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A conciliação no novo Código de Processo Civil

 

ATHOS GUSMÃO CARNEIRO

Ex-Ministro do STJ

 

1. Era da tradição luso-brasileira a tentativa de conciliação, como diligência prévia à propositura da demanda: Ord. Felip., L. 3º, tít. 20, § 1º, com a expressa menção à conveniência de as partes não gastarem 'suas fazendas', pois 'o vencimento da causa é sempre duvidoso'; Const. do Império, art. 161, estatuindo a obrigatoriedade da diligência preliminar, confiada aos juízes de paz; Regul. 737, de 1850, arts. 23 e seguintes.

 

A República, pelo Decreto 359, de 1890, extinguiu a obrigatoriedade da tentativa conciliatória, inclusive pelo argumento de que a prática teria revelado a onerosidade do instituto, sua inutilidade como instrumento de composição dos litígios.

 

Em vários Estados, contudo, a conciliação foi mantida em caráter facultativo, geralmente confiada à Justiça de Paz. No Rio Grande do Sul, a Lei nº 10, de 16 de dezembro de 1895, decretada por Júlio de Castilhos (Lei de Organização Judiciária), dispunha competir aos então 'juízes districtaes' o 'homologar dentro de sua alçada os compromissos entre pessoas capazes de contractar' (art. 74, § 2º). Tradicionalmente os sucessivos Códigos de Organização Judiciária de nosso Estado têm atribuído aos juízes de paz dos distritos rurais o 'conciliar as partes que espontaneamente recorrerem ao seu juízo', atribuição esta aliás que, pela inteira ausência de qualquer forma processual, não ultrapassa os limites da mera mediação amigável e não ingressa, destarte, no plano jurídico.

 

A legislação trabalhista restaurou em 1932 a tentativa de conciliação em nosso direito positivo, em caráter obrigatório; a Lei 968/1949 veio a impô-la também nas ações de desquite litigioso e de alimentos, aqui como pressuposto processual.

 

O novo Código de Processo Civil trouxe a tentativa conciliatória como instituto do direito processual comum, em caráter cogente e como ato inicial da audiência, nos seguintes termos:

 

'Art. 447 - Quando o litígio versar sobre direitos patrimoniais de caráter privado, o juiz, de ofício, determinará o comparecimento das partes ao início da audiência de instrução e julgamento'.

 

Note-se que a conciliação prévia cedeu passo (de acordo com a orientação atualmente prevalente nos países de mais sedimentada cultura jurídico-processual) à conciliação no curso do processo. O simples apelo à concórdia lançado pelo Juiz de Paz, geralmente bisonho em matéria jurídica, é substituído pela atuação diligente do próprio juiz da causa, em intervenção 'direta ao litígio, que o esclareça e ilumine, mostrando até que ponto podem ser razoáveis as pretensões de cada um dos litigantes' (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra, 1950, v. III, p. 174). Chama Chiovenda a atenção (Instit. de Dir. Proc. Civil, v. II, nº 142, p. 39, trad. port. por G. Menegale) em que tanto maior será a 'probabilidade de êxito da conciliação quanto maior é a autoridade da pessoa que a tenta'. E adverte Carnelutti, ressaltando a diferença entre a simples mediação e a conciliação judicial, que nesta o objetivo visado é uma composição justa do litígio, sob pena de degradação da função do juiz interveniente (Sistema, v. 1, nº 59, p. 203/205 da ed. esp. de 1944).

 

2. Refletindo sobre a conciliação, ou melhor, sobre a tentativa de conciliação como instituto processual, surge uma série de indagações, algumas de marcante interesse prático. Qual sua natureza jurídica? Ao tentar a conciliação, e, se exitosa, ao homologá-la, pratica o juiz ato de jurisdição contenciosa, ou de mera jurisdição voluntária? O comparecimento à audiência configura, para as partes, uma obrigação processual, ou quiçá um ônus? Podem as partes fazer-se presentes apenas através advogados com poderes bastantes? As partes devem ser intimadas pessoalmente ou poderão sê-lo através seus procuradores ou mediante 'nota de expediente' no Diário da Justiça? Quais as conseqüências do não comparecimento de algum, ou de todos os litigantes, à audiência? Quais as conseqüências, quanto à validade do processo, da ausência da tentativa conciliatória? Pode o juiz intentar a conciliação apenas com as partes, ou a presença do advogado será indispensável à regularidade do ato?

 

3. Em primeiro lugar, assinalamos que a conciliação judicial marca um ponto de encontro entre a autocomposição e a heterocomposição da lide. É autocomposição porque as próprias partes tutelam seus interesses, fixando livremente o conteúdo do ato que irá compor o litígio; mas tal ponto de convergência é encontrado por iniciativa e sob as sugestões de um mediador qualificado, que buscará conduzir as partes no sentido de uma composição consoante com a eqüidade (Giuseppe de Stefano, 'Contributo alla Dottrina del Componimento Processuale', p. 20; Carnelutti, ob. cit., p. 203; Cód. Proc. Civil de Portugal, art. 509, item 1; 'Aberta a audiência, o juiz procurará conciliar as partes, tendo em vista uma solução de eqüidade'), embora não possa por certo o magistrado fazer prevalecer sua concepção de eqüidade a ponto de recusar homologação ao acordo, relativo a direitos disponíveis e sem cláusula ilícita, avençado pelas partes (Liebman, 'Risoluzione convenzionale del processo', in Riv. Dir. Proc. Civile, 1932, I, 284).

 

A doutrina tradicional e majoritária encara a conciliação como um negócio, confiado à autonomia privada; os autores mais modernos inclinam-se em considerá-la como forma de atuação da jurisdição contenciosa, pela analogia funcional entre conciliação e sentença: 'II componimento chiude il processo e sostituisce la sentenza' (Liebman, rev. cit., p. 272 e seg.). Segundo o novo Código de Processo Civil - 'Art. 449: O termo de conciliação, assinado pelas partes e homologado pelo juiz, terá valor de sentença'.

 

A conciliação, é certo, tem em comum com a jurisdição quer o ponto de partida como o de chegada: a existência de uma lide e, pois, de partes em conflito (na jurisd. voluntária, por definição inexiste o contraditório entre partes - Fred. Marques, 'Jurisd. Voluntária', § 19, item 2); e, como resultado comum, visam a composição do litígio, o que é o mesmo fim, nem mais nem menos, visando pela sentença de mérito (Carlo Nicoletti, 'La Conciliazione nel Processo Civile', p. 134). Conciliação e sentença apresentam, assim, este dado fundamental comum, de que agem simultânea e imediatamente 'sulla lite e sul processo' (Nicoletti, ob. cit., p. 157).

 

Assinalam alguns, como ponto distintivo fundamental, que na conciliação o conteúdo do ato resolutório da lide não provém, em última análise, da vontade do Estado mas sim da vontade das partes: seria, destarte, a conciliação uma 'zona estrema, o di confine, della giurisdizione contenziosa' (Mostara, 'Comentario', III, Milano, nº 9, 11 e 12) em suma, um 'equivalente jurisdicional', na classificação carnelutiana (Sistema, I, nº 59).

 

4. Sob outro ângulo, uma primeira corrente considera a conciliação um mero ato processual, de todo submetido às normas do direito processual.

 

Entendem outros a conciliação como instituto de direito substancial, em nada diverso, pois, do negócio material concluído fora do processo.

 

Posições intermediárias reconhecem na conciliação aspectos substanciais e processuais ao mesmo tempo: para alguns, tais aspectos apresentam-se dissociáveis e, inclusive, o aspecto substancial pode faltar de todo (hipótese da conciliação inexitosa); outros aceitam uma concepção unitária do fenômeno, tese dominante na Alemanha. Em sua monografia, já citada, Stefano adota a primeira posição intermediária, com prevalência do negócio substancial, e esta parece a posição mais conforme com o atual direito brasileiro.

