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A Lei nº 11.719/08 e a designação imediata da audiência
única de interrogatório e instrução
Renato Vasconcelos Magalhães*
Desde a publicação da Lei n. 11.719/08, no bojo da mini-reforma do
Código de Processo Penal - que acabou sendo realizada a retalhos, uma vez que,
do previsto, resta ainda o Projeto de Lei n. 4.206/01, que impõe nova
sistemática aos recursos e ações autônomas de impugnação, o Projeto de Lei n.
4.208/01, que modifica as medidas cautelares, e o Projeto de Lei n. 4.209, que
trata do inquérito policial -, magistrados de todo o país têm buscado uma
solução na operacionalização dos procedimentos para designação de audiências de
interrogatório e instrução (anteriores à lei citada) e de
interrogatório/instrução (posteriores à lei) durante o período de 60 (sessenta)
dias de vacatio legis, já que, (i) aprazando-se
audiência de interrogatório hoje para data posterior data da entrada em vigor
da lei, a mesma terá que atender ao novo dispositivo legal que prevê audiência
única de interrogatório e instrução (e possível julgamento) [1];
(ii) ao se pensar em aplicar, desde já, o novo regramento, depara-se com uma
legislação ainda sem vigência.
Uma solução encontrada por muitos magistrados e que
não me agrada é a de, nos processos onde os acusados respondem em liberdade,
aguardar com o feito parado/suspenso até a entrada em vigor da nova lei. Não me
parece que os acusados presos devam arcar com o ônus de uma legislação que não
previu as particularidades desse período de transição.
Lembrando deste fato, acredito que os mentores
intelectuais desta reforma, uma plêiade dos melhores processualistas, mais uma
vez esqueceram de ouvir um dos principais atores do processo, o juiz.
Infelizmente, essa tem sido uma prática constante nas reformas legislativas no
nosso país. Raramente os juízes, que lidam diariamente com o processo, são
consultados. Louvo nesse sentido a iniciativa recente da Associação dos
Magistrados Brasileiros (AMB) de tentar incluir na Comissão de Reforma do
Código de Processo Penal um representante da magistratura.
Enfrentamos atualmente o problema da transformação
na sistemática processual das audiências com reflexo direto no direito de
defesa do acusado. Nos revogados artigos do CPP que tratavam do interrogatório
do réu e da audiência de instrução, ao ser recebida a denúncia ou queixa, era
designado imediatamente o interrogatório do réu, ordenando-se a sua citação, a
notificação do Ministério Público, e se fosse o caso, a do querelante e do
assistente (art. 394). Ouvido, o réu teria o prazo de três dias para oferecer a
sua defesa-prévia (art. 395), onde seriam apresentadas as testemunhas. Com a
apresentação da defesa-prévia, era designada audiência de instrução para oitiva
das testemunhas, sendo ouvido inicialmente as testemunhas arroladas pelo
Ministério Público e em seguida as da defesa. Em regra, era designada uma
primeira audiência para oitiva das testemunhas do Ministério Público e, uma
segunda, na verdade, uma continuação da primeira, para oitiva das testemunhas de
defesa. Esse era o procedimento adotado pelo Código de Processo Penal antes da
reforma.
Agora, com a reforma, trazida pela Lei n. 11.719/08,
oferecida a denúncia ou queixa, caso o juiz não a rejeite liminarmente,
recebê-la-á [2] e determinará a citação [3] do acusado
para responder à acusação no prazo de 10 dias. Após a análise da defesa,
recebida a denúncia ou queixa, será designada audiência, no prazo máximo de 60
dias, onde serão ouvidos o ofendido (se houver), as testemunhas arroladas pela
acusação e defesa, procedidos aos esclarecimentos dos peritos, as acareações, o
reconhecimento de pessoas e, somente ao final, o interrogatório do acusado.
A alteração é substancial. Passamos de duas ou três
audiências para uma audiência única, como já acontecia no caso dos crimes de
tráfico de drogas, prevista na Lei n. 11.343/06. No entanto, com reforma, o
legislador deu um passo a mais do que havia feito com a lei de drogas,
concretizando o princípio constitucional da ampla defesa, ao prever o
interrogatório do acusado como último ato da audiência [4].
