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A Emenda
Constitucional nº 45/04 e a auto-aplicabilidade das diretrizes do art. 93 da
Constituição Federal
José Maurício Pinto de Almeida
É a dicção do art. 93, "caput", da nossa Carta Magna: "Lei
complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o
Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:".
Na
redação do dispositivo, percebe-se que o vocábulo "princípios" é
utilizado no sentido de "diretrizes", tanto que vários deles vêm
sendo aplicados desde a promulgação da nova Constituição, independentemente da
Lei Complementar que disporá sobre o Estatuto da Magistratura (atualmente,
quinze princípios são alinhados no art. 93 da CF).
Na
realidade, essas diretrizes são de observância obrigatória ao legislador, mas não
normas que, para sua efetiva aplicação, dependam de providência legislativa.
São
normas de eficácia e aplicabilidade imediata.
A
exemplificar, nunca se questionou, antes da EC 45/04, dependessem de
regulamentação pelo Estatuto da Magistratura as normas ("princípios")
que estabeleceram pressupor a promoção do magistrado por merecimento "dois
anos de exercício na respectiva entrância e integrar o juiz a primeira quinta
parte da lista de antigüidade desta, salvo se não houver com tais requisitos
quem aceite o cargo vago" (inc. II-b, art. 93/CF) e a que, na apuração da
antigüidade, "o tribunal somente poderá recusar o juiz mais antigo pelo
voto de dois terços de seus membros" (inc. II-d, art. 93/CF).
Mesmo
a acirrada discussão, logo à partida da vigência da nova Carta Fundamental,
acerca da expressão "classe de origem" contida no art. 93, III, da CF
(antes da extinção dos Alçadas pela EC 45/04), jamais foi evitada por
estar na dependência de Lei Complementar que viesse traduzir seu significado.
Qual
a dificuldade enfrentada pelos tribunais estaduais com relação à norma
("princípio") que estatui ser dever do magistrado titular residir em
sua respectiva comarca (art. 93, VII, da CF)? Foi preciso esperar o Estatuto da
Magistratura para definir o que seria "residir" ou esclarecer o que
seria "titular" ou "comarca"?
O
art. 93, IX, da Carta Magna (publicidade dos julgamentos e fundamentação de
todas as decisões judiciais, sob pena de nulidade), que também é uma diretriz
("princípio"), deixou de ser aplicado por estar a depender de
regulamentação? Ao revés, sua aplicação se deu de pronto, sendo demasiadamente
mencionado nas decisões dos tribunais brasileiros.
Ivo
Dantas põe em destaque que, ao lado dos princípios fundamentais, existem os
princípios gerais ou setoriais, direcionados para determinado setor do
ordenamento constitucional: "Estes ‘Princípios Gerais ou Setoriais,
por sua vez, são igualmente superiores às normas, porém inferiores aos
Princípios Fundamentais; embora tragam consigo, em relação ao setor a que se
referem, a obrigatoriedade de que tanto o seu conteúdo quanto a interpretação
que se ofereça a qualquer norma igualmente setorial) deverão estar subordinados
ao conteúdo dos respectivos princípios (setoriais)". E cita ele o
exemplo do setor tributário da nossa Carta Magna: "os Princípios
Gerais utilizados com relação ao Sistema Tributário Nacional ou aqueles outros
voltados para a Atividade Econômica são vinculadores das normas que dizem
respeito a cada um dos setores do documento constitucional"
("Constituição e Processo", vol. 1, Curitiba: Juruá, 2003,
p.149/150).
Portanto,
como já enfatizado, o nosso constituinte, no setor judicial (art. 93/CF), ao
referir-se e ao alinhar princípios, fixou requisitos e diretrizes a serem
obrigatoriamente contemplados no Estatuto da Magistratura.
Nessa
linha de entendimento, o Supremo Tribunal Federal já proclamou: "As
normas inscritas no artigo 93 da Constituição da República muito mais traduzem
diretrizes, de observância compulsória do legislador, do que regras
dependentes, para sua efetiva aplicação, de ulterior providência legislativa. A
eficácia e a aplicabilidade das normas consubstanciadas no art. 93 da Carta
Federal não dependem, em princípio, para que possam operar e atuar
corretamente, da promulgação e edição do Estatuto da Magistratura"
(MC/ADIN 189-2/RJ, Rel. Min.
Celso de Mello, j. 18.04.90).
Na
mesma Corte Suprema, mesmo entendimento se registrou no HC 67.480-RS, Relator o
Ministro Octávio Galotti: "(...) O mesmo sucede com o art.
93, onde se arrolam princípios a serem observados em lei complementar de
iniciativa do Supremo Tribunal Federal (Estatuto da Magistratura), sendo,
porém, desde logo, imperativa a obediência de tais regras, cuja eficácia não
fica a depender de votação de lei complementar".