 

O conteúdo do negócio substancial é variado. Comumente apresenta-se como uma transação, mas também é possível a conciliação através a renúncia do autor à pretensão, ou o reconhecimento do pedido por parte do demandado. Os efeitos processuais revelam-se constantes: ou a determinação de prosseguimento do processo, se inexitosa a tentativa conciliatória, ou a cessação da litispendência (salvo se parcial o acordo substancial) e a concessão de executoriedade ao acordo (CPC, art. 584, III), quando exitosa a gestão do juiz (ressalvo, aqui, a conciliação - ou melhor, a reconciliação - nas causas de direito de família, que apresenta características peculiares). Tais efeitos processuais derivam, no direito brasileiro, não imediatamente do negócio material entre as partes, mas sim da homologação pelo juiz, sob a forma de sentença (CPC, art. 269, II, III e V).

 

5. A conciliação diverge da transação pelo seu caráter de ato praticado no curso do processo, mediante a iniciativa e com a intervenção do magistrado; por seu conteúdo substancial, nem sempre implicando em recíprocas concessões; pelas conseqüências de ordem processual. Estas últimas, entretanto, podem ser comuns à transação avençada diretamente pelas partes fora do processo, e comunicada ao juiz ora como causa de cessação do objeto do litígio, ora para obter a homologação e a executoriedade do acordo que estabeleça prestações a serem cumpridas.

 

Para os sujeitos do processo, a participação no ato processual conciliatório constitui uma obrigação, ou um ônus? Ao juiz, o promovê-lo é uma obrigação, e a tentativa conciliatória deve desenvolver-se não só em sua presença, mas com sua ativa participação. 'Il giudice si trova investido dell'obbligo di procedere alla conciliazione', segundo Nicoletti em comentando o art. 185 do CPC italiano, neste ponto análogo ao nosso: 'Se la natura della causa lo consente, il giudice istruttore, nella prima udienza, deve cercare di conciliare le parti, disponendo, quando ocorre, la loro comparizione personale'.

 

As partes, no entanto, não estão obrigadas a comparecer, não prevendo nosso CPC nenhuma sanctio juris para a hipótese de inobservância da 'determinação' (vide art. 447) do juiz (Fred. Marques, art. na 'Tribuna da Justiça' de 10.04.74), nem sequer a multa prevista no CPC português (art. 508, nº 2) ou no antigo CPC francês (art. 56), nem qualquer conseqüência no plano procedimental ou probatório. A pena de confissão, esta refere-se à ausência da parte intimada para prestar depoimento pessoal (art. 343, § 2º), não apenas para a conciliação. Em suma: a 'determinação' do juiz, prevista no art. 447, a que as partes compareçam para a tentativa de conciliação, constitui mero convite, cujo desacolhimento não representa ilícito nem ônus processual, assim inteiramente resguardada a plena opção dos litigantes em obter a sentença de mérito.

 

Na ausência de qualquer das partes (salvo se não intimadas), o juiz não deve marcar nova data para tentar a conciliação, nem poderá determinar a presença sob vara do litigante remisso; deverá, isto sim, haver a tentativa por inexitosa e mandará prosseguir no feito, consignada em ata a ocorrência (1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, 6ª Câmara, Apelação nº 202.862, acórdão de 07.05.74). Na hipótese de litisconsórcio, quando não presentes todos os litisconsortes, há que verificar se unitário ou não o litisconsórcio, para adequada aplicação do art. 48 do Código de Processo Civil.

 

Tenho por jurídico que o comparecimento de advogado, com poderes bastantes para transigir, renunciar e reconhecer (art. 38), é bastante para que o juiz esteja vinculado ao dever processual de promover a tentativa conciliatória: 'Para que o ato fosse considerado personalíssimo, seria necessário disposição legal expressa' (Fred. Marques, art. cit.).

 

Parece razoável a orientação dos magistrados que têm por presente a parte, pessoa jurídica, mediante o comparecimento a juízo de preposto credenciado pelo órgão presentante da pessoa jurídica. Mas o preposto, ou o advogado, deverão dispor dos devidos poderes.

 

O juiz não poderá determinar o afastamento do advogado durante as gestões conciliatórias. Se tal conduta era lícita ao tempo em que o magistrado eventualmente tentava a conciliação em caráter apenas 'oficioso', não o é agora em que a diligência é ato processual, sendo um direito da parte manter-se acompanhada e orientada por seu procurador judicial. Neste sentido recomendação do Simpósio promovido, em agosto pretérito, pela Associação dos Magistrados Brasileiros.

 

Problema difícil de solucionar, máxime pelas repercussões de ordem prática, é o de saber se a parte deve ser intimada pessoalmente, ou se poderá sê-lo na pessoa do advogado com poderes bastantes. Aceito a segunda solução: a) ao dispor sobre a conciliação, o CPC não repete a norma do art. 343, pela qual na hipótese de depoimento pessoal 'a parte será intimada pessoalmente'; b) a intimação pessoal pode revelar-se numerosas vezes muito difícil, como quando numerosos os AA. e/ou os RR., ou quando residentes em outra comarca ou, quiçá, no exterior; c) o objetivo da conciliação é resolver de pronto a lide, e não o de propiciar o adiamento das audiências e demora no andamento do feito. Assim, a parte pode ser intimada na pessoa de seu procurador, quando dotado de poderes bastantes, e inclusive por nota de expediente no órgão oficial (art. 236).

 

6. Qual a conseqüência processual da omissão da tentativa conciliatória prevista no art. 448? A meu sentir, a disponibilidade da pretensão de direito material, 'direitos patrimoniais de caráter privado', é impeditiva da sanção de nulidade. Se o juiz, de ofício ou por provocação de parte, notar a omissão antes de prolatada a sentença, creio deva providenciar, embora com atraso, em realizar o ato processual postergado. Se, entretanto, a omissão for suscitada somente após prolatada a sentença, então a composição jurisdicional da lide superou qualquer possibilidade de buscar, com a conciliação, uma composição negocial da mesma lide. Incidem à espécie os princípios básicos sobre nulidade: quando a lei prescrever determinada forma, sem a cominação de nulidade (como é o caso), o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo (através a sentença), lhe alcançar a finalidade (a composição da lide). É o art. 244 do CPC. De outra parte, o ato não se repetirá, nem se lhe suprirá a falta, quando não prejudicar a parte (art. 249, § 1º); ora, nenhuma das partes poderá, proferida a sentença, pretender que seu prejuízo (= sua sucumbência) total ou parcial será minorado com a anulação do processo para a realização da tentativa conciliatória, pois a parte adversa não irá, quando menos na generalidade dos casos, abrir mão de expectativas cuja procedência já fora reconhecida. Reporto-me ao magistério de Galeno Lacerda sobre nulidade, in 'Despacho Saneador', Cap. IV, nº 6 e Cap. V, nº 8.

 

Problema altamente interessante é o relativo à conciliação (rectius, reconciliação) nas ações de desquite, como providência pré-processual (Lei 968/49); e à dupla conciliação prevista no curso da ação de alimentos (Lei 5.478/68), extensiva (?) às ações ordinárias de desquite, nulidade e anulação de casamento (art. 13). O assunto, com vistas ao disposto no art. 447, parágrafo único, do novo CPC, poderá ser objeto de próximo comentário.

 

7. Temos por oportuno, ao fim, renovar a expressiva advertência: 'O juiz pode sentir a tentação de se servir da tentativa conciliatória para se eximir ao estudo e julgamento da causa, sobretudo quando esta seja difícil, delicada e complexa; mas é necessário que saiba defender-se contra esta tentação, de modo a não ultrapassar, nos esforços e diligências empregados, a linha de compostura e correção, que deve ser timbre impecável do magistrado judicial' (Alberto dos Reis, ob. cit., p. 178).

 

Agindo diversamente, a própria finalidade da conciliação restaria iludida, e uma excessiva freqüência de conciliações seria indício de um difuso ceticismo e de uma latente crise da Justiça.

 

 

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A guarda conjunta de menores no Direito Brasileiro

SÉRGIO GISCHKOW PEREIRA

Ex-Desembargador do TJRS

 

1. Introdução

 

O tema da guarda de menores, na condição ou não de filhos, reveste-se de característica interessante: apesar da relativa singeleza do trato técnico-jurídico, é dos que mais angustia, tensiona, preocupa e comove seus lidadores. As pautas normativas reguladoras da matéria são poucas e, comumente, bastante claras e objetivas.