O interrogatório é o ato dentro do processo onde o
juiz ouve o réu sobre as imputações contra ele formuladas na denúncia. É o
momento onde o réu exercita, pessoalmente, a sua defesa, dirigindo-se
diretamente ao juiz, por quem é ouvido sem intermediários, proclamando, em toda
sua plenitude, a sua autodefesa. Pode o réu, por ocasião do seu interrogatório,
contestar os fatos ou versões colhidas no inquérito policial, confessar,
produzir provas ou mesmo permanecer calado. Não obstante, apesar do seu nítido
caráter de defesa, o interrogatório foi visto inicialmente muito mais como um
meio de prova à disposição do juiz. Mesmo adotando o sistema acusatório, a
teoria processual penal brasileira, num vento de autoritarismo oriundo da
Europa da época, incluiu o interrogatório no capítulo das provas.
É notória, no entanto, a evolução do interrogatório,
de ato exclusivo de prova, característico do sistema inquisitório, para um
misto de defesa e prova, do sistema acusatório, onde o réu passa a ser sujeito
da relação processual. Neste sentido, Magalhães Noronha nos diz que
"O interrogatório é concomitantemente meio de prova e meio de
defesa, pois enquanto o acusado se defende, não deixa de ministrar ao Juiz,
elementos úteis à apuração da verdade, seja pelo confronto com provas
existentes, seja por circunstâncias e particularidades das próprias declarações
que presta" [5].
Hoje, por força da própria modificação legislativa,
mas antes disso, por pressão da doutrina e jurisprudência, o interrogatório
sobreleva-se como importante meio de defesa a garantir tanto o contraditório
quanto à ampla defesa assegurados constitucionalmente. Lembremos que, antes da
reforma legislativa advinda com a Lei nº 10.792/03, o Supremo Tribunal Federal,
seguido pelo Superior Tribunal de Justiça, entendia que não era necessária a
presença do advogado e de sua intimação para o interrogatório judicial, uma vez
ser ato pessoal do juiz, não estando sujeito ao contraditório.
Com a reforma de 2003, o interrogatório passa a ser,
sobretudo, meio de defesa, podendo o réu permanecer calado, sem que isto
importe em confissão ou prejuízo da defesa. Após a realização das perguntas
pelo juiz, poderão as partes, o Ministério Público e a defesa, realizar
perguntas ao réu. A partir da reforma de 2003, não se tem mais dúvida sobre a
natureza do interrogatório judicial, encerrando o seu ciclo dentro do sistema
acusatório como meio de defesa.
Certo que o interrogatório consiste no ato
processual onde melhor se auferem as diferenças entre o método inquisitório e o
acusatório, Ferrajoli vai afirmar que:
"no modelo garantista do processo acusatório, informado pela
presunção de inocência, o interrogatório é o principal meio de defesa, tendo a
única função de dar vida materialmente ao contraditório e de permitir ao
imputado contestar a acusação ou apresentar os argumentos para se
justificar" [6].
Souza Nucci, após nomear alguns defensores das
quatro tendências que se formaram na doutrina nacional e estrangeira em torno
da natureza jurídica do interrogatório, ou seja: (i) como meio de prova,
fundamentalmente; (ii) como meio de defesa, sendo, em segundo plano, fonte de
prova; (iii) como meio de prova e de defesa; e (iv) como meio de defesa
primordialmente e, em segundo plano, meio de prova; esclarece a sua posição
aderindo a esta última corrente:
"Note-se que o interrogatório é, fundamentalmente, um meio de
defesa, pois a Constituição assegura ao réu o direito ao silêncio. Logo, a
primeira alternativa que se avizinha ao acusado é calar-se, daí não advindo
conseqüência alguma. Defende-se apenas. No entanto, case opte falar, abrindo
mão do direito ao silêncio, seja lá o que disser, constitui meio de prova inequívoco, pois o
magistrado poderá levar em consideração suas declarações para condená-lo ou
absolvê-lo." [7]
Já há quem diga, inclusive, que o interrogatório
passou a ser, com o advento da lei 10.792/03, agora reforçada pela Lei
11.719/08, meio exclusivo de defesa. Rodrigo de Melo, comenta precisamente a
passagem de Nucci acima citada:
"Tal argumentação é igualmente falaciosa, na medida em que o
magistrado poderá levar em consideração não só as declarações do acusado no
interrogatório, como também as lançadas na sua defesa prévia e nas alegações
finais, para proferir a sentença. A prevalecer tal posicionamento, fazendo o
mesmo raciocínio, seríamos forçados a reconhecer os dois últimos atos aqui
apontados (nítidos meios defensivos) como meios de prova, o que nos parece
absolutamente inconcebível" [8].
