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Rômulo de Andrade Moreira*
A Lei nº. 11.690/2008, que entrará em vigor no dia 11 de agosto de 2008
[1], alterou alguns dispositivos do Código de Processo Penal relativos à prova,
além de outros, como veremos a seguir.
Permanecemos, como não poderia ser diferente, com o sistema do livre
convencimento fundamentado, pois diz o novo art. 155 que o "o juiz formará sua convicção pela livre
apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo
fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos
colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e
antecipadas." (grifo nosso).
Lamentavelmente acrescentou-se o advérbio exclusivamente que não
constava do texto do anteprojeto entregue ao Ministério da Justiça pela
Comissão presidida por Ada Pelegrini Grinover e que deu origem ao Projeto de
Lei nº. 4.205/2001. [2]
Se é verdade que a expressão "prova produzida em contraditório judicial" fortalece a
exigência constitucional da observância do devido processo legal, o certo é que
o acréscimo do referido advérbio de exclusão fez cair por terra o que desejavam
os autores do anteprojeto.
Ao prescrever que o Juiz não pode fundamentar a sua decisão exclusivamente
nos atos investigatórios, a contrario
sensu, defere-se ao Magistrado a possibilidade de motivar a sua sentença
com base em alguns elementos informativos colhidos na investigação (ainda que
não todos), o que é uma afronta à Constituição Federal. A lei deveria sim
proibir categoricamente a utilização de quaisquer elementos informativos
adquiridos na primeira fase da persecutio
criminis, salvo, evidentemente, as provas irrepetíveis, antecipadas e
produzidas cautelarmente.
Como se sabe, na fase investigatória, que é inquisitiva, não se permite
o exercício pleno do contraditório, nem tampouco a ampla defesa o que macula
qualquer decisão tomada com base em elementos colhidos naquela fase anterior.
Assim, salvo as ressalvas feitas pela lei (as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas), aliás,
perfeitamente compreensíveis, os atos investigatórios produzidos na peça
informativa devem ser repetidos para que valham como meios de prova idôneos
para o julgador. [3]
Ressalve-se que tais provas irrepetíveis, cautelares e antecipadas devem
se submeter, quando possível, ao contraditório prévio e ser produzidas na
presença de um Juiz de Direito, do Ministério Público e de um defensor (seja
dativo ou constituído), salvo absoluta impossibilidade, como no caso da realização
urgente de um exame de corpo de delito; nesta última hipótese, difere-se o
contraditório para a fase judicial.
Prova irrepetível é aquela que não pode mais ser reproduzida em Juízo,
em razão, por exemplo, de terem desaparecidos os vestígios do crime, o que
impossibilitará a realização de um novo exame de corpo de delito
(ressalvando-se, como dito, a possibilidade de contestação do laudo pericial
realizado, mesmo porque, segundo o art. 182 do Código de Processo Penal, não se
trata de um meio de prova de idoneidade absoluta); outro exemplo é o depoimento
da vítima prestado durante o inquérito policial, quando esta já tenha falecido
na época da instrução criminal.
No art. 225 do Código de Processo Penal temos um exemplo de prova
antecipada: "Se qualquer
testemunha houver de ausentar-se, ou, por enfermidade ou por velhice, inspirar
receio de que ao tempo da instrução criminal já não exista, o juiz poderá, de
ofício ou a requerimento de qualquer das partes, tomar-lhe antecipadamente o
depoimento.". Neste caso, a ouvida de uma "testemunha de
defesa" antes de uma "de acusação", invertendo-se a ordem
determinada pelo Código (art. 400 com a redação dada pela Lei nº. 11.719/08) e
exigida pelo princípio do contraditório, não gerará nulidade, desde que a
providência tenha sido realmente imprescindível.
Como prova de natureza cautelar, cita-se a busca e apreensão
disciplinada nos arts. 240 e seguintes do Código de Processo Penal, com as
ressalvas feitas em alguns daqueles dispositivos, a saber: art. 240, § 1º., f
(cfr. art. 5º., XII da Constituição Federal), art. 241 (quando dispensa a
expedição de mandado), art. 242 (ordem determinada de ofício pelo Juiz, ferindo
o sistema acusatório). Obviamente que como toda medida cautelar, deve-se
atentar para os seus conhecidos pressupostos (periculum in mora e fumus
commissi delicti), sem os quais será ela incabível e, por conseguinte,
não valerá para subsidiar uma sentença. Ademais, tais provas devem ser aquelas
"consideradas urgentes e
relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida",
segundo complementa o novo art. 156, I.
O parágrafo único do art. 155 prescreve, tal como conhecíamos, que
"somente quanto ao estado das
pessoas serão observadas as restrições estabelecidas na lei civil";
a propósito, já ensinava Câmara Leal que "a prova do estado das pessoas fica subordinada às regras civis para sua
produção" [4], como no casamento, a idade, filiação, etc. Aliás,
exatamente por isso, quando se trata de questão prejudicial relativa ao estado
civil das pessoas, o Juiz da ação penal deve deixar a solução da controvérsia
para o Juiz Cível, pois se trata de uma "questão prejudicial de devolução
obrigatória" (art. 92 do Código de Processo Penal). Na verdade, como
explica Antonio Scarance Fernandes, "o que é obrigatória ou facultativa é a suspensão do processo em face da
existência de prejudicial." [5]
O novo art. 156 repete, em parte, o atual, ao dizer que "a prova da alegação incumbirá a quem a fizer", facultando-se, porém, ao Juiz, de
ofício o seguinte:
"I – ordenar, mesmo
antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas
urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade
da medida;
"II – determinar,
no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de
diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante."
Lamentavelmente continua o nosso Código de Processo Penal estabelecendo
uma regra só aplicável para os processos cíveis, qual seja a de caber o ônus da
prova a quem alega. Tal disposição é absolutamente inaplicável em processo
penal, onde o ônus da prova é sempre da acusação, em razão dos princípios da
presunção de inocência e do in dubio
pro reo. Estabelecer simples e categoricamente que "a prova da alegação incumbirá a quem a fizer",
repetindo o Código de Processo Civil (art. 333, I e II), é fazer tábula rasa do
referido princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º., LVII da
Constituição Federal).
Aliás, encontramos na jurisprudência uma ou outra decisão que faz recair
o ônus da prova sobre os ombros da acusação, ainda que a defesa alegue algum
fato impeditivo, modificativo ou extintivo. Neste sentido, por exemplo, esta
decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região:
"Cabe à acusação,
preleciona o jurista Fernando da Costa Tourinho Filho, ´provar a existência do
fato e demonstrar sua autoria. Também lhe cabe demonstrar o elemento subjetivo
que se traduz por dolo ou culpa. Se o réu goza de presunção de inocência, é
evidente que a prova do crime, quer a parte objecti, quer a parte subjecti,
deve ficar a cargo da acusação` (Processo Penal. 14.ed. Saraiva: São Paulo,
1993. v. III, p. 213). Assim, não tendo o Ministério Público Federal arcado com
o ônus material de provar a imputação penal atribuída ao réu na denúncia,
encargo que lhe é conferido pelo art. 156, 1ª parte, do CPP, deve ser reformada
a r. sentença condenatória em relação aos crimes dos arts. 334, § 1º, alínea
"c", e 288, ambos do CP." (Apelação nº.
2005.04.01.009927-8).
No mesmo sentido, decidiu-se no Tribunal Regional Federal da 2ª. Região:
"Necessidade de se harmonizar as
regras do ônus da prova com o princípio processual penal do in dubio pro reu, diante do qual resta
que não faz sentido exigir que o próprio acusado prove que não praticou o
crime, ônus esse que cabe ao Estado, demonstrando que o agente efetivamente
violou o tipo penal." (Apelação nº. 2002.50.01.005932 – 9).
Mesmo no Superior Tribunal de Justiça, como se observa do julgado a
seguir transcrito:
"Habeas
Corpus nº. 27.684 - Relator: Ministro Paulo Medina: (...) O órgão
acusador tem a obrigação jurídica de provar o alegado e não o réu demonstrar
sua inocência.2. É característica inafastável do sistema processual penal
acusatório o ônus da prova da acusação, sendo vedado, nessa linha de raciocínio,
a inversão do ônus da prova, nos termos do art.1 56 do Código de Processo
Penal. 3. Carece de fundamentação idônea a decisão condenatória que impõe ao
acusado a prova de sua inocência, bem como ignora documento apresentado pela
Defesa a teor dos artigos 231 e 400 do Código de Processo Penal."