 

As correspondentes construções dogmáticas encontram escassas facetas para aprofundamento. No entanto, qual o magistrado, promotor ou advogado que não se atormentou ao extremo quando se depara com conflitos centralizados sobre menores? Se falta em implexidade legal e jurídica, sobra em problematicidade humana, sentimental, emocional, moral, psicológica e social.

 

Felizmente, as legislações mais avançadas colocam os interesses do menor como fundamentais e básicos no equacionamento de quaisquer polêmicas a eles respeitantes. O direito brasileiro não constitui exceção.

 

No afã de cada vez mais aperfeiçoar os mecanismos de proteção aos menores, profissionais do direito, da medicina, da educação, da sociologia, etc., buscam novas fórmulas para atenuar o impacto negativo de situações familiares conflitantes e de quadros de abandono. Cuida-se de tentar reduzir os efeitos patológicos, sob o prisma psíquico, das circunstâncias adversas vivenciadas por quem está em fase de constituição da personalidade e do caráter. Nesta perspectiva, vem-se estudando em nosso país a guarda ou custódia conjunta, ou seja, a situação em que fiquem como detentores da guarda jurídica sobre um menor pessoas residentes em locais separados. O caso mais comum será o relacionado a casais que, uma vez separados, ficariam ambos com a custódia dos filhos, ao contrário do sistema consagrado em nosso ordenamento jurídico. É modalidade com a qual ainda não estão habituados os brasileiros, repercutindo este desuso na ausência de abordagem do tema doutrinária e jurisprudencialmente; aliás, sequer a lei contempla qualquer regra específica a respeito.

 

No campo psiquiátrico, principiam os estudos e pesquisas no sentido de apurar as vantagens e desvantagens do novo esquema de guarda para os menores.

 

Conforme antes informado, sob o prisma do direito, incipiente é a questão em nosso meio, onde ainda se discute a licitude da medida. Neste trabalho procurarei demonstrar a viabilidade da guarda conjunta em nosso direito, e, seguindo adiante, já ponderarei conseqüências legais decorrentes da eventual aceitação daquela espécie de guarda. Relevante é ressaltar, está evidenciado, pela experiência alienígena, que pelos menos em determinado número de hipóteses reais se mostra valiosa a guarda conjunta para o bem-estar do menor, razão bastante para uma maior análise da questão.

 

Esclareço colima o item 3 deste estudo (Lineamentos Jurídicos da Guarda de Menores no Direito Pátrio) a preparação do enfoque da custódia conjunta, sendo endereçado notadamente ao leitor estrangeiro (o artigo, originariamente, destina-se à divulgação nos Estados Unidos).

 

2. Alguns subsídios de direito comparado.

 

De 29 de novembro a 2 de dezembro de 1984, a Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul promoveu, na Assembléia Legislativa do mesmo Estado, Simpósio Multidisciplinar de Estudos sobre a Família, ocasião em que proferiu conferência James Lewis Cavanaugh Júnior, MD, psiquiatra norte-americano e dirigente do Rusch Presbyterian St. Luke's Medical Center, de Chicago. Já nesta oportunidade foi possível perceber como a guarda conjunta, assunto abordado pelo conferencista, vem sendo bastante adotada nos EUA, inclusive com acentuada cobertura explícita da legislação. Por outro lado, Bárbara A. Weiner, J.D. (administradora e conselheira na secção de psiquiatria e direito daquele centro médico e professora assistente de direito e psiquiatria no Rush Medical College, também de Chicado), in artigo intitulado An Overview of Child Custody Laws, publicado na revista Hospital & Community Psychiatry (agosto de 1985, 36/838-843, n. 8), disserta que: 'During the past decade joint custody has gained great favor with state legisla-tures.

 

Today approximately 60 percent of the states have laws specifically providing for joint custody under certain circums-tances.

 

Some states laws, such as those of California, reflect a preference for awarding custody jointly. In other states, joint custody in one of several options. Even in states that lack a specific statutory provision for joint custody, the arrangement is not precluded since the courts will generally accept arrangements agreed upon by the involved parties' (p. 841).

 

O Centro Nacional de Pesquisa Científica da França editou volumes sobre a temática Mariage et Famille en Question, sob a direção de Roger Nerson e de H. A. Schwarz Liebermann von Wahlendorf, abrangendo a própria França e mais Alemanha, Inglaterra, Suíça, Áustria, Bélgica e Holanda. A pesquisa foi coordenada pelo Instituto de Direito Comparado da Universidade Jean Moulin, de Lyon, na qual lecionam os citados professores, sendo que as correspondentes publicações datam de 1979 e 1980. Destas emergem informes de interesse sobre a prática da guarda conjunta nos países europeus.

 

No volume L'Évolution Contemporaine du Droit Anglais, P. M. Bromley (professor na Faculdade de Direito da Universidade de Manchester), após distinguir entre guarda legal e guarda física, ensina que: 'A une certaine époque, il n'était pas d'usage de confier la garde légale aux deux parents si ceuxci vivaient séparés; on pensait, en effet, qu'ils seraient rarement susceptibles de coopérer et que la nécessité de consultations régulières pourrait bien envenimer leurs rapports. Toutefois, dans de nombre cas, les conjoints continuent à faire preuve de responsabilité à l'égard de leurs enfants et, lorsqu'un parant n'exerçant pas la garde physique de son enfante désire continuer à donner son opinion sur la manière dont il será élevé, et s'il existe en outre une sérieuse chance de voir les parents coopérer, les tribunaux ont aujourd'hui, beaucoup plus que par le passé, tendance à maintenir le'statu quo' en laissant la garde légale aux deux parents.

 

Lorsqu'il y a conflit entre les parents, sur la question de savoir lequel d'entre eux doit exercer la garde physique de l'enfant, le tribunal doit trancher le conflit en s'inspirant exclusivemente de l'interêt de l'enfant' (p. 115).

 

No volume L'Évolution Contemporaine du Droit Allemand, o Dr. H. J. Sonnenberger (professor na Universidade de Augsborg) mostra como, após discussões sobre o tema, a orientação atual se inclina pela admissibilidade da guarda conjunta também na Alemanha: 'Le pont de savoir si le tribunal doit accorder I'autorité parentale conjointement aux deux parents, lorsque ces derniers le désirent, fait l'objet de controverses. On a pensé longtemps que le § 1.671 al. 4 du BGB s'opposait à une telle interprétation, mais l'opinion se répand actuellemente que, dans ce cas, il est possible, voire obligatoire, de prende en considération la proposition des parents, compte tenu du principe de la subsidiarité du droit d' intervention de l'État et du privilège des parents garanti par l'article 6 al. 2 de la loi fondamentale (118). II est plutôt étrange que, lors des débats sur la réforme des rapports entre parents et enfants, le problème ait été à peine abordé, et cela malgré les discussions animées sur les limites du droit d'intervention de l'État' (p. 178).

 

3. Lineamentos jurídicos da guarda de menores no direito pátrio.

 

