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A obrigatoriedade do
exame de dependência toxicológica
Valmir Bigal
O presente trabalho tem como objetivo tecer algumas considerações acerca
da obrigatoriedade de ser determinada, pelo juiz de direito, a realização de
exame de dependência toxicológica quando o acusado se declare usuário.
Inicialmente faremos uma abordagem das questões incidentais, tendo em
vista a interferência desta no julgamento da lide.
Depois, trataremos a questão da importância das provas no processo penal.
Estabeleceremos, na seqüência, os diversos graus existentes de usuários
de substância entorpecente que a Organização Mundial de Saúde reconhece.
E, por fim, analisaremos a exata interferência que o exame de dependência
toxicológica exerce na dinâmica do direito processual penal.
QUESTÕES INCIDENTAIS
Na terminologia jurídica ou na técnica forense denomina-se de questões
incidentais aquelas que aparecem no curso do processo, podendo alterar seu
normal procedimento, como, por exemplo, provocando sua suspensão ou
interrupção, ou até mesmo seu próprio destino quanto ao mérito.
No ensinamento de Antônio Scarance Fernandes, “incidente é o que cai em
cima de algo em movimento, interrompendo o seu curso normal. O incidente
processual seria, por conseguinte, aquilo que se insere no processo, podendo
interromper seu movimento, podendo obstaculizar o seu caminhar”.[1]
Cumpre diferenciar a respeito de questão incidental e procedimento
incidental.
Questão incidental é toda aquela controvérsia que sobrevém no curso do
processo e que deve ser decidida pelo juiz antes da causa ou questão principal,
sendo acessória em relação à questão principal, ou seja, não há ocorrência de
julgamento do mérito.
Procedimento incidental, que também se denomina rito incidental, é o que
se forma paralelamente àquele em que se desenvolve a relação processual para a
resolução de controvérsias ou questões acessórias.
Também não devem ser confundidos os conceitos de questão prejudicial e
preliminar com questão incidental.
Questão prejudicial é aquela que surge no curso do processo devendo ser
julgada antes da questão principal, sendo, no entanto, estranha à lide penal
devendo ser resolvida em juízo diverso do criminal.
Questão preliminar é a que diz respeito ao direito processual porque
possui natureza eminentemente processual; não impede o julgamento de mérito por
parte do juízo, todavia, o contamina a ponto de causar nulidade.
IMPORTÂNCIA DAS PROVAS
O Direito Processual Penal moderno visa a apuração de uma verdade, tanto
quanto possível, próxima da real ou substancial, que não significa outra coisa
senão a inadmissibilidade, na esfera penal, das ficções e presunções.
Na persecução dessa “verdade real” a prova deve ser buscada com a devida
cautela, a fim de resguardar-se os princípios e normas constitucionais
insculpidas em nossa Carta Magna.
Júlio Fabbrini Mirabete conceitua prova como a demonstração que deve gerar
no juiz a convicção de que necessita para seu pronunciamento declarando a
existência da responsabilidade criminal, reconhecendo a sua autoria e impondo a
respectiva sanção penal.
A prova visa demonstrar, no processo, a existência ou não de um fato, verdade,
ou uma afirmação sobre a solução de um processo.
Há que se salientar que não existe hierarquia de provas, nem provas
especificadas para determinado caso. Tudo que for lícito, idôneo para
determinado caso, deve ser admitido. Ademais o Código de Processo Penal
acatando o parâmetro de não-taxatividade admite, expressamente, a produção de
provas através de qualquer meio (artigo 332 do Código de Processo Penal).
Tão importante é a prova ericial que o juiz somente poderá se opor a ela
se constatada sua inteira desnecessidade à elucidação da verdade.
