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A Inércia do Impetrado
no Mandado de Segurança
Demian Guedes
1.1 Inércia Processual e Revelia
O
processo distribui às partes, aos terceiros intervenientes e ao juiz uma série
de direitos, ônus e prerrogativas que visam à superação da resistência e
inércia dos envolvidos, garantindo, assim, a efetividade da prestação
jurisdicional.
Entre os ônus distribuídos ao longo da relação processual, encontra-se aquele
que o sistema impõe ao réu: responder à pretensão deduzida pelo autor, sob pena
de se considerarem verdadeiros os fatos por este alegados, admitindo-os como
incontroversos (CPC, art. 319). A não satisfação de tal ônus caracterizará o
réu como revel, e levará à presunção de veracidade sobre as alegações do autor.
Essa presunção convencionou-se denominar “efeito da revelia”.
Porém,
como se sabe, nem sempre a inatividade do réu levará à presunção acima
referida. Como determinado no art. 320, II, do CPC, não se operarão os efeitos
da revelia nas lides que envolvam direitos indisponíveis. Não é à toa que o
magistrado, verificando que o réu deixou de apresentar resposta e que, ainda
assim, não se operaram os “efeitos da revelia”, deverá requerer ao autor a
especificação das provas que pretende produzir em audiência (art. 324 do CPC),
pois os fatos alegados na inicial não se presumirão verdadeiros.
Assim, nos casos em que o litígio versar sobre direitos indisponíveis, a
inércia do réu, não acarretará a certeza acerca dos fatos alegados pelo autor,
por ser a admissão da veracidade destes fatos o efeito da revelia apontado pelo
art. 319 e excepcionado pelo art. 320, II, todos do Código de Processo Civil.
Entretanto, é apressada a conclusão de que nas causas em que estejam em jogo
direitos indisponíveis a inércia do réu não operará efeito algum sobre o
processo, pois a indisponibilidade dos direitos objeto da causa afasta apenas a
presunção de veracidade das alegações iniciais, a qual não é o único efeito
decorrente da inércia processual do réu. É apenas o principal deles.
Não é por outra razão que o caput do artigo 320 do CPC determina que “a revelia
não induz, contudo, o efeito mencionado no artigo antecedente”. A norma afastou
apenas um dos efeitos do instituto, mantendo os demais. Tal constatação decorre
da redação do art. 320 e também da regra de hermenêutica que confere às normas
de exceção interpretação restritiva, sob pena de transformar-se o excepcional
em ordinário.
Do mencionado até aqui, chega-se à conclusão de que (i) a inércia do réu
acarreta efeitos diversos sobre o processo, dos quais o principal é a presunção
de veracidade dos fatos alegados pelo autor; (ii) quando o objeto da causa
constituir direito indisponível, não decorrerá da inatividade do réu o efeito
específico da presunção anteriormente referida.
Para compreendermos a extensão do fenômeno processual da revelia nas causas
específicas em que a Fazenda figure como ré ¾ notadamente no procedimento
especialíssimo do Mandado de Segurança ¾ é necessário ter-se em mente ainda:
(i) Quais são, exatamente, os efeitos da inatividade processual do réu ¾ além
da presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor;
(ii) quais dos interesses representados pela Fazenda em juízo podem ser
considerados como indisponíveis, afastando a presunção de veracidade das
alegações do autor; e
(iii) quais as repercussões destas considerações sobre a inatividade do
impetrado no Mandado de Segurança, ação de procedimento especial, fundada na
noção de direito líquido e certo.
Passemos, assim, à análise de cada uma dessas questões, com vistas à
compreensão do fenômeno da inatividade processual do imperado no mandado de
segurança.
1.2. Os efeitos da Revelia
Doutrina e jurisprudência usualmente referem-se à presunção de veracidade dos
fatos alegados pelo autor como “efeito da revelia”. Entretanto, como visto, a
revelia possui efeitos diversos que vão muito além deste.
Cândido Rangel Dinamarco lembra oportunamente que “efeito da revelia é o nome
que, por antonomásia, o Código de Processo Civil dá a um destacado efeito
desta, consistente na presunção de veracidade das alegações do autor (art.
319). A revelia tem outras conseqüências, mas tal locução transmite a idéia
dessa em particular”[1].
Assim, percebe-se facilmente a existência de outros efeitos decorrentes da
inatividade do réu, sendo necessário apontá-los e agrupá-los através de uma
classificação útil à análise em pauta. Dessa forma, sem esquecer a natureza
eminentemente processual do instituto da revelia, podemos delinear a extensão
de seus efeitos os distinguindo em efeitos de fundo material e conseqüências de
caráter exclusivamente processual.
A distinção apresentada se fundamenta nas convergências entre as normas
processuais e materiais, que, como ressalta Carnelutti, “manifestam-se nas relações
entre os conceitos de obrigações e poder”, entre as quais se situa exatamente o
ônus da prova[2].
Cândido Rangel Dinamarco exterioriza pensamento semelhante ao comentar os
pontos de estrangulamento entre o direito substantivo e o direito adjetivo, mencionando
exatamente o onus probandi como um destes pontos de interpenetração[3].
Efeito ‘material’ é aquele capaz de incidir sobre o mérito da questão deduzida
no processo. É o efeito que influi de modo mais direto na atividade cognitiva
do magistrado, incidindo logicamente na fundamentação de suas decisões.
O efeito material decorrente da revelia é a presunção da veracidade dos fatos
narrados pelo autor na exordial. É o que alguns autores costumam chamar,
impropriamente, de ‘confissão ficta’, decorrente da sanção imposta pelo artigo
319 do CPC.
A presunção a que alude o citado dispositivo é meramente relativa. Como tal ela
não leva à certeza concreta dos fatos, excluindo apenas, e em regra, a
necessidade de prova acerca dos mesmos e, via de conseqüência, dispensando o
interessado do onus probandi que lhe era atribuído até que o silêncio se
operou. Tanto é relativa a presunção decorrente da revelia que ela não operará
nos casos em que a lei exigir a apresentação de documento específico como meio de
prova, bem como nos casos em que o autor alegar fatos impossíveis ou
improváveis, ou aqueles contrapostos aos chamados fatos notórios.
O efeito material da revelia, nesses termos, nada mais é do que um critério de
distribuição do ônus da prova dentro no curso da relação processual. Decretada
a revelia, sua conseqüência de fundo material é a transferência, do autor para
o réu ¾ se o momento oportuno ainda lhe couber tal possibilidade ¾, do ônus da
prova acerca dos fatos alegados pelo primeiro. Não por outra razão, se e quando
o revel comparecer a juízo, caberá a este (se a fase processual ainda
comportar) a realização de prova da inveracidade dos fatos narrados pelo autor
na propositura da demanda, superando, assim, a presunção relativa de certeza
que a revelia lhes imprimiu.