De maneira geral, revelam-se incensuráveis as regras alicerçantes da normatização jurídica sobre guarda de menores no Brasil. Isto porque impregnada do princípio fundamental, tendente a prevalecer no direito moderno (com fartos motivos para tal), que impõe se verifique, antes de tudo e de forma dominante, o interesse dos menores atingidos pela situação litigiosa. Em plano secundário ficam os interesses dos adultos. Dispositivos legais existem de grande expressividade a respeito. Dos mais significativos é o art. 13 da Lei federal n. 6.515, de 26 de dezembro de 1977 (observação destinada ao leitor estrangeiro - N.B.: doravante este tipo de observação será designado pelas letras ODLE: o direito civil é unificado para todo o território nacional, não havendo condição constitucional de os Estados da federação editarem leis próprias); após estabelecer várias diretrizes sobre guarda em caso de separação judicial (ODLE: no sistema brasileiro a separação judicial - cognominada 'desquite' antes da Lei n. 6.515/77 - não se confunde com o divórcio, pois que, enquanto este implica dissolução do matrimônio mesmo, aquela apenas termina com a sociedade conjugal, mas não com o casamento), o diploma legal referido, no art. 13 enuncia: 'Se houver motivos graves, poderá o Juiz, em qualquer caso, a bem dos filhos, regular por maneira diferente da estabelecida nos artigos anteriores a situação deles com os pais'. Como se constata, é uma regra que desfaz todas as regras, ou, se preferirem, passa a ser a regra das regras, entregando à discrição do magistrado a palavra última. Nada mais acertado. Somente o exame profundo pelo Juiz, no tocante a determinado caso concreto, permitirá o decisório mais justo, porque baseado nas peculiaridades e facetas especialíssimas dos fatos sub judice e porque radicado em variados elementos probatórios, não faltando estudos sociais, familiares, econômicos, psiquiátricos e psicológicos, desenvolvidos por técnicos especializados que assessoram o julgador. Está o Juiz revestido de poderes para afastar os menores até das mãos dos pais legítimos e que prossigam convivendo em sociedade conjugal. Em idêntica dimensão opera o art. 8º da Lei federal n. 6.697, de 10 de outubro de 1979 (Código de Menores): 'A autoridade judiciária, além das medidas especiais previstas nesta lei, poderá, através de portaria ou provimento, determinar outras de ordem geral, que, ao seu prudente arbítrio, se demonstrarem necessárias à assistência, proteção e vigilância ao menor, respondendo por abuso ou desvio de poder'. A propósito deste Código de Menores, faculta ele a atuação do Juiz de Menores quando se encontra o menor em 'situação irregular', situação esta definida em lei (ainda que em conceitos abertos, vagos e genéricos, facilitando a exegese enriquecedora do magistrado) e que compreende eventos como privação de condições de subsistência, saúde e instrução obrigatória; ocorrência de castigos ou maus-tratos imoderados; configuração de perigo moral; desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária; autoria de infração penal (art. 2º da Lei n. 6.697/79).

 

A melhor doutrina brasileira não deixa dúvida sobre o que realmente importa na decisão sobre guarda de menores.

 

Caio Mário da Silva Pereira (professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Federal de Minas Gerais), in Instituições de Direito Civil, Forense, 4ª ed., 1981, V/189, leciona, comentando a atividade decisional do Juiz: 'O que lhe serve de inspiração é o interesse dos filhos, sobre quaisquer outras ponderações de natureza pessoal ou sentimental dos pais'. Silvio Rodrigues (professor catedrático de direito civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo), em Direito Civil, Saraiva, 10ª ed., 1983, Vl/254, ponderando a atuação do legislador, disserta que: 'De resto, e em rigor, a regra que o inspire, conforme se verá, é uma só, a saber: em todos os litígios em que se disputa a guarda de filhos, o julgador deve ter em vista sempre e primordialmente o interesse dos menores'. Pontes de Miranda (ODLE: um dos maiores juristas do mundo ocidental, em todos os tempos), em seu Tratado de Direito Privado, Editor Borsói, 1955, Tomo Vlll, p. 96, é categórico ao asseverar 'o que importa é o bem dos filhos...'.

 

Washington de Barros Monteiro (professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo), em Curso de Direito Civil, Saraiva, 20ª ed., 1982, II/226, preconiza:

 

'O critério a orientar o Juiz, em semelhantes conjunturas, será o do interesse ou conveniência do menor, interesse ou conveniência que há de preponderar sobre direitos ou prerrogativas, a que, porventura, se arroguem os pais'.

 

Outro princípio do direito brasileiro, que denota e conota a preocupação máxima pelo bem-estar do menor, diz com a possibilidade de modificação, a qualquer instante, de deliberação sentencial em torno da guarda de menores, desde que surjam fatos novos indicativos de que não mais deva aquele permanecer sob a guarda da pessoa com quem está.

 

No mesmo diapasão protetivo ao menor ainda merece destaque o art. 24, caput, do Código de Menores citado:

 

'A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional ao menor, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive pais'.

 

Pois bem, obedecidos sempre os parâmetros essenciais e basilares até agora expostos, sintetizo as regras legais do direito brasileiro concernentes à guarda de filhos menores quando não estão os pais coabitando:

 

A) se a separação judicial for consensual, observa-se o que os cônjuges acordarem sobre a guarda (art. 9º da Lei n. 6.515/77);

 

B) se a separação judicial for litigiosa (quando é necessário provar conduta desonrosa ou ato que importe grave violação de dever do casamento, com insuportabilidade da vida em comum): a) um só dos cônjuges é culpado: os filhos menores ficam com o cônjuge que não deu causa à separação (art. 10 da Lei n. 6.515/77); b) ambos os cônjuges são culpados: os filhos menores ficam em poder da mãe, 'salvo se o Juiz verificar que de tal solução possa advir prejuízo de ordem moral para eles' (art. 10, § 1º, da Lei n. 6.515/7); c) em qualquer dos casos de letras a e b: 'Verificado que não devem os filhos permanecer em poder da mãe nem do pai, deferirá o Juiz a sua guarda a pessoa notoriamente idônea da família de qualquer dos cônjuges' (art. 10, § 2º, da Lei n. 6.515/ 77);

 

C) se a separação judicial é litigiosa, mas sem perquirição de culpa: a) separação pedida com base em ruptura da vida em comum há mais de cinco anos, com impossibilidade de reconstituição: os filhos ficam em poder do cônjuge em cuja companhia estavam durante o tempo de ruptura da vida em comum (art. 11 da Lei n. 6.515/77); b) separação postulada com supedâneo em grave doença mental de um dos cônjuges, manifestada após o casamento, que torne impossível a continuação da vida em comum, desde que, após uma duração de cinco anos, a enfermidade tenha sido reconhecida de cura improvável: o Juiz defere a entrega dos filhos ao cônjuge que estiver em condições de assumir, normalmente, a responsabilidade de sua guarda e educação (art. 12 da Lei n. 6.515/77);

 

D) em caso de divórcio: a legislação não constrói normatividade específica, salvo uma exceção, com o que se vem aplicando, analogicamente, os preceitos destinados às separações; ao leitor estrangeiro é oportuno explicar existem duas modalidades fundamentais de divórcio no Brasil: por conversão de separação judicial em divórcio e por divórcio direto (este após cinco anos de separação de fato, principiada antes de 28 de junho de 1977); assim, resulta que: a) no divórcio por conversão subsiste o quadro fático emergente da separação convertida (art. 27 da Lei n. 6.515/77); b) no divórcio direto consensual e no divórcio direto litigioso (este tem as mesmas causas fundantes da separação litigiosa) prevalece a analogia com a separação, antes apontada;

 

E) na anulação de casamento: atende-se ao disposto nos arts. 10 e 13 da Lei n. 6.515/77, já referidos (art. 14 da Lei n. 6.515/77);

 

F) filhos naturais reconhecidos: a) se um só progenitor reconheceu, fica com o filho sob sua guarda (art. 360 do CC); b) se ambos reconheceram: a guarda é dada à mãe (art. 16 do Decreto-Lei n. 3.200, de 19 de abril de 1941 com a redação que lhe foi emprestada pela Lei n. 5.582, de 16 de junho de 1970); c) novamente a lei é expressa em ordenar resolva o Juiz de modo diferente das regras versadas, se for para o interesse do menor (§§ 1º e 2º do art. 16 do Decreto-Lei n. 3.200/41);

 

G) hipótese de separação de fato: a lei silencia a respeito; a doutrina preleciona remanescem ambos os pais com o direito de guarda, sem preferência para nenhum (Mário Aguiar Moura, Guarda do Filho Menor, AJURIS, 19/23 e 24, 1980), advindo a conseqüência, do acatamento ao fato consumado da guarda por um dos cônjuges.

 

Neste sucinto repassar legislativo relevante notar como se renovam e se repetem as recomendações atinentes ao proveito e vantagem do menor.

 

4. A custódia conjunta no Brasil:

 

a) Sua possibilidade jurídica:

 

O direito brasileiro - como, aliás, foi possível vislumbrar - não possui norma jurídica impeditiva da guarda conjunta. Bem ao contrário: de sua sistemática desponta a conclusão de que precisa ser aceita esta modalidade de custódia. O desuso doutrinário e jurisprudencial, a toda evidência, não tem o dom de elidir o instituto em estudo.

