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A Justiça gratuita como instrumento de
democratização do acesso ao Judiciário
Nehemias
Domingos de Melo*
SUMÁRIO: 1.Introdução
- 2. Da diferença entre Assistência Judiciária e benefício da justiça gratuita
- 3. A Constituição de 1988 não revogou o art. 4° da Lei 1.060/50 - 4. Da
concessão de justiça gratuita a todos que dela necessitem - 5. Os exemplos da
Lei 8.078/90 e da Lei 9099/95 - 6. Da interpretação do texto legal – 7.
Conclusões.
1.
- Introdução
Vivemos
num país de contradições. Nossa Constituição Federal de 1988, chamada pelo
saudoso Ulysses Guimarães como cidadã, criou, para a população, expectativas e
hoje, causa frustrações.
O
constituinte de 1988, sensível à realidade social do país e alçando o Brasil à
contemporaneidade fez seu papel, inseriu como "direito e garantia
fundamental" do povo brasileiro, o livre acesso ao Judiciário. Como a todo
direito corresponde uma obrigação, temos que ao Estado compete fornecer os
meios necessários de acesso à justiça de todos aqueles que dela necessitar.
"Pode-se
dizer, pois, sem exagerar, que a nova Constituição representa o que de mais
moderno existe na tendência universal rumo à diminuição da distância entre o
povo e a justiça" é o que afirma Ada Pellegrini Grinover.
(1)
O
Estado avoca a si o poder de conceder Justiça. Esta mesma justiça cujo caráter
é primordial na sociedade e, que tem por escopo resolver os conflitos sociais,
evitando que cada um faça por si sua própria justiça. Talvez por seu caráter de
serviço público, assim como educação, saúde e tantos outros assegurados por
nossa Carta Magna e, em verdade, não devidamente prestado pelo Estado, cria um
sentimento de descrédito no seio da sociedade. Como exemplo da inoperância do
poder público, tomemos o caso do estado de São Paulo, o mais desenvolvido da
Federação, onde até a presente data, não foi organizado os serviços da
Defensoria Pública nos moldes estabelecido no art. 134 de nossa Lei Maior.
Apesar
dos avanços alardeados pelo atual Governo, tanto no campo econômico como
social, os números da miséria contradiz a propaganda oficial. A realidade
social brasileira demonstra que a maioria da população necessita da assistência
jurídica integral, pois são excluídos. Os números não mentem: 50 milhões abaixo
da linha da pobreza, 70 % da população tem renda familiar de até 03 (três)
salários mínimos, 83 % da população dos assalariados tem renda mensal de até 05
(cinco) salários mínimos, 10 % mais ricos apropriam-se de 50,6 % da renda nacional
enquanto que os 10 % mais pobres apropriam somente 7 % da renda nacional (dados
do IBGE).
Não
se pode, frente ao quadro acima demonstrado, adotar a postura simplista de que
se deve tratar igualmente a todos. A democracia pressupõe tratar igualmente aos
iguais e tratar desigualmente aos desiguais. É evidente que a exclusão social e
a pobreza são os maiores obstáculos do livre acesso à justiça. O pleno acesso à
justiça só será possível com a erradicação da pobreza ou com a inclusão dos
excluídos no processo de democratização da justiça ou ainda, com a intervenção
do judiciário ofertando oportunidades iguais aos desiguais e, criando um
mecanismo de contrapeso, dotando os mais fracos e miseráveis, da possibilidade,
real e efetiva, de acesso a uma ordem jurídica justa e equânime.
Num
quadro como este, não se pode admitir a distribuição de Justiça, somente e
mediante a antecipação do desembolso com taxas e emolumentos. Estes excluídos
quando comparecem a Juízo, o fazem, no mais das vezes, patrocinados por
defensor técnico que apenas o defenderão de maneira formal. Só por isso, a
parte corre sérios riscos de graves prejuízos em suas pretensões,
principalmente se, a outra parte estiver assistida por profissional capaz e
competente.
