® BuscaLegis.ccj.ufsc.br

 

 

A Inércia do Impetrado no Mandado de Segurança

Demian Guedes

 
 
1.1 Inércia Processual e Revelia           



            O processo distribui às partes, aos terceiros intervenientes e ao juiz uma série de direitos, ônus e prerrogativas que visam à superação da resistência e inércia dos envolvidos, garantindo, assim, a efetividade da prestação jurisdicional.



Entre os ônus distribuídos ao longo da relação processual, encontra-se aquele que o sistema impõe ao réu: responder à pretensão deduzida pelo autor, sob pena de se considerarem verdadeiros os fatos por este alegados, admitindo-os como incontroversos (CPC, art. 319). A não satisfação de tal ônus caracterizará o réu como revel, e levará à presunção de veracidade sobre as alegações do autor. Essa presunção convencionou-se denominar “efeito da revelia”.


            Porém, como se sabe, nem sempre a inatividade do réu levará à presunção acima referida. Como determinado no art. 320, II, do CPC, não se operarão os efeitos da revelia nas lides que envolvam direitos indisponíveis. Não é à toa que o magistrado, verificando que o réu deixou de apresentar resposta e que, ainda assim, não se operaram os “efeitos da revelia”, deverá requerer ao autor a especificação das provas que pretende produzir em audiência (art. 324 do CPC), pois os fatos alegados na inicial não se presumirão verdadeiros.



Assim, nos casos em que o litígio versar sobre direitos indisponíveis, a inércia do réu, não acarretará a certeza acerca dos fatos alegados pelo autor, por ser a admissão da veracidade destes fatos o efeito da revelia apontado pelo art. 319 e excepcionado pelo art. 320, II, todos do Código de Processo Civil.



Entretanto, é apressada a conclusão de que nas causas em que estejam em jogo direitos indisponíveis a inércia do réu não operará efeito algum sobre o processo, pois a indisponibilidade dos direitos objeto da causa afasta apenas a presunção de veracidade das alegações iniciais, a qual não é o único efeito decorrente da inércia processual do réu. É apenas o principal deles.



Não é por outra razão que o caput do artigo 320 do CPC determina que “a revelia não induz, contudo, o efeito mencionado no artigo antecedente”. A norma afastou apenas um dos efeitos do instituto, mantendo os demais. Tal constatação decorre da redação do art. 320 e também da regra de hermenêutica que confere às normas de exceção interpretação restritiva, sob pena de transformar-se o excepcional em ordinário.



Do mencionado até aqui, chega-se à conclusão de que (i) a inércia do réu acarreta efeitos diversos sobre o processo, dos quais o principal é a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor; (ii) quando o objeto da causa constituir direito indisponível, não decorrerá da inatividade do réu o efeito específico da presunção anteriormente referida.



Para compreendermos a extensão do fenômeno processual da revelia nas causas específicas em que a Fazenda figure como ré ¾ notadamente no procedimento especialíssimo do Mandado de Segurança ¾ é necessário ter-se em mente ainda:



(i) Quais são, exatamente, os efeitos da inatividade processual do réu ¾ além da presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor;



(ii) quais dos interesses representados pela Fazenda em juízo podem ser considerados como indisponíveis, afastando a presunção de veracidade das alegações do autor; e



(iii) quais as repercussões destas considerações sobre a inatividade do impetrado no Mandado de Segurança, ação de procedimento especial, fundada na noção de direito líquido e certo.



Passemos, assim, à análise de cada uma dessas questões, com vistas à compreensão do fenômeno da inatividade processual do imperado no mandado de segurança.





1.2. Os efeitos da Revelia



Doutrina e jurisprudência usualmente referem-se à presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor como “efeito da revelia”. Entretanto, como visto, a revelia possui efeitos diversos que vão muito além deste.



Cândido Rangel Dinamarco lembra oportunamente que “efeito da revelia é o nome que, por antonomásia, o Código de Processo Civil dá a um destacado efeito desta, consistente na presunção de veracidade das alegações do autor (art. 319). A revelia tem outras conseqüências, mas tal locução transmite a idéia dessa em particular”[1].



Assim, percebe-se facilmente a existência de outros efeitos decorrentes da inatividade do réu, sendo necessário apontá-los e agrupá-los através de uma classificação útil à análise em pauta. Dessa forma, sem esquecer a natureza eminentemente processual do instituto da revelia, podemos delinear a extensão de seus efeitos os distinguindo em efeitos de fundo material e conseqüências de caráter exclusivamente processual.



A distinção apresentada se fundamenta nas convergências entre as normas processuais e materiais, que, como ressalta Carnelutti, “manifestam-se nas relações entre os conceitos de obrigações e poder”, entre as quais se situa exatamente o ônus da prova[2].



Cândido Rangel Dinamarco exterioriza pensamento semelhante ao comentar os pontos de estrangulamento entre o direito substantivo e o direito adjetivo, mencionando exatamente o onus probandi como um destes pontos de interpenetração[3].



Efeito ‘material’ é aquele capaz de incidir sobre o mérito da questão deduzida no processo. É o efeito que influi de modo mais direto na atividade cognitiva do magistrado, incidindo logicamente na fundamentação de suas decisões.



O efeito material decorrente da revelia é a presunção da veracidade dos fatos narrados pelo autor na exordial. É o que alguns autores costumam chamar, impropriamente, de ‘confissão ficta’, decorrente da sanção imposta pelo artigo 319 do CPC.



A presunção a que alude o citado dispositivo é meramente relativa. Como tal ela não leva à certeza concreta dos fatos, excluindo apenas, e em regra, a necessidade de prova acerca dos mesmos e, via de conseqüência, dispensando o interessado do onus probandi que lhe era atribuído até que o silêncio se operou. Tanto é relativa a presunção decorrente da revelia que ela não operará nos casos em que a lei exigir a apresentação de documento específico como meio de prova, bem como nos casos em que o autor alegar fatos impossíveis ou improváveis, ou aqueles contrapostos aos chamados fatos notórios.



O efeito material da revelia, nesses termos, nada mais é do que um critério de distribuição do ônus da prova dentro no curso da relação processual. Decretada a revelia, sua conseqüência de fundo material é a transferência, do autor para o réu ¾ se o momento oportuno ainda lhe couber tal possibilidade ¾, do ônus da prova acerca dos fatos alegados pelo primeiro. Não por outra razão, se e quando o revel comparecer a juízo, caberá a este (se a fase processual ainda comportar) a realização de prova da inveracidade dos fatos narrados pelo autor na propositura da demanda, superando, assim, a presunção relativa de certeza que a revelia lhes imprimiu.