 

O pátrio poder e a guarda jurídica competem ao pai e à mãe (ODLE: ainda que o pátrio poder seja exercido pelo marido com a colaboração da mulher, art. 380, caput, do CC; a propósito, no novo CC o exercício do pátrio poder será igual para marido e mulher). Dissolvida a sociedade conjugal ou o casamento, ambos prosseguem portadores do pátrio poder. Não há por que afastar, aprioristicamente, a possibilidade de o mesmo acontecer no pertinente à guarda jurídica, se esta providência se revelar benigna e até imprescindível ao interesse do menor. É necessário, isto sim, distinguir entre a guarda jurídica e a guarda meramente física, como bem o fez o prof. P. M. Bromley (cf. item 2 deste trabalho).

 

Lógico estará a guarda física forçosamente sempre com apenas um dos genitores, em determinado momento. Mas, acima, paira a guarda jurídica, esta sim comum, facilitando o desenrolar das relações entre pais e filhos e dos pais entre si.

 

Os vários dispositivos legais aludidos no item 3 deste estudo fazem ressaltar a notável liberdade do Juiz quando se cogita de resolver sobre a guarda de menores. Ora, exatamente utilizando-se desta prerrogativa, irá o magistrado autorizar a guarda conjunta, se comprovada nos autos sua conveniência em certa situação submetida ao seu julgamento. Em linhas gerais, temos:

 

A) se os pais se afastaram amigavelmente (quer por separação, quer por divórcio, etc.) e dispuserem pela guarda conjunta, sua volição será respeitada, como comanda o art. 9º da Lei n. 6.515/77 (dispositivo antes citado);

 

B) se o afastamento foi em quadro de litigiosidade, o art. 13 da Lei n. 6.515/77, em sua generalidade, legitima regule o Juiz a divergência através da guarda conjunta (o art. 13 igualmente foi já reproduzido);

 

C) mesmo em não se tratando de pai e mãe, mas de terceiros, a guarda poderá ser conjunta, face à amplitude com que o CC e o Código de Menores autorizam o magistrado a regular a condição do menor.

 

Outrossim, se a felicidade dos menores é o escopo maior colimado obsessivamente, mais um motivo robusto para o direito brasileiro adotar a custódia conjunta, se esta resultar recomendada por especialistas ou por ela conclua o Juiz em face de suas próprias percepções, tudo em cada caso, sem precipitações ou modismos inconseqüentes.

 

Não impressionam argumentos como o calcado no art. 186 do CC (complementa o art. 185, que exige consentimento de ambos os pais para o casamento de menores de 21 anos):

 

'Discordando eles entre si, prevalecerá a vontade paterna, ou, sendo o casal separado, divorciado ou tiver o seu casamento anulado, a vontade do cônjuge com quem estiverem os filhos'.

 

Dir-se-ia impraticável a aplicação desta norma, se a guarda jurídica fosse de ambos os cônjuges, mesmo após dissolvida a sociedade conjugal ou desfeito o casamento. Não procede a asserção. Basta aplicar, analogicamente, o art. 380, parágrafo único, do CC: 'Divergindo os progenitores quanto ao exercício do pátrio poder, prevalecerá a decisão do pai, ressalvado à mãe o direito de recorrer ao Juiz para solução da divergência'. Portanto, em caso de conflito de volições entre os pais, o magistrado comporia o litígio.

 

Aliás, no tocante ao próprio art. 186, apesar de que nele não conste a ressalva, precisa ser combinado com o art. 380, parágrafo único, a fim de se facultar à mulher a via judicial para impugnar consentimento indevido oriundo do homem. Igual equacionamento poderá ser empregado em hipóteses semelhantes. De minha parte, vou mais adiante: penso que, consumada a dissolução da sociedade conjugal ou do casamento, nem é mais caso de se cogitar sobre prevalência da vontade paterna, já pela razão elementar de não mais se situar o marido como chefe da sociedade conjugal (ODLE: o art. 233, parte inicial, do CC, estipula que: 'O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos (arts. 240, 247 e 251)', desfeita que esta foi.

 

Marido e mulher põem-se em igualdade, remetida a eventual disputa ao Poder Judiciário. Por sinal, é o sistema constante do novo CC brasileiro, além de, inegavelmente, se apresentar como mais consentânea aos tempos atuais e mais razoável, justa e adequada. Cresce a sensação da absurdidade da posição inferior na qual é posta a mulher em regras legais que tornam mais importante a vontade masculina.

 

Portanto, a guarda conjunta não esbarra em obstáculos no direito brasileiro.

 

Ao leitor nacional enfatizo não examino a matéria senão sob o prisma estritamente técnico-jurídico, sem desconhecer as divergências intensas no plano psicológico. Mesmo aqueles favoráveis à guarda conjunta admitem vários aspectos adversos a ela, no tocante ao psiquismo do menor, se não utilizada com sabedoria e quando comprovadamente proveitosa. Este ângulo da questão será melhor formulado pelo psicólogo e pelo psiquiatra (no Rio Grande do Sul cabe destacar a preocupação com que estuda a matéria o Dr. Silvio Antônio Erné, psiquiatra com atuação nas Varas de Família e integrante da Sociedade de Psiquiatria). b) Questões legais emergentes: Certamente brotarão dificuldades jurídicas diante da nova espécie de guarda. Não é meu desiderato esgotá-las ou aprofundá-las aqui, sob pena de até ir além dos objetivos deste artigo.

 

Mais se trata de detectá-las e ousar propostas tentando resolvê-las.

 

Um dos problemas foi colocado em letra A antecedente: os conflitos advindos da divergência de opiniões entre os detentores da guarda jurídica, quanto ao que é melhor para o menor. Ali mesmo, porém, tracei os rumos capazes de vencer o óbice.

 

Outra gama de controvérsias se põe no campo do exercício dos poderes de representação e assistência do menor (ODLE: a representação abrange os filhos até 16 anos; depois dessa idade, até os 21, dá-se a assistência ou autorização para certos atos), com o assunto correlato da validade ou invalidade das obrigações assumidas para com terceiros.

 

A solução parece-me sem implexidade e consiste em atribuir o poder de representação e assistência a ambos os pais. Não me parece deva persistir o direito paterno de representar ou assistir se foi dissolvida a sociedade conjugal, razão de ser do poder de chefia e representação geral da família exercido pelo pai. Nem é tão intocável o direito paterno, bastando observar se desloca o exercício do pátrio poder para a mulher quando, ocorrida dissolução da sociedade conjugal, fica ela com a guarda dos filhos (Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, Saraiva, 2ª ed., 1985, 5º/272). Em assunto de representação e assistência, é óbvio, deve importar a guarda jurídica e não a mera guarda material, mesmo porque esta poderá mudar semanalmente e até diariamente, fator desencadeante de intolerável incerteza e insegurança para todos quantos negociassem com o menor; a propósito, é a solução que melhor atende à defesa dos terceiros de boa-fé celebrantes de negócios jurídicos com a pessoa do menor, através, naturalmente, de seu representante ou com participação de assistente; estes terceiros presumirão, sem dúvida, o poder de representação e assistência por ambos os pais, se custódia conjunta houver.