O interrogatório, seja como meio primordial ou
exclusivo de defesa, insere-se dentro do princípio da ampla defesa, trazendo,
inclusive, para dentro de si, a possibilidade do contraditório. O princípio da
ampla defesa encontra seu matiz ontológico no nosso sistema jurídico dentro da
carta constitucional de 88 em seu artigo 5º, LV, que trata conjuntamente do
contraditório: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e
aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os
meios e recursos a ela inerentes". Antes mesmo, outras Constituições já
haviam contemplado o princípio: 1824, art. 179, VIII; 1891, art. 72§ 16; 1934,
art. 113, n. 24; 1937, art. 122, n. 11, segunda parte; 1946, art. 141, § 25;
1967, art. 150, § 15.
Insere-se a ampla defesa dentro daquelas garantias
asseguradas ao acusado de um processo justo, como corolário do devido processo
legal. Assim, mais que um direito, trata-se de verdadeira garantia ao acusado
de se valer de todos os meios necessários à plenitude de sua defesa. Não é
simplesmente o acesso a todos os meios legais, senão a criação destes meios de
acordo com a necessidade de defesa real. Somente assegurar ao acusado que
disponha de todos os meios previstos em lei para a sua defesa não é suficiente.
Faz-se imprescindível que a legislação infra-constitucional possibilite ao
agente todos os mecanismos necessários para a sua defesa. Mesmo a falta de
previsão legal não deve ser empecilho à materialização da ampla defesa, daí
porque a necessidade de uma interpretação da legislação processual penal conforme
a Constituição.
Dentro do processo penal, a ampla defesa adquire uma
conotação de ainda maior relevo, uma vez que a impossibilidade de refutação
plena das provas produzidas pela acusação poderá redundar na responsabilidade
penal do indigitado com o provável cerceamento de sua liberdade. Se no processo
civil a defesa é considerada de suma relevância, dentro do processo penal
torna-se a pedra de torque das garantias do cidadão. Neste sentido, Greco Filho
nos afirma a importância da defesa no processo penal:
"o desenvolvimento e estrutura do processo penal, a garantia mais
importante e ao redor do qual gravita é a ampla defesa, com os recursos a ela
inerentes, sobre a qual convém insistir e ampliar" [9].
No processo penal, a ampla defesa constitucional é
interpretada tanto como direito à defesa técnica, quanto à autodefesa.
Precisamente dentro deste marco teórico é que se deu a reforma do Código de
Processo Penal introduzida inicialmente pela Lei n. 10.792/03, adequando-o às
exigências do princípio constitucional em comento. A defesa técnica é
imprescindível à substancialização das garantias do acusado na medida em que
lhe permite lutar em condições de igualdade com a parte adversa, na maioria dos
casos um Ministério Público altamente qualificado. Esta defesa, além de
necessária e indeclinável, não podendo o acusado a ela renunciar, deve ser
efetiva, ou seja, não pode ser uma defesa apenas de faz de conta [10].
Ao acusado é assegurado o direito de escolha de seu defensor, não obstante,
caibe ao juiz a fiscalização da defesa realizada. Se em algum momento o
magistrado perceber que o agente se encontra com uma defesa deficiente, que lhe
possa trazer prejuízo, cabe-lhe, de ofício, destituir o advogado da defesa do
acusado, intimando-o para que indique outro defensor, ou no seu silêncio,
nomear um dativo.