Os efeitos ‘processuais’ são aqueles que se fazem sentir unicamente na relação processual, influindo sobre o curso da ação e a sucessão de atos no processo. O primeiro deles decorre da preclusão, gênero do qual a revelia é espécie. A inércia do réu implica na impossibilidade da prática do ato processual de resposta (reconvenção, contestação ou exceção). Uma vez que o ato levado a destempo é nulo, praticado fora dos limites previstos em lei. Por isso que a contestação apresentada intempestivamente pela Fazenda deverá ser recebida como simples peça de informação ¾ sem o condão de afastar os efeitos que teria dissipado caso apresentada tempestivamente ¾, sob pena de infringir-se o devido processo legal e a segurança jurídica acerca das situações estabelecidas dentro da relação processual[4].



Certo é que, comparecendo a Fazenda em fase processual em que ainda se admita a produção de provas e anexando à sua resposta documentos que entenda relevantes para a lide, estes deverão ser mantidos nos autos com a eficácia que ordinariamente se lhes atribui, aplicando-se a súmula 231 do Supremo Tribunal Federal[5] e o art. 322 do CPC.



Outro efeito ‘instrumental’ é a desnecessidade de intimação para a contagem de prazos que corram contra réu revel, determinada pelo mesmo art. 322 do Código. Porém, as intimações deverão ser realizadas após o ingresso do réu em juízo.



Há ainda a conseqüência ‘processual’ da revelia consistente no julgamento antecipado da lide, na forma do art. 330, II, do CPC. Este efeito específico, entretanto, por ser afeito à desnecessidade de dilação probatória, ocorrerá apenas quando se fizer presente também o efeito material da inércia processual do réu. Isso porque, não incidindo a presunção de veracidade dos fatos, é de bom alvitre que o magistrado abra espaço para a produção de provas por parte do autor, conforme determina o art. 324 do CPC.



Finalmente, cabe lembrar que os efeitos meramente ‘processuais’ da revelia, por não se encontrarem insertos na exceção expressa do art. 320 (que só afasta o efeito material contido no art. 319 do Código de Processo) se farão presentes, em regra, mesmos nos casos em que a lide versar acerca de direitos indisponíveis. Assim, a fortiori, há que se reconhecer, por exemplo, a ocorrência da preclusão e conseqüente inoperância dos plenos efeitos da resposta (exceção de incompetência, v.g.) apresentada intempestivamente pela Fazenda Pública, cuide a lide de direito indisponível ou não. Até mesmo porque, caso se entendesse o contrário, estaria se fazendo letra morta da disposição contida no art. 188[6] do CPC, que já concede ao Poder Público prerrogativa compatível com a natureza dos interesses que pode representar e com a quantidade de feitos em que é demandada.



Vistos, em linhas gerais, os efeitos da inércia do réu no processo, passa-se agora a analisar os limites da noção de interesse público, para que se possa aferir quais das conseqüências da revelia serão percebidas em cada caso específico.





2. Interesse Público



Quando consideradas as relações jurídicas que envolvem o Estado, a noção de direito indisponível sempre acompanhou a idéia de interesse público. Porém, os dois conceitos não representam a mesma gama de relações jurídicas figuradas pelo Poder Público.



Primeiramente, como bem lembra Celso Antônio Bandeira de Melo, interesse público não se confunde, nem poderia se confundir, com o interesse do Estado, da pessoa jurídica de direito público, sujeito de direitos e obrigações. Essa identificação de conceitos não se justificaria pois caracteriza uma confusão entre sujeito e objeto.



Leciona o festejado Autor que “assim melhor se compreenderá a distinção corrente na doutrina italiana entre interesses públicos ou interesses primários ¾ que são os interesses da coletividade como um todo ¾ e interesses secundários, que o Estado (pelo só fato de ser sujeito de direitos) poderia ter como qualquer outra pessoa, isto, independentemente de sua qualidade de servidor de interesses de terceiros: os da coletividade. Poderia, portanto, ter o interesse secundário de resistir ao pagamento de indenizações, ainda que procedente, ou de negar prestações bem fundamentadas que os administrados lhe fizessem, ou de cobrar tributos ou tarifas por valores exagerados. Estaria, por tal modo, defendendo interesses apenas ‘seus’, enquanto pessoa, enquanto entidade animada do propósito de despender o mínimo de recursos e abarrotar-se deles ao máximo. Não estaria, entretanto, atendendo ao interesse público, ao interesse primário, isto é, àquele que a lei aponta como sendo o interesse da coletividade: o da observância da ordem jurídica estabelecida a título de bem curar o interesse de todos”.[7]



Em outras palavras, o interesse estatal verdadeiramente público é aquele que pertence à coletividade, genuinamente, configurando-se assim como a finalidade de todo o agir estatal. Já os interesses públicos secundários são aqueles instrumentais, que decorrem da existência do Estado enquanto pessoa, possuindo uma relação indireta com a atividade pública. É a noção de interesse público primário que se identifica com a idéia de direito indisponível apontada pelo CPC, como fator apto a afastar o efeito material da revelia, não a idéia de publicidade que se pode considerar herdada da visão patrimonialista de Estado, em parte, ainda vigente em nosso país.



Neste passo, é preciso afastar a identificação equivocada ¾ fácil de se absorver ¾ entre bens indisponíveis e impossibilidade de transação por parte de seu titular. A Fazenda não pode, via de regra, transacionar, não por serem todos seus bens indisponíveis, mas sim pela ausência de previsão legal possibilitando a transação. Com efeito, tanto é possível a transação envolvendo bens da Administração de natureza meramente patrimonial que a própria lei a permite em casos especiais, o que aponta a natureza disponível dos mesmos, sendo a indisponibilidade meramente circunstancial. Exemplo recente em nossa legislação é a Lei n.º 10.259/01, que, no parágrafo único do artigo 10, outorga aos representantes judiciais da União Federal, Autarquias e Empresas Públicas poderes para transigir e desistir nas causas de competência própria dos Juizados Especiais Federais[8]. É o princípio da legalidade, ¾ não a indisponibilidade absoluta de seus bens ¾ que impede a Administração Pública de transacionar fora dos casos previstos em lei.