Os efeitos ‘processuais’ são aqueles que se fazem sentir unicamente na relação
processual, influindo sobre o curso da ação e a sucessão de atos no processo. O
primeiro deles decorre da preclusão, gênero do qual a revelia é espécie. A
inércia do réu implica na impossibilidade da prática do ato processual de
resposta (reconvenção, contestação ou exceção). Uma vez que o ato levado a
destempo é nulo, praticado fora dos limites previstos em lei. Por isso que a
contestação apresentada intempestivamente pela Fazenda deverá ser recebida como
simples peça de informação ¾ sem o condão de afastar os efeitos que teria
dissipado caso apresentada tempestivamente ¾, sob pena de infringir-se o devido
processo legal e a segurança jurídica acerca das situações estabelecidas dentro
da relação processual[4].
Certo é que, comparecendo a Fazenda em fase processual em que ainda se admita a
produção de provas e anexando à sua resposta documentos que entenda relevantes
para a lide, estes deverão ser mantidos nos autos com a eficácia que
ordinariamente se lhes atribui, aplicando-se a súmula 231 do Supremo Tribunal
Federal[5] e o art. 322 do CPC.
Outro efeito ‘instrumental’ é a desnecessidade de intimação para a contagem de
prazos que corram contra réu revel, determinada pelo mesmo art. 322 do Código. Porém,
as intimações deverão ser realizadas após o ingresso do réu em juízo.
Há ainda a conseqüência ‘processual’ da revelia consistente no julgamento
antecipado da lide, na forma do art. 330, II, do CPC. Este efeito específico,
entretanto, por ser afeito à desnecessidade de dilação probatória, ocorrerá
apenas quando se fizer presente também o efeito material da inércia processual
do réu. Isso porque, não incidindo a presunção de veracidade dos fatos, é de
bom alvitre que o magistrado abra espaço para a produção de provas por parte do
autor, conforme determina o art. 324 do CPC.
Finalmente, cabe lembrar que os efeitos meramente ‘processuais’ da revelia, por
não se encontrarem insertos na exceção expressa do art. 320 (que só afasta o
efeito material contido no art. 319 do Código de Processo) se farão presentes,
em regra, mesmos nos casos em que a lide versar acerca de direitos
indisponíveis. Assim, a fortiori, há que se reconhecer, por exemplo, a ocorrência
da preclusão e conseqüente inoperância dos plenos efeitos da resposta (exceção
de incompetência, v.g.) apresentada intempestivamente pela Fazenda Pública,
cuide a lide de direito indisponível ou não. Até mesmo porque, caso se
entendesse o contrário, estaria se fazendo letra morta da disposição contida no
art. 188[6] do CPC, que já concede ao Poder Público prerrogativa compatível com
a natureza dos interesses que pode representar e com a quantidade de feitos em
que é demandada.
Vistos, em linhas gerais, os efeitos da inércia do réu no processo, passa-se
agora a analisar os limites da noção de interesse público, para que se possa
aferir quais das conseqüências da revelia serão percebidas em cada caso
específico.
2. Interesse Público
Quando consideradas as relações jurídicas que envolvem o Estado, a noção de
direito indisponível sempre acompanhou a idéia de interesse público. Porém, os
dois conceitos não representam a mesma gama de relações jurídicas figuradas
pelo Poder Público.
Primeiramente, como bem lembra Celso Antônio Bandeira de Melo, interesse
público não se confunde, nem poderia se confundir, com o interesse do Estado,
da pessoa jurídica de direito público, sujeito de direitos e obrigações. Essa
identificação de conceitos não se justificaria pois caracteriza uma confusão
entre sujeito e objeto.
Leciona o festejado Autor que “assim melhor se compreenderá a distinção
corrente na doutrina italiana entre interesses públicos ou interesses primários
¾ que são os interesses da coletividade como um todo ¾ e interesses
secundários, que o Estado (pelo só fato de ser sujeito de direitos) poderia ter
como qualquer outra pessoa, isto, independentemente de sua qualidade de
servidor de interesses de terceiros: os da coletividade. Poderia, portanto, ter
o interesse secundário de resistir ao pagamento de indenizações, ainda que
procedente, ou de negar prestações bem fundamentadas que os administrados lhe
fizessem, ou de cobrar tributos ou tarifas por valores exagerados. Estaria, por
tal modo, defendendo interesses apenas ‘seus’, enquanto pessoa, enquanto
entidade animada do propósito de despender o mínimo de recursos e abarrotar-se
deles ao máximo. Não estaria, entretanto, atendendo ao interesse público, ao
interesse primário, isto é, àquele que a lei aponta como sendo o interesse da
coletividade: o da observância da ordem jurídica estabelecida a título de bem
curar o interesse de todos”.[7]
Em outras palavras, o interesse estatal verdadeiramente público é aquele que
pertence à coletividade, genuinamente, configurando-se assim como a finalidade
de todo o agir estatal. Já os interesses públicos secundários são aqueles
instrumentais, que decorrem da existência do Estado enquanto pessoa, possuindo
uma relação indireta com a atividade pública. É a noção de interesse público
primário que se identifica com a idéia de direito indisponível apontada pelo
CPC, como fator apto a afastar o efeito material da revelia, não a idéia de
publicidade que se pode considerar herdada da visão patrimonialista de Estado,
em parte, ainda vigente em nosso país.
Neste passo, é preciso afastar a identificação equivocada ¾ fácil de se
absorver ¾ entre bens indisponíveis e impossibilidade de transação por parte de
seu titular. A Fazenda não pode, via de regra, transacionar, não por serem
todos seus bens indisponíveis, mas sim pela ausência de previsão legal
possibilitando a transação. Com efeito, tanto é possível a transação envolvendo
bens da Administração de natureza meramente patrimonial que a própria lei a
permite em casos especiais, o que aponta a natureza disponível dos mesmos,
sendo a indisponibilidade meramente circunstancial. Exemplo recente em nossa
legislação é a Lei n.º 10.259/01, que, no parágrafo único do artigo 10, outorga
aos representantes judiciais da União Federal, Autarquias e Empresas Públicas
poderes para transigir e desistir nas causas de competência própria dos
Juizados Especiais Federais[8]. É o princípio da legalidade, ¾ não a
indisponibilidade absoluta de seus bens ¾ que impede a Administração Pública de
transacionar fora dos casos previstos em lei.
