Não Manifestamente Ilegal de
Superior Hierárquico. Colhida a manifestação dos Senhores Jurados e depois de
confirmadas autoria e materialidade delitiva, passou-se para votação das teses
defensivas. O Jurado n. 1 foi favorável à primeira tese de defesa e todos os
demais a rejeitaram. Na segunda tese, o Jurado n. 2 acolheu o argumento
defensivo, não sendo seguido pelos demais. Na terceira, o Jurado n. 3 entendeu
estarem presentes os requisitos do estrito cumprimento do dever legal, não
sendo seguido pelo demais. Na quarta tese, só o Jurado n. 4 acatou o argumento
de que o policial atuou segundo ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico,
os demais a refutaram.
Qual o
resultado? Colhendo-se os votos na metodologia anterior, na qual a matemática
continua a ser ciência exata, todas as teses de defesa teriam sido rejeitadas
por maioria de seis votos contra uma minoria de um voto em cada uma delas. O
réu teria sido, portanto, condenado. [09] A Soberania da
manifestação dos Senhores Jurados teria sido respeitada, tudo conforme apregoa
a Constituição.
E agora?
Com a metodologia do recém editado artigo 483 do Código de Processo Penal ocorreria
o mesmo? A resposta é NÃO. Tal artigo, em relação ao exemplo apresentando e que
é possível ocorrer com muita freqüência, criou-se uma FALSA MAIORIA.
Explicamos: com a concentração de todas as teses defensivas em um único
quesito, qual seja, o jurado absolve o acusado?, tal como inserido no inciso
III do artigo 483 do Código de Processo Penal, o réu seria absolvido pela FALSA
MAIORIA DE QUATRO VOTOS, CONTRA A IGUALMENTE FALSA MINORIA DE TRÊS VOTOS.
Em nosso
exemplo, cada um dos quatro primeiros jurados votou pelo reconhecimento de
diferentes teses de defesa, ao final, aquilo que seria um voto minoritário
contra seis para cada uma das linhas defensivas, num passe de mágica, magia
negra, diríamos nós, virou quatro e o réu foi absolvido. [10] A
soberania dos veredictos fustigada.
Dito isso,
percebe-se que a metodologia adotada pelo legislador no artigo 483 do Código de
Processo Penal, com a redação dada pela Lei 11.689, de 9 junho de 2008, é
matematicamente falha, atentando contra a exigência constitucional da absoluta
eficiência na aferição da vontade manifestada pelos Senhores Jurados, bem como,
atentando contra a determinação de que a decisão dos jurados será tomada por
uma VERDADEIRA MAIORIA, conforme o artigo 488 do vigente Código de Processo
Penal reproduzido no artigo 489 do texto trazido pela Lei 11.689, de 9 junho de
2008.
II – Parte. A
metodologia é falha, portanto, inconstitucional. O que fazer?
A solução
seria, num plano concreto, difuso, aplicar a redação inaugurada pelo artigo 483
do Código de Processo Penal quando única for a tese defensiva de excludente de
ilicitude e/ou de isenção de pena, mantendo-se a forma anterior [11]
de quesitação para os casos em que a defesa traga em plenário diferentes teses
destes tipos. [12]
Já em um
plano de controle concentrado de constitucionalidade, por ser norma federal,
exercido exclusivamente pela Suprema Corte, possível a suspensão liminar de
todo o artigo ou, especialmente, do inciso III e do § 2.º do artigo 483 do Código
de Processo Penal, "repristinando" a redação anterior com base no
artigo 11, § 2.º, da Lei 9.868/98, para que em posterior juízo de mérito, os
Senhores Ministros deliberem possivelmente pela inconstitucionalidade do
dispositivo em razão dos argumentos expostos, ou, num juízo de
inconstitucionalidade sem redução de texto, [13] restrinjam a
aplicação da nova metodologia apenas para os casos em que a defesa trouxer ao
plenário única tese defensiva de exclusão de ilicitude e/ou de isenção de pena.