Analisando a questão, Cândido Rangel Dinamarco adverte que “não é correta a afirmação de que sejam indisponíveis todos os direitos e interesses do Estado. Quando se trata de litígios em torno de bens dominicais, sobre os quais este exerce direito de propriedade (e tal é o dinheiro), não há indisponibilidade e o correto é aplicar as sanções que o Código de Processo Civil destina aos réus inativos; isso não acontece com os litígios envolvendo bens de uso comum, que são indisponíveis”.[9]



Com efeito, o privilégio excepcional do art. 320, II, do CPC, só será aplicado aos interesses originariamente indisponíveis, aqueles públicos primários, pertencentes ao todo coletivo, e não a toda e qualquer demanda que envolva um ente estatal. Deve-se, portanto, afastar a noção de que a presunção de veracidade dos fatos estaria afastada em razão dos bens em litígio serem de titularidade do Poder Público. A indisponibilidade é afeita ao objeto da lide, não aos seus sujeitos.



Visto, em linhas gerais, o conceito de direito indisponível capaz de afastar o efeito material da revelia, nos casos em que demandada a Fazenda Pública, passa-se a apontar as peculiaridades da questão no que se refere especificamente ao mandado de segurança.





3. O Mandado de Segurança



3.1. Premissas necessárias: ‘direito líquido e certo’ e o pólo passivo no Mandado de Segurança



O mandado de segurança é, como sabemos, ação civil mandamental, constituindo verdadeira garantia fundamental, conforme determina o art. 5o, inciso LXIX, da Constituição da República[10].


Longa discussão travou a doutrina brasileira quanto à natureza jurídica do writ. Hoje, entretanto, o esforço de parte substancial da comunidade jurídica levou à sedimentação da ‘processualização’ do mandado de segurança e ao conseqüente entendimento de que este é, antes de mais nada, ação[11]. Lembrando a lição de Luís Eulálio de Bueno Vidigal e apontando os critérios para a identificação do exercício do direito de ação (da substituição da vontade das partes; orgânico; substancial e histórico-político) Leonardo Greco centra-se no aspecto substancial para sentenciar: “se o meio de provocar a atuação da jurisdição é a ação, então o mandado de segurança é ação [12]”.[13]



Colocada a discussão dentro do instituto jurídico da ação, o exercício da pretensão do particular através do mandado de segurança depende, caso a caso, do preenchimento de determinadas condições.



Porém, é necessário ter-se em mente que as especificidades do rito do mandado de segurança dão contornos especiais às condições da ação apontadas pela teoria geral do processo, quando considerado o exercício abstrato do direito de ação.



Parte significativa da doutrina defende que o mandado de segurança possui uma condição específica da ação, qual seja, a liquidez e certeza do direito do impetrante. Nesse sentido, Celso Agrícola Barbi leciona que “enquanto, para as ações em geral, a primeira condição para a sentença favorável é a existência da vontade da lei cuja atuação se reclama, no mandado de segurança isto é insuficiente; é preciso não apenas que haja o direito alegado, mas também que ele seja líquido e certo. Se ele existir, mas sem essas características, ensejará o exercício da ação por outros ritos, mas não pelo específico do mandado de segurança”.[14]



Com isso, não se absorve, em medida alguma, para o mandado de segurança, a teoria concretista do direito de ação ¾ segunda a qual este direito só assiste àquele que possui o direito material a ser tutelado na demanda. Não se trata disto. Compreender a liquidez e certeza como condição específica limita-se à necessidade de demonstração ¾ de plano ¾ da veracidade dos fatos, não do direito. É perfeitamente legítimo o exercício do mandado de segurança nos casos em que os fatos, apesar de demonstrados de plano, não levam à concessão da segurança por não assistir ao impetrado direito que lhe garanta a concessão.



Nessa linha, o conceito de direito líquido e certo é eminentemente processual e cinge-se à demonstração da veracidade dos fatos alegados pelo particular na inicial. Hely Lopes Meirelles afirma que “em última análise direito líquido e certo é direito comprovado de plano (...). Por se exigir situações e fatos comprovados de plano é que não há dilação probatória no mandado de segurança”.[15]



José da Silva Pacheco[16] e Celso Agrícola Barbi seguem a mesma orientação, concluindo este que “como se vê, o conceito de direito líquido e certo é tipicamente processual, pois atende ao modo de ser de um direito subjetivo no processo: a circunstância de um determinado direito subjetivo realmente existir não lhe dá a caracterização de liquidez e certeza; está só lhe é atribuído se os fatos em que se fundar puderem ser provados de maneira incontestável, certa, no processo”[17]. Assim restaram afastadas as idéias mais antigas da doutrina[18] e da jurisprudência[19] que entendiam a liquidez e certeza também como transparência das questões de direito.



Do exposto tem-se que o mandado de segurança é ação, podendo se afirmar que uma de suas condições é a liquidez e certeza do direito do impetrante, que nada mais é do que a transparência e a demonstração inequívoca e imediata dos fatos envolvidos na lide, seja porque tais fatos independem de prova, seja porque sua comprovação pode ser feita de plano nos autos, através da apresentação de prova pré-constituída.





3.2. Mandado de Segurança e Interesse Público



Nesse ponto, é necessário afirmar-se que tudo o que foi colocado anteriormente com relação ao interesse público e à ocorrência da revelia também se aplica ao mandado de segurança. Se o impetrado visa tutelar direito público primário e o impetrante busca fazer valer interesse privado, a questão esbarrará no problema da indisponibilidade previsto no art. 320, II do Código de Processo Civil, não cabendo maiores discussões quanto à incidência ou não dos efeitos da revelia.



Em contrapartida, como em qualquer outro procedimento, a Fazenda Pública pode ser chamada a juízo, através de mandado de segurança, para defender interesse público meramente secundário, o qual, como vimos, não se encontra entre os direitos indisponíveis mencionados no art. 320, II, do Código de Processo Civil. Nestes casos a análise dos efeitos da inércia do impetrado passará por questionamentos mais abrangentes, que não poderão se restringir à análise pura e simples da existência de interesse público na demanda.



De outro giro, no caso específico do mandado de segurança, é bastante comum que a defesa de interesses públicos primários encontre-se presente na pretensão do impetrante, o que leva a questão da inércia do impetrado ¾ notadamente quanto à apresentação de documentos ¾ para a seara da análise da disponibilidade do direito material tutelado por ambas as partes no processo.