É
nosso entendimento que o Estado tem o dever constitucional de prover o livre e
gratuito acesso à Justiça, seja através da assistência judiciária, seja
mediante a concessão dos benefícios da justiça gratuita. É evidente, que os
custos da prestação de tais serviços é elevado. Entendemos que o dinheiro
público que sobra da pilhagem levada a cabo pelos políticos não dá para prover
a extensão dos benefícios de forma ampla, geral e irrestrita. Contudo o que se
espera de qualquer julgador é que, frente ao caso concreto e, com base nas
máximas de experiência de vida, possa melhor aquinhoar àqueles que,
necessitando fazer valer seus direito, não sejam obstados tão somente por um
preconceito ou capricho daqueles a quem cabe ofertar a prestação jurisdicional.
2.
– Da diferença entre Assistência Judiciária e Justiça Gratuita
Desde
logo há que ser feita uma distinção entre o que seja a Assistência Judiciária
Gratuita e os benefícios da justiça gratuita, para uma análise mais acurada de
qualquer pedido posto em apreciação no judiciário.
O
art. 5°, LXXIV, da Constituição Federal assegura, aos que provarem
insuficiência de recursos, "assistência jurídica integral e gratuita".
Veja-se que aí aparece duas figuras distintas: a) assistência jurídica
gratuita, que a nosso ver corresponde a todos os serviços, sejam judiciais ou
extrajudiciais, tais como: consulta, orientação, representação em juízo,
isenção de taxas, etc. e, b) assistência judiciária, qual seja, a prestação de
todos os serviços necessários à defesa do assistido em Juízo. Entre estas duas
figuras, vislumbramos a existência de uma terceira via, os benefícios da
justiça gratuita, de abrangência mais restrita, mas que englobaria a isenção do
pagamento de custas e despesas judiciais relativas aos atos processuais.
Como
nos ensina o professor Ernesto Lippmann, "a assistência
judiciária não se confunde com justiça gratuita. A primeira é fornecida pelo
Estado, que possibilita ao necessitado o acesso aos serviços profissionais do
advogado e dos demais auxiliares da justiça, inclusive os peritos, seja
mediante a defensoria pública ou da designação de um profissional liberal pelo
Juiz. Quanto à justiça gratuita, consiste na isenção de todas as despesas inerentes
à demanda, e é instituto de direito processual". Para ao depois
concluir: "Ambas são essenciais para que os menos
favorecidos tenham acesso à Justiça, pois ainda que o advogado que se abstenha
de cobrar honorários ao trabalhar para os mais pobres, faltam a estes condições
para arcar com outros gastos inerentes à demanda, como custas, perícias, etc.
Assim, freqüentemente, os acórdãos, ao tratar da justiça gratuita, ressaltam
seu caráter de Direito Constitucional". (2)
Não
é outro o entendimento do não menos ilustre José Cretella Junior que dirimindo
a questão quanto a diferença entre a "assistência judiciária" e a
"justiça gratuita", assim prelecionou: "denomina-se
assistência judiciária o auxílio que o Estado oferece – agora obrigatoriamente
– ao que se encontra em situação de miserabilidade, dispensando-o das despesas
e providenciando-lhe defensor, em juízo. A lei de organização judiciária
determina qual o Juiz competente para a assistência judiciária; para deferir ou
indeferir o benefício da justiça gratuita, competente é o próprio Juiz da
causa. A assistência judiciária abrange todos os atos que concorram, de
qualquer modo, para o conhecimento da justiça – certidões de tabeliães, por
exemplo -, ao passo que o benefício da justiça gratuita é circunscrito aos
processos, incluída a preparação da prova e as cautelares. O requerente, antes
de entrar com a ação, em juízo, deverá solicitar a assistência judiciária".