 

Finalmente, a dificílima questão da responsabilidade civil por atos do filho (ODLE: o art. 1.521 do CC estabelece: 'São também responsáveis pela reparação civil: I - Os pais, pelos filhos menores que estiverem sob seu poder e em sua companhia...'). Neste tema não há como, no espaço reduzido do presente trabalho, alinhavar todos os ângulos de análise, principalmente porque na exegese do art. 1.521 citado são já notáveis as discussões doutrinárias e jurisprudenciais. Digladiam-se os pontos de vista, todos amparados em sólidos argumentos; uns dão relevo ao exercício do pátrio poder; outros, à guarda jurídica; ainda outros, ao efetivo e concreto controle físico, reflexo da guarda física ou material (cf. José de Aguiar Dias, da Responsabilidade Civil, Forense, 5ª ed., 1973, II/148 a 158). Arrisco adiantar minha concepção: inclino-me a dar maior importância à efetiva guarda física, ou seja, responsabilizar quem mantêm a verdadeira vigilância atual sobre o menor; ressalvo, desde logo, as várias hipóteses nas quais poderá ser solidária a responsabilidade, porque se trate de matéria na qual é fundamental o bom desempenho do dever de educar por ambos os genitores (sobre a culpa in educando: Antônio Junqueira de Azevedo, Responsabilidade Civil dos Pais, estudo incluído in Responsabilidade Civil, Doutrina e Jurisprudência, Saraiva, 1984, sob coordenação de Yussef Said Cahali, nas p. 53 a 67; a referência destacada está em p. 59/60). Minha posição não se deve apenas à literalidade legislativa (nem é de meu feitio raciocinar nestes termos estreitos), mas porque me parece a solução mais justa para a maior parte dos casos, dado que a fiscalização real advém de estar o pai ou a mãe com o menor em sua companhia efetiva. De qualquer maneira, em nada dogmatizo ou sou categórico, pois o assunto (como é freqüente ou quase inerente do direito) reclama soluções casuísticas, ditadas por uma série imprevisível de fatores do evento concreto. Só assim se consegue a justiça, sendo o direito - como o é - ciência cultural, afeita ao ato gnosiológico da compreensão e ao método empírico-dialético, impregnado como está seu objeto pelos valores, ou seja, o direito não é abordável por métodos racional dedutivos ou empírico-indutivos (A. L. Machado Neto, Introdução à Ciência do Direito, Saraiva, 1960, 1º/222; aliás, e como este artigo vai aos EUA, o pensamento norte-americano atingiu conclusões práticas idênticas por meio de sua Escola da Jurisprudência Sociológica - Oliver Wendell Holmes, Roscoe Pound, Benjamin Cardozo, Luís Brandeis - e de sua Escola do Realismo Jurídico - John Chipmann Gray, novamente Oliver W. Holmes, Karl Llewellyn, Jerome Franck).

 

Um único exemplo demonstrará a imprescindibilidade de o Juiz sopesar e dissecar pormenores do evento submetido à sua apreciação, impossibilitada como está a fixação de diretrizes apriorísticas e inalteráveis: menor comete acidente de trânsito, decorrendo a responsabilidade civil de quem estiver com sua guarda; o menor está sob a guarda física da mãe (o exemplo é construído, é claro, em função de um caso de custódia conjunta); seria a mãe obrigada a ressarcir e somente ela? Em princípio, pelo ponto de vista genérico que expendi há pouco, minha resposta seria positiva. Entretanto, suponhamos foi o automóvel emprestado pelo pai, proprietário do mesmo, apesar de intensa contrariedade e divergência da mãe, abertamente declarada.

 

Eis um componente capaz de tornar bem mais complexa a questão.

 

Como poderia a pobre mãe evitar a entrega do veículo ao filho, mais ainda se esta se verificou de inopino? Entendo que aí o dever de ressarcimento se deslocaria para o pai, ou, pelo menos, seria dele igualmente (solidariedade).

 

E não ficaria nisto o exemplo: poderia o pai ter, inclusive, convencido ou forçado o filho a utilizar o automóvel. Assim por diante, é fácil multiplicar as circunstâncias especialíssimas. Outro conjunto de situações (as exceções são tantas que abalam a pretensa solidez da regra...) a merecer trato diferenciado consistiria em casos nos quais, estando o menor sob a guarda material de A, se envolva em fato ilícito relacionado a um assunto no qual toda a orientação, aconselhamento, controle e fiscalização coubesse a B, por acordo prévio entre A e B.

 

Ressalto que as finalidades destas ponderações se limitavam a:

 

1º) para o leitor brasileiro: mostrar a licitude da guarda conjunta em nosso direito;

 

2º) para o leitor estrangeiro: expor o que há (ou não há) no Brasil sobre custódia conjunta.

 

 

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A ação de despejo no Juizado Especial Cível

DEMÓCRITO RAMOS REINALDO FILHO

Ministro do STJ

 

1. Ação de despejo para uso próprio

 

Por ação de despejo deve-se entender o pedido de tutela jurisdicional para se reaver imóvel dado em locação. A lei prevê as hipóteses em que pode ocorrer a extinção da locação, como vencimento do prazo contratual, alienação do imóvel, infração da lei ou do contrato; qualquer motivo, enfim. Em todos os casos, seja qual for o fundamento do término da locação, a ação do locador para recuperar o prédio locado é sempre a de despejo(1). O legislador, no art. 3º, III, da Lei 9.099/95, só considerou como "causa cível de menor complexidade", no entanto, a ação de despejo que tem um fundamento específico - a retomada para uso próprio(2). Poderia ter estendido o procedimento sumaríssimo, assim entendido como aquele aplicável às causas compreendidas na competência dos Juizados Especiais, a todos os tipos de ações de despejo, quaisquer que fossem os motivos do término da locação, como já houvera previsto o art. 80 da Lei 8.245/91(3). Não o fez, entretanto, tendo em vista aspectos procedimentais peculiares das variadas ações de despejo, determinados pela diversidade dos seus fundamentos. Não só por razões inerentes à própria natureza do direito material, mas também por razões de conveniência de ordem política, social e econômica, de conferir àquele que necessita do imóvel, para o seu uso pessoal, um procedimento mais célere para a retomada.

 

A expressão uso próprio engloba os fins residenciais bem como qualquer outra destinação que aproveite diretamente o locador. Em outras palavras, este pode pretender a retomada do prédio para nele residir ou usá-lo como sede de empreendimento comercial(4), por exemplo, desde que o proveito auferido do uso da coisa seja sempre pessoal.

 

2. Despejo por outro fundamento

 

Tendo o legislador efetuado sua escolha, sobre qual das modalidades de ação de despejo aquela que pode ser considerada de menor complexidade, temos que o legislador estadual não poderá estender a competência dos Juizados Cíveis para alcançar ações que contenham fundamento diverso do uso próprio. Posição em contrário, no entanto, já vem sendo defendida por alguns juristas de nomeada(5). A tese é no sentido de que, com fundamento no art. 93 da Lei 9.099/95(6), que repassa à lei estadual a tarefa de desenhar a organização, composição e competência dos Juizados Especiais, é possível que ações de despejo por outro fundamento possam ser consideradas de menor complexidade, já que a autorização para tanto preexiste no art. 80 da Lei 8.245/91.

 

A nossa divergência com esse ponto de vista pode ser demonstrada.

 

A Lei 8.245 (Lei do Inquilinato) foi editada em 18.10.91, ou seja, anos antes do advento da Lei 9.099/95. Quando aquela entrou em vigor, portanto, os Juizados Especiais Cíveis não tinham sequer sido criados. Se os Juizados sequer existiam, como então se explica a previsão constante do seu art. 80? Embora a lei que criou os Juizados ainda não tivesse sido elaborada, a Constituição, àquela época, já continha regra programática de observância obrigatória pelos entes federativos, impondo a estes a criação dos órgãos especiais (art. 98, I). Era previsível, por conseguinte, que a criação dos Juizados, posta no texto legal como um dever governamental dos Estados e da União, seriam criados e instalados num futuro próximo. Foi assim, diante dessa circunstância, que o redator do art. 80 expressou que as ações de despejo poderão ser consideradas como causas cíveis de menor complexidade". Note-se que não disse, desde logo, que as ações de despejo são consideradas causas de menor complexidade, deixando entrever que apenas continha autorização prévia para a decisão política que somente seria tomada a posteriori, com a edição de Lei 9.099/95, esta sim demarcadora do conceito de "causa cível de menor complexidade. E, como os formuladores da Lei 9.099/95 só fizeram referência à ação de despejo para uso próprio, é porque pretenderam afastar todos os demais tipos de ação de despejo do rol de competência do Juizado Especial.

 

O art. 80 da Lei 8.245/91, diante das razões expostas, não pode ser considerado como norma definidora de competência. Mesmo que se considere em contrário, ainda assim não pode restar ampliada a competência dos Juizados Especiais para abarcar indistintamente as ações de despejo, pois afigura-se imperioso reconhecer como revogado aquele artigo de lei (o art. 80 da Lei 8.245/91), por aplicação da regra do art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil, que consagra princípio de hermenêutica de elevada importância - o de que a lei posterior revoga a anterior. Com efeito, se no seu art. 3º, a Lei 9.099/95 permitiu a opção pelo Juizado Especial apenas para a ação de despejo para uso próprio, firmou a regra de que em todos os outros casos de despejo não se admite tal opção ("Positio unius, exclusio alterius"). Tendo regulado a matéria de maneira inteiramente diversa, tornando-se incompatível com a Lei 8.245/91 (art. 80), que dá esta como derrogada.