Analisando a questão, Cândido Rangel Dinamarco adverte que “não é correta a
afirmação de que sejam indisponíveis todos os direitos e interesses do Estado. Quando
se trata de litígios em torno de bens dominicais, sobre os quais este exerce
direito de propriedade (e tal é o dinheiro), não há indisponibilidade e o
correto é aplicar as sanções que o Código de Processo Civil destina aos réus
inativos; isso não acontece com os litígios envolvendo bens de uso comum, que
são indisponíveis”.[9]
Com efeito, o privilégio excepcional do art. 320, II, do CPC, só será aplicado
aos interesses originariamente indisponíveis, aqueles públicos primários,
pertencentes ao todo coletivo, e não a toda e qualquer demanda que envolva um
ente estatal. Deve-se, portanto, afastar a noção de que a presunção de
veracidade dos fatos estaria afastada em razão dos bens em litígio serem de
titularidade do Poder Público. A indisponibilidade é afeita ao objeto da lide,
não aos seus sujeitos.
Visto, em linhas gerais, o conceito de direito indisponível capaz de afastar o
efeito material da revelia, nos casos em que demandada a Fazenda Pública,
passa-se a apontar as peculiaridades da questão no que se refere
especificamente ao mandado de segurança.
3. O Mandado de Segurança
3.1. Premissas necessárias: ‘direito líquido e certo’ e o pólo passivo no
Mandado de Segurança
O mandado de segurança é, como sabemos, ação civil mandamental, constituindo
verdadeira garantia fundamental, conforme determina o art. 5o, inciso LXIX, da
Constituição da República[10].
Longa discussão travou a doutrina brasileira quanto à natureza jurídica do
writ. Hoje, entretanto, o esforço de parte substancial da comunidade jurídica
levou à sedimentação da ‘processualização’ do mandado de segurança e ao
conseqüente entendimento de que este é, antes de mais nada, ação[11]. Lembrando
a lição de Luís Eulálio de Bueno Vidigal e apontando os critérios para a
identificação do exercício do direito de ação (da substituição da vontade das
partes; orgânico; substancial e histórico-político) Leonardo Greco centra-se no
aspecto substancial para sentenciar: “se o meio de provocar a atuação da
jurisdição é a ação, então o mandado de segurança é ação [12]”.[13]
Colocada a discussão dentro do instituto jurídico da ação, o exercício da
pretensão do particular através do mandado de segurança depende, caso a caso,
do preenchimento de determinadas condições.
Porém, é necessário ter-se em mente que as especificidades do rito do mandado
de segurança dão contornos especiais às condições da ação apontadas pela teoria
geral do processo, quando considerado o exercício abstrato do direito de ação.
Parte significativa da doutrina defende que o mandado de segurança possui uma
condição específica da ação, qual seja, a liquidez e certeza do direito do
impetrante. Nesse sentido, Celso Agrícola Barbi leciona que “enquanto, para as
ações em geral, a primeira condição para a sentença favorável é a existência da
vontade da lei cuja atuação se reclama, no mandado de segurança isto é
insuficiente; é preciso não apenas que haja o direito alegado, mas também que
ele seja líquido e certo. Se ele existir, mas sem essas características,
ensejará o exercício da ação por outros ritos, mas não pelo específico do
mandado de segurança”.[14]
Com isso, não se absorve, em medida alguma, para o mandado de segurança, a
teoria concretista do direito de ação ¾ segunda a qual este direito só assiste
àquele que possui o direito material a ser tutelado na demanda. Não se trata
disto. Compreender a liquidez e certeza como condição específica limita-se à
necessidade de demonstração ¾ de plano ¾ da veracidade dos fatos, não do
direito. É perfeitamente legítimo o exercício do mandado de segurança nos casos
em que os fatos, apesar de demonstrados de plano, não levam à concessão da
segurança por não assistir ao impetrado direito que lhe garanta a concessão.
Nessa linha, o conceito de direito líquido e certo é eminentemente processual e
cinge-se à demonstração da veracidade dos fatos alegados pelo particular na
inicial. Hely Lopes Meirelles afirma que “em última análise direito líquido e
certo é direito comprovado de plano (...). Por se exigir situações e fatos
comprovados de plano é que não há dilação probatória no mandado de
segurança”.[15]
José da Silva Pacheco[16] e Celso Agrícola Barbi seguem a mesma orientação,
concluindo este que “como se vê, o conceito de direito líquido e certo é
tipicamente processual, pois atende ao modo de ser de um direito subjetivo no
processo: a circunstância de um determinado direito subjetivo realmente existir
não lhe dá a caracterização de liquidez e certeza; está só lhe é atribuído se
os fatos em que se fundar puderem ser provados de maneira incontestável, certa,
no processo”[17]. Assim restaram afastadas as idéias mais antigas da
doutrina[18] e da jurisprudência[19] que entendiam a liquidez e certeza também
como transparência das questões de direito.
Do exposto tem-se que o mandado de segurança é ação, podendo se afirmar que uma
de suas condições é a liquidez e certeza do direito do impetrante, que nada
mais é do que a transparência e a demonstração inequívoca e imediata dos fatos
envolvidos na lide, seja porque tais fatos independem de prova, seja porque sua
comprovação pode ser feita de plano nos autos, através da apresentação de prova
pré-constituída.
3.2. Mandado de Segurança e Interesse Público
Nesse ponto, é necessário afirmar-se que tudo o que foi colocado anteriormente
com relação ao interesse público e à ocorrência da revelia também se aplica ao
mandado de segurança. Se o impetrado visa tutelar direito público primário e o
impetrante busca fazer valer interesse privado, a questão esbarrará no problema
da indisponibilidade previsto no art. 320, II do Código de Processo Civil, não
cabendo maiores discussões quanto à incidência ou não dos efeitos da revelia.
Em contrapartida, como em qualquer outro procedimento, a Fazenda Pública pode
ser chamada a juízo, através de mandado de segurança, para defender interesse
público meramente secundário, o qual, como vimos, não se encontra entre os
direitos indisponíveis mencionados no art. 320, II, do Código de Processo
Civil. Nestes casos a análise dos efeitos da inércia do impetrado passará por
questionamentos mais abrangentes, que não poderão se restringir à análise pura
e simples da existência de interesse público na demanda.
De outro giro, no caso específico do mandado de segurança, é bastante comum que
a defesa de interesses públicos primários encontre-se presente na pretensão do
impetrante, o que leva a questão da inércia do impetrado ¾ notadamente quanto à
apresentação de documentos ¾ para a seara da análise da disponibilidade do
direito material tutelado por ambas as partes no processo.