Do voto lê-se:
"(...) Estarrecido estou com o teor do
decreto condenatório, porquanto o trecho transcrito corresponde à integralidade
da fundamentação. Nada mais há; sequer uma só referência à prova produzida pelo
órgão ministerial, seja quanto aos fatos objetivamente considerados, seja com
relação ao elemento subjetivo do tipo, ou seja, o intuito de fraudar. Não houve
qualquer apreciação das provas produzidas pela acusação para firmar o juízo
condenatório, mas, ao contrário, afirmou-se que não logrou o acusado provar
inverídicos os fatos a ele imputados, numa inaceitável inversão do ônus da
prova ao presumir, juris tantum , como verdadeira a narrativa do Parquet ,
incumbindo ao réu o dever de desconstituir tal presunção. É notório que o órgão
acusador tem a obrigação jurídica de provar o alegado e não o réu demonstrar
sua inocência. É característica inafastável do sistema processual penal
acusatório, como retratado no art. 156 do Código de Processo Penal. Nesse sentido,
afirma AFRÂNIO SILVA JARDIM: ´O réu apenas nega os fatos alegados pela
acusação. Ou melhor, apenas tem a faculdade de negá-los, pois a não impugnação
destes ou mesmo a confissão não leva a presumi-los como verdadeiros,
continuando eles como objeto de prova de acusação.Em poucas palavras: a dúvida
sobre os chamados fatos da acusação leva à improcedência da pretensão punitiva,
independentemente do comportamento processual do réu. Assim,o ônus da prova, na
ação penal condenatória é todo da acusação/ e relaciona-se com todos os fatos
constitutivos do poder-dever de punir do Estado/,afirmado na denúncia ou
queixa; conclusão esta que harmoniza a regra do art. 156, primeira parte, do
Código de Processo Penal com o salutar princípio in dubio pro reo.` (Direito Processual
Penal. Rio de Janeiro: forense, 2000, p. 214)."
Esta decisão do Superior Tribunal de Justiça traduz perfeitamente a
idéia de que o Processo Penal é, antes de tudo, "um sistema de garantias face ao uso do poder do Estado."
Para Alberto Binder, por meio do Processo Penal "procura-se evitar que o uso deste poder converta-se em um fato
arbitrário. Seu objetivo é, essencialmente, proteger a liberdade e a dignidade
da pessoa" [6]
Atentemos, outrossim,
para a lição do mestre argentino Julio Maier, segundo a qual "la carga de la prueba de la inocencia no le
corresponde al imputado o, de otra manera, que la carga de demonstrar la
culpabilidad del imputado le corresponde al acusador y, también, que toda la
teoria de la carga probatória no tiene sentido en el procedimiento penal. (...)
El imputado no tiene necessidad de
construir su inocencia, ya construida de antemano por la presunción que lo
ampara, sino que, antes bien, quien lo condena debe destruir completamente esa
posición, arribando a la certeza sobre la comisión de un hecho punible."
[7]
Concordamos também com Alexandre Bizzotto e Andreia de Brito Rodrigues,
que "na persecução penal, todo
ônus probatório é da acusação." [8]
Também no Supremo Tribunal Federal:
"Habeas
Corpus nº. 73338, de 19/12/1996 - EMENTA: HABEAS CORPUS - PROVA CRIMINAL
- MENORIDADE - RECONHECIMENTO - CORRUPÇÃO DE MENORES (LEI Nº 2.252/54) -
INEXISTÊNCIA DE PROVA ESPECÍFICA - IMPOSSIBILIDADE DE CONFIGURAÇÃO TÍPICA DA
CONDUTA IMPUTADA AO RÉU- CONDENAÇÃO POR OUTROS ILÍCITOS PENAIS - EXACERBAÇÃO DA
PENA - DECISÃO PLENAMENTE MOTIVADA - LEGITIMIDADE DO TRATAMENTO PENAL MAIS
RIGOROSO - PEDIDO DEFERIDO EM PARTE. MENORIDADE - COMPROVAÇÃO - CERTIDÃO DE
NASCIMENTO - AUSÊNCIA - DESCARACTERIZAÇÃO TÍPICA DO CRIME DE CORRUPÇÃO DE
MENORES. O reconhecimento da menoridade, para efeitos penais, supõe
demonstração mediante prova documental específica e idônea (certidão de
nascimento). A idade - qualificando-se como situação inerente ao estado civil
das pessoas - expõe-se, para efeito de sua comprovação, em juízo penal, às
restrições probatórias estabelecidas na lei civil (CPP, art. 155). - Se o
Ministério Público oferece denúncia contra qualquer réu por crime de corrupção
de menores, cumpre-lhe demonstrar, de modo consistente - e além de qualquer
dúvida razoável -, a ocorrência do fato constitutivo do pedido, comprovando
documentalmente, mediante certidão de nascimento, a condição etária (menor de
dezoito (18) anos) da vítima do delito tipificado no art. 1º da Lei nº
2.252/54. O PROCESSO PENAL COMO INSTRUMENTO DE SALVAGUARDA DAS LIBERDADES
INDIVIDUAIS. - A submissão de uma pessoa à jurisdição penal do Estado coloca em
evidência a relação de polaridade conflitante que se estabelece entre a
pretensão punitiva do Poder Público e o resguardo à intangibilidade do jus
libertatis titularizado pelo réu. A persecução penal rege-se, enquanto
atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões normativos, que,
consagrados pela Constituição e pelas leis, traduzem limitações significativas
ao poder do Estado. Por isso mesmo, o processo penal só pode ser concebido - e
assim deve ser visto - como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu. O
processo penal condenatório não é um instrumento de arbítrio do Estado. Ele
representa, antes, um poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes
de que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal. Ao delinear um círculo
de proteção em torno da pessoa do réu - que jamais se presume culpado, até que
sobrevenha irrecorrível sentença condenatória -, o processo penal revela-se
instrumento que inibe a opressão judicial e que, condicionado por parâmetros
ético-jurídicos, impõe ao órgão acusador o ônus integral da prova, ao mesmo
tempo em que faculta ao acusado, que jamais necessita demonstrar a sua
inocência, o direito de defender-se e de questionar, criticamente, sob a égide
do contraditório, todos os elementos probatórios produzidos pelo Ministério
Público (grifo nosso). A própria exigência de processo judicial representa
poderoso fator de inibição do arbítrio estatal e de restrição ao poder de
coerção do Estado. A cláusula nulla poena sine judicio exprime, no plano do
processo penal condenatório, a fórmula de salvaguarda da liberdade individual.
O PODER DE ACUSAR SUPÕE O DEVER ESTATAL DE PROVAR LICITAMENTE A IMPUTAÇÃO PENAL.
- A exigência de comprovação plena dos elementos que dão suporte à acusação
penal recai por inteiro, e com exclusividade, sobre o Ministério Público.
(grifo nosso). Essa imposição do ônus processual concernente à demonstração da
ocorrência do ilícito penal reflete, na realidade, e dentro de nosso sistema
positivo, uma expressiva garantia jurídica que tutela e protege o próprio
estado de liberdade que se reconhece às pessoas em geral. Somente a prova penal
produzida em juízo pelo órgão da acusação penal, sob a égide da garantia
constitucional do contraditório, pode revestir-se de eficácia jurídica bastante
para legitimar a prolação de um decreto condenatório. Os subsídios ministrados
pelas investigações policiais, que são sempre unilaterais e inquisitivas - embora
suficientes ao oferecimento da denúncia pelo Ministério Público -, não bastam,
enquanto isoladamente considerados, para justificar a prolação, pelo Poder
Judiciário, de um ato de condenação penal. É nula a condenação penal decretada
com apoio em prova não produzida em juízo e com inobservância da garantia
constitucional do contraditório. Precedentes. - Nenhuma acusação penal se
presume provada. Não compete ao réu demonstrar a sua inocência. Cabe ao
Ministério Público comprovar, de forma inequívoca, a culpabilidade do acusado.
Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em
dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou,
para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a
obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (Decreto-Lei nº 88, de
20/12/37, art. 20, n. 5). Não se justifica, sem base probatória idônea, a
formulação possível de qualquer juízo condenatório, que deve sempre assentar-se
- para que se qualifique como ato revestido de validade ético-jurídica - em
elementos de certeza, os quais, ao dissiparem ambigüidades, ao esclarecerem
situações equívocas e ao desfazerem dados eivados de obscuridade, revelam-se
capazes de informar, com objetividade, o órgão judiciário competente,
afastando, desse modo, dúvidas razoáveis, sérias e fundadas que poderiam
conduzir qualquer magistrado ou Tribunal a pronunciar o non liquet."
No mesmo sentido:
"TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO –
2007.059.08360 - HABEAS CORPUS - PRIMEIRA CAMARA CRIMINAL - DES. CARLOS AUGUSTO
BORGES - Julg: 29/01/2008 - Se a denúncia imputa ao agente a prática de crime
omissivo impróprio, deve descrever de modo claro e objetivo, com todos
elementos estruturais, essenciais e circunstanciais, o fato que o coloca em
posição de garantia da não superveniência do resultado típico, que não subsume
apenas da qualificação funcional do agente, pois não se admite a
responsabilidade penal objetiva. A deficiente descrição dos fatos não favorece
a identificação do dever jurídico de atuar, com um inelutável prejuízo para a
defesa, que se vê numa anômala condição de demonstrar a não ocorrência de um
fato não descrito e imputado, que importaria, em última análise, em inversão do
ônus da prova no processo penal instaurado com o recebimento da
denúncia.Afinal, é quanto aos fatos que é feita a denúncia e não em relação à
eventual capitulação dada a uma suposta infração penal praticada pelo
denunciado.Writ que se concede em parte para rejeitar a denúncia por inépcia."
Outrossim, repete-se aqui o equívoco de se permitir ao Juiz de Direito
atividade de natureza eminentemente persecutória (agir de ofício), o que
significa um gravíssimo atentado aos postulados do sistema acusatório. [9]
A propósito, Juan Montero
Aroca adverte que "si el medio de
prueba practicado de oficio por el tribunal de instancia tiene por objeto la
comprobación de los hechos, esto es, se dirige a probar su existencia o
inexistencia, se produce la quiebra de la imparcialidad objetiva del tribunal."
[10]
Em consonância com o art. 5º., LVI, a lei passa a considerar, no art.
157, "inadmissíveis, devendo ser
desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em
violação a normas constitucionais ou legais", bem como aquelas
"derivadas das ilícitas, salvo
quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as
derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras." (§ 1º.)
Neste ponto a lei tratou não somente das provas ilícitas, como também
das chamadas provas ilícitas por derivação, baseadas na doutrina do fruit of the poisonous ou the tainted fruit, o que já era, na
doutrina nacional, uma idéia mais ou menos pacífica. [11] Esta disposição é
válida tanto em relação às provas ilícitas como às ilegítimas, para quem as
diferencia. [12]
A propósito, Marco Antônio
Garcia de Pinho afirma que "a
questão das provas ilícitas por derivação, isto é, aquelas provas e matérias
processualmente válidas, mas angariadas a partir de uma prova ilicitamente
obtida é, sem dúvida, uma das mais tormentosas na doutrina e jurisprudência.
Trata-se da prova que, conquanto isoladamente considerada possa ser considerada
lícita, decorra de informações provenientes da prova ilícita. Nesse caso, hoje,
nossos tribunais vêm tomando por base a solução da Fruits of the Poisonous
Tree, adotada pela US Supreme Court. Esse entendimento, na doutrina pátria, é
adotado, dentre outros autores, por Grinover e Gomes Filho. Já Avolio, também
tratando com maestria sobre o assunto, concluiu não ser possível a utilização
das provas ilícitas por derivação no nosso direito pátrio. Há pouco mais de dez
anos, em maio de 1996, o STF confirmou sua posição quanto à inadmissibilidade
das provas derivadas das ilícitas, posicionamento, hoje, ainda mais pacífico
tendo à frente a ministra Ellen Gracie e os ministros como Gilmar Mendes,
Peluzo e Joaquim Barbosa. A prova ilícita por derivação se trata da prova
lícita em si mesma, mas cuja produção decorreu ou derivou de outra prova, tida
por ilícita. Assim, a prova originária, ilícita, contamina a prova derivada,
tornando-a também ilícita. É tradicional a doutrina cunhada pela Suprema Corte
norte-americana dos "Frutos da Árvore Envenenada" —Fruits of the
Poisonous Tree— que explica adequadamente a proibição da prova ilícita por
derivação."
Esclarece este mesmo autor "que
se sustenta um argumento relacional, ou seja, para se considerar uma
determinada prova como fruto de uma árvore envenenada, deve-se estabelecer uma
conexão entre ambos os extremos da cadeia lógica; dessa forma, deve-se
esclarecer quando a primeira ilegalidade é condição sine qua non e motor da obtenção posterior das provas derivadas,
que não teriam sido obtidas não fosse a existência da referida ilegalidade
originária18. Estabelecida a relação, decreta-se a ilegalidade. O problema é
análogo, diga-se, ao direito penal quando se discute com profundidade o tema do
nexo causal. É possível que tenha havido ruptura da cadeia causal ou esta se
tenha enfraquecido suficientemente em algum momento de modo a se fazer possível
a admissão de determinada prova porque não alcançada pelo efeito reflexo da
ilegalidade praticada originariamente." [13]
Em determinada oportunidade, decisão do Ministro Celso de Mello
suspendeu, cautelarmente, processo penal em trâmite na 6ª. Vara Federal
Criminal do Rio de Janeiro pela suposta prática de crime contra a ordem
tributária praticado por um empresário e contador português. O pedido do
acusado foi feito por meio do Habeas Corpus (HC) 93050. A defesa afirma que em
agosto de 1993 uma das sedes da empresa foi invadida pela Polícia Federal, e as
provas obtidas pelo Ministério Público Federal foram fruto desta operação,
realizada sem autorização judicial, na ausência dos sócios e sob coação de
funcionários. Portanto, "provas
obtidas por meios ilícitos". Tal diligência, afirmam os advogados,
transgrediu as garantias fundamentais contidas no artigo 5º. da Constituição
Federal. Para o relator, ministro Celso de Mello, parte do acórdão do Superior
Tribunal de Justiça, questionado pela defesa, "parece demonstrar que tal decisão teria considerado válida prova
qualificada pela ilicitude por derivação". Isto porque, segundo a
decisão atacada, a documentação que embasou o início da ação penal resultou de
fiscalização ocorrida em outra empresa que não a do acusado.Segundo Celso de
Mello, a decisão do STJ contém afirmação que conflita com a jurisprudência do
Supremo sobre prova ilícita, "quer
se trate de ilicitude originária, quer se cuide de ilicitude por derivação".
Assim, o relator deferiu o pedido de medida liminar para suspender,
cautelarmente, até o final do do habeas corpus, o andamento do Processo-crime
nº 96.00.26361-2, que tramita na 6ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro/RJ.
Fonte: STF.
Segundo Luiz Flávio Gomes, "prova
ilícita é a que viola regra de direito material, constitucional ou legal, no
momento de sua obtenção (confissão mediante tortura, v.g.). Essa obtenção, de
qualquer modo, sempre se dá fora do processo (é, portanto, sempre
extraprocessual). Prova ilegítima é a que viola regra de direito processual no
momento de sua obtenção em juízo (ou seja: no momento em que é produzida no
processo). Exemplo: oitiva de pessoas que não podem depor, como é o caso do
advogado que não pode nada informar sobre o que soube no exercício da sua
profissão (art. 207, do CPP). Outro exemplo: interrogatório sem a presença de
advogado; colheita de um depoimento sem advogado etc. A prova ilegíma, como se
vê, é sempre intraprocessual (ou endoprocessual). O fato de uma prova violar
uma regra de direito processual, portanto, nem sempre conduz ao reconhecimento
de uma prova ilegítima. Por exemplo: busca e apreensão domiciliar determinada
por autoridade policial (isso está vedado pela CF, art. 5.º, X, que nesse caso
exige ordem judicial assim como pelo CPP -art. 240 e ss.). Como se trata de uma
prova obtida fora do processo, cuida-se de prova ilícita, ainda que viole
concomitantemente duas regras: uma material (constitucional) e outra
processual. Conclusão: o que é decisivo para se descobrir se uma prova é
ilícita ou ilegítima é o locus da sua obtenção: dentro ou fora do processo. De
qualquer maneira, combinando-se o que diz a CF, art. 5.º, inc. LVI com o que
ficou assentado no novo art. 157 do CPP, vê-se que umas e outras (ilícitas ou
ilegítimas) passaram a ter um mesmo e único regramento jurídico: são
inadmissíveis (cf. PACHECO, Denílson Feitoza, Direito processual penal, 3.ª
ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2005, p. 812)."
