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A tutela antecipada nos
tribunais superiores
Luiz Fux*
A reforma processual
promovida na década de 90, motivada pelos escopos de efetividade do processo e
da tempestividade da resposta judicial, trouxe em seu bojo instrumentos
notáveis, dentre os quais se destacam a "antecipação de tutela"
e a concessão de poderes ao relator dos recursos para coibir o que poderíamos
denominar "abuso do direito de recorrer".
No
que pertine ao primeiro aspecto, o legislador encartou no sistema processual
pátrio norma in procedendo habilitando o "juiz" (leia-se: os
integrantes das magistraturas em qualquer grau de jurisdição)1 a
conceder a antecipação dos efeitos práticos pretendidos pela parte através de
seu pedido, antes da decisão final, desde que exibida prova inequívoca
conducente à verossimilhança da alegação de que o direito sub judice reclama
pronta resposta posto em "estado de periclitação" ou em "estado
de evidência"2.
O
novel instituto participa da ideologia que cerca o constitucionalizado
princípio do due process of law, porquanto não se pode acenar para a
parte com essa promessa constitucional se, diante de casos em que o direito
está na iminência de perecer ou se revela líquido e certo, posterga-se-lhe a
imediata prestação de justiça. Ambos são casos em que a resposta jurisdicional
deve ser imediata. Na periclitação, porque o direito não pode aguardar as
delongas da ordinariedade sem realização imediata, sob pena de perecer.
Na
evidência, porquanto diante da liquidez e certeza do direito não há necessidade
de delongas especulativas por parte do juiz, imperiosas apenas nos denominados
"estados de incerteza".
A
repressão ao "abuso do direito de recorrer" decorre do poder de que é
dotado o relator, e a fortiori o colegiado, para negar seguimento ao
recurso manifestamente inadmissível, improcedente ou contrário ao entendimento
predominante dos tribunais, máxime se consubstanciado em súmulas.
Sob
essa ótica, por via oblíqua o legislador propicia uma rápida solução judicial,
obstando que uma parte fique à mercê da outra, privilegiando o princípio
isonômico-processual e a conduta coram judicem no atuar
jurisdicionalmente3
CARVALHO,
Paulo Gustavo M. (Coord.). Processos nos tribunais superiores: de acordo
com a Emenda Constitucional n. 45/2004. Belo Horizonte: Saraiva, 2006. p. 223-
229. A Tutela Antecipada nos Tribunais Superiores
causa,
ficando a interposição de qualquer outro recurso condicionada ao depósito do
respectivo valor".
A
fusão desses dois novos instrumentos viabilizou algo que outrora se observava
com mais freqüência na instância a quo, qual seja, a concessão de
liminares pelo juízo ad quem. Deveras, com o mesmo escopo de efetividade
a recente reforma, no art. 558 do CPC, passou a admitir a concessão de
suspensividade ope judieis a recursos dotados de dupla eficácia toda vez
que se vislumbre "risco de dano irreparável"4.
Sob
esse ângulo, num primeiro momento a praxe revelou a aplicação literal do novo
dispositivo, por isso que os órgãos fracionários dos tribunais limitaram-se a
"sustar" decisões "passíveis de revisão". Posteriormente,
através do papel criativo da jurisprudência consagrou-se o efeito ativo
"dos provimentos de segundo grau diante da irresignação quanto aos atos
omissivos da primeira instância"5.
Hodiernamente,
nossos tribunais praticam os novéis institutos com largueza, ora sustando
efeitos das decisões recorríveis, ora concedendo efeito ativo aos recursos.
Assente-se que, nos tribunais superiores, é usual a utilização de
"provimentos cautelares" com base em dispositivo regimental (v. g., o
art. 288 do RISTJ) para impedir a execução de decisões sujeitas aos recursos
para esses órgãos de cúpula e que tradicionalmente não ostentam efeito
suspensivo6.
Acerca
dessa recente prática, mas de diuturno manejo, inúmeras páginas encontram-se
lavradas nas obras versantes sobre a tutela antecipada.
A
"questão elegante" que se põe, na verdade, não é a da antecipação
consistente nessa estratégia meramente processual de sustar ou conceder o
efeito ativo ao recurso em si, senão de "antecipar a satisfação do pedido
no âmbito dos tribunais superiores".