4. Conseqüências Específicas da Inércia do Impetrado
4.1. Na apresentação das informações (art. 7o, I, da LMS)
4.1.1. A não apresentação das informações e sua apresentação intempestiva
Considerando as premissas anteriormente delineadas, passamos à análise das
conseqüências que o silêncio do impetrado (ou sua manifestação a destempo) pode
acarretar no julgamento do mandado de segurança.
O artigo 7o, I, da Lei n.º 1.533/51 (LMS), dispõe que “ao despachar a inicial o
juiz ordenará que se notifique o coator do conteúdo da petição, entregando-lhe
a segunda via apresentada pelo requerente, com as cópias dos documentos, a fim
de que, no prazo de dez dias, preste as informações que achar necessárias”.
O sistema anterior à Lei n.º 1.533/51 dispunha que a além da intimação da
autoridade coatora, também seria determinada a citação da pessoa jurídica de
direito público, para que esta prestasse defesa, igualmente no prazo de dez
dias. Desta forma, com a supressão desta determinação pelo sistema legal do
mandado de segurança vigente a partir de 1951, o legislador apontou no claro
sentido de agilizar o procedimento da ação mandamental e evitar a repetição de
atos inúteis, como a duplicação da atividade defensiva no processo. Neste
sentido, inclusive, o próprio Superior Tribunal de Justiça já se manifestou,
sacramentando que “a Lei do mandado de segurança, em reforço da celeridade –
uma das tônicas do instituto – rompeu com a sistemática anterior (Lei 191/36,
art. 8o, § 1o, e CPC 39, art. 332, II)”[20].
Desta forma, com a LMS, parte da doutrina passou a discutir o posicionamento do
impetrado no mandado de segurança (aspecto foi abordado no capítulo anterior,
no qual foram apresentadas as premissas necessárias ao presente estudo,
capítulo 3.2), e, a partir daí, o papel das informações no curso do writ.
Já se demonstrou acima a posição da autoridade coatora como interveniente
anômalo, não se tratando propriamente de parte. Quanto à natureza das
informações prestadas por este interveniente, incensurável a lição de Celso
Agrícola Barbi:
“Forma de defesa na legislação revogada - No sistema das legislações
anteriores, em que, além do pedido de informações à autoridade coatora, havia a
citação da pessoa jurídica de direito público, a defesa desta deveria ser
apresentada no prazo de dez dias e sob a forma de contestação. Como o coator
devia prestar informações em igual tempo, tínhamos, na prática, uma inútil
duplicação de defesa. (...).
O sistema da Lei n.º 1.533/51 – O desenvolvimento histórico do mandado de
segurança teria, porém, de libertá-lo dos atos inúteis. Se é essencial a esse
tipo de processo que a inicial venha com a prova completa dos fatos, se a cópia
desses documentos é enviada ao coator para que este possa examiná-los,
evidentemente a informação que ele prestar deve vir logo com a apreciação da
prova e com a sustentação da legalidade de seu ato. (...).
“A conclusão a que chegamos é que, nos termos da legislação vigente ¾ que não é
lacunosa e não merece censura nessa parte ¾, a defesa da pessoa jurídica de
direito público é feita nas informações prestadas pela autoridade coatora, no
prazo de dez dias, e que têm, assim, natureza de contestação”.[21]
Esse entendimento é seguido também por Hely Lopes Meirelles, para quem “as
informações constituem a defesa da Administração. Devem ser prestadas pela
autoridade argüida de coatora, no prazo improrrogável de dez dias (art, 7o, I,
da Lei n.º 1.533/51, com a alteração introduzida pela Lei n.º 4.348/64).”[22]
Com efeito, as informações da autoridade são o ato de defesa no mandado de segurança.
Não se pode acompanhar parcela da doutrina que, principalmente à época da
edição da Lei n.º 1.533/51, afirmava a permanência da necessidade de citar-se a
pessoa jurídica de direito público, para que esta apresentasse defesa técnica. Parece
excessivamente formalista este ponto de vista, arraigado à idéia de que a
representação processual dos entes estatais se faz unicamente na pessoa de seus
procuradores. É preciso ter-se em mente que o mandado de segurança é
procedimento excepcional, fundado na celeridade e no seu aspecto mandamental
para contrapor-se à auto executoriedade dos atos da Administração.
Nessa linha de raciocínio, partindo da teoria do órgão para suprir o problema
da representação processual e considerando o fato de que o writ só poderá ser
concedido nos casos em que o direito for de plano demonstrado pelo impetrante,
não há mal algum em se compreender as informações como ato de defesa do réu,
figurando a autoridade coatora como substituto processual da pessoa jurídica de
direito público demandada. No caso específico do mandado de segurança, não há
impropriedade na determinação de que a defesa seja realizada por aquele que não
seja propriamente a pessoa jurídica parte no processo, mas que integra sua
constituição.
A partir da constatação de que as informações são o ato de defesa, completando
a relação processual (ainda que por representação imprópria) e abrindo espaço à
observância do princípio do contraditório, passamos a indagar acerca das
conseqüências da sua não apresentação no curso do mandado de segurança. Basicamente,
o que restou por definir foi se no mandado de segurança as conseqüências seriam
equivalentes às decorrentes do silêncio nas ações pelo rito ordinário contra o
Poder Público ou se, ao contrário, o enquadramento jurídico especial do writ
impediria a aplicação da regência da revelia existente no CPC.
Parte da doutrina brasileira, identificada em Hely Lopes Meirelles[23],
sustenta que o silêncio do impetrado pode determinar a concessão da segurança,
devendo-se presumir verdadeiros os fatos alegados pelo impetrante à exordial.
Quanto aos tribunais, é válido ressaltar que o STF, ainda na década de 50, já
se posicionou no sentido de que “não tendo a autoridade coatora oferecido
qualquer impugnação no tocante aos fatos alegados, pois se limitou a discutir,
quanto ao direito, o mérito da impetração, não devera o acórdão recorrido
concluir pelo não conhecimento do pedido”[24]. Segundo o mencionado acórdão, a
ausência de impugnação por parte do impetrado seria suficiente para a concessão
da segurança, aplicando-se ao writ a regra geral de revelia do CPC.
Em que pesem a autoridade das opiniões e a complexidade da questão, tal
posicionamento não nos parece o mais acertado. A questão, quando centrada no
rito do mandado de segurança, possui contornos que não comportam a aplicação
das normas de revelia aplicáveis às ações de procedimento ordinário, porque o
mandado de segurança possui procedimento especial, só comportando casos em que
a certeza acerca da veracidade dos fatos se faça presente, sendo considerado,
assim, como procedimento documental.