Lembra, ainda, Luiz Flávio Gomes que "dizia-se que a CF, no art. 5.º, LVI, somente seria aplicável às provas
ilícitas ou ilícitas e ilegítimas ao mesmo tempo, ou seja, não se aplicaria
para as provas (exclusivamente) ilegítimas. Para esta última valeria o sistema
da nulidade, enquanto para as primeiras vigoraria o sistema da
inadmissibilidade. Ambas as provas (ilícitas ou ilegítimas), em princípio, não
valem (há exceções, como veremos), mas os sistemas seriam distintos. Essa
doutrina já não pode ser acolhida (diante da nova regulamentação legal do
assunto). Quando o art. 157 (do CPP) fala em violação a normas constitucionais
ou legais, não distingue se a norma legal é material ou processual. Qualquer
violação ao devido processo legal, em síntese, conduz à ilicitude da prova (cf.
Mendes, Gilmar Ferreira et alii, Curso de Direito constitucional, São Paulo:
Saraiva: 2007, p. 604-605, que sublinham: "A obtenção de provas sem a
observância das garantias previstas na ordem constitucional ou em contrariedade
ao disposto em normas fundamentais de procedimento configurará afronta ao
princípio do devido processo legal"). Paralelamente às normas
constitucionais e legais existem também as normas internacionais (previstas em
tratados de direitos humanos). Por exemplo: Convenção Americana sobre Direitos
Humanos. No seu art. 8.º ela cuida de uma série (enorme) de garantias. Provas
colhidas com violação dessas garantias são provas que colidem com o devido
processo legal. Logo, são obtidas de forma ilícita. Uma das garantias previstas
no art. 8.º diz respeito à necessidade de o réu se comunicar livre e
reservadamente com seu advogado. Caso essa garantia não seja observada no
momento da obtenção da prova (depoimento de uma testemunha, v.g.), não há
dúvida que se trata de uma prova ilícita (porque violadora de uma garantia
processual prevista na citada Convenção). Não importa, como se vê, se a norma
violada é constitucional ou internacional ou legal, se material ou processual:
caso venha a prova a ser obtida em violação a qualquer uma dessas normas, não
há como deixar de concluir pela sua ilicitude (que conduz, automaticamente, ao
sistema da inadmissibilidade)." [14]
Esta disposição chega a ser despicienda em razão do referido comando
constitucional. É a nossa velha mania de achar que se não estiver previsto em
uma lei (infraconstitucional) não está no ordenamento jurídico, ainda que
esteja na Constituição Federal!
Entendemos que o ato judicial que determina o desentranhamento das
provas ilícitas tem a natureza de decisão interlocutória com força de
definitiva, razão pela qual desafia o recurso de apelação (art. 593, II do
Código de Processo Penal). A natureza desta decisão vem reforçada pelo § 3º.
deste mesmo art. 157 ("preclusa a
decisão de desentranhamento"), pois, como se sabe, a preclusão é
fato processual próprio de decisões que não tratam do mérito propriamente dito.
Para estas, reserva-se o efeito da coisa julgada (evidentemente que a diferença
entre preclusão e coisa julgada não se resume a esta circunstância).
Caso se entenda não se tratar de uma decisão com força de definitiva, e
não havendo recurso previsto em lei, a solução será a utilização da correição
parcial ou do mandado de segurança.
Foram acrescentados mais dois parágrafos ao art. 157, considerando-se
"fonte independente aquela que
por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou
instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova."
A respeito, mais uma vez transcrevemos a lição de Marco Antônio
Garcia de Pinho:
"De se ressaltar que se sustenta um
argumento relacional, ou seja, para se considerar uma determinada prova como
fruto de uma árvore envenenada, deve-se estabelecer uma conexão entre ambos os
extremos da cadeia lógica; dessa forma, deve-se esclarecer quando a primeira
ilegalidade é condição sine qua non
e motor da obtenção posterior das provas derivadas, que não teriam sido obtidas
não fosse a existência da referida ilegalidade originária. Estabelecida a
relação, decreta-se a ilegalidade. O problema é análogo, diga-se, ao direito
penal quando se discute com profundidade o tema do nexo causal. É possível que
tenha havido ruptura da cadeia causal ou esta se tenha enfraquecido
suficientemente em algum momento de modo a se fazer possível a admissão de
determinada prova porque não alcançada pelo efeito reflexo da ilegalidade
praticada originariamente." [15]
Ademais, estabelece-se que "preclusa
a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será
inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente."
Quanto às perícias houve nova modificação em relação àquela já ocorrida
com a Lei nº. 8.862/94. Assim, ao invés de dois peritos oficiais, a nova
redação do art. 159 estabelece que "o
exame de corpo de delito e outras perícias serão realizados por perito oficial,
portador de diploma de curso superior" que, na sua falta, será
realizado, agora sim, "por 2
(duas) pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior
preferencialmente na área específica, dentre as que tiverem habilitação técnica
relacionada com a natureza do exame"; neste último caso, os peritos
não oficiais deverão prestar "o
compromisso de bem e fielmente desempenhar o encargo",
sujeitando-se, inclusive, às sanções penais previstas no art. 342 do Código
Penal. Assim, para a realização de um exame cadavérico ou de lesões corporais,
na falta de perito oficial, devem ser escolhidos, de preferência, dois médicos,
ou um médico e um enfermeiro, ou um médico e um odontólogo. Para a realização
de um exame pericial em uma porta arrombada, nomeia-se, preferencialmente, dois
engenheiros, ou um engenheiro e um arquiteto, e assim por diante...
Bem de ver que se se tratar "de
perícia complexa que abranja mais de uma área de conhecimento especializado,
poder-se-á designar a atuação de mais de um perito oficial, e a parte indicar
mais de um assistente técnico." (art. 159, § 7º.).
Ainda sobre os peritos, o art. 2º. desta lei traz uma norma de caráter
transitório, disciplinando que "aqueles
peritos que ingressaram sem exigência do diploma de curso superior até a data
de entrada em vigor desta Lei continuarão a atuar exclusivamente nas respectivas
áreas para as quais se habilitaram, ressalvados os peritos médicos."
Uma grande e alvissareira novidade é a possibilidade agora de
assistentes técnicos no processo penal. Diz o § 3º. do art. 159 que "serão facultadas ao Ministério Público, ao
assistente de acusação, ao ofendido, ao querelante e ao acusado a formulação de
quesitos e indicação de assistente técnico", que "atuará a partir de sua admissão pelo juiz e
após a conclusão dos exames e elaboração do laudo pelos peritos oficiais, sendo
as partes intimadas desta decisão."
Pela utilização dos vocábulos "assistente de acusação" (que só é admissível a partir do
início da ação penal, segundo o art. 268 do Código de Processo Penal [16]),
"querelante" e "acusado" infere-se que esta
faculdade deve ser dada apenas na fase judicial. Por outro lado, se não é
possível ao indiciado formular quesitos e indicar assistente técnico,
evidentemente que na primeira fase da persecutio
criminis, tampouco será permitido ao Ministério Público e ao ofendido
fazê-lo. Seria uma violação inequívoca ao princípio da paridade de armas.
Em reforço a este entendimento, observa-se que o § 5º., acrescentado ao
art. 159, prevê que no "curso do processo
judicial, é permitido às partes, quanto à perícia: I – requerer a
oitiva dos peritos para esclarecerem a prova ou para responderem a quesitos,
desde que o mandado de intimação e os quesitos ou questões a serem esclarecidas
sejam encaminhados com antecedência mínima de 10 (dez) dias,
podendo apresentar as respostas em laudo complementar; II – indicar
assistentes técnicos que poderão apresentar pareceres em prazo a ser fixado
pelo juiz ou ser inquiridos em audiência." (grifo nosso).
Caso haja "requerimento
das partes, o material probatório que serviu de base à perícia será
disponibilizado no ambiente do órgão oficial, que manterá sempre
sua guarda, e na presença de perito oficial, para exame pelos assistentes,
salvo se for impossível a sua conservação."
Esta lei também alterou o art. 201 do Código de Processo Penal. O
Capítulo V do Título VII passa a ter a seguinte epígrafe: "Do Ofendido", ao invés do antigo
"Das Perguntas ao Ofendido".