Voltemos ao interrogatório e sua inclusão, agora
como elemento assentado não mais somente na doutrina e na jurisprudência, mas
na própria legislação, como meio de defesa dentro da audiência. Tratando-se de
matéria defesa, era de se esperar que o mesmo fosse realizado somente após a
apresentação das provas da acusação como se dá nos juizados especiais. Na
verdade, a localização temporal do interrogatório nos processos ordinários e
especiais antes da produção da prova da acusação, sempre me pareceu contrária
aos princípios norteadores da ampla defesa esculpidos nas Constituições
Federais. Tanto é assim, que agora se corrige o equívoco. Mais do que isso,
vale lembrar que desde a reforma do interrogatório em 2003, através da Lei n.
10.792/03, havia a previsão no projeto de lei da realização do interrogatório
como último ato defesa. Infelizmente, o artigo que continha esta previsão foi
excluído nas discussões do projeto.
"Uma ressalva importante: o projeto da Comissão de Reforma peneiro
previa, no sentido da natureza jurídica de meio de defesa, que o ato do
interrogatório deveria ser realizado após a prova oral colhida (testemunhas,
vítimas, informantes, etc.), ou seja, o réu conhecia primeiro de toda prova
oral e, após, prestaria seu interrogatório. Todavia, esta mudança não ocorreu,
permanecendo o interrogatório onde sempre esteve no CPP: primeiro ato
instrutório nos crimes apenados com reclusão (rito ordinário) e detenção (rito
sumário)" [11]
A ampla defesa, assegurada através da realização do
interrogatório do acusado após a colheita das provas orais, materializa-se na
oportunidade de conhecimento de todos os fatos que lhe são imputados e, não
somente, aqueles trazidos com a denúncia. É certo que a judicialização da prova
inquisitorial trás elementos de suma importância à solução da lide penal e que,
muitas vezes, não estão explicitamente contidos na denúncia. A ampla defesa,
assim, somente é assegurada primeiro, com a completa transparência da imputação
que lhe é feita, não somente com a denúncia, mas com as provas judiciais
colhidas em audiência; e, segundo, com a possibilidade de refutação das provas
até então apresentadas. Se o interrogatório é, como vimos, a principal forma de
defesa do acusado, é mister que o mesmo se realize após o conhecimento das
provas contra si existentes.
O contraditório que se forma com o interrogatório (e
não no interrogatório, com as reperguntas – agora perguntas) é essencial à
dialeticidade do processo. Primeiro, ouve-se a acusação e, depois, se
oportuniza ao acusado momento para a sua defesa. A ampla defesa consiste, no
caso, não somente na possibilidade do acusado produzir todos os meios
permitidos em lei para a sua defesa, proporcionando, como vimos, a defesa
técnica efetiva, mas também na autodefesa, que deverá dar-se sempre após a
produção de provas da acusação.
Pensar na realização da defesa antes de esgotada as
provas da acusação, ou seja, antes do conhecimento pleno do que se imputa ao
acusado, representa uma ofensa direta ao princípio da ampla defesa. Neste
sentido, comentando especificamente sobre o tribunal do júri:
"Ressalte-se que é imprescindível para o perfeito exercício da
ampla defesa que o acusado manifeste-se sempre depois da acusação e,
especificamente, no rito do Tribunal do Júri poderá o juiz nomear novo defensor
ao réu, quando o considerar indefeso (art. 497, incico V, CPP" [12]
Assim, parte da reforma do CPP trazida pela lei
11.719/08 veio a corrigir esta flagrante inconstitucionalidade, ou seja, a
produção da prova de defesa anterior à de acusação, maculando o princípio da
ampla defesa esculpido no art. 5º LV da Constituição Federal. Ocorre que,
infelizmente, o legislador, acreditando ser necessário um certo tempo para o
conhecimento e adaptação da nova legislação, optou por um período de vacatio legis de 60 dias,
prolongando, dessa forma, a ofensa ao direito a ampla defesa do acusado.
Uma das melhores soluções que me apresenta para a
correção desta distorção é a aplicação imediata da nova lei, naquilo que for
mais benéfico ao acusado, e que corrija qualquer ofensa às garantias
constitucionais. Com isto se estará reforçando a idéia de um processo penal
constitucional sem máculas.