Esta exigência, de liquidez e certeza do direito do impetrante, decorre de
disposição constitucional e visa, antes de tudo, equilibrar e justificar a
celeridade do procedimento com a considerável restrição ao exercício do direito
de defesa do impetrado. A liquidez e certeza do direito exigida pela
Constituição visa impedir a imposição de restrição ao direito de defesa sem a
correspondente justa causa.
O direito de defesa do demandado só pode ser reduzido na medida exata em que
exigida e demonstrada a plausibilidade do direito do autor. Isso é o que
Cândido Rangel Dinamarco aponta como a necessidade de observância do equilíbrio
entre exigências contrapostas[25]. Em outras palavras, a norma que determina a
agilização do processo e a redução do espaço de defesa deve assegurar, na mesma
medida, a necessária proteção à justiça e certeza da decisão. O enquadramento
jurídico do writ traça esse equilíbrio contrapondo à celeridade do processo a
exigência de demonstração de liquidez e certeza acerca dos fatos alegados na
inicial[26].
E, ao contrário do que possa parecer, as restrições ao direito de defesa
impostas pelo rito do mandado de segurança não são poucas, sendo possível
apontar entre elas: (i) a exigüidade do prazo para a apresentação das
informações ¾ tal interregno se apresenta curto, principalmente quando
contraposto ao art. 188 do CPC, que prevê o prazo de 60 dias para a resposta
dos entes estatais nas ações propostas pelo rito ordinário ¾; (ii) a escassez
de meios probatórios colocados a sua disposição para a demonstração da
veracidade dos fatos modificativos e extintivos do direito do impetrante,
alegados nas próprias informações; (iii) a impossibilidade da apresentação de defesa
técnica, por se tratarem, as informações, de ato intransferível e referente,
unicamente, ao esclarecimento dos fatos e a natural defesa do ato coator.
Assim, se o impetrante elege a via do mandado de segurança em causa que não
comporta este procedimento, a inércia do impetrado não pode suprir tal
inadequação. Utilizar o procedimento do mandamus na ausência da demonstração do
‘direito líquido e certo’ equivale a ferir de morte a necessária adequação
entre o processo e a causa, guardiã dos princípios do contraditório, do devido
processo legal e do equilíbrio de exigências contrapostas. E adequação ¾
enquanto desdobramento do interesse processual, matéria de ordem pública ¾ não
pode ser suprida pelo silêncio da partes.
Não se pode aceitar que do silêncio do impetrado surgiria para o impetrante
direito líquido e certo. Ora, direito líquido e certo é aquele manifesto em sua
existência e delimitado em sua extensão. A presunção decorrente do silêncio do
impetrado não possui qualquer desses atributos: não é manifesto (por ser,
logicamente, omisso – como todo o silêncio) nem delimitado (posto que abstrato,
intangível)[27].
É amplamente majoritário, no Superior Tribunal de Justiça, o entendimento de
que “ao impetrante cumpre demonstrar, mediante prova pré-constituída os fatos
que embasam a impetração, a ocorrência do direito líquido e certo”[28]. O
Supremo Tribunal Federal, demonstrando uma modificação de entendimento acerca
da questão, vem, também, decidindo pela impossibilidade da aplicação dos
‘efeitos da revelia’ em decorrência da não apresentação das informações,
concluindo que a falta desta “não acarreta confissão fícta”[29].
A maior parte da doutrina, ¾ valendo citar, entre outros, Celso Agrícola
Barbi[30], Alfredo Buzaid[31], José da Silva Pacheco[32] e Cássio Scarpinella
Bueno[33] ¾, entende também que a não apresentação das informações não induz a
presunção de veracidade dos fatos alegados na impetração, não podendo levar ao
acolhimento da demanda.
Concluindo, a não apresentação das informações não autoriza a presunção de
veracidade acerca de fatos que, apesar de passíveis de comprovação de plano, o
impetrante se limitou a alegar, mesmo nas causas em que a Fazenda se encontra
tutelando interesse público meramente secundário. Isso porque o princípio da
equivalência de exigências contrapostas é o desdobramento processual do
princípio da proporcionalidade. E a transferência das conseqüências previstas
na regra geral de revelia do CPC para o rito especial do mandado de segurança
se afigura desproporcional, caracterizando uma inadequação da causa à via
processual eleita ¾ levando, assim, à extinção do processo sem julgamento do
mérito.
A ausência das informações, todavia, não possui o condão de impedir o
conhecimento da causa pelo magistrado. A falta de manifestação da autoridade,
quando contraposta a fatos devidamente comprovados pelo impetrante no momento
da impetração, levam, necessariamente, à concessão da segurança, que não
decorrerá da inércia do impetrado, mas sim dos elementos trazidos na exordial.
Vale ressalvar, ainda, que a questão dos efeitos do silêncio do impetrado
passará, como veremos adiante, pela análise da possibilidade de apresentação de
prova pré-constituída e sua efetiva apresentação pelo impetrante. Se o
impetrante deixa de produzir documentos que poderia ter produzido, a não
apresentação das informações não acarretará a presunção da veracidade dos fatos
que tais documentos seriam hábeis a comprovar. Entretanto, se o impetrante
deixou de apresentar documentos em razão da impossibilidade de obtê-los, a
solução terá contornos diversos. Por exemplo, nos casos em que os documentos se
encontrarem em repartição pública ¾ fora do alcance do impetrante ¾, a situação
levará a um exame da questão caso a caso. Tal análise será objeto do item 4.2,
infra.
4.1.2. Informações reconhecendo os fatos alegados pelo impetrante
Caso passível de suscitar controvérsias é aquele no qual o impetrante deixa de
apresentar o devido lastro probatório de suas alegações, mas a autoridade, ao
se manifestar, reconhece expressamente os fatos alegados na inicial. Tal
hipótese pode ser vislumbrada nos casos em que o impetrante fundamenta sua
pretensão em fatos não apreendidos documentalmente (v.g., discussão acerca da
posse de objetos em terminal alfandegário) e a autoridade, confirmando
explicitamente a ocorrência de tais fatos, contesta unicamente as razões de
direito aplicáveis à questão.
Para a solução dessa questão parte-se das seguintes premissas: saber-se os
limites (não apenas no processo, mas principalmente fora dele) e a própria
natureza das informações prestadas pela autoridade no mandado de segurança.
Apesar de não ser parte em sentido estrito, é o impetrado quem apresenta a
defesa do ato coator, atuando também como órgão de comunicação processual
anômalo (recebendo intimações). Entretanto, no que toca ao instituto do mandado
de segurança, não se pode abstrair a relação jurídico-processual do regramento
de direito material aplicável aos atos da Administração Pública. Isso porque a
prestação das informações, além de ato processual, enquanto responsável pela
complementação da relação processual no mandado de segurança, é também ato
administrativo formal.