4. Conseqüências Específicas da Inércia do Impetrado



4.1. Na apresentação das informações (art. 7o, I, da LMS)



4.1.1. A não apresentação das informações e sua apresentação intempestiva



Considerando as premissas anteriormente delineadas, passamos à análise das conseqüências que o silêncio do impetrado (ou sua manifestação a destempo) pode acarretar no julgamento do mandado de segurança.



O artigo 7o, I, da Lei n.º 1.533/51 (LMS), dispõe que “ao despachar a inicial o juiz ordenará que se notifique o coator do conteúdo da petição, entregando-lhe a segunda via apresentada pelo requerente, com as cópias dos documentos, a fim de que, no prazo de dez dias, preste as informações que achar necessárias”.



O sistema anterior à Lei n.º 1.533/51 dispunha que a além da intimação da autoridade coatora, também seria determinada a citação da pessoa jurídica de direito público, para que esta prestasse defesa, igualmente no prazo de dez dias. Desta forma, com a supressão desta determinação pelo sistema legal do mandado de segurança vigente a partir de 1951, o legislador apontou no claro sentido de agilizar o procedimento da ação mandamental e evitar a repetição de atos inúteis, como a duplicação da atividade defensiva no processo. Neste sentido, inclusive, o próprio Superior Tribunal de Justiça já se manifestou, sacramentando que “a Lei do mandado de segurança, em reforço da celeridade – uma das tônicas do instituto – rompeu com a sistemática anterior (Lei 191/36, art. 8o, § 1o, e CPC 39, art. 332, II)”[20].



Desta forma, com a LMS, parte da doutrina passou a discutir o posicionamento do impetrado no mandado de segurança (aspecto foi abordado no capítulo anterior, no qual foram apresentadas as premissas necessárias ao presente estudo, capítulo 3.2), e, a partir daí, o papel das informações no curso do writ.



Já se demonstrou acima a posição da autoridade coatora como interveniente anômalo, não se tratando propriamente de parte. Quanto à natureza das informações prestadas por este interveniente, incensurável a lição de Celso Agrícola Barbi:



“Forma de defesa na legislação revogada - No sistema das legislações anteriores, em que, além do pedido de informações à autoridade coatora, havia a citação da pessoa jurídica de direito público, a defesa desta deveria ser apresentada no prazo de dez dias e sob a forma de contestação. Como o coator devia prestar informações em igual tempo, tínhamos, na prática, uma inútil duplicação de defesa. (...).

O sistema da Lei n.º 1.533/51 – O desenvolvimento histórico do mandado de segurança teria, porém, de libertá-lo dos atos inúteis. Se é essencial a esse tipo de processo que a inicial venha com a prova completa dos fatos, se a cópia desses documentos é enviada ao coator para que este possa examiná-los, evidentemente a informação que ele prestar deve vir logo com a apreciação da prova e com a sustentação da legalidade de seu ato. (...).

“A conclusão a que chegamos é que, nos termos da legislação vigente ¾ que não é lacunosa e não merece censura nessa parte ¾, a defesa da pessoa jurídica de direito público é feita nas informações prestadas pela autoridade coatora, no prazo de dez dias, e que têm, assim, natureza de contestação”.[21]





Esse entendimento é seguido também por Hely Lopes Meirelles, para quem “as informações constituem a defesa da Administração. Devem ser prestadas pela autoridade argüida de coatora, no prazo improrrogável de dez dias (art, 7o, I, da Lei n.º 1.533/51, com a alteração introduzida pela Lei n.º 4.348/64).”[22]



Com efeito, as informações da autoridade são o ato de defesa no mandado de segurança. Não se pode acompanhar parcela da doutrina que, principalmente à época da edição da Lei n.º 1.533/51, afirmava a permanência da necessidade de citar-se a pessoa jurídica de direito público, para que esta apresentasse defesa técnica. Parece excessivamente formalista este ponto de vista, arraigado à idéia de que a representação processual dos entes estatais se faz unicamente na pessoa de seus procuradores. É preciso ter-se em mente que o mandado de segurança é procedimento excepcional, fundado na celeridade e no seu aspecto mandamental para contrapor-se à auto executoriedade dos atos da Administração.



Nessa linha de raciocínio, partindo da teoria do órgão para suprir o problema da representação processual e considerando o fato de que o writ só poderá ser concedido nos casos em que o direito for de plano demonstrado pelo impetrante, não há mal algum em se compreender as informações como ato de defesa do réu, figurando a autoridade coatora como substituto processual da pessoa jurídica de direito público demandada. No caso específico do mandado de segurança, não há impropriedade na determinação de que a defesa seja realizada por aquele que não seja propriamente a pessoa jurídica parte no processo, mas que integra sua constituição.



A partir da constatação de que as informações são o ato de defesa, completando a relação processual (ainda que por representação imprópria) e abrindo espaço à observância do princípio do contraditório, passamos a indagar acerca das conseqüências da sua não apresentação no curso do mandado de segurança. Basicamente, o que restou por definir foi se no mandado de segurança as conseqüências seriam equivalentes às decorrentes do silêncio nas ações pelo rito ordinário contra o Poder Público ou se, ao contrário, o enquadramento jurídico especial do writ impediria a aplicação da regência da revelia existente no CPC.



Parte da doutrina brasileira, identificada em Hely Lopes Meirelles[23], sustenta que o silêncio do impetrado pode determinar a concessão da segurança, devendo-se presumir verdadeiros os fatos alegados pelo impetrante à exordial.



Quanto aos tribunais, é válido ressaltar que o STF, ainda na década de 50, já se posicionou no sentido de que “não tendo a autoridade coatora oferecido qualquer impugnação no tocante aos fatos alegados, pois se limitou a discutir, quanto ao direito, o mérito da impetração, não devera o acórdão recorrido concluir pelo não conhecimento do pedido”[24]. Segundo o mencionado acórdão, a ausência de impugnação por parte do impetrado seria suficiente para a concessão da segurança, aplicando-se ao writ a regra geral de revelia do CPC.



Em que pesem a autoridade das opiniões e a complexidade da questão, tal posicionamento não nos parece o mais acertado. A questão, quando centrada no rito do mandado de segurança, possui contornos que não comportam a aplicação das normas de revelia aplicáveis às ações de procedimento ordinário, porque o mandado de segurança possui procedimento especial, só comportando casos em que a certeza acerca da veracidade dos fatos se faça presente, sendo considerado, assim, como procedimento documental.