(3)
O
escólio do insigne desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
Araken de Assis, segue na mesma direção pois enfocando a diferença entre o
prescrito na Lei 1.060/50 e o disposto na Constituição de 1988, assim se
posicionou: "segundo decorre do art. 4°, caput, c/c o art. 2°,
parágrafo único da Lei 1.060/50, bastará à parte necessitada a simples alegação
de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de
advogado, sem prejuízo próprio ou da sua família, para obter o benefício da
gratuidade. Tal benefício, outorgado para determinado processo, no qual
representará a parte advogado designado (art. 14, caput, da Lei 1.060/50), se
distingue da assistência judiciária integral, prestada por órgão do Estado, e
prevista no art. 5°, LXXIV, da CF/88". Para ao depois arrematar,
"como visto o benefício da gratuidade é diferente, porque mais restrito,
do que a assistência judiciária e a assistência jurídica integral".
(4)
De
tudo quanto exposto resulta que a Assistência Judiciária, enquanto instituto de
direito administrativo, é posto à disposição do hipossuficiente como condição
primeira para seu ingresso no judiciário, quando então, lhe é fornecido além
das isenções de custas e atos processuais, defensor público. De menor
abrangência, o benefício da justiça gratuita é instrumento eminente processual
que pode ser solicitado ao juiz da causa tanto no momento inaugural da ação
quanto no curso da mesma, significando dizer que a dispensa das despesas
processuais é provisória e condicionada à manutenção do estado de pobreza do
postulante, podendo ser revogada a qualquer tempo.
3.
– A Constituição de 1988 não revogou o art. 4° da Lei 1.060/50.
Temos
vários razões para acreditar que o dispositivo Constitucional que exige a prova
de insuficiência econômica do requerente dos benefícios da Assistência
Judiciária, não revogou o art. 4°, caput, da Lei 1.060/50. Nessa linha de
pensamento, a 4a. Turma do E. Superior Tribunal de Justiça é assente
na matéria, tendo aduzido: "a simples declaração firmada
pela parte que requer o benefício da assistência judiciária, dizendo-se ‘pobre
nos termos da lei’, desprovida de recursos para arcar com as despesas do
processo e com o pagamento de honorários de advogado, é, na medida da presunção
iuris tantum de veracidade, suficiente à concessão do benefício legal".
(5)
Mesmo
entendimento tem o E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, em
julgado histórico (que, diga-se de passagem, é citado por todos os
doutrinadores), no qual foi relator o então desembargador Cézar Peluso,
(6) assim asseverou: "A condição de pobreza, enquanto requisito
da concessão do benefício da justiça gratuita, adscrevendo-se à impossibilidade
de custeio do processo, sem prejuízo próprio ou da família (art. 4°, caput, da
Lei federal 1.060 de 5.2.50), não sofre com a circunstância eventual de a parte
ter bens, móveis ou imóveis, se esses nada lhe rendem, ou se rendem não lhe
evitaria aquele prejuízo. A mesma condição é, poroutro lado, objeto de
presunção legal relativa, que, oriunda do mero asserto da parte cede apenas a
prova em contrário (art. 4°, § 1°), produzida pelo impugnante (art.7°) ou vinda
aos autos doutro modo (art. 8°)". Para, ao final arrematar, com
demonstração de sensibilidade social extremamente aguçada e, clareza do papel
que compete ao judiciário na interpretação e aplicação das leis aos casos
concretos, nos seguintes termos: "Ora, à luz desses critérios, que são
os da lei, não podia o Juízo, em interpretação inconciliável com o caráter
generoso das garantias constitucionais do acesso à Jurisdição e da assistência
judiciária (art. 5°, XXXV e LXXIV) desconsiderar a presunção júris tantum, sem
prova, que teria de ser cabal, da suficiência de recursos". (7)
4.