Sem embargo, a prestação das informações pela autoridade nada mais é do que o
cumprimento de seu dever legal, inserido no espaço de sua atividade de ofício e
devendo, portanto, subsumir-se às regras e princípios reguladores de toda
atividade pública.
Caracterizado também como ato administrativo, não há razão para acreditar-se
que a atividade da autoridade administrativa, na prestação de informações,
possa abster-se da observância de quaisquer dos princípios norteadores da
Administração Pública, notadamente o da moralidade. E o atendimento de tal
princípio ‘constitui hoje em dia pressuposto da validade de todo o ato da
Administração Pública’.[34]
Assim, considerando que a moralidade pública exige a correlação entre o ato
administrativo e o fim a que se presta ¾ o bem comum ¾, a autoridade impetrada,
ao apresentar suas informações tem o dever de verdade[35]. Esse dever decorre
do ordenamento jurídico de direito público próprio da Administração, que impõe
ao agente estatal (direto ou indireto) a observância da boa-fé no trato dos
administrados. É certo que não se coaduna com a noção de moralidade o ato do
administrador que busca escamotear ou mascarar as ações do Estado.
Demonstrada a natureza dúplice que as informações assumem no mandado de
segurança e o dever de verdade que o ordenamento impõe à autoridade na
prestação de suas informações, tem-se que, quando o impetrado declarar
expressamente como verdadeiros os fatos meramente alegados pelo impetrante na
inicial, as informações servirão como documento hábil à concessão da segurança.
4.2 A Recusa da Autoridade na apresentação de documentos
Finalmente, cabe atentarmos para a hipótese em que o impetrante deixa de
apresentar prova pré-constituída dos fatos em que fundamenta sua pretensão vez
tal acervo probatório encontrar-se sob a tutela da autoridade impetrada ou em
repartição de qualquer natureza.
Nessas hipóteses, terá aplicação o parágrafo único, do artigo 6o, da LMS, que
dispõe: “no caso em que o documento necessário à prova do alegado se ache em
repartição ou estabelecimento público, ou em poder de autoridade que se recuse
a fornecê-lo por certidão, o juiz ordenará, preliminarmente, por ofício, a
exibição desse documento em original ou em cópia autêntica e marcará para o
cumprimento da ordem o prazo de dez dias”.
Quid juris se, determinada pelo magistrado a apresentação dos documentos, a
autoridade mantém-se inerte, ou nega-se a fornecer os documentos solicitados
pelo juízo? Deve-se entender desatendida a condição específica da ação
consistente na demonstração da liquidez e certeza do direito do impetrante,
extinguindo-se o writ, sem o julgamento do mérito e abandonando o impetrante à
sorte das vias ordinárias? Entendemos que não.
Nessas hipóteses, o magistrado ¾ em homenagem aos princípios da efetividade do
processo e em defesa da garantia constitucional do mandado de segurança ¾,
deverá, sempre que o interesse público permitir[36], efetivar a pretensão
deduzida pelo particular em juízo. Isto porque não se pode admitir que a via da
ação mandamental, outorgada aos particulares pela própria Constituição, seja
eficaz apenas nos casos em que o Poder Público entenda por bem cooperar com a
pretensão contra a qual opõe resistência.
A configuração constitucional dada pela Carta de 1988 ao mandado de segurança
confere à interpretação das normas subjacentes ao instituto um vetor
garantístico do qual o intérprete não poderá se afastar livremente. Isso
significa dizer que a atividade jurisdicional, ao aplicar as normas referentes
à impetração, não poderá destituir o instituto de sua necessária efetividade,
muito menos através da imposição, ao impetrante, de uma condição impossível: a
apresentação de documento que o impetrado se nega a expor[37]. Ora, se, de
acordo com o regramento dado ao mandado de segurança pela Constituição, nem
mesmo o Poder Constituinte Derivado tem o poder de subtrair ao cidadão o
direito ao manejo do writ ¾ posto que cláusula pétrea (art. 60, § 4o, da CR) ¾,
nos parece impensável que tal faculdade possa ser concedida à Administração
impetrada, através de sua torpe inércia no cumprimento de seu dever.
Assim, em tais casos, adotadas as medidas tendentes à exibição do documento
sem, entretanto, lograr êxito na sua apresentação, deve o magistrado proteger o
direito do impetrante. O cidadão não pode ver-se tolhido da garantia da tutela
jurisdicional efetiva e adequada ¾ ou seja, do direito ao mandado de segurança
enquanto instrumento constitucional próprio ¾, por força de mero capricho da
Administração.
De outro giro, vale dizer que a efetivação da pretensão, diante da não
apresentação dos documentos determinados pelo juízo, não prejudica, em nada, a
responsabilização criminal, civil e funcional da autoridade impetrada.
A jurisprudência, ainda que pontualmente, vem enfrentando a questão.
O Supremo Tribunal Federal, reformando acórdão do Superior Tribunal de Justiça,
adotou o semelhante ao sustentado até aqui. A mais alta Corte do país entendeu
pela impossibilidade de se extinguir o processo, sem o julgamento do mérito,
nos casos em que a autoridade se negue a cumprir despacho ordinatório para
exibição dos documentos. Vale transcrever a ementa do acórdão ¾ de relatoria do
Min. Maurício Corrêa ¾ em razão da singularidade do caso e pela orientação
garantística adotada pelo STF:
“ 1. Decisão que declara os impetrantes carecedores do direito de ação em face
da impossibilidade de juntarem aos autos os documentos indispensáveis à sua
propositura e de comprovarem, por requerimento ou certidão, que a autoridade
coatora recusou-se a fornece-los. Insubsistência.
1.1 Preceitua a Lei n° 1.533/51, em seu art. 6o, parágrafo único que, ‘no caso
em que o documento necessário à prova do alegado se ache em repartição ou
estabelecimento público, ou em poder de autoridade que se recuse a fornecê-lo
por certidão, o juiz ordenará, preliminarmente, por ofício, a exibição desse
documento em original ou em cópia autêntica e marcará para o cumprimento da
ordem o prazo de dez dias’.
1.2. Se a Administração Pública sequer se dignou a cumprir a decisão judicial,
neste sentido proferida, outro não seria o seu procedimento diante de simples
requerimento administrativo.
1.3 O não cumprimento do despacho ordinatório proferido pelo juízo da causa
somente veio patentear o cerceamento imposto aos impetrantes pela
Administração”[38].