Consoante
é cediço, a antecipação de tutela significa realização antecipada, por isso que
já se afirmou, em "belíssima sede doutrinária", que a realização da
tutela antecipada começa por onde termina o processo de execução, posto dotada
de satisfatividade plena7. Essa é a questão ora suscitada: podem os
tribunais superiores, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de
Justiça, conceder a antecipação de tutela com esse espectro de satisfação?
Algumas
questões antecedem a conclusão esperada.
Em
primeiro lugar, cumpre destacar a hipótese em que o recurso é interposto com o
fim de obter a providência negada na instância de origem e que se pretende
obter antecipadamente, na premissa do provimento do recurso especial ou extraordinário.
Trata-se, portanto, de pedido formulado pelo próprio recorrente.
Em
segundo lugar, forçoso analisar a pretensão, no mesmo sentido, deduzida
"pelo recorrido", posto entender "abusivo o recurso
interposto".
No
primeiro caso a antecipação da tutela requerida ao relator ad referendum do
colegiado dependerá da verificação da verossimilhança do alegado, à luz do
contexto recursal8.
Poder-se-ia
objetar essa possibilidade de antecipação sob o argumento de que a concessão
demandaria análise da "prova inequívoca", cognição interditada aos
tribunais superiores, que se autolimitaram quanto à apreciação de elementos de
convencimento, adstringindo-se à manutenção da inteireza e interpretação do
objetivo "direito".
Entretanto,
é inegável que os tribunais superiores, mercê de não empreenderem um
"reexame da causa" em terceiro grau de jurisdição,
"julgam-nas", aliás, como a própria Constituição Federal explicita9.
Destarte,
a prova inequívoca exigida para a antecipação de tutela não é senão a liquidez
e certeza do "próprio direito em jogo"10, e de aferição
exemplar pelos tribunais superiores, porquanto acodem a essas cortes
extraordinárias, devidamente prequestionados.
Não
há a menor dúvida de que a exaustão processual cognitiva a que se submetem as
partes antes da chegada do recurso aos tribunais superiores revela um elemento
positivo, que é a apuração da juridicidade do que se está discutindo. Ademais,
pela eminência, experiência e cultura de seus membros integrantes, não há órgão
julgador mais adequado à verificação do direito escorreito, procedente, do que
as Cortes Maiores. E este é o pressuposto inafastável da antecipação de tutela.
Destarte, mister ainda assentar que afrontaria a lógica jurídica, elemento
inafastável da hermenêutica, admitir ao juiz de primeiro grau antecipar a
tutela e vetá-la aos mais eminentes tribunais superiores do País...11.
A
segunda indagação parece instigar questões mais delicadas, porquanto o pleito
de antecipação, em princípio, é obra do recorrente.
Subjaz,
assim, a indagação sobre se é possível ao recorrido pleiteá-la.
A
questão deve ser analisada sob o mesmo prisma da prova inequívoca da
verossimilhança do direito sub judice.
Revela-se
possível que o recorrido, por prudência e depois de obter sucessivas vitórias
na justiça local, aguarde a remessa dos autos aos tribunais superiores, para só
então pleitear a antecipação.
Considerando-se
que a tutela antecipada equivale à satisfação antecipada, tem-se que, se
vitorioso na instância última, o recorrido poderá promover a execução. Ora, se
a execução é de sua iniciativa, a antecipação de seus resultados também pode
sê-lo, e a sede própria para pleiteá-la, estando o processo nas cortes
superiores, é o tribunal maior12.
É
de somenos o fato de que o recorrido poderia ler postulado na instância de
origem uma "execução provisória", que, como se sabe, diante de todas
as suas limitações, não apresenta, de regra, tanta utilidade. Aliás, afirmou-se
com autoridade insuperável que a "execução provisória é um nada
jurídico", não se extraindo qualquer proveito desse adiantamento levado a
efeito pelo vencedor da demanda13. Não é por outra razão que as reformas
européias admitem a "execução completa" com base em decisão
provisória14, solução que hoje, de lege ferenda, indicia
tornar-se brevemente de lege lata, com o advento da "reforma da
reforma" do Código de Processo Civil.