– Da concessão de Justiça Gratuita a todos que dela necessitem
O
acesso à justiça não pode ficar a mercê da possibilidade econômica da parte
fazer frente às despesas processuais, visto que tal acesso consiste na proteção
de qualquer direito, sem qualquer restrição econômica, social ou política. É
importante destacar que não basta a simples garantia formal da defesa dos
direitos e o acesso aos tribunais, mas a garantia da proteção material destes
direitos, assegurando a todos os cidadãos, independentemente de classe social,
a ordem jurídica justa;
De
outro lado, o Estado tem o dever de conceder a todos o acesso ao Judiciário sem
a necessidade de antecipação das despesas processuais. Seria absurdo, para
dizer o mínimo, que o ingresso em juízo fosse possível apenas aos que detêm
situação econômica abastada. A função do Estado-Juiz é decidir os litígios e
trazer a paz social nas relações intersubjetivas, logo esta máxima estaria
prejudicada, se a maioria da população pobre não pudesse defender seus direito.
A
luta da população por saúde, educação, trabalho, segurança, dentre outras,
deveria incluir outra reivindicação, qual seja, a de Justiça Gratuita para
todos. A Justiça é monopólio do Estado, logo seu acesso deveria ser livre e
gratuita para aqueles que pleiteasse tal benefício. Se a campanha por justiça
gratuita prosperar, podemos até sugerir um "slogan": JUSTIÇA GRATUITA
PARA TODOS!
O
professor Gabriel de Rezende Filho, já nos idos de 1954, preconizava que "a
justiça deve estar ao alcance de todos, ricos e poderosos, pobre e
desprotegidos, mesmo porque o Estado reservou-se o direito de administra-la,
não consentindo que ninguém faça justiça por suas próprias mãos. Comparecendo
em juízo um litigante desprovido completamente de meios para arcar com as
despesas processuais, inclusive honorários de advogado, é justo seja dispensado
do pagamento de quaisquer custas..." (8).
Partilhando
do mesmo pensamento, Vicente Grecco Filho, afirma de forma peremptória que
"uma justiça ideal deveria ser gratuita. A distribuição da justiça é
uma das atividades essenciais do Estado e, como tal, da mesma forma que a
segurança e a paz pública, não deveria trazer ônus econômico aqueles que dela
necessitam. Todavia, inclusive por tradição histórica, a administração da
justiça tem sido acompanhada do dever de pagamento das despesas processuais,
entre as quais se inclui o das custas que são taxas a serem pagas em virtude da
movimentação do aparelho jurisdicional". (9)
José
Renato Nalini, festejado pelo juiz Eduardo Bezerra de Medeiros Pinheiros, vai
mais longe ao afirmar que "do juiz se exige não apenas reequilibrar as
situações díspares, mas ainda oferecer seu talento, desforço pessoal e
inteligência para ampliação real do rol de atendidos pela Justiça. E para isso
é necessário desenvolver uma concepção consentânea do princípio fundamental da
isonomia. Não é uma opção preferencial pelos pobres, no sentido da teologia da
libertação. Mas a constatação de que a pobreza extrema é inconciliável com o
exercício da igualdade e liberdade". (10)
Na
realidade social em que vivemos, entendemos que incumbe ao Poder Judiciário,
abandonar o mundo da ficção jurídica, da abstração da norma, do "faz de
conta" e efetivar a concretização de direitos fundamentais consagrados
pela Constituição do Brasil (direito à igualdade, devido processo legal
material, direito à ampla defesa, proteção do consumidor, direito à assistência
judiciária integral), assumindo, assim, uma postura ativa - e não neutra - na
busca da justiça processual. (11)
Assim,
cabe ao juiz da causa analisar cada situação em particular e, na dúvida pro
misero, até porque o beneficio da justiça gratuita não há de ser estendido
apenas aos miseráveis, mas sim todo aquele cuja situação econômica não lhe
permite pagar custas processuais e honorários de advogado, que em muitos casos,
se torna extremamente oneroso, independentemente do salário ou dos bens que
possua o postulante. Assim, é irrelevante que a parte seja proprietária de bens
ou tenha colado grau superior, pois, não obstante isso, poderá, num dado
momento de sua vida, não ter disponibilidade de numerários suficientes para
fazer frente às despesas processuais. (12)
5.