Esta exigência, de liquidez e certeza do direito do impetrante, decorre de disposição constitucional e visa, antes de tudo, equilibrar e justificar a celeridade do procedimento com a considerável restrição ao exercício do direito de defesa do impetrado. A liquidez e certeza do direito exigida pela Constituição visa impedir a imposição de restrição ao direito de defesa sem a correspondente justa causa.



O direito de defesa do demandado só pode ser reduzido na medida exata em que exigida e demonstrada a plausibilidade do direito do autor. Isso é o que Cândido Rangel Dinamarco aponta como a necessidade de observância do equilíbrio entre exigências contrapostas[25]. Em outras palavras, a norma que determina a agilização do processo e a redução do espaço de defesa deve assegurar, na mesma medida, a necessária proteção à justiça e certeza da decisão. O enquadramento jurídico do writ traça esse equilíbrio contrapondo à celeridade do processo a exigência de demonstração de liquidez e certeza acerca dos fatos alegados na inicial[26].



E, ao contrário do que possa parecer, as restrições ao direito de defesa impostas pelo rito do mandado de segurança não são poucas, sendo possível apontar entre elas: (i) a exigüidade do prazo para a apresentação das informações ¾ tal interregno se apresenta curto, principalmente quando contraposto ao art. 188 do CPC, que prevê o prazo de 60 dias para a resposta dos entes estatais nas ações propostas pelo rito ordinário ¾; (ii) a escassez de meios probatórios colocados a sua disposição para a demonstração da veracidade dos fatos modificativos e extintivos do direito do impetrante, alegados nas próprias informações; (iii) a impossibilidade da apresentação de defesa técnica, por se tratarem, as informações, de ato intransferível e referente, unicamente, ao esclarecimento dos fatos e a natural defesa do ato coator.



Assim, se o impetrante elege a via do mandado de segurança em causa que não comporta este procedimento, a inércia do impetrado não pode suprir tal inadequação. Utilizar o procedimento do mandamus na ausência da demonstração do ‘direito líquido e certo’ equivale a ferir de morte a necessária adequação entre o processo e a causa, guardiã dos princípios do contraditório, do devido processo legal e do equilíbrio de exigências contrapostas. E adequação ¾ enquanto desdobramento do interesse processual, matéria de ordem pública ¾ não pode ser suprida pelo silêncio da partes.



Não se pode aceitar que do silêncio do impetrado surgiria para o impetrante direito líquido e certo. Ora, direito líquido e certo é aquele manifesto em sua existência e delimitado em sua extensão. A presunção decorrente do silêncio do impetrado não possui qualquer desses atributos: não é manifesto (por ser, logicamente, omisso – como todo o silêncio) nem delimitado (posto que abstrato, intangível)[27].



É amplamente majoritário, no Superior Tribunal de Justiça, o entendimento de que “ao impetrante cumpre demonstrar, mediante prova pré-constituída os fatos que embasam a impetração, a ocorrência do direito líquido e certo”[28]. O Supremo Tribunal Federal, demonstrando uma modificação de entendimento acerca da questão, vem, também, decidindo pela impossibilidade da aplicação dos ‘efeitos da revelia’ em decorrência da não apresentação das informações, concluindo que a falta desta “não acarreta confissão fícta”[29].



A maior parte da doutrina, ¾ valendo citar, entre outros, Celso Agrícola Barbi[30], Alfredo Buzaid[31], José da Silva Pacheco[32] e Cássio Scarpinella Bueno[33] ¾, entende também que a não apresentação das informações não induz a presunção de veracidade dos fatos alegados na impetração, não podendo levar ao acolhimento da demanda.



Concluindo, a não apresentação das informações não autoriza a presunção de veracidade acerca de fatos que, apesar de passíveis de comprovação de plano, o impetrante se limitou a alegar, mesmo nas causas em que a Fazenda se encontra tutelando interesse público meramente secundário. Isso porque o princípio da equivalência de exigências contrapostas é o desdobramento processual do princípio da proporcionalidade. E a transferência das conseqüências previstas na regra geral de revelia do CPC para o rito especial do mandado de segurança se afigura desproporcional, caracterizando uma inadequação da causa à via processual eleita ¾ levando, assim, à extinção do processo sem julgamento do mérito.



A ausência das informações, todavia, não possui o condão de impedir o conhecimento da causa pelo magistrado. A falta de manifestação da autoridade, quando contraposta a fatos devidamente comprovados pelo impetrante no momento da impetração, levam, necessariamente, à concessão da segurança, que não decorrerá da inércia do impetrado, mas sim dos elementos trazidos na exordial.



Vale ressalvar, ainda, que a questão dos efeitos do silêncio do impetrado passará, como veremos adiante, pela análise da possibilidade de apresentação de prova pré-constituída e sua efetiva apresentação pelo impetrante. Se o impetrante deixa de produzir documentos que poderia ter produzido, a não apresentação das informações não acarretará a presunção da veracidade dos fatos que tais documentos seriam hábeis a comprovar. Entretanto, se o impetrante deixou de apresentar documentos em razão da impossibilidade de obtê-los, a solução terá contornos diversos. Por exemplo, nos casos em que os documentos se encontrarem em repartição pública ¾ fora do alcance do impetrante ¾, a situação levará a um exame da questão caso a caso. Tal análise será objeto do item 4.2, infra.





4.1.2. Informações reconhecendo os fatos alegados pelo impetrante



Caso passível de suscitar controvérsias é aquele no qual o impetrante deixa de apresentar o devido lastro probatório de suas alegações, mas a autoridade, ao se manifestar, reconhece expressamente os fatos alegados na inicial. Tal hipótese pode ser vislumbrada nos casos em que o impetrante fundamenta sua pretensão em fatos não apreendidos documentalmente (v.g., discussão acerca da posse de objetos em terminal alfandegário) e a autoridade, confirmando explicitamente a ocorrência de tais fatos, contesta unicamente as razões de direito aplicáveis à questão.



Para a solução dessa questão parte-se das seguintes premissas: saber-se os limites (não apenas no processo, mas principalmente fora dele) e a própria natureza das informações prestadas pela autoridade no mandado de segurança.



Apesar de não ser parte em sentido estrito, é o impetrado quem apresenta a defesa do ato coator, atuando também como órgão de comunicação processual anômalo (recebendo intimações). Entretanto, no que toca ao instituto do mandado de segurança, não se pode abstrair a relação jurídico-processual do regramento de direito material aplicável aos atos da Administração Pública. Isso porque a prestação das informações, além de ato processual, enquanto responsável pela complementação da relação processual no mandado de segurança, é também ato administrativo formal.