 

O art. 93 da Lei 9.099/95, é de se ver por fim, não autoriza o legislador estadual a estender a competência do Juizado para o processo e julgamento de causas além daquelas por ela já incluídas. O legislador estadual, em matéria de competência, tem que obedecer aos lindes já demarcados na Lei 9.099/95(7). Como as demais ações de despejo foram por ela afastadas do rol de competência do órgão especialíssimo, as leis locais de organização judiciária não podem desrespeitar seus marcos competencionais(8).

 

3. Cumulação de pedidos na ação de despejo

 

Não sendo possível a formulação de pedido de despejo com outro fundamento que não o uso próprio, segue-se que não pode haver pedido com duplo fundamento, verificado na existência da pretensão de retomada com base na utilidade pessoal e qualquer outro dos motivos elencados em lei (Lei 8.245/91) como causa do despejo. Poderá haver, no entanto, e em um caso específico, a cumulação de pedidos. De fato, poderá o locador que pretende retomar o imóvel para dele fazer uso pessoal, cumular o pedido de retomada com o de condenação no pagamento de alugueres, caso estes estejam em atraso, com fundamento no art. 15 da Lei 9.099/95. O pedido de despejo, nesse caso, não terá dupla motivação, pois o seu fundamento permanece único - o uso próprio; apenas se aproveita a permissão da lei processual para, em um mesmo processo, se fazer mais de um pedido, em razão da circunstância de que, entre o pedido de despejo para uso pessoal e o de cobrança dos alugueres, fica evidenciada a existência de identidade da causa petendi(9). Em havendo a cumulação de pedidos, o de cobrança dos alugueres em atraso fica submisso ao valor de alçada (de 40 salários mínimos), já que entra na competência do Juizado Especial pelo inc. l do art. 3º daquele texto legal.

 

4. Aplicação da Lei 8.245/91 na ação de despejo perante o Juizado Especial

 

A Lei 9.099/95 não contempla o Código de Processo Civil ou outras leis processuais especiais como fonte de aplicação subsidiária, nos casos por ela omitidos. Isso significa que não se pode, no processo e procedimento por ela instituídos, tomar de empréstimo dispositivos do Código de Processo Civil (ou de leis processuais extravagantes) para instituir formas sacramentais não expressamente nela previstas, em antinomia com a feição dos seus princípios informativos, enunciados no art. 2º. Mas, conquanto não se lhe aplique sempre supletivamente o Código de Processo (ou outras leis de cunho processual), é aceitável que, no silêncio desta lei, as proposições basilares e diretoras constantes de outras leis, como os princípios gerais do processo, e quando não conflitantes com qualquer dos seus critérios informativos, possam ser trazidas para o seio do procedimento sumaríssimo.

 

Nessa ordem de raciocínio, resta saber se a Lei 8.245, de 18 de outubro de 1991 (Lei do Inquilinato), pode ser aplicada e em que casos ao processo e julgamento das ações de despejo, quando movidas perante os Juizados Especiais, com fundamento no uso próprio.

 

Cumpre de logo observar que a Lei 8.245 a um só tempo regula as locações de imóveis urbanos e disciplina os procedimentos das ações a ela pertinentes, com o que fica claro que acolhe normas de conteúdo processual e também regras de direito material. A dificuldade reside, assim, inicialmente em se definir a natureza da norma e, uma vez feito isso, quais dentre as de cunho processual, aquelas que podem ser aplicadas sem ferir a índole do procedimento sumaríssimo.

 

Relativamente ao despejo para uso próprio, inserida no campo do Capítulo II, do Título I, que trata "Das Disposições Especiais", destaca-se a do art. 47, § 1º, "a", sobre a exigência do retomante demonstrar a necessidade de usar o imóvel, se estiver ocupando, com a mesma finalidade alegada para a retomada, outro de sua propriedade situado na mesma localidade ou se, embora residindo e utilizando imóvel alheio, já tiver retomado o mesmo imóvel anteriormente.

 

Trata-se de regra de direito processual, embora não introduzida no Título II (Dos Procedimentos). Com efeito, lei processual não é somente a que regula a forma e a dinâmica do processo - o procedimento -, mas compreende tudo o que se relaciona com a jurisdição civil, daí porque regras sobre o exercício do direito de ação(10) se incluem no espectro das normas processuais. E a norma em destaque (alínea "a" do § 1º, do art. 47) diz respeito ao exercício do direito de ação. Revela especificamente uma "condição de procedibilidade" da ação de despejo com fundamento no uso próprio. Estando ligada ao próprio exercício do direito de ação (mesmo não sendo relativa a procedimento), não pode deixar de ser exigida como condicionamento à decretação do despejo, independentemente do procedimento adotado para atuação em juízo. As condições de procedibilidade da ação, se assim se pode dizer, têm a ver com o próprio direito material, a que estariam jungidas.

 

Nas ações de despejo aforadas junto ao Juizado Especial Cível, por conseguinte, o locador fica dispensado de demonstrar a necessidade da retomada para uso próprio, que é presumida, a não ser nas hipóteses tratadas no art. 47, § 1º, "a", (da Lei 8.245/91), preceito de exceção que impõe a prova da necessidade pelo retomante que ocupa outro imóvel de sua propriedade ou que, apesar de residir em prédio alheio, já exerceu o direito de retomada anteriormente. Se, todavia, o pedido para uso próprio for feito por quem reside em prédio alheio e exerce pela primeira vez o direito de retomada, compete-lhe tão-somente a comprovação da propriedade ou do compromisso, nas condições enunciadas no § 2º do art. 47. Nesse último caso, é permitido ao locatário demonstrar a insinceridade do pedido do retomante; tratando-se de simples presunção, a sinceridade da retomada fica afastada ante prova em contrário produzida pelo inquilino.

 

Deverá também o autor comprovar, ao longo do procedimento sumaríssimo, ser proprietário, promissário comprador ou promissário cessionário, em caráter irrevogável, com imissão na posse do imóvel e título registrado junto à matrícula do mesmo, segundo exige o art. 47, § 2º, da Lei 8.245/91. Cuida-se aqui de pressuposto e condição da ação, e a regra processual que a envolve, igualmente como a do § 1º do mesmo artigo, deverá ser observada em função de regular o exercício do direito de ação, sem guardar uma relação direta com a competência do órgão jurisdicional ou com o procedimento escolhido; é dizer: pouco importando seja a demanda ajuizada na Justiça comum ou ante o Juizado Especial.

 

Por força dessa regra, portanto, somente estão legitimadas para a propositura da ação de despejo com fundamento no uso próprio, aquelas pessoas indicadas no dispositivo em foco - o proprietário, o promissário comprador ou promissário cessionário, estes dois últimos desde que os títulos (promessa de compra e venda, cessão ou promessa de cessão) atribuam-lhes a condição de dominus em caráter irrevogável(11) e que estejam investidos na posse. Em todos os casos, o exercício do direito de ação pressupõe a comprovação da qualidade do autor, através da inscrição do título no registro imobiliário(12).

 

Essa regra do § 2º do art. 47 tem sido alvo de críticas, nas mais das vezes infundadas. Alguns entendem que, como o escopo da ação de despejo é a discussão da relação ex locato, e não o jus in re, bastaria a prova da locação para possibilitar a retomada. No caso do locador não corresponder à pessoa que detém o domínio sobre o imóvel, ficaria privado de reavê-lo, alegam os que combatem a norma.

 

Em outras hipóteses, quando a ação de despejo é movida com fundamento diverso, a legitimação atribuída com exclusividade ao proprietário mostra-se realmente absurda, como nos casos em que a retomada é pedida para a realização de obras no prédio locado (art. 9º, IV e art. 47, IV, c/c art. 60). De fato, nessas situações, o despejo é concedido em face de circunstâncias envolvendo o próprio imóvel, que necessite de reparos, daí porque a ação deveria ser exercitada pelo locador, mesmo não sendo este o proprietário, a exemplo da pessoa que administra o imóvel e recebeu poderes do proprietário para locá-lo em seu próprio nome. Mas no caso do despejo para uso próprio (ou para uso do cônjuge ou companheiro, ou ainda para uso residencial de ascendente ou descendente) a restrição tem razão de ser, pois em não se exigindo a prova da propriedade, aquele administrador do caso citado restaria legitimado ao exercício da ação em nome próprio, e não é essa a intenção da lei. O benefício da retomada, com fundamento no uso próprio ou para uso de familiares, só alcança o senhor da coisa, aquele que detém o domínio(13) sobre o imóvel.