– Os exemplos da Lei 8.078/90 e da Lei 9099/95.
Em
reforço de nossa tese, há que ser lembrado que tivemos grandes avanços na legislação infraconstitucional, após o
advento da Constituição de l988. Talvez, até porque, previsto no seu corpo, o
legislador ordinário, no curso da década de 90, ofertou dois institutos, dentre
outros, dos mais importante no sentido de democratizar o acesso à Justiça de
tantos quantos dela necessitem.
O
Código de Defesa do Consumidor, em vários de seus artigos, reforça a tese de
que se deve prestar assistência jurídica gratuita aos consumidores,
considerados hipossuficientes na relação com os grandes conglomerados
econômicos. Aliás, tal concepção se alarga se o considerarmos como instrumento
da execução da Política Nacional das Relações de Consumo (art 5°, I), bem como
quando trata dos direitos básicos do consumidor (art. 6°, VII), bem assim
quando trata da inversão do ônus da prova (art. 6°, VIII). Ademais, com o
escopo de facilitar a defesa dos chamados mais fracos, o Código instituiu
diversas outras regras visando o equilíbrio nas relações entre os mais fracos
(consumidores) e os mais poderosos (fornecedores/fabricantes), tanto é verdade
que, as regras de interpretação de contratos (art. 47), a que trata da
desconsideração da personalidade jurídica (art. 28), o permissivo de
propositura de qualquer tipo de ação com o fim de garantir os direitos
estatuídos pelo Código (art. 83) e, a fixação da competência a partir do
domicílio do autor (art. 100, I), são exemplos, dentre outros, do intuito
buscado pelo legislador, qual seja, o acesso facilitado à prestação
jurisdicional.
Os
juizados Especiais Cíveis e Criminais são outro exemplo. Implantados a partir
do advento da Lei 9.099/95, veio a realizar uma verdadeira revolução no Poder
Judiciário e, na concepção de inacessibilidade à Justiça para os desapossados.
O Estado de São Paulo foi mais longe e, como marco na história da justiça
brasileira, no tocante à democratização do acesso aos Tribunais, criou os
Juizados Especiais Itinerantes, através de unidades móveis do Tribunal de
Justiça, as quais se deslocam aos bairros mais distantes e com alta taxa de
exclusão social. É este o espírito que se espera de todo o corpo Judiciário:
facilitar a todo cidadão, o acesso à Justiça.
No
tocante as despesas processuais, o legislador não deixou margem à dúvida e
definiu claramente: o acesso ao Juizado Especial independerá, em primeiro grau
de jurisdição, do pagamento de custas, taxas e despesas, é o que preconiza o
art. 54, da Lei 9.099 de 26.9.95. Quanto aos honorários da parte contrária,
exceto nos casos de litigância de má fé, os litigantes estão isentos do seu
pagamento em primeiro grau (art. 55).
6.
– Da Interpretação do texto legal
De
tudo quanto foi exposto, constata-se que o instituto da assistência jurídica
gratuita não pode ser entendida exclusivamente como disciplinamento centrado
somente da Constituição Federal de 1988, muito embora o regramento
constitucional seja a lei superior. Há que ser feita uma exegese teleológica
com os demais institutos que regulam a matéria.
Ademais,
já foi dito que, o Julgador não é um mero autômato, um simples aplicador da
fria e abstrata norma jurídica ao caso concreto; é, sobretudo, agente político
na dinâmica social, que procura compor os conflitos de interesses qualificados
por pretensões resistidas ou insatisfeitas, com o mais alto espírito de
equanimidade e de justiça, sem o que não se alcança a verdadeira e desejada paz
social. "A mitológica Deusa da Justiça tem os olhos vendados, porém, o
Magistrado pode tudo enxergar" (muitos já o disseram).