A sorte está
lançada. Ao prevalecer redação atual, talvez, num futuro breve, dezenas,
centenas ou milhares de julgamentos do Júri Popular tenham de ser anulados e
realizados novamente. Tudo absolutamente contra o princípio constitucional da
otimização dos trabalhos judiciários inserido no direito fundamental à duração
razoável dos processos previsto no inciso LXXVIII do artigo 5.º da Constituição
Federal de 1988.
Referências e
obras consultadas
Mirabete,
Julio Fabbrini. Processo penal, 11. ed., São Paulo, Atlas, 2001.
Reale,
Miguel. Teoria tridimensional do direito, 5. ed., São Paulo, Saraiva,
2006.
Silva, José
Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, 21. ed., São Paulo,
Malheiros, 2002.
Silva, José
Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, 6. ed., São Paulo,
Malheiros, 2002.
Tese 116
MP/SP, ano 1998, subscrita por Luiz a. G. Marrey e Arésio Leonel de Souza.
Tourinho
Filho, Fernando da Costa. Processo penal, 23. ed., São Paulo, Saraiva,
2001, v. I, II, III e IV.
NOTAS
1.
Art.
5.º, XXXVIII, da CF: "É reconhecida a instituição do júri, com a
organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o
sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o
julgamento dos crimes dolosos contra a vida".
2.
"Na
formulação de quesitos é inviável indagar aos jurados, que se tem por leigos,
teses ou conceitos jurídicos" (STJ – 5.ª T. – Resp. 104.056 – rel. Jorge
Scartezzini – j. 21.10.1999 – DJU 22.11.1999, p. 174.).
3.
Ver
também o artigo 125, § 4.º, da Constituição Federal, reafirmando esta
competência do Tribunal do Júri, se a vítima for civil, mesmo para os crimes
praticados por militares. Previsão há muito trazida para o ordenamento por meio
da Lei federal 9.299/1996 e agora inserida no texto constitucional por meio da
Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004, DOU 31.12.2004.
4.
Repudiamos
qualquer tentativa de interpretação no sentido de a despeito de firmar a
igualdade das partes no processo, em verdade, tratar uns mais iguais do que
outros, ainda que sob o argumento da plenitude de defesa.
5.
A
Emenda Constitucional n. 1, de 17.10.1969, tido por alguns como nova
constituição, manteve a instituição do Júri, mas lhe retirou a soberania dos veredictos
expressa na Constituição de 1967. Muito se discutiu a respeito do assunto, mas
a maioria dos doutrinadores entendia ser a soberania dos veredictos princípio
inerente à instituição e, por isso, embora ausente do texto constitucional,
continuava em vigor, conforme noticia Ruy Cardoso de Mello Tucunduva (Da
apelação com efeito devolutivo no processo dos crimes de competência do júri,
Jutitia 85/167.). O corajoso Magistrado Arruda Campos – mercê de suas opiniões
pessoais teve os direitos políticos cassados, perdendo o cargo de juiz; fora,
anos mais tarde, com muita justiça, reintegrado – afirmou: "Sem
soberania, o Júri deixa de ser uma instituição, para se reduzir a uma ‘forma’
de julgamento" (ALENCAR, Ana Valderez A. N. de. Júri. A Soberania dos
Veredictos. Revista de Informação Legislativa, out.-dez.,, p. 399-1970).
Quando se fala desse tema, difícil é se olvidar a pertinente advertência de
Ruy:"Garantir o Júri não basta para garantir-lhe o nome. Há de
garantir-lhe a substância, a realidade, o poder. Do contrário, a frase
constitucional zombaria do senso comum" (A evolução do Júri - p. 15 -
Rio - 1.919) A respeito da soberania dos veredictos, doutrinariamente nos
ensina o mestre Frederico Marques o seguinte: "Os veredictos são
soberanos, porque só os veredictos é que dizem se é procedente ou não a
pretensão punitiva" (O júri no direito brasileiro. 2. ed., São
Paulo, Saraiva, 1955, p. 73, apud Tese 116 MP/SP, ano 1998, subscrita por Luiz
A. G. Marrey e Arésio Leonel de Souza.).
6.