Tourinho Filho sobre a prova pericial assim se expressa: “entende-se por
perícia o exame procedido por pessoa que tenha determinados conhecimentos
técnicos, científicos, artísticos ou práticos acerca dos fatos, circunstâncias
ou condições pessoais inerentes ao fato punível, a fim de comprová-los”. [2]
No mesmo sentido a acepção oportuna de Mittermaier a respeito da
realização da perícia: “Tem lugar o exame de peritos sempre que se apresentarem
na causa principal questões importantes, cuja solução, para poder convencer o
juiz exija o exame de homens, que tenham conhecimentos e aptidão técnicos
especiais”.
CLASSIFICAÇÃO DOS TIPOS DE USUÁRIO
Inicialmente devemos estabelecer a diferença entre usuário e dependente.
Consta do site do Instituto de Medicina Social e Criminologia de São
Paulo a seguinte classificação recomendada pela Organização Mundial da Saúde
(OMS) para as pessoas que utilizam substâncias psico-ativas:
Não-usuário: nunca utilizou;
Usuário leve: utilizou drogas, mas no último mês o consumo não foi
diário ou semanal;
Usuário moderado: utilizou drogas semanalmente, mas não
diariamente no último mês;
Usuário pesado: utilizou drogas diariamente no último mês.
Segundo as considerações de saúde pública, sociais e educacionais da Organização
das Nações Unidas (ONU), constantes do site anteriormente mencionado, podemos distinguir
quatro tipos de usuários:
Usuário experimental ou experimentador: limita-se a
experimentar uma ou várias drogas, por diversos motivos, como curiosidade,
desejo de novas experiências, pressão de grupo etc. Na grande maioria dos
casos, o contato com drogas não passa das primeiras experiências.
Usuário ocasional: utiliza um ou vários produtos, de vez em quando,
se o ambiente for favorável e a droga disponível. Não há dependência, nem
ruptura das relações afetivas, profissionais e sociais.
Usuário habitual ou "funcional": faz uso
freqüente de drogas. Em suas relações já se observam sinais de ruptura. Mesmo assim,
ainda "funciona" socialmente, embora de forma precária e correndo
riscos de dependência. É aquele usuário conhecido vulgarmente como “viciado”.
Usuário dependente ou "disfuncional" (dependente,
toxicômano, drogadito, farmacodependente, dependente químico): vive pela droga
e para a droga, quase que exclusivamente. Como conseqüência, rompe os seus
vínculos sociais, o que provoca isolamento e marginalização, acompanhados
eventualmente de decadência física e moral.
O EXAME DE DEPENDÊNCIA TOXICOLÓGICA
A Lei Federal nº 6.368/76 em seu artigo 22, § 5º diz expressamente: “No
interrogatório, o juiz indagará do réu sobre eventual dependência, advertindo-o
das conseqüências de suas declarações”.
Declarando-se dependente o agente, ou admitindo o uso de substância
psico-ativa, é imprescindível a realização de exame pericial para constatação
da capacidade plena de entendimento do caráter ilícito do fato e/ou de
autodeterminação conforme esse entendimento.
Se outro for o entendimento esposado teríamos uma indagação despojada de
qualquer significado, quiçá apenas para satisfazer uma curiosidade; a
advertência não teria qualquer relevância, pois estaria impossibilitada a sua
prova.
Não nos parece ser este o intuito do legislador, mormente porque o réu
será advertido das conseqüências de sua afirmação, quais sejam: a submissão a
um exame pericial em primeiro plano; em um plano secundário a análise de sua
personalidade quando da fixação da pena nos termos do artigo 59 do Código
Penal; e, em última análise a conseqüência penal de sua declaração, ou seja, a
sua inimputabilidade ou semi-imputabilidade conforme o grau de dependência
química constatada ou a imputabilidade caso esta dependência não exista.
Caso exista ‘déficit’ de compreensão ou de possibilidade de atuar diversamente,
por parte do agente, a solução penal adequada à espécie passa a ser outra que
não a condenação. Se o agente era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente
incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com
esse entendimento, será absolvido e submetido a tratamento médico conforme se
pode depreender da leitura do artigo 29 da Lei de Entorpecentes.