Além
disso, não podemos interpretar de forma literal os regramentos jurídicos. Há
que se fazer uma exegese sistemática e teleológica com os princípios gerais de
direito, consagrados desde 1942 na Lei de Introdução ao Código Civil, cujo
artigo 5° expressamente diz: "Na aplicação da Lei, o Juiz atenderá aos
fins sociais a que ela se destina e as exigências do bem comum".
Como
bem explicitou o douto Silvio Rodrigues, "a lei disciplina relações que
se estendem no tempo e que florescerão em condições necessariamente
desconhecidas do legislador. Daí a idéia de se procurar interpretar a lei de
acordo com o fim a que se destina, isto é, procurar dar-lhe uma interpretação
teleológica. O intérprete, na procura do sentido da norma, deve inquirir qual o
efeito que ela busca, qual o problema que ela almeja resolver. Com tal
preocupação em vista é que se deve proceder à exegese de um texto. Só assim, ao
meu ver, pode-se compreender a regra do art. 5° da Lei de Introdução do Código
Civil". (13)
De
fato, a interpretação teleológica, sempre hábil a elidir as controvérsias mais
intrincadas, demonstra de forma iniludível que a finalidade da justiça gratuita
é possibilitar o amplo acesso de todos ao Poder Judiciário, prestigiando o
direito de petição e de ampla defesa de forma a impedir que a situação
econômica precária do litigante seja óbice à plena defesa de seus legítimos
interesses. Ou como nos ensina o sempre mestre Washington de Barros Monteiro,
"tratando-se, porém, de interpretar leis sociais, preciso será temperar
o espírito do jurista, adicionando-lhe certa dose de espírito social, sob pena
de sacrificar-se a verdade lógica". (14)
Clovis
Bevilaqua com a maestria que lhe era peculiar, ensinava que "o
intérprete, esclarecendo, iluminando, alargando o pensamento da lei, torna-se
um fator de evolução jurídica. (...) Para que sua decisão traduza, de fato, o
direito imanente às relações sociais, é necessário que o intérprete seja dotado
de um critério, de um senso jurídico e de um largo preparo intelectual, não
somente nas disciplinas propriamente jurídicas, mas ainda em todas as ciências
que se ocupam com o homem e com a sociedade, desde a psicologia até a história,
a economia e a sociologia". (15)
Ainda
no tocante à interpretação, nos escudamos nas sábias palavras do Mestre Carlos
Maximiliano, que doutrinando sobre questões de hermenêutica, assim profetizou:
"A interpretação deve ser objetiva, desapaixonada, equilibrada, às
vezes audaciosa, porém não revolucionária, aguda, mas sempre atenta
respeitadora da lei". Para ao depois arrematar: "deve o
intérprete, acima de tudo, desconfiar de se, pensar bem suas razões pró e
contra, e verificar, esmeradamente, se é a verdadeira justiça, ou são idéias
preconcebidas que o inclinam neste ou naquele sentido. ‘Conhece-te a ti mesmo’
– preceituava o filósofo ateniense. Pode-se repetir o conselho, porém
completando assim: - ‘e desconfia de ti quando for mister compreender e aplicar
o Direito". Mas a frente, ainda da mesma obra, ele nos alerta: "desapareceu
nas trevas do passado o método lógico, rígido, imobilizador do Direito: tratava
todas as questões como se foram problemas de Geometria. O julgador hodierno
preocupa-se com o bem e o mal resultantes do seu veridictum. Se é certo que o
juiz deve buscar o verdadeiro sentido e alcance do texto, todavia esta alcance
e aquele sentido não podem estar em desacordo com o fim colimado pela
legislação – o bem social". (16)
Por
fim, cabe lembrar a lição do professor paulista Estevão Mallet quando afirma
que "tudo se resume à seguinte idéia tirada de uma analogia do direito
com a medicina (e são muito freqüentes as semelhanças entre as duas ciências: a
lide é uma doença e o juiz atua como médico, curando a doenças, etc.): ao
doente pobre ninguém imagina oferecer tão somente a possibilidade de se tratar
por si mesmo; cabe, sim, a assistência médica pública e gratuita. Ao litigante
pobre, da mesma forma, o que se deve dar é assistência jurídica gratuita e não
permitir que, postulando por sua conta em juízo, faça com que se perca seu
direito"
.