Sem embargo, a prestação das informações pela autoridade nada mais é do que o cumprimento de seu dever legal, inserido no espaço de sua atividade de ofício e devendo, portanto, subsumir-se às regras e princípios reguladores de toda atividade pública.



Caracterizado também como ato administrativo, não há razão para acreditar-se que a atividade da autoridade administrativa, na prestação de informações, possa abster-se da observância de quaisquer dos princípios norteadores da Administração Pública, notadamente o da moralidade. E o atendimento de tal princípio ‘constitui hoje em dia pressuposto da validade de todo o ato da Administração Pública’.[34]



Assim, considerando que a moralidade pública exige a correlação entre o ato administrativo e o fim a que se presta ¾ o bem comum ¾, a autoridade impetrada, ao apresentar suas informações tem o dever de verdade[35]. Esse dever decorre do ordenamento jurídico de direito público próprio da Administração, que impõe ao agente estatal (direto ou indireto) a observância da boa-fé no trato dos administrados. É certo que não se coaduna com a noção de moralidade o ato do administrador que busca escamotear ou mascarar as ações do Estado.



Demonstrada a natureza dúplice que as informações assumem no mandado de segurança e o dever de verdade que o ordenamento impõe à autoridade na prestação de suas informações, tem-se que, quando o impetrado declarar expressamente como verdadeiros os fatos meramente alegados pelo impetrante na inicial, as informações servirão como documento hábil à concessão da segurança.





4.2 A Recusa da Autoridade na apresentação de documentos



Finalmente, cabe atentarmos para a hipótese em que o impetrante deixa de apresentar prova pré-constituída dos fatos em que fundamenta sua pretensão vez tal acervo probatório encontrar-se sob a tutela da autoridade impetrada ou em repartição de qualquer natureza.



Nessas hipóteses, terá aplicação o parágrafo único, do artigo 6o, da LMS, que dispõe: “no caso em que o documento necessário à prova do alegado se ache em repartição ou estabelecimento público, ou em poder de autoridade que se recuse a fornecê-lo por certidão, o juiz ordenará, preliminarmente, por ofício, a exibição desse documento em original ou em cópia autêntica e marcará para o cumprimento da ordem o prazo de dez dias”.



Quid juris se, determinada pelo magistrado a apresentação dos documentos, a autoridade mantém-se inerte, ou nega-se a fornecer os documentos solicitados pelo juízo? Deve-se entender desatendida a condição específica da ação consistente na demonstração da liquidez e certeza do direito do impetrante, extinguindo-se o writ, sem o julgamento do mérito e abandonando o impetrante à sorte das vias ordinárias? Entendemos que não.



Nessas hipóteses, o magistrado ¾ em homenagem aos princípios da efetividade do processo e em defesa da garantia constitucional do mandado de segurança ¾, deverá, sempre que o interesse público permitir[36], efetivar a pretensão deduzida pelo particular em juízo. Isto porque não se pode admitir que a via da ação mandamental, outorgada aos particulares pela própria Constituição, seja eficaz apenas nos casos em que o Poder Público entenda por bem cooperar com a pretensão contra a qual opõe resistência.



A configuração constitucional dada pela Carta de 1988 ao mandado de segurança confere à interpretação das normas subjacentes ao instituto um vetor garantístico do qual o intérprete não poderá se afastar livremente. Isso significa dizer que a atividade jurisdicional, ao aplicar as normas referentes à impetração, não poderá destituir o instituto de sua necessária efetividade, muito menos através da imposição, ao impetrante, de uma condição impossível: a apresentação de documento que o impetrado se nega a expor[37]. Ora, se, de acordo com o regramento dado ao mandado de segurança pela Constituição, nem mesmo o Poder Constituinte Derivado tem o poder de subtrair ao cidadão o direito ao manejo do writ ¾ posto que cláusula pétrea (art. 60, § 4o, da CR) ¾, nos parece impensável que tal faculdade possa ser concedida à Administração impetrada, através de sua torpe inércia no cumprimento de seu dever.



Assim, em tais casos, adotadas as medidas tendentes à exibição do documento sem, entretanto, lograr êxito na sua apresentação, deve o magistrado proteger o direito do impetrante. O cidadão não pode ver-se tolhido da garantia da tutela jurisdicional efetiva e adequada ¾ ou seja, do direito ao mandado de segurança enquanto instrumento constitucional próprio ¾, por força de mero capricho da Administração.



De outro giro, vale dizer que a efetivação da pretensão, diante da não apresentação dos documentos determinados pelo juízo, não prejudica, em nada, a responsabilização criminal, civil e funcional da autoridade impetrada.



A jurisprudência, ainda que pontualmente, vem enfrentando a questão.



O Supremo Tribunal Federal, reformando acórdão do Superior Tribunal de Justiça, adotou o semelhante ao sustentado até aqui. A mais alta Corte do país entendeu pela impossibilidade de se extinguir o processo, sem o julgamento do mérito, nos casos em que a autoridade se negue a cumprir despacho ordinatório para exibição dos documentos. Vale transcrever a ementa do acórdão ¾ de relatoria do Min. Maurício Corrêa ¾ em razão da singularidade do caso e pela orientação garantística adotada pelo STF:



“ 1. Decisão que declara os impetrantes carecedores do direito de ação em face da impossibilidade de juntarem aos autos os documentos indispensáveis à sua propositura e de comprovarem, por requerimento ou certidão, que a autoridade coatora recusou-se a fornece-los. Insubsistência.

1.1 Preceitua a Lei n° 1.533/51, em seu art. 6o, parágrafo único que, ‘no caso em que o documento necessário à prova do alegado se ache em repartição ou estabelecimento público, ou em poder de autoridade que se recuse a fornecê-lo por certidão, o juiz ordenará, preliminarmente, por ofício, a exibição desse documento em original ou em cópia autêntica e marcará para o cumprimento da ordem o prazo de dez dias’.

1.2. Se a Administração Pública sequer se dignou a cumprir a decisão judicial, neste sentido proferida, outro não seria o seu procedimento diante de simples requerimento administrativo.

1.3 O não cumprimento do despacho ordinatório proferido pelo juízo da causa somente veio patentear o cerceamento imposto aos impetrantes pela Administração”[38].



Há precedente em sentido semelhante, também em 2o grau de jurisdição. O Tribunal Regional Federal da 2a Região já se deparou com a questão da negativa da autoridade em fornecer os documentos determinados, determinando a anulação da sentença que havia extinto o writ, sem o julgamento mérito, por em razão da não observância de que a ausência dos documentos foi causada pela resistência da própria autoridade impetrada[39].