Ademais,
conceder a antecipação ao recorrente e vetá-la ao recorrido implica violação ao
princípio da isonomia, sem prejuízo de conspirar contra um dos cânones da
reforma processual que foi exatamente o de ''"reprimir o abuso do direito
de recorrer"15.
Por
fim, a possibilidade de concessão antecipatória nos tribunais superiores
desestimula os recorrentes abusivos, que através de longa postergação do
direito do vencedor, logram arrancar-lhe indesejáveis concessões, mercê da
lesão causada pelo próprio tempo da satisfação judicial16.
Reconhecida
a antecipação como instrumento de efetividade da prestação judicial, técnica
capaz de vencer a tão decantada morosidade da justiça, que afronta os mais
comezinhos direitos fundamentais da pessoa humana, nada mais apropriado que
delegá-la aos tribunais superiores, os quais, mantendo a inteireza do direito
nacional, logram carrear para o poder a que pertencem o prestígio necessário
àqueles que, consoante as sagradas escrituras, possuem o sumo sacerdócio da
saciar os que têm sede e fome de justiça17
Notas
1
Luiz Guilherme Marinoni, na festejada obra Tutela antecipatória,
julgamento antecipado e execução imediata da sentença em convergente opinião,
doutrina: "O art. 273 faz referência apenas ao juiz, mas toma a expressão
no seu sentido mais amplo, de magistrado, até porque os integrantes dos
Tribunais de Alçada e dos Tribunais Regionais Federais, como se sabe, são
denominados juizes, e não teria sido, obviamente, intenção do legislador
permitir a antecipação nos Tribunais de Alçada e Regionais Federais e não a
admitir nos Tribunais de Justiça (RT 1997, p. 179).
2
Consoante tivemos oportunidade de ressaltar em nosso trabalho Tutela de
segurança e tutela da evidência, Saraiva, 1996, "A tutela antecipada
reclama pressupostos substanciais e pressupostos processuais. Genericamente,
poder-se-ia assentar que são pressupostos substanciais a "evidência"
e a "periclitação potencial do direito objeto da ação", e processuais
a "prova inequívoca conducente à comprovação da verossimilhança da
alegação" e o "requerimento da parte".
A
esses requisitos a lei os enumera como "grave risco de dano irreparável e
abuso do direito de defesa" (art. 273 do CPC).
3
3 Código de Processo Civil:
"Art.
557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível,
improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência
dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal ou de Tribunal
Superior. § 1º A Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com
súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de
Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso.
§
1º Da decisão caberá agravo, no prazo de cinco dias, ao órgão competente para o
julgamento do recurso, e, se não houver retratação, o relator apresentará o
processo em mesa, proferindo voto; provido o agravo, o recurso terá seguimento.
§
2º Quando manifestamente inadmissível ou infundado o agravo, o tribunal
condenará o agravante a pagar ao agravado multa entre um e dez por cento do
valor corrigido dacausa, ficando a interposição de qualquer outro recurso
condicionada ao depósito do respectivo valor".
4
4 Código de Processo Civil:
"Art.
558. O relator poderá, a requerimento do agravante, nos casos de prisão civil,
adjudicação, remição de bens, levantamento de dinheiro sem caução idônea e em
outros casos dos quais possa resultar lesão grave e de difícil reparação, sendo
relevante a fundamentação, suspender o cumprimento da decisão até o
pronunciamento definitivo da turma ou câmara.
Parágrafo
único. Aplicar-se-á o disposto neste artigo às hipóteses do art. 520".
5
Anotou percucientemente Teori Zavascki que a concessão de eficácia
suspensiva ao recurso dela não dotado não era suficiente a reprimir a
potencialidade de danos irreparáveis.
A adoção da máxima ubi
eadem res ubi eadem dispositio restou por admitir a consagração do
"efeito ativo", inclusive em sede de recursos para os tribunais
superiores (Antecipação de tutela, Saraiva, 1997, p. 134).
6
Nesse mesmo sentido Teori Zavascki, cit., Cap. VII, Antecipação de tutela
nos tribunais, p. 117-36; Roberto Armelin, Notas sobre a antecipação de tutela
em segundo grau de jurisdição, in Aspectos polêmicos da antecipação de tutela,
RT, 1997, p. 431-55; William Santos Ferreira, Breves reflexões acerca da tutela
antecipada no âmbito recursal, RT, 2000, p. 654-93.