No Direito Penal, ainda que o princípio seja o do tempus regit actum, a final de contas
a lei rege, em geral, os fatos praticados durante a sua vigência, há no próprio
diploma legal, para harmonizar-se com o princípio da reserva legal, a previsão
da possibilidade da norma jurídica atingir fatos ocorridos antes do início de
sua vigência (retroatividade), ou posteriores à sua revogação (ultratividade).
Não nos cabe aqui discorrer sobre todos os aspectos da lei penal no tempo,
senão destacar que tanto a retroatividade, quanto a ultratividade se
estabelecem apenas para a lei nova mais benigna (lex mitior), o que se depreende em parte, de comando
constitucional (art. 5º XL).
A aplicação imediata de novas leis penais mais
benéficas ao réu, ainda que durante o período de vacatio legis, é uma realidade na nossa doutrina e
jurisprudência. Silva Franco, citando Raggi, já citado por Nelson Hungria diz
que "a lei em período de vacatio
não deixa de ser lei posterior, devendo, pois, ser aplicada desde logo, se mais
favorável ao réu" [13]. Continua, ainda, desta vez citando
artigo de sua autoria:
"Entendimento contrário conduziria a uma situação de flagrante
iniqüidade e daria azo a atos judiciais de puro arbítrio. Apenas porque a lei
posterior foi deferida na sua vigência por deliberação do legislador ordinário,
como possa admitir eu uma pessoa possa permanecer presa por fato que, após a
sua prática, deixou de ser havido como criminoso, ou deixe de receber favor
legal que minimize a pena imposta ou, de qualquer modo a beneficie?"
[14]
Da mesma forma tem se posicionado a nossa
jurisprudência:
"Dado o caráter de garantia constitucional do cidadão, o princípio
de aplicação aos réus criminais da lex mitior não pode sofrer protraimento, que
ocorreria se aguardasse o vencimento da vacatio
legis para a sua incidência" TACRIM – SPVCP – Rel. Adauto Suannes –
RT 589/329).
Será então possível utilizar o mesmo raciocínio para
a aplicação da nova lei 11.719/08, que ainda se encontra em período de vacatio legis? Acredito que a
resposta deva ser positiva para todas as situações em que se tem um
favorecimento do acusado e afrontamento a suas garantias constitucionais.
Todos nós sabemos que a regra que rege os atos
processuais penais é aquela esculpida no art. 2º do Código de Processo Penal:
"A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade
dos atos realizados sob a vigência da lei anterior". Adotamos o princípio
do tempus regit actum, da mesma
forma que as leis penais, ou seja, de aplicação imediata das normas processuais
penais sem, no entanto, terem o efeito retroativo comum àquelas, do contrário,
ter-se-ia que anular os atos anteriores o que acarretaria ao processo muito
mais transtornos que soluções. Destarte, como conseqüência imediata deste
princípio, o fato de que os atos processuais realizados sob a égide da lei
anterior serão considerados válidos, aplicando-se a lei nova somente após a sua
vigência e para os atos a partir de então, respeitando, obviamente, o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Esta é a regra geral
dentro da processualística penal que, no entanto, encontra particularidades, no
direito material.
A regra, portanto, é a da aplicação imediata da lei
processual, impossibilitada a sua retroatividade, até para salvaguardar os atos
processuais findos que não devem ser atingidos por modificações posteriores.
Ocorre, no entanto, que esta regra geral como, de sorte, quase todas as regras
e princípios, sofre exceções. Principalmente quando a impossibilidade de
retroação da lei nova vem a causar sérios prejuízos ao acusado.
Precisamente por conta da limitação temporal da
atividade normativa processual, a doutrina começou a estudar a natureza das
normas processuais e a identificar dentro daquelas essencialmente processuais,
normas com natureza híbrida ou mista, ou seja, aquelas com natureza processual,
mas com forte conteúdo de Direito Penal. Nucci, nos reporta que este conteúdo
"é extraído da sua inter-relação com as normas de direito material,
isto é, são normalmente institutos mistos, previstos no código de Processo
Penal, mas também no código Penal, como ocorre com a perempção, o perdão, a
renúncia, a decadência, entre outros" [15].