Ainda
no STF, no julgamento da ADIN 189/MG (a ementa antes transcrita se refere à
cautelar), do voto do Relator, realce-se: " (...) Tais regras muito
mais traduzem diretrizes, de observância compulsória pelo Congresso nacional,
quando da elaboração do Estatuto da Magistratura, do que normas dependentes,
para sua efetiva aplicação, de ulterior providência legislativa".
Continua: "A eficácia e a aplicabilidade das normas consubstanciadas
no art. 93 da Carta Federal não dependem, portanto, para que possam operar e
atuar concretamente, da promulgação e edição do Estatuto da Magistratura.
Constituem, na realidade, pressupostos condicionadores da própria ação
normativa do Congresso nacional, que não poderá prescindir, na concretização do
comando constitucional referido, dos princípios nele reclamados"
(ADIN 1892/600).
Nessa
linha, não há motivo para entender-se como não ser auto-aplicável a diretriz
contida no inc. XI do art. 93 da CF, com a redação que lhe foi dada pela EC
45/04: "nos tribunais com número superior a vinte e cinco
julgadores, poderá ser constituído órgão especial, com o mínimo de onze e o
máximo de vinte e cinco membros, para o exercício das atribuições
administrativas e jurisdicionais delegadas da competência do tribunal pleno,
provendo-se metade das vagas por antigüidade e a outra metade por eleição pelo
tribunal pleno".
Do
dispositivo que, para alguns, depende de regulamentação, extraem-se as lógicas
inferências: a)-somente os tribunais com número superior a vinte
cinco julgadores podem discutir se constituirão ou não o órgão especial; b)-o
órgão especial poderá ter, nesses tribunais, o mínimo de onze e o máximo de
vinte e cinco julgadores; c)-a competência do órgão especial, se
criado, se resumirá nas atribuições administrativas e jurisdicionais delegadas
da competência do tribunal pleno; d)-a forma de provimento das vagas do
especial: metade por antigüidade e a outra metade por eleição do tribunal
pleno.
De
conseguinte, e como as regras de competência, mormente as fixadas em norma
constitucional, devem ter imediata aplicação, e na perspectiva
democrática da Reforma do Judiciário realizada, em primeira parte, pela Emenda
Constitucional 45/04, a primeiríssima providência que os tribunais
brasileiros deveriam ter tomado (não se tem conhecimento de algum tribunal
estadual que o tenha feito) seria a de convocar os tribunais plenos para
decidir se constituiriam ou não órgãos especiais.
Se
esses fossem constituídos, de imediato deveriam os plenos deliberar sobre sua
competência (delegação), sem que, para tanto, fossem necessárias reformas
regimentais ou outras em legislações infraconstitucionais. Afinal, a diretriz é
constitucional e contém regra de competência, e atos administrativos seriam
suficientes para implantá-la.
Que
regulamentação seria necessária, pelo Estatuto da Magistratura, para a
aplicação do inc. XI da CF? Definir o que é "competência delegada"?
Esclarecer como se realiza a eleição para o órgão especial (esclarecimento
necessário somente aos que não aceitam a democracia no Judiciário)? Explicitar
o que vêm a ser "mais antigos julgadores" ou a regra matemática do
que vem a ser "metade"?
É
complicado entender que o órgão especial terá como seu Presidente o Presidente
do Tribunal de Justiça, esteja ele dentre os mais antigos ou não, daí a
sugestão de número ímpar da própria CF? (Alguns não se acostumam com a idéia de
que todos os desembargadores do pleno possam ser candidatos à Presidência! O
sistema atual, de os mais antigos serem candidatos, advém de uma LOMAN assinada
por Ernesto Geisel e Armando Falcão!)
Que
dificuldade existe em discernir que o especial será composto, para além do
Presidente, de uma metade com os mais antigos e a outra com os eleitos? Ou será
que existirão critérios para a eleição diferentes dos que se conhecem? Ou a
cúpula diretiva, além do Presidente, deverá compor obrigatoriamente o órgão
especial? (Se estiverem dentre os mais antigos ou na metade eleita, nenhuma
dificuldade existirá a respeito!).
O
grande problema é a democracia.
O
conservadorismo do Poder Judiciário está a impedir que essas regras se apliquem
desde logo. (Faça-se justiça: os TRTs da Bahia e de São Paulo já implantaram as
novas regras!)
Os
órgãos especiais, que vêm centralizando o poder de administrar a justiça, ainda
não se acostumaram com a idéia de que as regras mudaram. Receberão, doravante,
competência dos plenos, órgãos superiores de todos os tribunais. E ainda que
haja resistência, isso inevitavelmente ocorrerá, e a História julgará as
atitudes dos refratários ao sistema democrático implantado no âmbito do
Judiciário.
http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=6677