7.
– Conclusões.
Em
que pese o mais de meio século que nos separa da aprovação da Lei n° 1.060/50 a
mesma se mantém viva e atual embora muitos proponham a sua substituição ao
argumento de necessária atualização. Em verdade o que precisamos é de uma
mudança na mentalidade dos operadores do direito, em especial dos magistrados
que amiúde dificultam ou denegam a concessão dos benefícios da assistência
judiciária gratuita muitas vezes atendo-se a parâmetros estáticos de renda que
nem sempre traduzem a realidade sócio-econômica da população brasileira.
A
nosso sentir o acesso a justiça deveria ser totalmente gratuito não se
justificando o recolhimento de taxas e custas para o ingresso ao judiciário, na
exata medida em que sabemos que o conjunto de tributos incidente sobre a
população brasileira ultrapassa os 34% da renda nacional, dinheiro este que
seria mais que suficiente, se bem aplicado, para custear não somente a rede
pública de saúde, educação, segurança pública, transportes, como também os
serviços da justiça.
A
luta hoje a ser encetada por todos os cidadãos brasileiros é a de que a
justiça, assim como outros serviços públicos, deve ser totalmente gratuita não
mais se justificando o pagamento de custas como pré-requisito de ingresso no
judiciário.
Contudo,
enquanto isso não acontece, o que se espera é que o judiciário possa dar sua
contribuição criando condições para que seus membros possam rever a forma pela
qual tem analisado concessão de tão nobre benefício. Espera-se que os juizes,
como agentes da dinâmica social, postem-se como o homem médio da sociedade e, a
partir de máximas de experiências, atue com sensibilidade e consciência,
fugindo do excessivo e cômodo formalismo processual, passando a ver no processo
um instrumento de realização dos anseios de cidadania, sem o que não se
alcançará a tão almejada justiça.
Notas
01.
Teoria Geral do Processo, p. 82.
02.
Os Direitos fundamentais da Constituição de 1988, p.
03.
Comentário à Constituição brasileira de 1988, apud Anselmo Prieto Alvarez - Uma
moderna concepção de assistência jurídica gratuita in RT n° 778 p 49.
04.
Benefício da gratuidade in Ajuris n° 73, p. 175.
05.
4a. Turma, STJ, Rec. Esp. 38124-0, 20/10/93, rel. Min. Sálvio de
Figueiredo, RJSTJ 6/412.
06.
Atual Ministro do Supremo Tribunal Federal.
07. TJSP, AI 162.627-1/8, 2a. C., j.
04.02.92 in RT 678/88.
08.
Curso de direito processual civil, p. 281, v. 1.
09.
Direito processual civil brasileiro, p. 108.
10.
Breves considerações acerca da lei 1.060/50 in RT 733, p. 99.
11.
Cf. Juíza Maria Elza, TAMG – AI 0328819-3 – 4ª C.Cív. – J. 23.05.2001.
12.
Cf. Des. Tenisson Fernandes, TJMG, Ap 97.423/8 – 3.ª Câm. – j. 18.06.1998 –
DOMG 23.12.1998.
13.
Direito civil, vol. 1, p. 27.
14.
Curso de Direito Civil, p. 39.
15.
Teoria geral do direito civil, p. 43.
16.
Hermenêutica e aplicação do direito, p. 104 e 157
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Paulo: Ed. Saraiva 1994, v. 1.
*Advogado em São Paulo, professor de Direito Civil na Universidade
Paulista (UNIP), pós-graduado em Direito Civil pela UniFMU/SP.
Disponível em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4877
>. Acesso em: 28/11/06.