Nesses dois casos, a jurisprudência ¾ ao contrapor o requisito constitucional da liquidez e certeza do direito do impetrante à garantia fundamental do acesso à justiça, enquanto acesso à via jurisdicional adequada ¾ reconheceu a autonomia do direito ao mandado de segurança, enquanto direito fundamental do particular, não podendo, portanto, ser negligenciado pelo descumprimento de requisito impossível (apresentação de um documento negado pela autoridade). Nos parece acertada tal solução, vez que o enquadramento jurídico do mandado de segurança não parece ofertar outra opção.



Com efeito, não faria sentido declarar o impetrante carecedor de ação nessas hipóteses, uma vez que tal alternativa significaria transformar aquilo que configura mera condição da ação, em obstáculo intransponível ao exercício de um direito constitucionalmente garantido.



Em outra oportunidade, o mesmo TRF da 2a Região adotou solução de viés ainda mais progressista. Tratava-se de mandado de segurança impetrado com vistas ao provimento de candidata em concurso para o preenchimento de vagas de alunos do Colégio Militar do Rio de Janeiro. Na exordial a impetrante narrava que tinha informações de que a nota que havia obtido no concurso era suficiente para sua aprovação, mas que, em razão de uma ‘reserva de vagas’ para descendentes de militares, sua efetiva aprovação não se tornou possível. A requerimento da impetrante, o magistrado de 1a instância determinou, liminarmente, a apresentação das provas e da lista de classificação do respectivo concurso. A autoridade impetrada, por sua vez, apresentou informações, nas quais defendia a ‘reserva de vagas’ e afirmava que não seria oportuno o encaminhamento dos documentos, em razão da possibilidade de extravio dos mesmos.



Diante da postura adotada pela impetrada, foi determinada, por sentença, a imediata admissão de aluna nos quadros do Colégio Militar do Rio de Janeiro. O Tribunal manteve integralmente a decisão 1o grau de jurisdição[40].



Dessa forma o Judiciário determinou a efetivação direta da medida requerida diante da inércia do impetrado na apresentação dos documentos determinados pelo juízo, mesmo em face da inexistência, nos autos, de documento hábil a sustentar a pretensão deduzida na impetração.



Em nosso entendimento, a solução de se determinar a efetivação da medida diante da negativa dos documentos será acertada sempre que a ponderação entre o interesse tutelado pela autoridade e a pretensão deduzida pelo impetrante apontar no sentido da prevalência deste sobre aquele ¾ como ocorreu no último caso analisado. E sempre, claro, que a não apresentação dos documentos decorrer de ato de abuso de poder, alheio à vontade do impetrante.



Vale ressaltar, aqui, que a simples natureza do interesse tutelado por cada uma das partes no mandado de segurança não configurará regra para a solução dos casos desta última ordem, uma vez que é perfeitamente possível que não apenas a Administração, mas também o impetrante, encontrarem-se na defesa de interesse público legítimo, primário, e verdadeiramente afeto à coletividade. Daí a necessidade de aplicar-se a técnica da ponderação entre tais interesses, o que tornará legítima a decisão através do balanceamento entre os princípios envolvidos em cada caso concreto.







Artigo publicado no Mundo Jurídico (www.mundojuridico.adv.br) em 05.05.2003







--------------------------------------------------------------------------------

[1] In ‘Instituições de Direito Processual Civil’, v. III, Ed. Malheiros, São Paulo, 2001, p. 534.

[2] In ‘Sistema de Direito Processual Civil’, p. 113.

[3] Ob. cit., v. I, p. 44.

[4] Porém, não defendemos a posição radical já adotada pelo Tribunal Federal Regional da 3a Região, ao decidir: “Correto o indeferimento da juntada de petição em razão de apresentação tardia da peça, comprovada e reconhecida inclusive pela Fazenda Nacional”. (3a T. Ag. de Inst. n.º 95.03.016957-7, Rel. Ana Scartezzini, DJ 24.07.96, p. 51041).

[5] STF, Súmula 231: “O revel, em processo civil, pode produzir provas desde que compareça em tempo oportuno”.

[6] “Computar-se-á em quádruplo o prazo para contestar e em dobro para recorrer quando a parte for a Fazenda Pública ou o Ministério Público”.

[7] In “Curso de Direito Administrativo”, Ed. Malheiros, São Paulo, 1997; p. 32.

[8] “Art. 10. Omissis.

Parágrafo único. Os representantes judiciais da União, autarquias, fundações e empresas públicas federais, bem como os indicados na forma do caput , ficam autorizados a conciliar, transigir ou desistir, nos processos da competência dos Juizados Especiais Federais”.



[9] In “Instituições de Direito Processual Civil”, v. III, Malheiros, São Paulo, 2001, p.539.

[10] “Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público”.

[11] Sobre o tema, ver Leonardo Greco in ‘Natureza Jurídica do Mandado de Segurança’, artigo publicado na revista Arquivos do Ministério da Justiça, n.º 129.

[12] Moacyr Amaral dos Santos, natureza Jurídica do Mandado de Segurança, in Arquivos do Ministério da Justiça, n.º 114, junho de 1970, páginas 29 e segs.

[13] In Natureza Jurídica do Mandado de Segurança, Arquivos do Ministério da Justiça, n.º 129, março de 1974.

[14] In ‘Do Mandado de Segurança’, 8a ed., Forense, Rio de Janeiro, 1998, p. 61.

[15] In ‘Mandado de Segurança’, 19a ed., Malheiros, São Paulo, 1998, p. 35.

[16] In ‘O Mandado de Segurança e outras Ações Constitucionais Típicas’, Ed. RT, 3a ed., São Paulo, 1998, p. 222 e seguintes.

[17] Ob. cit., p. 61.

[18] Alfredo Buzaid, por exemplo, defende em sua obra que a dificuldade de interpretação das questões de direito envolvidas na lide seria suficiente para afastar a noção de direito líquido e certo, e, conseqüentemente, levar à denegação da segurança (in ‘Do Mandado de Segurança’, v. I, Ed. Saraiva, São Paulo, 1989, p. 88).

[19] É clássico o julgamento no STF no qual o Min. Edmundo Lins entendeu não comprovada a liquidez e certeza do direito do impetrante em razão da dissidência ocorrida no julgamento da causa (Revista Forense, n.º 73, p. 536 – citado também por Celso Agrícola Barbi, ob. cit. p. 59).