Há precedente em sentido semelhante, também em 2o grau de jurisdição. O
Tribunal Regional Federal da 2a Região já se deparou com a questão da negativa
da autoridade em fornecer os documentos determinados, determinando a anulação
da sentença que havia extinto o writ, sem o julgamento mérito, por em razão da não
observância de que a ausência dos documentos foi causada pela resistência da
própria autoridade impetrada[39].
Nesses dois casos, a jurisprudência ¾ ao contrapor o requisito constitucional
da liquidez e certeza do direito do impetrante à garantia fundamental do acesso
à justiça, enquanto acesso à via jurisdicional adequada ¾ reconheceu a
autonomia do direito ao mandado de segurança, enquanto direito fundamental do
particular, não podendo, portanto, ser negligenciado pelo descumprimento de
requisito impossível (apresentação de um documento negado pela autoridade). Nos
parece acertada tal solução, vez que o enquadramento jurídico do mandado de
segurança não parece ofertar outra opção.
Com efeito, não faria sentido declarar o impetrante carecedor de ação nessas
hipóteses, uma vez que tal alternativa significaria transformar aquilo que
configura mera condição da ação, em obstáculo intransponível ao exercício de um
direito constitucionalmente garantido.
Em outra oportunidade, o mesmo TRF da 2a Região adotou solução de viés ainda
mais progressista. Tratava-se de mandado de segurança impetrado com vistas ao
provimento de candidata em concurso para o preenchimento de vagas de alunos do
Colégio Militar do Rio de Janeiro. Na exordial a impetrante narrava que tinha
informações de que a nota que havia obtido no concurso era suficiente para sua
aprovação, mas que, em razão de uma ‘reserva de vagas’ para descendentes de
militares, sua efetiva aprovação não se tornou possível. A requerimento da
impetrante, o magistrado de 1a instância determinou, liminarmente, a
apresentação das provas e da lista de classificação do respectivo concurso. A
autoridade impetrada, por sua vez, apresentou informações, nas quais defendia a
‘reserva de vagas’ e afirmava que não seria oportuno o encaminhamento dos
documentos, em razão da possibilidade de extravio dos mesmos.
Diante da postura adotada pela impetrada, foi determinada, por sentença, a
imediata admissão de aluna nos quadros do Colégio Militar do Rio de Janeiro. O
Tribunal manteve integralmente a decisão 1o grau de jurisdição[40].
Dessa forma o Judiciário determinou a efetivação direta da medida requerida
diante da inércia do impetrado na apresentação dos documentos determinados pelo
juízo, mesmo em face da inexistência, nos autos, de documento hábil a sustentar
a pretensão deduzida na impetração.
Em nosso entendimento, a solução de se determinar a efetivação da medida diante
da negativa dos documentos será acertada sempre que a ponderação entre o
interesse tutelado pela autoridade e a pretensão deduzida pelo impetrante
apontar no sentido da prevalência deste sobre aquele ¾ como ocorreu no último
caso analisado. E sempre, claro, que a não apresentação dos documentos decorrer
de ato de abuso de poder, alheio à vontade do impetrante.
Vale ressaltar, aqui, que a simples natureza do interesse tutelado por cada uma
das partes no mandado de segurança não configurará regra para a solução dos
casos desta última ordem, uma vez que é perfeitamente possível que não apenas a
Administração, mas também o impetrante, encontrarem-se na defesa de interesse
público legítimo, primário, e verdadeiramente afeto à coletividade. Daí a
necessidade de aplicar-se a técnica da ponderação entre tais interesses, o que
tornará legítima a decisão através do balanceamento entre os princípios
envolvidos em cada caso concreto.
Artigo publicado no Mundo Jurídico (www.mundojuridico.adv.br) em 05.05.2003
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[1] In ‘Instituições de Direito Processual Civil’, v. III, Ed. Malheiros, São
Paulo, 2001, p. 534.
[2] In ‘Sistema de Direito Processual Civil’, p. 113.
[3] Ob. cit., v. I,
p. 44.
[4] Porém, não defendemos a posição radical já adotada
pelo Tribunal Federal Regional da 3a Região, ao decidir: “Correto o
indeferimento da juntada de petição em razão de apresentação tardia da peça,
comprovada e reconhecida inclusive pela Fazenda Nacional”. (3a T. Ag. de Inst.
n.º 95.03.016957-7, Rel. Ana Scartezzini, DJ 24.07.96, p. 51041).
[5] STF, Súmula 231: “O revel, em processo civil, pode produzir provas desde
que compareça em tempo oportuno”.
[6] “Computar-se-á em quádruplo o prazo para contestar e em dobro para recorrer
quando a parte for a Fazenda Pública ou o Ministério Público”.
[7] In “Curso de Direito Administrativo”, Ed. Malheiros, São Paulo, 1997; p.
32.
[8] “Art. 10. Omissis.
Parágrafo único. Os representantes judiciais da União, autarquias, fundações e
empresas públicas federais, bem como os indicados na forma do caput , ficam
autorizados a conciliar, transigir ou desistir, nos processos da competência
dos Juizados Especiais Federais”.
[9] In “Instituições de Direito Processual Civil”, v. III, Malheiros, São
Paulo, 2001, p.539.
[10] “Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo,
não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela
ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa
jurídica no exercício de atribuições do Poder Público”.
[11] Sobre o tema, ver Leonardo Greco in ‘Natureza Jurídica do Mandado de
Segurança’, artigo publicado na revista Arquivos do Ministério da Justiça, n.º
129.
[12] Moacyr Amaral dos Santos, natureza Jurídica do Mandado de Segurança, in
Arquivos do Ministério da Justiça, n.º 114, junho de 1970, páginas 29 e segs.
[13] In Natureza Jurídica do Mandado de Segurança, Arquivos do Ministério da
Justiça, n.º 129, março de 1974.
[14] In ‘Do Mandado de Segurança’, 8a ed., Forense, Rio de Janeiro, 1998, p.
61.
[15] In ‘Mandado de Segurança’, 19a ed., Malheiros, São Paulo, 1998, p. 35.
[16] In ‘O Mandado de Segurança e outras Ações Constitucionais Típicas’, Ed. RT,
3a ed., São Paulo, 1998, p. 222 e seguintes.
[17] Ob. cit., p.
61.
[18] Alfredo Buzaid, por exemplo, defende em sua obra
que a dificuldade de interpretação das questões de direito envolvidas na lide
seria suficiente para afastar a noção de direito líquido e certo, e,
conseqüentemente, levar à denegação da segurança (in ‘Do Mandado de Segurança’,
v. I, Ed. Saraiva, São Paulo, 1989, p. 88).
[19] É clássico o julgamento no STF no qual o Min. Edmundo Lins entendeu não
comprovada a liquidez e certeza do direito do impetrante em razão da
dissidência ocorrida no julgamento da causa (Revista Forense, n.º 73, p. 536 –
citado também por Celso Agrícola Barbi, ob. cit. p. 59).