Sholz, por seu turno, afirma que ainda que sobre a
roupagem de normas processuais, muitas apresentam verdadeiro caráter material:
"As normas que repercutem, direta ou indiretamente sobre a liberdade
do cidadão, contemplando medidas que tratem, originariamente ou não, da sua
privação antes do transito em julgado da decisão, são normas apenas formalmente
processuais, mas essencialmente materiais, independente do caráter da
legislação que contenha" [16]
Assim, com as normas processuais de natureza
jurídica híbrida, ou seja, processual e material, não ocorre a limitação do
art. 2º do CPP. Estas normas, exatamente por sua relação com o Direito Penal,
excetuam o princípio do tempus regit
actum e podem vir atingir fatos ocorridos mesmo antes de sua vigência,
em conformidade com o parágrafo único do artigo 2º do Código Penal,
recepcionado pelo art. 5º XL, da Constituição Federal.
O maior problema reside em se saber exatamente quais
são estes tipos de normas como lembrou Fernando Capez:
"Tarefa difícil é, entretanto, fazer essa identificação. A norma
terá caráter penal material quando versar sobre o direito de punir do Estado
(tanto em sua forma abstrata quanto em seu aspecto concreto, isto é, como pretensão
punitiva), criando-o, extinguindo-o, modificando-o. Assim, normas relativas ao
direito de representação, à prescrição, à decadência e à perempção serão,
concomitantemente, penais e processuais penais (PC, art. 107, IV). Vê isso nas
discussões em torno da Lei n. 9.099, que transformou as infrações de lesões
corporais leves e de lesões culposas em crimes de ação penal pública
condicionada à representação (art. 88). Do mesmo modo, normas que dizem
respeito à progressão de regime, por ampliarem ou restringirem a satisfação do
direito de punir do Estado, implicando maior ou menor rigor no cumprimento da
pena, têm natureza preponderantemente penal, devendo submeter-se ao princípio
constitucional da retroatividade in
mellius." [17]
Nucci, tentando clarificar esta distinção, afirma
que:
"além dos institutos dupla previsão (penal e processual), existem
aqueles vinculados à prisão do réu, merecedores de serem consideradas normas
processuais penais materiais, uma vez que se referem à liberdade do
indivíduo" [18]
Na verdade, não se tem, e obviamente não se poderia
ter, uma delimitação perfeita dos contornos materiais de uma norma processual
penal, impossibilitando uma certeza quanto à carga penal necessária à
configuração da natureza híbrida de tais normas. Por tal razão, acredito que
todas as normas que se referem ao direito de defesa assegurado
constitucionalmente, por trazerem repercussão direta no status libertatis do cidadão, tenham um conteúdo substancial. Se
eu limito, por exemplo, a possibilidade de prova da inocência de um cidadão, eu
estou, claramente, atentando contra a sua liberdade.
No entanto, mais do que saber se a norma processual
possui ou não uma carga material, o importante é reconhecer se a aplicação
desta norma, ainda que de caráter processual, vai trazer benefícios
impostergáveis ao acusado. Somente assim, se estará aplicando em toda a sua
largueza o princípio da dignidade da pessoa humana. Recusar a qualquer pessoa
que responde um processo criminal a aplicação imediata das vantagens de uma nova
lei mais benéfica é atentar contra a sua dignidade por mero apego à letra da
lei. Não estou falando aqui em retroatividade de lei processual mais benéfica,
senão em aplicação imediata de uma lei que garante ao acusado o melhor
exercício de sua defesa.
Conforme já restou demonstrado, o direito à ampla
defesa, assegurado constitucionalmente, garante a todo cidadão um processo
justo, onde haja paridade de forças e onde ele possa exercer em plenitude a sua
defesa. O interrogatório, como elemento essencial dessa defesa, deve ser
oportunizado ao fim da produção de provas da acusação, consagrando a
dialeticidade do processo, assegurando um verdadeiro contraditório. Assim
também a apresentação da defesa-prévia anterior ao interrogatório ao acusado.