[20] STJ, 6a T. REsp n.º 29.582-1-GO, Rel. Min. Adhemar Maciel, D.J. 27.09.93, grifos acrescentados

[21] Op. Cit. p. 197 e seguintes.

[22] Op. Cit. P. 67.

[23] In ‘Mandado de Segurança’, 19 ed., São Paulo, 1998, p. 82 e seguinte.

[24] Recurso de Mandado de Segurança, n.º 5.484 – DF, Rel.
Min. Luiz Galotti. RTJ n.º 6, p. 192 e seguintes

[25] Vale transcrever o desenvolvimento da idéia apresentada pelo Autor: “Isso significa que todo o movimento de agilização [dentre os quais, como vimos, encontra-se o mandado de segurança] encontra limites legitimamente intransponíveis, que levam o construtor do sistema a conformar-se com o racional equilíbrio possível entre duas exigências antagônicas, a saber: de um lado a celeridade processual, que tem por objetivo a pacificação tão logo quanto possível; de outro, a ponderação no trato da causa e das razões dos litigantes, endereçada à melhor qualidade dos julgamentos. São dois valores conhecidos o da segurança das relações jurídicas, responsável pela tranqüilidade que sempre contribui para pacificar (e isso aconselha a celeridade); e o da justiça nas decisões, que também é inerente ao próprio escopo fundamental do sistema processual (pacificar com justiça). Como é muito difícil fazer sempre bem o que se consegue fazer logo, impõe-se como indispensável o equilíbrio entre as duas exigências, com renúncia a radicalismos (Calamandrei). Boa técnica processual será aquela que caminhar equilibradamente entre esses valores.

O Estado-de-direito opera invariavelmente sobre normas preestabelecidas e o exercício do poder legitima-se sempre pela observância de procedimentos adequados, como penhor do contraditório e do due process of law.

O exame das linhas básicas de processo em sua programação operacional (procedimento, oportunidade de defesa, recursos etc.) mostra o convívio indispensável entre normas tendentes a agilizá-lo e normas que lhe impedem a excessiva aceleração, impondo maior ponderação no trato dos litígios”. (Op. Cit., v. I, p. 140 e seguintes)

[26] Como assentado pelo STJ no REsp n.º 29.582-1-GO, supra.

[27] O STF já se manifestou no sentido que a concessão do mandado de segurança deve basear-se em prova pré-constituída e não em mera presunção RTJ n.º 67, p. 21.

[28] ROMS n.º 11.571 – SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, D.J. 23.10.2000, p. 142. No mesmo sentido, Resp n.º 107105 – AM, Rel. Min. Fernando Gonçalves, D.J. 16.06.1997, p. 27420, no qual ficou assentado expressamente que “a falta de informações não induz revelia, dado que ao impetrante compete mediante prova documental e pré-constituída, convencer acerca da liquidez e certeza do direito”.

[29] RTJ, 142/782. Também nesse sentido, RMS 21.300-1/DF, RDA n.º 190/163.

[30] In ‘Do Mandado de Segurança’ 8a ed., Forense, Rio de Janeiro, 1998, p. 201.

[31] In Op. Cit., p. 234.

[32] In ‘O Mandado de Segurança e outras Ações Constitucionais Típicas’, Ed. RT, 3a ed., São Paulo, 1998, p. 254.

[33] In ‘Mandado de Segurança’, Ed. Saraiva, São Paulo, 2002; p. 61. Nessa passagem Cassio Scarpinella Bueno apresenta duas razões distintas para a não ocorrência da revelia no mandado de segurança:

“A primeira. Como o cabimento do mandado de segurança atrela-se a à existência constitucional de demonstração de direito líquido e certo pelo impetrante (...), fica sistematicamente afastada a possibilidade de outra forma de prova influenciar no julgamento do mandado de segurança”. (...)

“A Segunda. O direito material veiculado no mandado de segurança é indisponível por qualquer das partes da ação”. Quanto a essa última justificativa, não podemos concordar inteiramente com o Autor, em razão da possiilidade, em nosso entendimento, da Fazenda ser chamada a defender interesses públicos secundários (disponíveis) através do rito do mandado de segurança (ver item 3.2, supra).

[34] Diogo de Figueiredo Moreira Neto, op. cit., p. 91.

[35] Em passagem na qual se aponta a diferença entre o representante da Fazenda e a Autoridade encarregada de prestar informações, asseverou Lúcia Valle Figueiredo: Assim, autoridade coatora é quem pratica o ato, causa constrangimento ilegal, e, por isso, chamada é ao mandado de segurança somente para prestar informações. Enfim, como diz o professor Sérgio Ferraz, a autoridade coatora tem dever de verdade, e a parte não tem tal dever. A parte, portanto, seria apenas a pessoa jurídica de direito público, ou, então, de direito privado, na hipótese de ser delegada ou concessionária de serviço público, caso estivéssemos diante de empresa estatal, de faculdades privadas etc. (In Mandado de Segurança, 3a ed., Malheiros, São Paulo, 2000, p.51).



[36] Ver item 3.2, supra.

[37] Acerca dessa premissa hermenêutica, Cassio Scarpinella Bueno leciona com felicidade que “dada a previsão constitucional do mandado de segurança, não pode haver dúvidas quanto à circunstância de ele ser mecanismo apto a coibir qualquer atividade ilícita em suas mais diversas formas de manifestação por qualquer um que exerça função pública. Qualquer interpretação relativa ao mandado de segurança não pode se desviar dessa idéia central, e que decorre direta e inequivocamente da Constituição: é ele mecanismo de defesa do cidadão contra a prepotência do Estado ou de quem produza atos ou fatos jurídicos em nome do Estado” (op. cit., p. 5).

[38] STF, 2a T., Recurso de Mandado de Segurança n.° 22.792/DF. Rel. Min. Maurício Correa. D.J.U. de 22.08.1998, p. 32.

[39] TRF, 2a Região; 3a T., Rel. Des. Valmir Peçanha; AMS n.º 89.02.08990-8; D.J. de 24.09.1992, p. 29.840.

[40] TRF, 2a Região; 2a T., Rel. Des. Alberto Nogueira; AMS n.º 92.02.15823-1; D.J. de 24.03.1994.

 

GUEDES, Demian. A Inércia do Impetrado no Mandado de Segurança Disponível em < http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=664 >. Acesso em 24 de agosto de 2006.