Porém, o caput continua com a
mesma redação, sendo que o antigo parágrafo único foi renumerado para o § 1º.,
mantendo-se, no entanto, o mesmo texto. [17]
A inovação é que foram acrescentados mais cinco parágrafos com a nítida
e salutar finalidade de proteção dos interesses da vítima. Nota-se, com Ada,
Scarance, Luiz Flávio e Gomes Filho que esta lei insere-se "no generoso e atualíssimo filão que advoga a
revisão dos esquemas processuais de modo a dar resposta concreta à maior
preocupação com o ofendido." [18]
García-Pablos, por exemplo, informa que "o abandono da vítima do delito é um fato incontestável que se manifesta
em todos os âmbitos (...). O
Direito Penal contemporâneo – advertem diversos autores – acha-se
unilateralmente voltado para a pessoa do infrator, relegando a vítima a uma
posição marginal, ao âmbito da previsão social e do Direito Civil material e
processual". [19]
A própria legislação processual penal relega a vítima a um plano
desimportante, inclusive pela "falta
de mención de disposiciones expressas en los respectivos ordenamientos que
provean medidas para salvaguardar aquellos valores ultrajados".
[20]
Esta atenção com a vítima no processo penal é tema atual e tem sido
motivo de inúmeros trabalhos doutrinários, como observou o jurista argentino
Alberto Bovino:
"Después de varios siglos de exclusión y
olvido, la víctima reaparece, en la actualidad, en el escenario de la justicia
penal, como una preocupación central de la política criminal. Prueba de este
interés resultan la gran variedad de trabajos publicados recientemente, tanto
en Argentina como en el extranjero;" (...) mesmo porque "se señala que com frecuencia el interés real
de la víctima no consiste en la imposición de una pena sino, en cambio, en ‘una
reparación por las lesiones o los daños causados por el delito’"
[21] Neste sentido, veja-se obra bastante elucidativa de Antonio Scarance
Fernandes. [22]
Dois juristas italianos, Michele Correra e Danilo Riponti, também
anotaram:
"Il recupero della dimensione umana
della vittima, molto spesso reificata, vessata, dimenticata da giuristi e
criminologi in quanto oscurata da quella cosí clamorosa ed eclatante del
criminale, soddisfa l’intento di rendere giustizia a chi viene a trovarsi in
una situazione umana tragica ed ingiusta, a chi ha subito e subisce e danni del
crimine e l’indifferenza della società." [23]
Pois bem.
O § 2º. determina que "o
ofendido será comunicado dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída
do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e
respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem." [24]
Tais comunicações, segundo o § 3º., "deverão ser feitas no endereço por ele indicado, admitindo-se, por
opção do ofendido, o uso de meio eletrônico." É preciso, no
entanto, máxima cautela na utilização, por exemplo, de e-mail, especialmente
para que não restem dúvidas quanto à respectiva cientificação.
Uma observação urge: é sabido que o art. 598 e seu parágrafo único
estabelecem que "o ofendido ou
qualquer das pessoas enumeradas no art. 31, ainda que não se tenha habilitado
como assistente" tem legitimidade para apelar (além de interesse,
evidentemente) quando, "nos
crimes de competência do Tribunal do Júri, ou do juiz singular, da sentença não
for interposta apelação pelo Ministério Público no prazo legal",
deferindo, inclusive, um prazo bem maior para o recurso (quinze dias a partir
da data em que terminar o prazo do Ministério Público).
Ora, a doutrina sempre justificou e admitiu este prazo em triplo
concedido à vítima não habilitada como assistente (e aos seus sucessores),
exatamente em razão do ofendido (e aquelas demais pessoas) não terem sido
intimados da sentença, razão pela qual se justificava um prazo maior pela
dificuldade de conhecimento da decisão. Agora, no entanto, estabelecendo a lei
que da sentença será também intimada a vítima, parece-nos, à luz do princípio
da igualdade, que o prazo deve ser o mesmo de cinco dias previsto no caput do art. 593 do Código de
Processo Penal, tornando-se inaplicável o prazo previsto no parágrafo único do
art. 598.
Ressalte-se, com Humberto Ávila, que a igualdade (que ele denomina de
postulado) "estrutura a aplicação
do Direito quando há relação entre dois sujeitos em função de elementos
(critério de diferenciação e finalidade da distinção) e da relação entre eles
(congruência do critério em razão do fim)." Para ele, a
proporcionalidade (que também seria um postulado) "aplica-se nos casos em que exista uma relação de causalidade entre um
meio e um fim concretamente perceptível. A exigência de realização de vários
fins, todos constitucionalmente legitimados, implica a adoção de medidas
adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito." [25]
Tal princípio está previsto expressamente no art. 5º., caput da Constituição Federal e "significa a proibição, para o legislador
ordinário, de discriminações arbitrárias: impõe que a situações iguais
corresponda um tratamento igual, do mesmo modo que a situações diferentes deve
corresponder um tratamento diferenciado." Segundo ainda Mariângela
Gama de Magalhães Gomes, a igualdade "ordena ao legislador que preveja com as mesmas conseqüências jurídicas
os fatos que em linha de princípio sejam comparáveis, e lhe permite realizar
diferenciações apenas para as hipóteses em que exista uma causa objetiva – pois
caso não se verifiquem motivos desta espécie, haverá diferenciações
arbitrárias." [26]
Para Ignacio Ara Pinilla,
"la preconizada igualdad de todos
frente a la ley (...) ha venido
evolucionando en un sentido cada vez más contenutista, comprendiédose
paulatinamente como interdicción de discriminaciones, o, por lo menos, como
interdicción de discriminaciones injustificadas." [27]
Como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, "há ofensa ao preceito constitucional da
isonomia quando a norma singulariza atual e definitivamente um destinatário
determinado, ao invés de abranger uma categoria de pessoas, ou uma pessoa
futura e indeterminada." [28]
E se a vítima já faleceu? Entendemos que subsiste a obrigação de
comunicação aos seus sucessores em conformidade com a ordem estabelecida nos
arts. 31 e 36 do Código de Processo Penal. Parece-nos que somente assim
poderemos preservar a mens legislatoris.
Estabelece o § 4º. que, "antes
do início da audiência e durante a sua realização, será reservado espaço
separado para o ofendido." Esta medida é tão apropriada quanto de
difícil operacionalização na prática, conhecendo-se a estrutura dos nossos
fóruns criminais.
Já o § 5º. tem seguinte redação: "Se o juiz entender necessário, poderá encaminhar o ofendido para
atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de
assistência jurídica e de saúde, a expensas do ofensor ou do Estado."
Questão que não foi esclarecida pela lei é como se pode obrigar o
ofensor a custear, ainda que tenha condições econômicas e financeiras, este
atendimento multidisciplinar à vítima, especialmente antes de uma sentença
condenatória. Aliás, mesmo após a sentença condenatória. Observa-se que a nova redação
dada ao art. 387, IV (Lei nº. 11.719/08) refere-se apenas à fixação de um valor
mínimo para reparação dos danos causados pela infração, o que não implica em
custear, por exemplo, um tratamento psicossocial que pode levar até anos...
Por fim, o último parágrafo determina que o Juiz de Direito deve tomar
"as providências necessárias à
preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo,
inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e
outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua
exposição aos meios de comunicação." Tais medidas, se
efetivamente forem levadas a efeito, serão de grande valia e utilidade,
principalmente quando se trata de ofendido em crimes contra os costumes e em
relação a crianças e adolescentes vítimas. Neste sentido, veja-se o art. 5º.,
LX da Constituição Federal.
Não esqueçamos que no Brasil já temos uma lei específica a respeito do
assunto, a Lei nº. 9.807/99, regulamentada pelo Decreto nº. 3.518/00, que
estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de
proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, além de instituir o Programa
Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas, dispondo, ainda,
sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado
efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal. Para a
implementação deste Programa, os Estados [29], a União e o Distrito Federal
poderão celebrar convênios com entidades não-governamentais, sob a supervisão
do Ministério da Justiça.
A nova lei alterou também alguns dispositivos do Código de Processo
Penal que tratam sobre a prova testemunhal. [30] Assim, ao art. 210, cujo caput não foi alterado, acrescentou-se
um parágrafo único nos seguintes termos:
"Antes do início da
audiência e durante a sua realização, serão reservados espaços separados para a
garantia da incomunicabilidade das testemunhas." Repetimos o que
afirmamos acima: esta medida é tão apropriada quanto de difícil operacionalização
na prática, conhecendo-se a estrutura dos nossos fóruns criminais.