A identificação do grau de envolvimento com a substância psico-ativa e da
medida adequada a ser aplicada ao infrator depende de informação fornecida pelo
perito da área.
Ao aplicarmos o novo rito da Lei Federal nº 10.409/02 vemos que
procedimento similar se apresenta, eis que seu artigo 38, § 1º explicita que o
acusado poderá, em sua defesa prévia, argüir preliminares, invocar todas as
razões de defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as
provas que pretende produzir e assolar testemunhas. (grifos nossos).
Por evidente que o acusado poderá declara-se dependente em sua defesa,
confirmando o uso prolongado e/ou reconhecendo a sua condição de dependente de
drogas ilícitas, requerendo a realização do pertinente exame pericial a fim de
se apurar a existência de dependência toxicológica, bem assim a capacidade de
compreender o caráter ilícito do fato e de se autodeterminar de acordo com tal
entendimento.
Também nesta hipótese a obrigatoriedade na realização do exame de
dependência toxicológica nos parece evidente, pois se for invocada como razão
de defesa e não for permitida a realização do exame pericial para obtenção da
prova, haverá supressão de fase procedimental. Assim o cerceamento do direito
de defesa restará configurado, bem como não se terá seguido o princípio do
devido processo legal assegurado no artigo 5º, inciso LIV da Lei Magna.
E se o agente cometer outros crimes que não os atinentes à Lei de
Tóxicos? Em nosso entendimento se, em qualquer crime praticado o agente
declarar-se dependente de substância que cause dependência física ou psíquica,
impõe-se à realização do exame de dependência toxicológica.
É indisputável que aumentam as possibilidades de prática pelo dependente
de drogas de outras infrações penais, quer para garantir a aquisição continuada
de substâncias, quer pelas alterações de consciência e capacidade sensorial
advindas de seu uso.
Devemos lembrar que o interrogatório do acusado é não só um meio de
prova, mas como salienta Tourinho Filho, é mais propriamente um meio de defesa
o qual, por conseguinte, não pode ser cerceado, consignando-se que a realização
da perícia impõe o respeito à bilateralidade dos atos processuais.
O indeferimento da realização de exame de dependência toxicológica,
qualquer que seja a infração penal, representará nulidade insanável, pois
haverá evidente cerceamento do direito de defesa em afronta ao princípio da
ampla defesa insculpido no artigo 5º LV da Lei Maior.
Se adotarmos a tese de que cabe ao juiz, apreciando os elementos de prova
existentes nos autos, aquilatar da necessidade, ou não, do referido exame,
haverá nulidade relativa, que para ser reconhecida deverá o acusado demonstrar
o prejuízo.
A única hipótese em que a nulidade relativa não seria reconhecida
ocorreria com a absolvição do acusado, pois caso haja uma condenação, ou mesmo
se houver a prolação de uma sentença absolutória imprópria, o prejuízo restaria
evidenciado.
Com esta solução apenas estaríamos imprimindo uma maior demora na
prestação jurisdicional em afronta ao princípio da celeridade processual
inserido no artigo LXXVIII da Carta Política, com prejuízo não só para as
partes, mas também para com toda a sociedade.
CONCLUSÃO
Como pudemos observar, na hipótese do acusado durante seu interrogatório
declarar-se dependente de substância psico-ativa, outra solução não resta ao
magistrado senão a obrigatoriedade em determinar a instauração do competente
exame pericial para constatar a veracidade da afirmação.
Caso não seja realizado o exame pericial haverá prejuízo irreparável à
defesa do acusado estando evidenciada a nulidade absoluta do processo pelo
descumprimento do comando constitucional inserto em seu artigo 5º, inciso LV.
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[1] Incidente processual: questão
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[2] Processo Penal de Fernando da
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Dispinívele em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/x/26/04/2604/> Acesso em: 12 de mai. de 2006.