Sobre o contraditório e a igualdade processual o STJ assim se pronunciou:
"o princípio do contraditório, com assento constitucional,
vincula-se diretamente ao princípio maior da igualdade substancial, sendo certo
que essa igualdade, tão essencial ao processo dialético, não ocorre quando uma
das partes se vê ceceada em seu direito de produzir prova ou debater a que se
produziu (STJ – 4ª T – Resp. n. 998-A – Rel. Ministro Sávio de Figueiredo –
Ementário STJ n. 1/378)
As inovações, como vimos, foram trazidas pela nova
reforma do Código de Processo Penal que, no entanto, encontram-se, dentro da
ótica deste magistrado, equivocadamente engessadas em razão de uma vacatio.
Vicente Cernicchiaro, comentando a aplicação da lei
penal durante o período de vacatio legis, vaticina:
"Também aqui deve ser atendida a teleologia da norma. Cumpre
sacrificar o aspecto meramente formal. Sem dúvida, a vigência é indispensável
para gerar a obrigação ao destinatário para conduzir-se de acordo com o imposto
pela lei. A Vacatio legis é
estabelecida para favorecer as pessoas. Instituo desta natureza não pode gerar
efeito oposto, ou seja, gerar prejuízo, gerar ônus." [19]
O mesmo pode se dizer da vacatio legis em relação ao direito processual. Não é o objetivo
da vacatio causar qualquer
prejuízo às partes. Ao contrario, o seu fim, como dito, é assegurar pleno
conhecimento da lei e assim sua melhor aplicação. Em sendo vantajoso para o
acusado, não há porque não se aplicá-la desde logo, apegando-se a mero
formalismo legal. Principalmente, no caso sobre o qual nos debruçamos, onde as
normas a serem modificadas apresentam-se disformes aos mandamentos
constitucionais. Para que adiar ainda mais a agonia de uma norma que afronta a
Constituição Federal? Porque estender os seus efeitos deletérios sobre os
cidadãos se sua morte já é anunciada? Assim, o mero apego a um formalismo
legal, causando lesão às garantias do acusado de um processo justo, entra em
choque com a própria Constituição, uma vez que posterga direitos fundamentais
do acusado.
"Já não se pode dizer que os direitos fundamentais só têm real
existência jurídica por força da lei, ou que valem apenas com o conteúdo que
por esta lhes é dado, porque a Constituição vincula positivamente o legislador
e uma lei não terá valor jurídico se atentar contra norma constitucional que
consagra um direito." [20]
Comentando essa passagem Silva Franco arremata que:
"Tal postura significa uma substancial mudança de enfoque no
relacionamento entre Constituição e a lei, pois na medida em que os princípios
consagradas na Constituição dispensam a mediação legislativa é obvio que não
são mais (agora citando Canotilho) ‘os direitos fundamentais que se movem no
âmbito da lei, mas é alei que se deve manter no âmbito dos direito fundamentais
(José Joaquim Gomes Canotilho, direito Constitucional, Coimbra, 1983, p.
489" [21].
Devemos, pois, realizar uma interpretação do
instituto da vacatio legis, em
conformidade com a Constituição Federal. Se o direito à ampla defesa é um
direito fundamental do cidadão, que lhe garante um processo justo, não devemos
aguardar a entrada em vigor de uma lei que assegura um mandamento
constitucional simplesmente para atender a uma mera formalidade que criada para
trazer benefícios, no caso concreto, acaba por gerar um ônus absurdo. Nem se
diga, o fato de que as denúncias-crime que hoje chegam aos juízes aguardam nas
prateleiras a entrada em vigor da nova lei para serem despachadas, ou estão
sendo ordenadas utilizando-se de uma norma que, em poucas semanas, já não mais
existirá, e que, além de contrária a Constituição Federal, terá de ser renovada
em face da nova legislação, causando ainda mais retardo na prestação
jurisdicional. Assim que entendo que a única forma de obedecer o mandamento
constitucional que garante um processo justo, dentro das balizas do contraditório
e da ampla-defesa, é a aplicação imediata da Lei n. 11.719/08 no que diz
respeito à designação de audiência única de interrogatório e instrução.
Notas
1. Uma variante deste
problema ocorrerá se já tiver havido o interrogatório do réu. Da mesma forma,
será aprazada audiência de instrução, seguindo a legislação vigente, para data
posterior ao dia 20 de agosto, quando a audiência já será única.