A novel redação do art. 212 estabelece que "as perguntas serão formuladas pelas partes
diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a
resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra
já respondida." Evidentemente que "sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a
inquirição." (parágrafo único).
Aqui, abandonando o nosso sistema tradicional de ouvida das testemunhas,
que era o presidencialista, adotou-se o sistema da cross examination. A propósito, veja-se a lição de Fredie Didier
Jr.: "No direito anglo-americano,
a inquirição das testemunhas é feita pelo advogado diretamente à testemunha. A direct-examination (inquirição pela
parte que arrolou a testemunha) e a cross-examination
(inquirição pela parte contrária) são feitas sem a intermediação do magistrado,
a quem cabe principalmente controlar a regularidade da inquirição (EUA, Federal
Rules of Evidence, rule n. 611, ´a`). Permite-se que o magistrado formule
perguntas com o objetivo de integrar a as perguntas formuladas pelas partes e
esclarecer pontos duvidosos do depoimento – trata-se de poder escassamente
exercitado, porém. O papel do magistrado é, portanto, bem diverso (e mais
restrito) do que aquele para ele previsto no direito processual brasileiro: no
direito anglo-americano, o magistrado é coadjuvante e as partes, por seus
advogados, os grandes protagonistas. Esse modo de produção da prova é manifestação
da ideologia liberal que orienta o processo da common law, principalmente o processo estadunidense, de caráter
marcadamente adversarial (dispositivo),
em que deve prevalecer a habilidade das partes sem a interferência do
magistrado. Segundo Michele Taruffo, trata-se de manifestação de uma concepção
´esportiva` (competitiva) da justiça, de modo a exprimir um dos valores
fundamentais do processo da common law:
o combate individual como método processual." (Curso de Direito
Processual Civil, Vol. II, Salvador: Editora JusPodivum, 2007).
Criticando o procedimento presidencialista, afirma o Professor René
Ariel Dotti que esta "regra
sexagenária, não é o melhor caminho para apurar a verdade material, objetivo
essencial do processo criminal. E são vários os inconvenientes. O primeiro
deles é o tempo que a testemunha dispõe para mentir ou omitir a verdade se
quiser trair o compromisso legal de "dizer a verdade sobre o que souber e
lhe for perguntado" (CPP, art. 203).O segundo é a intervenção do Juiz entre
a pergunta da parte e a resposta com prejuízo para o esclarecimento de detalhe
sobre o fato típico ou conduta de réu ou vítima.O terceiro é a perda de
objetividade que é um corolário lógico do princípio de economia processual.O
quarto é a falsa impressão causada à testemunha acerca do papel de cada um dos
protagonistas da audiência, parecendo ao leigo que os procuradores exercem
atividade menor. O cross-examination é o método da pergunta (ou repergunta)
direta à testemunha, réu ou vítima, utilizado em países como a Inglaterra e os
Estados Unidos, onde as experiências sobre a colheita da prova são bem
sucedidas." [31]
Alterou-se, sutilmente e para melhor, o art. 217, estabelecendo que
"se o juiz verificar que a
presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à
testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará
a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma,
determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu
defensor." Neste caso, segundo o parágrafo único acrescentado, a
adoção de tais medidas "deverá
constar do termo, assim como os motivos que a determinaram."
O antigo art. 217 não previa esta medida (excepcional, diga-se de
passagem) a ser aplicada em favor também do ofendido.
Permite-se a oitiva das testemunhas e do ofendido por videoconferência, mas
não o interrogatório do acusado. Aliás, em sessão realizada no dia 14 de
agosto de 2007, por unanimidade, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal
considerou que interrogatório realizado por meio de videoconferência viola os
princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa. Dos
cinco ministros que integram a Turma, quatro participaram da votação. Somente o
Ministro Joaquim Barbosa estava ausente. A decisão foi tomada no julgamento do Habeas Corpus nº. 88914 concedido em
favor de um condenado a mais de 14 anos de prisão por extorsão mediante
seqüestro e roubo. Os Ministros anularam, a partir do interrogatório, o
processo-crime aberto contra ele na 30ª Vara Criminal do Foro Central de São
Paulo ao julgarem ilegal o ato, realizado por meio de videoconferência. O
interrogatório, determinado por juiz de primeiro grau, foi em 2002. O Ministro
Cezar Peluso relatou o caso e afirmou que "a adoção da videoconferência leva à perda de substância do próprio
fundamento do processo penal" e torna a atividade judiciária "mecânica e insensível". Segundo
ele, o interrogatório é o momento em que o acusado exerce seu direito de
autodefesa. Ele esclareceu que países como Itália, França e Espanha utilizam a
videoconferência, mas com previsão legal e só em circunstâncias limitadas e por
meio de decisão devidamente fundamentada. Ao contrário, no Brasil ainda não há
lei que regulamente o interrogatório por videoconferência. "E, suposto a houvesse, a decisão de fazê-lo
não poderia deixar de ser suficientemente motivada, com demonstração plena da
sua excepcional necessidade no caso concreto", afirmou Peluso.
Segundo o Ministro, no caso concreto, o acusado sequer foi citado com
antecedência para o interrogatório, apenas instado a comparecer, e o juiz
em nenhum momento fundamentou o motivo de o interrogatório ser realizado por
meio de videoconferência. Os argumentos em favor da videoconferência, que
traria maior celeridade, redução de custos e segurança aos procedimentos
judiciais, foram descartados pelo ministro. "Não posso deixar de advertir que, quando a política criminal é
promovida à custa de redução das garantias individuais, se condena ao fracasso
mais retumbante." O Presidente da Turma, Ministro Celso de Mello,
afirmou que a decisão "representa
um marco importante na reafirmação de direitos básicos que assistem a qualquer
acusado em juízo penal". Para ele, o direito de presença real do
acusado durante o interrogatório e em outros atos da instrução processual tem
de ser preservado pelo Poder Judiciário. O Ministro Eros Grau também acompanhou
o voto de Cezar Peluso. Gilmar Mendes não chegou a acolher os argumentos de
violação constitucional apresentados por Peluso. Ele disse que só o fato de não
haver lei que autorize a realização de videoconferência, por si só, já revela a
ilegalidade do procedimento. "No
momento, basta-me esse fundamento claro e inequívoco." Fonte: STF.
Os efeitos desta decisão do Supremo Tribunal Federal começaram a ser
sentidos nas instâncias inferiores. No dia 17 de agosto de 2007, a 3ª. Vara
Criminal de São Paulo cancelou seis tele-audiências de supostos envolvidos com
a organização criminosa do Primeiro Comando da Capital (PCC). O depoimento dos
oito réus presos suspeitos de participar e comandar três ondas de ataques
criminosos na cidade de São Paulo estava marcado para esta sexta-feira, no
Plenário 7 do Fórum Criminal da Barra Funda. No começo da sessão, a juíza
Mônica Sales pediu que os advogados das partes se manifestassem sobre a
conveniência do depoimento por vídeo.Os advogados de seis réus sustentaram que
o direito de defesa de seus clientes estaria prejudicado, já que não poderiam
orientá-los de forma precisa. A juíza acolheu o argumento e mandou expedir
carta precatória para ouvir os acusados. "A videoconferência, apresentada sob o manto da modernidade e da
economia, revela-se perversa e desumana, pois afasta o acusado da única
oportunidade que tem para falar ao seu julgador. Pode ser um enorme sucesso
tecnológico, mas configura-se um flagrante desastre humanitário",
defende o advogado criminalista Luiz Flávio Borges D’Urso, então Presidente da
OAB paulista. A juíza Mônica Sales não era obrigada a seguir a decisão do
Supremo Tribunal Federal, porque o entendimento se aplicou apenas ao pedido de Habeas Corpus julgado pela 2ª Turma.
Mas, para evitar que futuramente todos os atos processuais pudessem ser
anulados, quando os recursos deste processo começassem a chegar ao Supremo,
seguiu a orientação. [32]
Sempre posicionamo-nos contrariamente ao interrogatório on line, à distância ou por
videoconferência. Desde a primeira edição do nosso "Direito Processual
Penal", em 2003 [33], escrevemos contrariamente a esta prática que então
se iniciava no País. Participamos de vários debates, opondo-nos insistentemente
àqueles que apregoavam as vantagens da iniciativa. As razões eram e são várias.