 

Sendo justamente essa a intenção da lei - a de restringir o pedido de retomada, quando fundamentado no uso próprio, àqueles que detêm o domínio do imóvel -, e como a propriedade de imóvel adquire-se pela transcrição no Registro de Imóveis dos títulos translatícios por ato entre vivos (art. 530, I, do CC), decorre que proprietário somente pode ser considerado aquele que tem título registrado, ficando à mostra a razão pela qual se exige, como condição de exercício da ação, a prova da propriedade por meio de certidão do Registro de Imóveis.

 

Em determinadas situações ocorrentes na vida prática, no entanto, vamos encontrar pessoas que efetivamente detêm o domínio sobre um bem imóvel, pois que reúnem os requisitos característicos da propriedade (uso, gozo e disposição da coisa), embora sem título registrado. É a situação por exemplo da aquisição de imóveis por pessoas carentes, através de ocupações que acabam sendo regularizadas pelo Poder Público, ou da compra e venda de imóveis de reduzido valor, em que as partes nem sequer celebram o negócio por meio de um contrato escrito. Em todos esses casos, a falta de escrituração e registro do imóvel decorre da ausência de condições mínimas materiais e de informação do proprietário(14). Em geral são pessoas carentes, que não podem arcar com as despesas de registro e escritura, e que têm na renda auferida com o aluguel do imóvel às vezes a única fonte de subsistência.

 

O jurista não pode ser insensível a essa realidade e, desde que presentes essas condições, não seria desarrazoada uma jurisprudência construída na dispensabilidade do título registrado, para o exercício da ação de despejo. Em se tratando de demanda aforada perante os Juizados Especiais, ainda mais se justificaria a inclinação jurisprudencial por esse caminho, em razão de dois fatores centrais: a existência de uma preocupação social e política na prestação jurisdicional às pessoas mais humildes e suas causas modestas(15), e a presença da regra do art. 6º da Lei 9.099/95, que adere o Juiz de uma maneira ainda mais profunda ao compromisso com a justeza dos julgamentos, ao recomendar que adote "em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum".

 

Já no que diz respeito ao art. 61 da Lei 8.245/91, temos ser de difícil aplicação no processo do Juizado Especial, por envolver norma de natureza eminentemente procedimental, cujos contornos se desviam do procedimento sumaríssimo. Explica-se: o reconhecimento da procedência do pedido, pelo enunciado do citado dispositivo, somente acarreta a concessão do prazo de seis meses, para a desocupação, quando o locatário se dispõe a fazê-lo no prazo da contestação. No procedimento ordinário da ação de despejo tal regra tem sentido porque a contestação é o primeiro ato processual a cargo do réu, cujo prazo para sua realização começa a correr a partir da citação (juntada aos autos do processo do mandado de citação devidamente cumprido - art.). Se, logo que tem ciência da súplica do autor, ao receber a citação, o réu ao invés de contestar o pedido de desocupação, adere à pretensão daquele, beneficia-se com a fixação de prazo bastante largo para efetivar a entrega do imóvel. No procedimento sumaríssimo, por sua vez, o réu não é citado para contestar o pedido, mas para comparecer à audiência preliminar de conciliação, só havendo contestação a posteriori (na oportunidade da audiência de instrução e julgamento), se ultrapassada essa fase inicial. Daí decorre a incompatibilidade do procedimento sumaríssimo com a regra estampada no art. 61 da Lei 8.245/91. Na audiência de instrução e julgamento, ocasião em que no procedimento sumaríssimo o réu contesta a reivindicação feita pelo autor, já escorrera a primeira oportunidade para que pudesse concordar com a desocupação. Nesta fase já se encontraria realizada sem sucesso a tentativa (audiência) conciliatória, onde todos os esforços são concentrados na busca de uma solução conciliada. Não se poderia pensar, pois, em conferir ao réu, dentro do procedimento sumaríssimo, o direito ao prazo elastecido para desocupação, se a concordância com o pedido se perfizer somente na audiência de instrução e julgamento.

 

Seria mais lógico, então, raciocinar no sentido da possibilidade de atribuição ao réu-locatário do prazo do art. 61 quando a concordância com o pedido ocorre logo na audiência de conciliação, primeira oportunidade que tem de se manifestar no processo, não produzindo, a adoção dessa regra, qualquer deformação no procedimento sumaríssimo, podem imaginar alguns. Pensamos que, mesmo assim, a regra do citado artigo de lei não se conforma com o procedimento sumaríssimo. Volte-se a repetir que a norma em apreço é própria do procedimento especial da ação de despejo, que não se coaduna com o rito sumaríssimo, até porque traz a previsão de dispensa do pagamento de custas e honorários advocatícios fixados na sentença monocrática, como incentivo para que o réu desocupe o prédio no prazo de seis meses, o que seria de total ineficácia em se tratando de ação de despejo ajuizada junto ao Juizado Cível, onde o acesso ao primeiro grau de jurisdição é sempre gratuito, não podendo constar de dispositivo da sentença condenação ao pagamento dos consectários da sucumbência (art. 55, primeira parte, da Lei 9.099/95).

 

No procedimento sumaríssimo, em caso de concordância com o pedido de despejo logo por ocasião da audiência prévia de conciliação, o prazo de seis meses para desocupação do imóvel poderá ser conferido ao réu não em reconhecimento a um direito subjetivo processual, mas, se for o caso, em cumprimento a acordo celebrado nos autos e homologado por sentença do Juiz. Nada impede, e será em todos os casos proveitoso, que o conciliador sempre faça às partes a proposta de desocupação com prazo mais largo, buscando assim salvaguardar a perceptível intenção do legislador no art. 61 da Lei 8.245/91, que é a de resolver a lide logo no início, impedindo que se desenvolva e consuma o esforço do aparelho judiciário.

 

5. Valor da causa na ação de despejo

 

O valor da causa em ação de despejo aforada junto ao Juizado Especial corresponderá, sempre, a doze meses de aluguel, a teor do que prescreve o art. 58, III, da Lei 8.245/91.

 

À primeira vista pode não parecer importante a fixação do valor da causa na ação de despejo, já que este não influi na competência do órgão especial e que a sentença que julga procedente a ação não inclui condenação em dinheiro, bem como não carrega sobre a parte vencida o ônus da sucumbência, no que diz respeito a honorários advocatícios e custas (art. 55, primeira parte). o valor da causa, entretanto, tem fundamental importância na hipótese de haver recurso da sentença monocrática, pois o ingresso no segundo grau de jurisdição depende da satisfação de custas processuais (preparo prévio, que inclui todas as despesas dispensadas no primeiro grau art. 54, parágrafo único) e pressupõe o pagamento, pelo recorrente vencido, de honorários advocatícios. A gratuidade do acesso ao Juizado se restringe ao primeiro grau de jurisdição. Em caso de recurso, a parte que movimentar a máquina judiciária para promover o reexame da causa, responde por custas processuais e honorários advocatícios, em sofrendo uma derrota no seu julgamento. E a fixação dos honorários, nessa hipótese, que podem variar entre o percentual de dez a quinze por cento, tomará sempre por base de cálculo o valor atribuído à causa, devidamente corrigido (art. 55, parte final), pela simples razão de que nas ações de despejo não há condenação.

 

6. Execução da sentença de despejo no Juizado Especial

 

Adota-se, quanto à execução, o processo especial previsto na Lei 8.245/91:

 

a) a fixação pelo juiz na sentença do prazo de desocupação (art. 63);

 

b) a execução provisória e a caução correspondente (art. 64);

 

c) a execução do despejo (art. 65); e

 

d) a imissão de posse no caso de abandono do prédio (art. 66).

 

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