2. Esse recebimento
toma por base o disposto no novo art. 395 que prevê a rejeição da denuncia
quando for: (i) manifestamente inepta; (ii) faltar pressuposto processual ou
condição para o exercício da ação penal; ou (iii) faltar justa causa para o
exercício da ação penal. O recebimento do art. 397, leva em consideração, a
reposta do acusado delineada no art. 396, onde o acusado poderá argüir
preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa. difere do recebimento
que ocorrerá posteriormente à apresentação da defesa-previa. O juiz deverá,
ainda, por ocasião desse segundo recebimento, verificar se não é o caso de
absolvição sumária do acusado (art. 397).
3. Leia-se, no caso,
notificação, como o faz a Lei n. 11.343/06, em seu art. 55, caput e o Código de
Processo Penal, em seu art. 514. A citação deverá ocorrer somente após o
recebimento da denúncia, passando a integrar a relação processual.
4. Na verdade, não se
trata de nenhuma novidade dentro da nossa sistemática processual penal. A lei
dos juizados criminais, uma das mais inovadoras e garantistas do nosso
ordenamento jurídico já determinava a realização do interrogatório como ultimo
ato da audiência.
5. NORONHA, E.
Magalhães. Curso de Direito Processual
Penal. São Paulo: Saraiva, 1971, p. 105.
6. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal.
Trads. Ana Paula Zomer Sica e outros. 2ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais. 2006, p. 560.
7. NUCCI, Guilherme
de Souza. Código de Processo Penal
Comentado. 3ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2004, p. 372.
8. CABRAL, Rodrigo de
Melo. A Lei n. 10.792/03 e o novo
modelo de interrogatório como meio de defesa no processo penal: uma abordabem
doutrinária. Cfr.. em http://www.juspodivm.com.br/novo/arquivos/artigos/processo_penal/rodrigo-melo-cabral-modelo-interrogatorio-meio-defesa-proc-penal.pdf.,
acessado em 27.07.08
9. GRECO FILHO,
Vicente. Tutela Constitucional das
Liberdades. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 110, apud. FERNANDES, Antônio
Scarance. Processo Penal
Constitucional. 3ª ed. rev. atual. e ampl. 2002, p. 266.
10.
Idem. p. 272
11.
GOMES, Luiz Flávio e VANZOLINI, Maria Patrícia
(coords). Reforma Criminal. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 261.
12.
SOARES, Cristiane. Princípios Gerais do Direito Processual Penal. Cfr. em
http://www.praetorium.com.br/?section=artigos&id=126, acessado em 26.07.08
13.
FRANCO, Alberto Silva e outros. Código Penal e sua Interpretação
Jurisprudencial. 5ª ed. rev. e ampl. 2ª tir. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 1995, p. 48.
14.
FRANCO, Alberto Silva e outros. op. cit. p. 48
15.
NUCCI, Guilherme. Código de Processo Penal Comentado. 3ª ed. rev., atual. e ampl.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p.62
16.
SHOLZ, Leônidas ribeiro. A eficiência temporal das normas sobre prisão e liberdade.
Revista Brasileira de Ciências Criminais, Nº 14, p. 20, apud. MIRABETE, Julio
Fabbrini e FABBRINI, Renato N., Manual de Direito Penal. Parte Geral. Arts. 1º
a 120 do CP. Vol. 1. 24ª ed. ver. e atual. São Paulo: Editora Atlas, 2007, p.
54.
17.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 8ª ed. rev. e atualiz. São Paulo:
Editora Saraiva, 2002.p. 49.
18.
NUCCI, Guilherme. op. cit., p. 62.
19.
CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Direito Penal na Constituição. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 1991, p. 70.
20.
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os Direitos Fundamentais. Coimbra,
1983, p. 255, apud, FRANCO, Alberto Silva e outros. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. 5ª ed. rev. e
ampl. 2ª tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 47
21.
FRANCO, Alberto Silva e outros. op.
cit. pp. 47-48.
* Juiz de Direito no
Rio Grande do Norte
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11557
Acesso em: 11 ago.
2008.