7
Claudio Cecchela, Romano Vaccarella e Bruno Capponi, Il processo civile
dopo la riforme, Torino, Giappichelli, 1992.
8
Essa possibilidade de concessão de antecipação é chancelada por toda a
doutrina, abrindo-se à parte prejudicada o agravo regimental para o colegiado a
quem toca o conhecimento do recurso superior como técnica
"integrativa" da deliberação antecipada. Conforme a lição, de
consulta obrigatória, de Moniz de Aragão, o agravo regimental destina-se a
permitir a integração do pensamento do tribunal (Revista de Direito Processual
Civil, n. 2, p. 70 e 74).
9
Constituição Federal:
"Art.
102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da
Constituição, cabendo-lhe:
I
- processar e julgar, originariamente":
"Art.
105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I
- processar e julgar, originariamente:"
No
sentido de que os tribunais superiores, no exercício de suas competências
recursais, "tutelam direitos subjetivos" mediante julgamento, as
intransponíveis lições de Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo
Civil, Forense, 1999, p. 566.
10
Consulte-se, a respeito do tema, Luiz Guilherme Marinoni, que destaca que
o conceito de prova inequívoca é semelhante à liquidez e certeza exigível para
o mandado de segurança (A antecipação na reforma do processo civil, 2.
ed., Malheiros, 1996).
11
No sentido do texto, Teori Zavascki, cit., n. 2, "antecipação de
tutela na fase recursal", p. 119.
12
Sob essa ótica, doutrina J. J. Calmon de Passos, "a circunstância de
estar o processo, na fase recursal não é empecilho à pretensão da antecipação
de tutela, eis que, como já se afirmou reiteradamente, antecipar a tutela
constituiu não antecipação de uma sentença, mas um adiantamento de atos
executivos da tutela definitiva, que ainda se encontram reprimidos" (Inovações
do Código de Processo Civil, Forense, 1995, p. 21).
13
Por todas as vozes abalizadas, ressoa a de Alcides Mendonça Lima
(Comentários, Forense, 1996).
14
Giuseppe Tarzia informa que a recentíssima reforma italiana consagrou a
execução imediata da sentença, ainda que provisória no seu conteúdo, como
regra, ao dispor no art. 272 do Codice di Procedura Civile: "La sentenza
di primo grado è provvisoriamente esecutiva tra le parti" (O novo processo
de cognição na Itália, Revista do Instituto dos Advogados do Paraná, v.
25, p. 389).
Federico
Carpi também advertia para a aspiração moderna da execução completa com base em
decisão ainda que provisória: "II potenziamento del''esecutorietà
provvisoria può essere assai utile nel perseguimento di quei fini di attuazione
effetiva del precetto costituzionale del diritto di azione, che un moderno
processo deve perseguire" La provvisoria esecutorietà delia sentenza,
Milano, Giuffrè, 1979, p. 147 e s.).
15
O saudoso mestre mineiro José Olympio de Castro Filho, em sua tese de
cátedra, advertia: "Recorrer é um direito de que também se pode abusar, e
de que amiúde se abusa largamente com prejuízos para uma das partes, que não
pode descansar do incômodo da demanda, e para o Estado, cujos tribunais de grau
superior cada dia vêem
16
ítalo Andolina, abordando o dano causado pela demora na satisfação de
quem tem um direito reconhecido, concluiu: "Questo peculiare tipo di danno
può essere indicato come ''danno marginale in senso stretto'', oppure come
danno marginale di induzione processuale, appunto in quanto esso è
specificamente causatto, e non soltanto genericamente occasionato dalla
distensione temporale del processo" (Cognizione ed esecuzione forzata
nel sistema delia tutela giurisdizionale, p. 20, Milano, Giuffrè, 1983).
17
Idêntica solução é possível entrever nas conclusões de Teori Zavascki,
cit., p. 135, com expressa menção ao STF e ao STJ
* ministro do Superior Tribunal de Justiça, professor titular de Processo Civil da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
FUX, Luiz. A tutela antecipada nos tribunais superiores . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1247, 30 nov. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9179>. Acesso em: 30 nov. 2006.