De toda maneira, prefere-se a videoconferência para ouvir uma testemunha
ou ofendido que a realização de uma audiência de instrução sem a presença
física do acusado.
Por fim, a lei ora comentada modificou o art. 386 do Código de Processo
Penal, dando nova redação aos incisos IV (estar provado que o réu não concorreu para a infração penal), V
(não existir prova de ter o réu
concorrido para a infração penal), VI (existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena
(arts. 20, 21, 22, 23, 26 e § 1o do art. 28, todos do Código
Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência) e VII (não existir prova suficiente para a
condenação).
Como se sabe, a fundamentação e a conclusão de uma sentença absolutória
têm efeitos civis, especialmente na chamada ação civil ex delicto [34], pois, apesar da responsabilidade civil ser
independente da criminal, não se pode questionar mais sobre a existência do
fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem
decididas no juízo criminal. É o que dispõe o Código Civil (art. 935).
Esta disposição do Código Civil se justifica plenamente, a fim que se
evitem decisões absolutamente discrepantes, em evidente prejuízo para a ordem
jurídica. Não seria admissível atestar-se em um processo que alguém praticou um
delito e, sob o mesmo sistema jurídico, afirmar-se o contrário em outro
processo ou, como bem diz Washington de Barros Monteiro, "decidir-se na justiça penal que determinado
fato ocorreu e depois, na justiça civil, decidir diferentemente que o mesmo não
se verificou".
Para este civilista "repugna
conceber que o Estado, em sua unidade, na repressão de um fato reputado como
ofensivo da ordem social, decida soberanamente, por um de seus órgãos
jurisdicionais, que esse fato constitui crime, que seu autor é passível de pena
e o condene a sofrer o castigo legal; e que esse mesmo Estado, prosseguindo na
repressão do fato antijurídico, venha a declarar, por outro ramo do Poder
Judiciário, que ele não é delituoso, que é perfeitamente lícito, que não
acarreta responsabilidade alguma para seu autor, que não está assim adstrito ao
dever de compor os danos a que deu causa". [35]
Bem antes, João Monteiro já indagava: "Que papel representaria o Poder Público, se o mesmo crime pudesse
existir e não existir, ou se X fosse e não fosse o autor de determinado crime?".
[36]
Assim, absolvido com base no inciso IV, a sentença penal terá
ressonância na esfera cível, o que não ocorrerá se o decreto absolutório
fundar-se nos novos incisos V e VII, mesmo porque pode não ter existido no
juízo penal prova suficiente da autoria ou para uma condenação e, no juízo
cível, tal prova vir a ser conseguida. Lembre-se do brocardo aplicado no
Processo Penal do in dubio pro reo.
O novo inciso VI (que também passou a privilegiar na segunda parte o
princípio do in dubio pro reo)
guarda estreita relação com o disposto no art. 65 do Código de Processo Penal,
segundo o qual "faz coisa julgada
no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de
necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no
exercício regular de direito".
Por sua vez, tais disposições processuais penais estão complementadas
pelo disposto nos arts. 188, 929 e 930 do Código Civil, in verbis:
"Art. 188. Não constituem atos ilícitos:
"I - os praticados em
legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;
"II - a deterioração ou
destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo
iminente.
"Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as
circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do
indispensável para a remoção do perigo."
"Art. 929 - Se a pessoa lesada, ou o
dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não forem culpados do perigo,
assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram.
"Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de
terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a
importância que tiver ressarcido ao lesado.
Vê-se, portanto, que o sistema adotado pelo Brasil reconhece a
independência entre o Juízo cível e o penal, ressalvando, no entanto, que
quanto à autoria e à existência do delito prevalece o decidido categoricamente
no juízo criminal (art. 935 do Código Civil), bem como no que se refere às
causas excludentes de ilicitude ou de isenção de pena; exatamente por isso, o
parágrafo único do art. 64 "faculta" ao Juiz da ação civil suspender
o curso do respectivo processo, até que se decida definitivamente a ação penal.
[37]
"Realmente, o conflito entre sentenças
que apreciam o mesmo fato, uma negando e a outra afirmando a sua existência,
uma recusando a autoria do delito e a outra aceitando-a, criaria uma situação
de contundente extravagância. Inclinou-se a doutrina, por isso, para a
conclusão de Merlin, negando-lhe os fundamentos. A decisão proferida no Juízo criminal
tranca o Juízo civil toda vez que declarar inexistente o fato imputado ou
disser que o acusado não o praticou. Quando, porém, como bem esclareceu Mendes
Pimentel ‘a absolvição criminal teve motivo peculiar ao direito ou ao processo
penal, como a inimputabilidade do delinqüente ou a prescrição da ação penal, a
sentença criminal não obsta ao pronunciamento civil sobre a reparação do
dano’". [38]
Observa-se, contudo, que a inexistência
material do fato deve ser reconhecida categoricamente, sob pena de não vincular a decisão cível. Di-lo
o art. 66 do Código de Processo Penal: "Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil
poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a
inexistência material do fato".
Por fim, o inciso II do parágrafo único do art. 386, consentâneo com a
Parte Geral do Código Penal, que desde 1984 acabou com as penas acessórias,
passou a estabelecer que o Juiz de Direito, na sentença absolutória, deverá
ordenar "a cessação das medidas
cautelares e provisoriamente aplicadas."
Para terminar as nossas conclusões, asseveramos que ainda falta muito
trabalho para que o nosso Código de Processo Penal ajuste-se aos princípios da
Constituição Federal, especialmente quando se trata do devido processo legal,
sistema acusatório, etc. Maiores considerações a este respeito tecemos em nosso
livro antes mencionado, quando abordamos de forma geral a reforma do Código de
Processo Penal, bem como, mais especificamente, os projetos de lei ainda em
tramitação no Congresso Nacional.
NOTAS
1. A lei foi
publicada no Diário Oficial da União do dia 10 de junho de 2008, entrando em
vigor 60 dias depois de oficialmente publicada, na forma do art. 3º. da mesma
lei. Segundo o art. 8º. da Lei
Complementar nº. 95, "A
vigência da lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo
razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula
"entra em vigor na data de sua publicação" para as leis de pequena
repercussão." Pelo seu § 1º. "a contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam
período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último
dia do prazo, entrando em vigor no dia subseqüente à sua consumação integral."
(Grifamos).
2. Sobre a reforma do
Código de Processo Penal e os demais projetos de lei, veja-se o que comentamos
em nosso Direito Processual Penal, Salvador: Editora JusPodivm, 2007.
3. Sobre o valor
probatório dos atos investigatórios produzidos no inquérito policial, veja-se o
nosso Direito Processual Penal, Salvador: Editora JusPodivm, 2007.
4. Comentários ao
Código de Processo Penal Brasileiro, Vol. I, Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1942, p. 429.
5. "Prejudicialidade",
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 89 (obra já esgotada).
6. Introdução ao
Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 25, na tradução
de Fernando Zani.
7. Derecho Procesal
Penal – Fundamentos – Tomo I, Buenos Aires: Editores del Puerto, 2ª. ed., 1999,
p. 507.
8. Nova Lei de
Drogas, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 139.
9. A esse respeito,
veja-se o que dissemos sobre a atividade persecutória do juiz no processo penal
acusatório no artigo "A PRISÃO,
AS MEDIDAS CAUTELARES E A LIBERDADE NA REFORMA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL",
inserido em nosso Direito Processual Penal, Salvador: Editora JusPodivm, 2007.
10.
Sobre la
Imparcialidad del Juez y la Incompatibilidad de Funciones Procesales, Valencia:
Tirant lo Blanch, 1999, p. 89.
11.
A respeito confira-se a obra de Luiz Flávio Gomes e
Raúl Cervini, Interceptação Telefônica, São Paulo: RT, 1997.
12.
Ada, Scarance e Magalhães Gomes, por exemplo,
esclarecem que "quando a
proibição for colocada por uma lei processual, a prova será ilegítima (ou
ilegitimamente produzida); quando, pelo contrário, a proibição for de natureza
material, a prova será ilicitamente obtida." (As Nulidades no
Processo Penal, São Paulo: Malheiros, 5ª. ed., 1996, p. 116).
13.