[20] STJ, 6a T. REsp
n.º 29.582-1-GO, Rel. Min. Adhemar Maciel, D.J. 27.09.93, grifos
acrescentados
[21] Op. Cit. p. 197 e seguintes.
[22] Op. Cit. P. 67.
[23] In ‘Mandado de Segurança’, 19 ed., São Paulo,
1998, p. 82 e seguinte.
[24] Recurso de Mandado de Segurança, n.º 5.484 – DF, Rel. Min. Luiz Galotti. RTJ
n.º 6, p. 192 e seguintes
[25] Vale transcrever o desenvolvimento da idéia apresentada pelo Autor: “Isso
significa que todo o movimento de agilização [dentre os quais, como vimos,
encontra-se o mandado de segurança] encontra limites legitimamente
intransponíveis, que levam o construtor do sistema a conformar-se com o
racional equilíbrio possível entre duas exigências antagônicas, a saber: de um
lado a celeridade processual, que tem por objetivo a pacificação tão logo
quanto possível; de outro, a ponderação no trato da causa e das razões dos
litigantes, endereçada à melhor qualidade dos julgamentos. São dois valores
conhecidos o da segurança das relações jurídicas, responsável pela
tranqüilidade que sempre contribui para pacificar (e isso aconselha a
celeridade); e o da justiça nas decisões, que também é inerente ao próprio
escopo fundamental do sistema processual (pacificar com justiça). Como é muito
difícil fazer sempre bem o que se consegue fazer logo, impõe-se como
indispensável o equilíbrio entre as duas exigências, com renúncia a
radicalismos (Calamandrei). Boa técnica processual será aquela que caminhar
equilibradamente entre esses valores.
O Estado-de-direito opera invariavelmente sobre normas preestabelecidas e o
exercício do poder legitima-se sempre pela observância de procedimentos
adequados, como penhor do contraditório e do due process of law.
O exame das linhas básicas de processo em sua programação operacional
(procedimento, oportunidade de defesa, recursos etc.) mostra o convívio
indispensável entre normas tendentes a agilizá-lo e normas que lhe impedem a
excessiva aceleração, impondo maior ponderação no trato dos litígios”. (Op.
Cit., v. I, p. 140 e seguintes)
[26] Como assentado pelo STJ no REsp n.º 29.582-1-GO, supra.
[27] O STF já se manifestou no sentido que a concessão do mandado de segurança
deve basear-se em prova pré-constituída e não em mera presunção RTJ n.º 67, p.
21.
[28] ROMS n.º 11.571
– SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, D.J. 23.10.2000,
p. 142. No mesmo sentido, Resp n.º 107105 – AM, Rel. Min. Fernando Gonçalves,
D.J. 16.06.1997, p. 27420, no qual ficou assentado expressamente que “a falta
de informações não induz revelia, dado que ao impetrante compete mediante prova
documental e pré-constituída, convencer acerca da liquidez e certeza do
direito”.
[29] RTJ, 142/782. Também nesse sentido, RMS 21.300-1/DF, RDA n.º 190/163.
[30] In ‘Do Mandado de Segurança’ 8a ed., Forense, Rio de Janeiro, 1998, p.
201.
[31] In Op. Cit., p.
234.
[32] In ‘O Mandado de Segurança e outras Ações
Constitucionais Típicas’, Ed. RT, 3a ed., São Paulo, 1998, p. 254.
[33] In ‘Mandado de Segurança’, Ed. Saraiva, São Paulo, 2002; p. 61. Nessa
passagem Cassio Scarpinella Bueno apresenta duas razões distintas para a não
ocorrência da revelia no mandado de segurança:
“A primeira. Como o cabimento do mandado de segurança atrela-se a à existência
constitucional de demonstração de direito líquido e certo pelo impetrante
(...), fica sistematicamente afastada a possibilidade de outra forma de prova
influenciar no julgamento do mandado de segurança”. (...)
“A Segunda. O direito material veiculado no mandado de segurança é indisponível
por qualquer das partes da ação”. Quanto a essa última justificativa, não
podemos concordar inteiramente com o Autor, em razão da possiilidade, em nosso
entendimento, da Fazenda ser chamada a defender interesses públicos secundários
(disponíveis) através do rito do mandado de segurança (ver item 3.2, supra).
[34] Diogo de Figueiredo Moreira Neto, op. cit., p. 91.
[35] Em passagem na qual se aponta a diferença entre o representante da Fazenda
e a Autoridade encarregada de prestar informações, asseverou Lúcia Valle
Figueiredo: Assim, autoridade coatora é quem pratica o ato, causa
constrangimento ilegal, e, por isso, chamada é ao mandado de segurança somente
para prestar informações. Enfim, como diz o professor Sérgio Ferraz, a
autoridade coatora tem dever de verdade, e a parte não tem tal dever. A parte,
portanto, seria apenas a pessoa jurídica de direito público, ou, então, de
direito privado, na hipótese de ser delegada ou concessionária de serviço
público, caso estivéssemos diante de empresa estatal, de faculdades privadas
etc. (In Mandado de Segurança, 3a ed., Malheiros, São Paulo, 2000, p.51).
[36] Ver item 3.2, supra.
[37] Acerca dessa premissa hermenêutica, Cassio Scarpinella Bueno leciona com
felicidade que “dada a previsão constitucional do mandado de segurança, não
pode haver dúvidas quanto à circunstância de ele ser mecanismo apto a coibir
qualquer atividade ilícita em suas mais diversas formas de manifestação por
qualquer um que exerça função pública. Qualquer interpretação relativa ao
mandado de segurança não pode se desviar dessa idéia central, e que decorre
direta e inequivocamente da Constituição: é ele mecanismo de defesa do cidadão
contra a prepotência do Estado ou de quem produza atos ou fatos jurídicos em
nome do Estado” (op. cit., p. 5).
[38] STF, 2a T., Recurso de Mandado de Segurança n.° 22.792/DF. Rel. Min.
Maurício Correa. D.J.U. de 22.08.1998, p. 32.
[39] TRF, 2a Região; 3a T., Rel. Des. Valmir Peçanha; AMS n.º 89.02.08990-8;
D.J. de 24.09.1992, p. 29.840.
[40] TRF, 2a Região; 2a T., Rel. Des. Alberto Nogueira; AMS n.º 92.02.15823-1;
D.J. de 24.03.1994.
GUEDES,
Demian. A Inércia do Impetrado no Mandado de Segurança
Disponível em < http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=664
>. Acesso em 24 de agosto de 2006.