Não
desconhecemos possibilidade de se fazer um juízo de demérito do conteúdo das
decisões dos Senhores Jurados na esfera judicial. O Tribunal, ao anular a
decisão dos jurados, sob o argumento da decisão manifestamente contrária à
prova dos autos (Código de Processo Penal, 593, III, d), na verdade,
aplica outros princípios constitucionais notadamente elásticos: dignidade da
pessoa humana, racionalidade e outros. Crucial mencionar, submetendo-se o réu a
novo julgamento pelos mesmos fatos e posicionando-se o Tribunal Popular em
mesmo sentido, será esse julgamento definitivo e aí não importa mais saber
se a decisão foi ou não manifestamente contrária prova dos autos, será o
posicionamento oficial do Estado-juiz sobre o caso. O controle de demérito da
decisão do Tribunal Popular pode ser realizado uma única vez em cada processo,
provocável pela acusação e ou pela defesa, conforme o artigo 593, III, d.
7.
O
sigilo das votações é, senão, um reforço ao que foi escrito.
8.
Nossa
afirmação de que o quadro mínimo constitucional deve ser respeitado pelo
legislador infraconstitucional, longe de ser simples força de expressão, tem
como base os ensinamentos de José Afonso da Silva: "Princípios
jurídicos-constitucionais são princípios constitucionais genéricos
informadores da ordem jurídica nacional. Decorrem de certas normas
constitucionais e, não raro, constituem desdobramentos (ou princípios
derivados) dos fundamentais, como o princípio da supremacia da constituição e o
conseqüente princípio da constitucionalidade, o princípio da legalidade, o
princípio da isonomia, o princípio autonomia individual, decorrente da
declaração dos direitos, o da proteção social dos trabalhadores, fluinte de
declarações dos direitos sociais, o da proteção da família, do ensino e da
cultura, o da independência da magistratura, o da autonomia municipal, os da
organização e representação partidária, e os chamados princípios-garantias (o
do nullum crimen sine lege e da nulla poena sine lege, o do devido
processo legal, o do juiz natural, o do contraditório entre outros, que figuram
nos incisos XXXVIII a LX do artigo 5.º)" (Curso de direito
constitucional positivo, 21. ed., São Paulo, Malheiros, 2002, p. 93.).
9.
Aqui
dois mais dois são quatro.
10.
Infelizmente
agora dois mais dois são cinco, seis ou sete. Pobre matemática.
11.
A
base de sustentação da utilização da metodologia anterior seriam os próprios
quadros mínimos constitucionais abordados no início do texto.
12.
Se
a defesa trouxer para plenário mais de uma tese defensiva com base nas causas
de exclusão de ilicitude e/ou isenção de pena previstas no ordenamento jurídico
– inclusive as supralegais, por isso, propositalmente, não utilizamos o termo
Código Penal –, a metodologia de reprodução da deliberação dos Senhores Jurados
sempre será inexata, ao menos que exista unanimidade dos jurados em todas elas.
13.
Particularmente
acreditamos não ser constitucionalmente conveniente manter duas metodologias de
quesitação. O melhor mesmo seria reputar o dispositivo mencionado de todo
inconstitucional, retirando-o do sistema, voltando a uniformizar a metodologia
dos quesitos e da apuração dos votos na sistemática anterior até que o
legislador, no exercício da Soberania Parlamentar, num juízo tridimensional
Realiano de fato, valor e norma, delibere por outra fórmula que obedeça às
diretrizes constitucionais e à exatidão da matemática.
* Juiz de Direito no Paraná.
Especializando em Direito Público pela PUC Minas.
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11484
Acesso em: 22 ago.
2008.