"Breve ensaio das provas ilícitas e ilegítimas
no direito processual penal", http://ultimainstancia.uol.com.br/ensaios/ler_noticia.php?idNoticia=34917
14.
"Lei 11.690/2008 e provas ilícitas: conceito e
inadmissibilidade", www.paranaonline.com.br,
22/06/2008.
15.
"Breve ensaio das provas ilícitas e ilegítimas
no direito processual penal", http://ultimainstancia.uol.com.br/ensaios/ler_noticia.php?idNoticia=34917
16.
Sobre o assistente, veja-se o que comentamos em
nosso Direito Processual Penal, Salvador: Editora JusPodivm, 2007.
17.
Sobre o ofendido, veja-se o que comentamos em nosso
Direito Processual Penal, Salvador: Editora JusPodivm, 2007.
18.
Juizados Especiais Criminais, São Paulo: Revista
dos Tribunais, 5ª. ed., 2005, p. 110.
19.
Antonio García-Pablos de Molina, Criminologia, São
Paulo: RT, 1992, p. 42, tradução de Luiz Flávio Gomes
20.
Juan H. Sproviero,
La víctima del delito y sus derechos, Buenos Aires: Depalma, p. 24
21.
Revista Brasileira de Ciências Criminais, São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, nº. 21, p. 422.
22.
O Papel da Vítima no Processo Criminal, Malheiros
Editores, 1995. Indicamos também o
trabalho intitulado "El papel de la víctima en el proceso penal según el
Proyecto de Código Procesal Penal de la Nación", por Santiago Martínez
(Fonte: www.eldial.com – 12/08/2005).
23.
La Vittima nel
Sistema Italiano Della Giustizia Penale – Un Approccio criminologico, Padova,
1990, p. 144.
24.
Ressalte-se a impropriedade técnica em falar-se de
manutenção ou modificação de sentença, quando se sabe que o acórdão, na
verdade, substitui a primeira decisão, representando um novo título.
25.
Teoria dos Princípios, São Paulo: Malheiros, 4ª.
ed., 2004, p. 131.
26.
O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal,
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 67.
27.
"Reflexiones
sobre el significado del principio constitucional de igualdad", artigo que
compõe a obra coletiva denominada "El Principio de Igualdad",
coordenada por Luis García San Miguel, Madri: Dykinson, 2000, p. 206.
28.
Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, São
Paulo: Malheiros, 1999, 3ª. ed., 6ª. tiragem, p. 47.
29.
Veja em nossa obra já referida, artigo sobre como
funciona este programa no Estado da Bahia e a sua ligação com o Ministério
Público Estadual.
30.
Sobre todos os aspectos da prova testemunhal, mais
uma vez remetemos o leitor ao que escrevemos em nosso Direito Processual Penal,
Salvador: Editora JusPodivm, 2007.
31.
"Cross-examination
e a simplificação das audiências" (O Estado do Paraná, 11/11/2007)
32.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 18 de agosto de 2007. Antes da
decisão do Supremo Tribunal Federal, e por fundamento diverso, a 7ª. Turma do
Tribunal Regional Federal da 4ª Região considerou nulo o depoimento por
videoconferência de uma testemunha que estava nos Estados Unidos, em processo
que tramitava na 2ª. Vara Federal Criminal de Curitiba. A defesa impetrou um
habeas corpus no TRF, em Porto Alegre, pedindo a suspensão da audiência on-line
após ter sido marcada pela justiça. Os advogados alegaram que essa forma de
depoimento não estaria prevista em lei, que não foram avisados do local onde
estaria a testemunha no país estrangeiro, que nenhum ato processual poderia ser
realizado sem a presença da defesa e que existiria risco de manipulação da
testemunha pela acusação. O relator do processo no tribunal, Desembargador
Federal Néfi Cordeiro, após analisar o habeas corpus, concluiu que o Código de
Processo Penal, ainda que não fale da modalidade de colheita de prova on-line,
visto que foi redigido antes do desenvolvimento dessa tecnologia, admite a
realização de qualquer meio de prova não vedado por lei. "Pessoalmente, penso que, inobstante as
restrições trazidas pela doutrina, são tão grandes as vantagens do uso da
tecnologia para a oitiva à distância e tão possíveis de controle os pequenos
riscos, que esse meio de prova tenderá a cada vez mais ser utilizado",
declarou Cordeiro. Para o Magistrado, a ilegalidade ocorreu quando o ato foi
realizado sem que fosse oportunizada a presença dos advogados no local. "A realização de audiência para inquirição de
testemunha, sem que os réus e seus advogados tenham sido corretamente
intimados, viola o princípio da ampla defesa", disse Cordeiro. O
Desembargador frisou que a anulação do depoimento como prova não foi devido à
sua realização on-line, observando, inclusive, que no TRF já existe norma
administrativa autorizando o uso da videoconferência. A turma concordou que a
audiência on-line é viável, desde que o ato seja realizado em local seguro,
previamente acordado com as autoridades do Estado requerido e comunicado às
partes do processo, para que os advogados possam estar presentes na sala de
audiências junto ao juiz ou na sala em que a testemunha é ouvida. Os
desembargadores decidiram, por unanimidade, confirmar a liminar que concedeu
parcialmente a ordem, permitindo que o ato seja repetido por meio de videoconferência,
desde que previamente combinado pelas partes. (HC 2005.04.01.026884-2/PR).
33.
Já na segunda edição, Salvador: Editora JusPodivm,
2007.
34.
Sobre o assunto, mais uma vez remetemos o leitor ao
que escrevemos em nosso Direito Processual Penal, Salvador: Editora JusPodivm,
2007.
35.
Curso de Direito Civil, Vol. V, Direito das
Obrigações, 2ª. Parte, 27ª. ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 403
36.
Apud Fernando da Costa
Tourinho Filho, Processo Penal, Vol. II, 20ª. ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p.
28
37.
Entendemos que este poder se traduz em verdadeiro
dever, ou seja, o Juiz cível, ao invés de poder, deve suspender o curso do
processo. Como ensina Maximiliano, "ater-se
aos vocábulos é processo casuístico, retrógrado. Por isso mesmo se não opõe,
sem maior exame, pode a deve, não pode a não deve. Se, ao invés do processo filológico de
exegese, alguém recorre ao sistemático e ao teleológico, atinge, às vezes,
resultado diferente: desaparece a antinomia verbal, pode assume as proporções e o efeito de deve". (cfr. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 7ª.
ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 336). Assim também pensa Tourinho
Filho, ao afirmar com propriedade: "A
faculdade que o parágrafo único do art. 64 do CPP concede ao Juiz da ação civil
de suspender a instância desta, até que seja definitivamente julgada a ação
penal proposta contemporaneamente com aquela, torna-se uma obrigação, pois que
o Juiz, velando pelo decoro da Justiça, terá de evitar o conflito de decisões
díspares, baseadas em um mesmo fato e na mesma ação antijurídica. E, para
evitar essas conseqüências desastrosas, pelo atrito de julgados
irreconciliáveis, a faculdade se há de converter em obrigação". (cfr. ob. cit., p. 36).
38.
Orlando Gomes, Curso de Direito Civil, Obrigações., p. 352.
* Procurador de
Justiça na Bahia. Ex-Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça e
Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais.
Ex-Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da
Universidade Salvador (UNIFACS), na graduação e na pós-graduação
(Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público).
Coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da
UNIFACS. Pós-graduado lato sensu em Direito Processual Penal pela Universidade
de Salamanca (Espanha). Especialista em Processo pela Universidade Salvador
(UNIFACS), em curso coordenado pelo Professor J. J. Calmon de Passos. Membro da
Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de
Professores de Ciências Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual.
Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e ao
Movimento Ministério Público Democrático. Integrante, por duas vezes
consecutivas, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na
carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos
cursos de pós-graduação da Universidade Federal da Bahia, do Curso JusPodivm,
do Curso IELF, da Universidade Jorge Amado e da Fundação Escola Superior do
Ministério Público. Autor das obras "Direito Processual Penal",
"Comentários à Lei Maria da Penha" (em co-autoria) e "Juizados
Especiais Criminais"– Editora JusPodivm, 2008, além de organizador e
coordenador do livro "Leituras Complementares de Direito Processual Penal",
Editora JusPodivm, 2008. Participante em várias obras coletivas. Palestrante em
diversos eventos realizados na Bahia e no Brasil.
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11517&p=2
Acesso em: 12 ago.
2008.